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O CORRESPONDENTE

Os melhores textos dos jornalistas livres do Brasil. As melhores charges. Compartilhe

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O CORRESPONDENTE

27
Ago23

Relatório demonstra como o governo militar de Bolsonaro “estrangulou” a saúde Yanomami - II

Talis Andrade
 
Garimpo ilegal no rio Parima, TI Yanomami, altera geografia local e contamina águas

 

Estudo confirma que pelo menos 692 crianças de até 9 anos morreram no período. Governo Lula encontrou “cenário de terra arrasada”

por Rubens Valente

Agência Pública

O “estrangulamento orçamentário”, como diz o estudo, se manteve em 2020, quando a malária explodiu dentro do território, atingido nada menos que 79% da população indígena (22 mil infectados), incluindo “2,3 mil bebês com menos de dois anos de idade”.

“[Em 2020] morreram 162 crianças com menos de 5 anos por causas evitáveis, ou seja: que poderiam ter sido salvas caso houvesse atendimento em saúde adequado. A taxa de mortalidade infantil no DSEI Yanomami era a pior de todos os DSEIs, e superior à da África Subsaariana”, aponta o estudo.

De acordo com o relatório, como resposta a uma série de recomendações e pressões da sociedade civil, da imprensa e do Ministério Público Federal (MPF), o governo federal “mudou a postura em 2021 e 2022” e injetou mais recursos no Dsei-Y, “porém sempre abaixo dos patamares verificados entre 2013 e 2018”.

Quando, em janeiro de 2023, o governo Lula assumiu e declarou a emergência sanitária, foi constatado “um cenário de terra arrasada nas unidades de atendimento do DSEI-Y”. São 37 pólos-base de saúde na terra indígena.

“Escassez de suprimentos, funcionários cozinhando no fogão à lenha por falta de botijões de gás, armazenamento e controle precário de medicamentos – muitos deles distribuídos às vésperas do vencimento –, esgoto sanitário a céu aberto, materiais de limpeza e de higiene custeados pelos profissionais, macas enferrujadas e sem colchão”, diz o relatório sobre a realidade que o governo Lula encontrou nas unidades de saúde na terra indígena.

O baixo investimento do governo Bolsonaro, principalmente nos anos de 2019 e 2020, “foi inversamente proporcional às necessidades”, diz o relatório. Em janeiro de 2023, quando se revelou a extensão da crise, a Casa de Saúde Indígena de Boa Vista (RR) contava com 700 pessoas, entre pacientes e familiares, enquanto sua capacidade era de apenas 200. “O grupo emergencial [do governo Lula] listou problemas de infraestrutura e limpeza, com ‘fezes para todo lado’ e ‘esgoto a céu aberto’.”

 

Falta controle nos gastos com transporte aéreo 

O levantamento do “Achados e Pedidos” apontou ainda “a fragilidade de mecanismos de planejamento e controle interno no DSEI-Y”. O distrito liquidou R$ 118,4 milhões com serviços de táxi aéreo de 2019 a 2022, o que representou cerca de 62% de todas as liquidações no período. Um terço desse valor, contudo, ocorreu “mediante contratos por dispensa de licitação, realizados em caráter emergencial”. O uso recorrente dessa modalidade, aponta o relatório, “não é só mais ineficiente economicamente, como também mais vulnerável à malversação dos recursos públicos” e “indica, no mínimo, falhas de planejamento no DSEI-Y”.

O acesso a 98% das 371 aldeias na terra indígena se dá apenas por aviões e helicópteros. Por isso, o serviço aéreo é fundamental para o atendimento. Porém “o sistema é precário: faltam até macas e pranchas adequadas”. No final de 2022, diz o relatório, três crianças morreram “em razão da falha do serviço de transporte aeromédico e impossibilidade de locomoção”.

A falta de “atenção primária e rotinas de vigilância” transforma o atendimento à saúde nos Yanomami em “uma rotina baseada em remoções”, quase todas por via aérea, de fora da terra indígena para Boa Vista e vice-versa. “Com políticas públicas de prevenção e acompanhamento frágeis, gasta-se mais dinheiro com serviços de transporte aéreo”, apontou o relatório. Apenas em 2022, foram feitos 1.819 resgates aéreos. Os principais motivos foram “desnutrição grave, diarréias, desidratação severa, Síndrome Respiratória Aguda Grave e malária”.

 

Estudo recomenda a responsabilização dos gestores públicos

A partir de janeiro de 2023, com a intervenção executada pelo governo Lula, registra-se uma importante recuperação nos valores orçamentários. No primeiro semestre de 2019 e de 2020, o governo Bolsonaro empenhou no Dsei-Y R$ 33 milhões e R$ 28,6 milhões, respectivamente, contra R$ 40,78 milhões no primeiro semestre de 2018 e R$ 39,6 milhões no mesmo período de 2017. Nos seis primeiros meses em 2023, já no governo Lula, esse valor subiu para R$ 85,8 milhões, o recorde nos últimos dez anos e quase o triplo do registrado em 2020.

O relatório esclarece que “o empenho não significa que o serviço foi executado ou o produto, entregue (o que ocorre na fase de liquidação). Entretanto, o maior volume de recursos empenhados representa uma maior disponibilidade orçamentária do DSEI-Y em relação aos anos anteriores”.

Uma das recomendações do estudo é que “sejam criados mecanismos para impedir redução abrupta da disponibilidade orçamentária dos DSEIs, em especial do Yanomami, como verificado em 2019 e 2020”. O estudo pede ainda que “gestores públicos, empresas e organizações sejam responsabilizados administrativa e judicialmente por irregularidades e eventuais fraudes na execução das despesas relativas ao DSEI Yanomami, e pela omissão frente à clara necessidade de atenção à saúde no território – caracterizada, entre outros elementos, pela baixa execução orçamentária em investimentos evidenciada neste relatório”.

O relatório explica que “a análise envolveu a checagem de dados por meio de quatro fontes distintas: Portal da Transparência do governo federal, Siga Brasil (Senado Federal), Tesouro Nacional e o próprio Ministério da Saúde, via Lei de Acesso à Informação (LAI). O trabalho é parte do projeto Achados e Pedidos, realizado em parceria pela Abraji (Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo) e pela Transparência Brasil. A iniciativa é financiada pela Fundação Ford”.

A direção executiva foi de Juliana Sakai, com supervisão de Marina Iemini Atoji e análise de dados e redação de Cristiano Pavini, Raul Durlo e Talita Lôbo.

 

27
Ago23

Relatório demonstra como o governo militar de Bolsonaro “estrangulou” a saúde Yanomami

Talis Andrade
Condisi-YY/Divulgação
Condisi-YY/Divulgação
Invadida por garimpeiros e madereiros e abandonada pelo governo Bolsonaro, Terra Indígena Yanomami sofre com malária, contaminação por mercúrio e desnutrição severa

 

Estudo confirma que pelo menos 692 crianças de até 9 anos morreram no período

 

por Rubens Valente

Agência Pública

Um relatório produzido pelo projeto “Achados e Pedidos” revelou “o estrangulamento” da aplicação de recursos do órgão do governo federal responsável por cuidar da saúde de 28 mil indígenas Yanomami e Ye’kwana, em Roraima e Amazonas, durante os quatro anos do governo de Jair Bolsonaro (2019-2022). Em janeiro de 2023, o governo de Luiz Inácio Lula da Silva declarou emergência sanitária e deflagrou uma operação para retirada dos invasores da terra indígena, ao denunciar uma grave crise de fome, malária e altos índices de mortalidade no território.

“A redução orçamentária da saúde indígena Yanomami desembocou na tragédia humanitária. […] Os dados oficiais são precários, incongruentes, subnotificados e parciais, mas ao menos 692 crianças Yanomami com até 9 anos morreram de 2019 a 2022”, apontou o relatório

O “Achados e Pedidos”, projeto realizado pela Transparência Brasil e pela Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji), examinou o orçamento executado de 2019 a 2022 pelo Distrito Sanitário Especial Indígena Yanomami (Dsei-Y), sediado em Boa Vista (RR), vinculado ao Ministério da Saúde. Foram ministros da Saúde no período Luiz Mandetta (2019-abril de 2020), Nelson Teich (abril e maio de 2020), Eduardo Pazuello (2020-2021) e Marcelo Queiroga (2021-2022).

O relatório lembra que em janeiro de 2018, quando Bolsonaro assumiu a Presidência, “o sinal de alerta já estava aceso no DSEI-Y”. Em 2018, segundo o estudo, “ao menos 119 bebês haviam morrido antes de completar um ano”, “cerca de 2,5 mil crianças com menos de cinco anos apresentavam peso baixo ou muito baixo e outras mil sequer eram monitoradas” e havia pelo menos 10 mil casos de malária, “uma alta de 26% em relação ao ano anterior [2017]”.

Um estudo conduzido pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), segundo o relatório, constatou que “a situação nutricional das crianças Yanomami é a mais delicada já reportada em toda a literatura científica nacional e uma das maiores em escala mundial”.

“Fica evidente que o governo Bolsonaro sucateou o distrito sanitário”

Apesar de todos esses alertas, “o volume de recursos federais aportados no DSEI-Y em 2019 foi o menor desde 2013”. Aplicando a correção inflacionária, “houve um corte de 26% nas liquidações em relação ao ano anterior e de 48% se comparado a 2016”.

A política adotada nos dois primeiros anos do governo Bolsonaro teve impacto profundo na saúde Yanomami. “Em 2019, os casos de malária dobraram. Os dados oficiais apontam, incluindo todas as causas, a morte de 190 crianças e jovens com menos de 20 anos – 14% superior a 2018.”

No mesmo ano, a taxa de liquidação dos empenhos para a saúde Yanomami “foi de apenas 79%, a mais baixa desde 2013”. Em 2019, cerca de R$ 10,8 milhões, em valores corrigidos pela inflação, “tiveram o empenho emitido, mas não foram liquidados”, ou seja, “houve reserva de recursos, mas não ocorreram contratações ou entrega dos produtos e serviços correspondentes eventualmente contratados”.

“No comparativo com anos anteriores, fica evidente que o governo Bolsonaro sucateou o DSEI-Y. Em 2018, foram empenhados R$ 7,1 milhões na categoria investimento em valores correntes. Em 2019, apenas R$ 96,3 mil. No ano seguinte, nada foi lançado nessa classificação. Os investimentos, em geral, significam aquisições de equipamentos de longa duração e obras, ou seja, melhorias estruturais.”

O relatório cita algumas despesas realizadas pelo Dsei-Y antes de Bolsonaro chegar à Presidência. No final de 2018, durante o governo de Michel Temer (2016-2018), por exemplo, o distrito sanitário comprou 50 refrigeradores para armazenamento de vacinas e medicamentos, ao custo de R$ 5,8 milhões. Em 2016, os investimentos somaram R$ 2,96 milhões. Durante os quatro anos do governo Bolsonaro, contudo, foi empenhado apenas R$ 1,3 milhão em investimentos no Dsei-Y.

O maior empenho individual, diz o relatório, foi para a compra de 30 botes de alumínio no padrão “‘embarcação patrulha’, com capacidade para transportar de 8 a 12 homens armados, e com ‘padronização de pintura do Exército brasileiro’, ao custo de R$ 367 mil”. (continua)

29
Jul23

Quase 800 indígenas foram assassinados durante governo Bolsonaro

Talis Andrade

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Documento do Conselho Indigenista Missionário quer Comissão da Verdade para investigar mortes e conflitos armados


Bruna Bronoski

Agëncia Pública


* Maioria das mortes foi no Mato Grosso do Sul, Amazonas e Roraima
* No Mato Grosso do Sul, documento registra indígenas comendo lixo

 

Ao sair para buscar lenha numa fazenda vizinha à reserva de Taquaperi, no Mato Grosso do Sul, um jovem indígena Guarani-Kaiowá de 18 anos foi morto por cinco disparos de arma de fogo. No Amazonas, a cacique do povo Kulina denunciou o assassinato de ao menos sete indígenas das aldeias da região, entre eles o de um adolescente de 15 anos, decapitado. Em Roraima, a tentativa de assassinato de um grupo de cinco indígenas Xirixana por garimpeiros resultou na morte de uma liderança. Para fugir dos disparos, as vítimas se jogaram no rio Uraricoera. Todos os crimes ocorreram em 2022. Ao todo, quase 800 indígenas foram assassinados entre 2019 e 2022.

Os três estados citados acima — Mato Grosso do Sul, Amazonas e Roraima — são os mais letais para indígenas no Brasil, conforme o relatório anual do Conselho Indigenista Missionário (CIMI), divulgado nesta quarta-feira (26) ao qual a Agência Pública teve acesso. Os dados do período de 2019 a 2022, sob o governo de Jair Bolsonaro (PL), são da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), do Sistema de Informação sobre Mortalidade (SIM) e das secretarias estaduais de saúde.

Nos estados de Roraima e Amazonas, onde está a Terra Indígena Yanomami (TIY), houve 208 e 163 assassinatos de indígenas no período, respectivamente. Em terceiro lugar no ranking de mortes violentas contra indígenas aparece o Mato Grosso do Sul, com 146 casos. Juntas, as três unidades federativas foram responsáveis por 65% dos assassinatos no período. Em todo o país, foram registrados 795 homicídios nos quatro anos.

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Christian Braga/Greenpeace. No Amazonas e Roraima, onde está a Terra Yanomami, foram registrados 371 assassinatos de indígenas

 

As mortes por assassinato não são a única causa de extermínio indígena. Invasão de terras, negligência ou negativa de assistência médica, redução de verba pública para órgãos de proteção, racismo, ameaças e violência física e sexual são causas apontadas para o extermínio de indígenas. Outro ponto levantado pelo relatório é a falta de políticas públicas contra o suicídio.

O documento também pontua a necessidade de criação de uma Comissão Nacional Indígena da Verdade (CNIV), a exemplo da comissão instalada para investigar crimes da ditadura civil-militar brasileira.

 

Governo negligencia fome, doenças e mortes evitáveis

 

O governo Bolsonaro não demarcou nenhum centímetro de Terra Indígena no Brasil, como prometido antes da posse. Sua política indigenista é considerada “genocida” e promotora da “naturalização da morte indígena”. O governo Bolsonaro foi o primeiro desde a redemocratização a não homologar nenhuma TI, o que, para o CIMI, contribuiu para a desassistência à saúde e à morte indígena.

O relatório indica que, sem a demarcação de suas áreas, há grupos que não possuem terras ou águas suficientes para produzir os próprios alimentos. Eles ficam assim dependentes de políticas de assistência social.

O cerco, segundo o relatório, ocorreu dos dois lados sob o governo Bolsonaro. De um lado, não houve andamento dos estudos de Grupos Técnicos (GTs) da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), nem daqueles criados por determinação judicial, para que qualquer território indígena reivindicado fosse reconhecido no Brasil. De outro, o governo federal interrompeu o fornecimento de cestas básicas entre agosto e dezembro de 2022, antes e depois do período eleitoral, entre outras desassistências.

Segundo o documento, ao menos 800 indígenas das etnias Avá-Guarani, do oeste do Paraná, e Mbya Guarani, do Rio Grande Sul, vivenciaram situações de fome, principalmente entre crianças. Segundo o CIMI, os “espaços diminutos” em que vivem impedem qualquer forma de sobrevivência pela terra. 

Em Dourados (MS), houve registros de indígenas se alimentando de lixo para comer. O relatório traz o depoimento da liderança indígena Erileide Domingos, da aldeia Guyraroka, que denunciou o caso à Organização das Nações Unidas em agosto de 2022. “A fome é resultado da desorientação do Estado brasileiro. É muita falta de piedade com o outro, de olhar os pobres, sem condições, sem emprego, sem possibilidade de plantar, não conseguimos produzir nada, não conseguimos ser ninguém”, relata Erileide no documento.

 

Omissão na saúde matou mais de três mil crianças indígenas, diz relatório

 

A omissão na área da saúde é outro ponto que levou à morte centenas de indígenas em todo o país.

Mais de 3.550 crianças de até 4 anos de idade morreram entre 2019 e 2022 em territórios indígenas. Os estados de Roraima e Amazonas carregam a maior quantidade de casos, desta vez seguidos pelo Mato Grosso. 

Uma em cada três mortes infantis registradas pela Sesai eram evitáveis, conforme análise de dados do CIMI a partir da Nota Técnica do Ministério da Saúde. Falta de acompanhamento da gestação, casos de gripe e pneumonia, desnutrição, diarreias e doenças infecciosas tratáveis estão entre os motivos que evitaram que 1.504 crianças pudessem chegar à fase adulta.

Para o CIMI, a desassistência médica é fator diretamente ligado à política indigenista empregada pelo governo federal nos últimos quatro anos. O caso de maior repercussão foi a falta de acesso às políticas públicas de saúde por parte dos indígenas Yanomami, denunciado pela Pública em diversas reportagens. O Distrito Sanitário Especial Indígena Yanomami e Ye’kwana (Dsei-YY) registrou, só em 2022, 134 mortes de crianças entre 0 a 4 anos.

Na TI Yanomami, a invasão do garimpo estrangula serviços públicos indigenistas, entre eles os de saúde, denuncia a Hutukara Associação Yanomami (HAY) no relatório. “A captura da estrutura de saúde por garimpeiros gerou uma situação de desassistência generalizada no território”, afirma o documento sobre os postos de saúde que fecharam no território pela sensação de insegurança com a presença da atividade ilegal e armada.

 

Governo atrasou vacina e não reforçou políticas para prevenir o suicídio

 

Entre os adultos, a maior quantidade de mortes foi no Mato Grosso, com 136 casos. Entre as causas estão o atraso da chegada da vacina aos territórios, estadias em más condições quando grupos de indígenas se dirigem aos centros urbanos em busca de serviços, infecções gastrointestinais causadas por poluição da água, consumo de agrotóxicos pela água, entre outros.

Se crianças e adultos indígenas morrem por desassistência médica, a omissão estatal entre os jovens indígenas ocorre pela falta de outra política pública: a de prevenção ao suicídio. Novamente, estados já citados em outras estatísticas negativas lideram a causa da morte por suicídio entre indígenas. A cada cinco registros no quadriênio 2019-2022, dois ocorreram no estado do Amazonas e um no Mato Grosso do Sul. Ao todo, 535 indígenas tiraram a própria vida no período. Destes, 35% eram jovens menores de 19 anos.

 

Destruição de bens indígenas

 

O Conselho das Aldeias Wajãpi-Apina denunciou, em fevereiro de 2022, a poluição dos rios pela invasão garimpeira na Terra Indígena (TI) Waiãpi, no Amapá: “Fotos e vídeos de várias aldeias mostram as águas com muita lama e como dependemos dos rios para beber água e tomar banho, isto gerou muita preocupação para os nossos chefes e famílias.”

O registro afirma que os garimpeiros provocam danos aos bens naturais essenciais que afetam o modo de vida indígena no entorno e dentro da TI.

Mais ao oeste, outro caso de invasão ao maior patrimônio indígena, a floresta. A autorização para abrir um ramal dentro da TI Jaminawá/Iguarapé Preto, ligando dois municípios, partiu do Instituto de Meio Ambiente do Acre. Por se tratar de Terra Indígena, o licenciamento ambiental da obra deveria passar pelo órgão federal competente, o Ibama, e não pelos órgãos estaduais.

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Hellen Loures/CimiHellen Loures/Cimi. Relatório denuncia impactos de desmatamento, criação de gado, agrotóxicos e obras de infraestruturas nas terras indígenas

 

A lista de danos aos territórios, demarcados ou não, é grande. Construção de Pequenas Centrais Hidrelétricas (PCHs), criação de gado, arrendamento de terras, uso de agrotóxicos, construção de presídios estaduais e federais, desmatamento de área sagrada, contaminação das águas e animais por mercúrio, loteamento e outras formas de invasão e destruição ao patrimônio indígena ocupam algumas páginas do relatório.

As maiores estatísticas ocorreram com casos de desmatamento, registrados em 74 TIs, segundo dados do Prodes. Em seguida, aparece a extração ilegal de madeira, areia, castanha e outros recursos naturais, com 65 ocorrências. Já as atividades ilegais de garimpo e mineração, assim como a de caça e pesca ilegais, atingiram, cada uma, ao menos 45 TIs, segundo o relatório. Uma TI pode constar em um, dois ou mais tipos de ocorrência.

De acordo com o CIMI, os danos ao patrimônio indígena têm como consequência o aumento de conflitos por direitos territoriais. O assassinato do jovem Guarani-Kaiowá com cinco disparos de arma de fogo que abre esta reportagem foi seguido de conflitos por território. 

O documento relembra que o crime incitou ações de retomada indígena, como são chamadas as manifestações e acampamentos para reivindicar uma área ancestral. Conforme documenta o CIMI, as manifestações no município de Coronel Sapucaia (MS) foram “reprimidas com violentas e ilegais operações policiais e emboscadas contra lideranças, que deixaram mortos e feridos”.

 

Sinal “verde” para violar direitos

 

Nomeado em julho de 2019 para presidir a Funai e exonerado só no penúltimo dia do governo Bolsonaro, em 29 de dezembro de 2022, o delegado da Polícia Federal Marcelo Xavier defendeu um ex-coordenador regional da fundação em Mato Grosso do Sul, preso por operação da PF pelo envolvimento no esquema de arrendamento de Terras Indígenas e cobrança de propina para aluguel de pastos. O ex-presidente da Funai disse, em ligação interceptada pela PF, que estava tentando intervir nas investigações que incriminavam o ex-servidor.

“As ações e discursos do governo federal e da Funai, sob a presidência de Marcelo Xavier, serviram como sinalizações que criaram nos invasores a expectativa de que suas posses ilegais dentro de terras indígenas seriam legalizadas em breve”, destaca o CIMI sobre as tentativas de Xavier, via normativas da Funai, de legalizar o garimpo e a extração de madeira em TIs.

O governo agiu em diversas frentes contra os direitos indígenas, aponta o CIMI. Na pasta da Justiça sob Bolsonaro, o então ministro Sérgio Moro definiu, com base da tese do marco temporal, uma relação de áreas indígenas que poderiam ser demarcadas. Proposta pela bancada ruralista, a tese retiraria amplamente os direitos indígenas, afirmam os povos originários e especialistas.

04
Abr23

Visão da ditadura sobre Amazônia operou “totalmente” na gestão Bolsonaro

Talis Andrade

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Políticas do ex-governo Bolsonaro inspiradas nos militares deixaram floresta “mais desprotegida”

 

* “Segurança e desenvolvimento”, lema da ditadura, não foi abandonado
* Ameaças à Amazônia consideradas pelos militares “são suposições”

 


por Anna Beatriz Anjos /Agência Pública

O ideário que orientou as políticas para a Amazônia na ditadura militar, cujo golpe fundador está prestes a completar 59 anos, foi replicado por Jair Bolsonaro em seu governo, que deixou aflorar antigas teorias conspiratórias e fez com que a floresta ficasse mais desprotegida. Essa é a avaliação de Adriana Aparecida Marques, professora do Instituto de Relações Internacionais e Defesa da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e pesquisadora de questões relacionadas às Forças Armadas há mais de duas décadas. 

Marques alerta que, apesar da troca na presidência da República, se a Política Nacional de Defesa não for rediscutida, essa percepção militar em relação à floresta não mudará. “Nenhuma organização se autorreforma, ainda mais uma organização como a militar brasileira, que teve tanta autonomia e poder durante toda a nossa história republicana”, argumenta.

A professora explica também que a militarização dos órgãos de proteção ao meio ambiente e povos indígenas como Ibama, ICMBio e Funai e a realização de Operações de Garantia da Lei e da Ordem (GLOs) contra o crime ambiental na Amazônia ocorridas sob Bolsonaro não são “uma coincidência” e refletem a ideia consolidada durante a ditadura de que “a ocupação militar é sinônimo de proteção e defesa” do bioma. “Já existia essa percepção [dos militares], mas ela não encontrava eco nos outros ministérios. A partir do momento em que isso passou a acontecer, a tragédia ocorreu”, afirma, citando o que aconteceu quando o Ministério do Meio Ambiente estava sob comando de Ricardo Salles (PL-SP), hoje deputado federal.

Marques – que estudou o pensamento militar sobre a Amazônia em sua tese de doutorado – diz ainda que, ao considerarem os povos indígenas e ONGs como ameaças à soberania nacional, além de cultivarem uma crença de que há uma cobiça de outros países sobre a floresta, os militares deixam de encarar os verdadeiros problemas. 

“O que os militares consideram como ameaças são meras suposições”, diz. “Agora, a tragédia Yanomami, os assassinatos de Bruno Pereira e Dom Phillips [indigenista e jornalista britânico mortos em junho de 2022 no Vale do Javari, no Amazonas], a devastação ambiental, temos evidências empíricas sobre isso [de que há ameaças reais na região], e é com base nisso que as pessoas discutem”, aponta. 

A especialista indica o enfraquecimento da diplomacia ambiental do Brasil e das relações com os demais países amazônicos como resultado das políticas inspiradas nos militares que deixaram a Amazônia em situação mais vulnerável nos últimos anos. “Havia uma cooperação que vinha se intensificando entre o Brasil e outros países amazônicos principalmente nessa área de defesa clássica, mas também em relação a crimes transnacionais, e isso tudo foi deixado de lado”, destaca. “A diplomacia não atuou, o Ministério do Meio Ambiente não atuou. Foi um caldeirão de questões que levaram à tragédia que a gente viu.”

 

Anna Beatriz Anjos entrevista Adriana Aparecida Marques

 

Adriana Marques (Foto: Fronteiras)

A ditadura militar foi marcada pela entrega de terras da Amazônia à ocupação por fazendeiros e empresas e a construção, por exemplo, de grandes obras e estradas, como a Transamazônica. Qual a relação dessas medidas com o pensamento militar da época sobre a floresta?

Os grandes projetos para a Amazônia da época da ditadura militar, na verdade, expressam uma visão em relação à Amazônia que é a anterior à ditadura, mas que foi implementada com mais energia durante esse período. A ideia da Amazônia como um espaço vazio que precisa ser ocupado e desenvolvido existe desde o começo do século XX e é forte no imaginário das elites políticas brasileiras. Isso ganha mais impulso principalmente a partir do governo Getúlio Vargas, porque essa visão de integração nacional foi incorporada pelo pensamento geopolítico brasileiro, que nas primeiras décadas do século XX até a década de 1980 foi produzido basicamente por militares do Exército. Então se consolidou nas Forças Armadas uma visão sobre a Amazônia que coincidia com a visão das elites, às vezes das próprias elites amazônicas.

Tem figuras como o Arthur César Ferreira Reis, um político amazônida que escreveu o livro “A Amazônia e a Cobiça Internacional”, lançado em 1960, que teve cinco edições. Seria anacrônica se dissesse que o livro apresenta fake news, porque esse é um termo que usamos agora, mas é um apanhado de teorias da conspiração. A cada nova edição, o autor ia colocando um novo capítulo sobre [supostas] tentativas de estrangeiros de se apossar da Amazônia, e com base nesses argumentos, ele defendia o desenvolvimento econômico da região, o que envolve a adequação dos povos indígenas que vivem ali à civilização ocidental. Então isso não é uma particularidade da ditadura, tanto que o Arthur César Ferreira Reis foi governador do Amazonas na década de 1960. Mas é claro que a ditadura reforça isso, e mesmo depois dela [essa visão persiste]. Por exemplo, o projeto Calha Norte [criado em 1985 na região amazônica para manter a soberania nacional e mantido até hoje pelo Ministério da Defesa] guarda semelhança com esses grandes projetos, na verdade ele é o último dos grandes projetos para a ocupação da Amazônia, mas que começa a ser implementado já no processo de redemocratização. De fato, tem uma perenidade muito grande na visão, em particular do Exército, em relação à Amazônia, a gente viu o quanto isso influenciou o último governo.

A política do governo Bolsonaro para a Amazônia tentava desmontar as políticas públicas construídas durante a Nova República. Depois da ditadura, no governo Sarney, até por conta da repercussão internacional [das altas taxas de desmatamento nos anos 1980], o Brasil começa a adotar algumas políticas ambientais visando à proteção da floresta, e isso se intensificou a partir do governo Fernando Henrique Cardoso e principalmente dos governos do PT. Houve um retrocesso muito grande já perceptível durante o governo Temer que se intensifica no governo Bolsonaro com as consequências que todos sabemos.

 

Como podemos sentir os efeitos dessas políticas até hoje?

O slogan de “integrar para não entregar” está na base da ideia de que existe uma cobiça internacional em relação à região pelos países desenvolvidos. Os Estados Unidos às vezes entram nessa equação, às vezes saem. Eram o vilão, por exemplo, no começo dos anos 2000, mas não no governo Bolsonaro, quando os grandes vilões foram a França e os países europeus junto à China. Os vilões vão mudando, mas a ideia subjacente é de que tem que haver o desenvolvimento econômico e a integração da região via grandes estradas para garantir seu pertencimento ao restante do país. Também há uma visão muito desconfiada em relação aos povos indígenas de que, por tentarem preservar sua cultura, não seriam patriotas e não teriam compromisso com o país, como se isso estivesse vinculado ao fato de usar calça jeans, camiseta, cantar o hino nacional. É uma visão muito estigmatizada do que é ter amor e pertencimento ao país. Dizer que a Amazônia é despovoada é uma maneira de invisibilizar – e isso é um apagamento proposital – a ocupação da região por povos indígenas há milhares de anos. A Amazônia nunca foi um espaço vazio, sempre esteve ocupada pelos povos indígenas, mas eles têm uma outra relação com a floresta, viveram durante milhares de anos na Amazônia em harmonia com a natureza, não precisaram destruí-la para viver ali. Os povos indígenas são vistos pelos militares como um entrave, um obstáculo [ao que entendem como] proteção da Amazônia. 

 

Entre os militares, sustenta-se a ideia de que os Yanomami seriam uma ameaça à soberania nacional por se identificarem como uma “nação”. Poderia explicar isso melhor, por favor?

Esse é o argumento contra a demarcação de terras indígenas. É um debate desde o começo da década de 1990 – a demarcação da Terra indígena Yanomami aconteceu em 1992. Dizia-se [nos meios militares] que iria se criar um enclave. E o mesmo argumento foi usado na questão da Terra Indígena Raposa Serra do Sol [homologada em 2005]. São dois casos muito emblemáticos, os argumentos não mudaram. Por exemplo, o general Heleno [ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional, o GSI, no governo Bolsonaro] é uma figura emblemática, era comandante militar da Amazônia na época da retirada dos ocupantes não indígenas da Raposa Serra do Sol [em 2007]. Ele teve um embate forte com o governo, falou publicamente contra a demarcação contínua. Eles até aceitavam que se demarcassem algumas ilhas, mas não que houvesse demarcação de forma contígua por conta do mesmo argumento de que iria se criar um enclave étnico ali em Roraima.


Quais as características do pensamento militar sobre a Amazônia hoje? Houve alguma mudança em relação às décadas anteriores?

Há a visão de que as organizações não governamentais na verdade estão a serviço das grandes potências. Que as ONGs de proteção ambiental, ao defenderem a demarcação de terras indígenas, têm a intenção de preservar o território para que, no futuro, outros países explorem as riquezas que ao Brasil não foi permitido explorar. Isso tudo é muito presente. Assim como o argumento de que “a Europa acabou com as suas florestas e quer que nós preservemos”. Como se o fato de ter que proteger a floresta fosse um limitador do potencial que o país teria para se desenvolver. Um exemplo recente que mostra de maneira muito cristalina o pensamento dos militares em relação à Amazônia é o documento “Projeto de Nação – o Brasil em 2035”, publicado pelos institutos General Villas Bôas e Sagres em fevereiro de 2022. O trecho dedicado à Amazônia inclusive está na parte sobre defesa nacional, e todas essas ideias cristalizadas estão presentes ali. É interessante porque ele foi produzido agora, durante o governo Bolsonaro – mandaram um questionário para todas as unidades militares e elas responderam. É um documento muito revelador do que pensam os militares dessa geração em relação à Amazônia.

 

Como o pensamento militar sobre a Amazônia se traduziu em ações durante o governo Bolsonaro?

A influência é total, tanto que os próprios órgãos de proteção ambiental e aos povos indígenas, como a Funai e o ICMBio, foram militarizados. Isso não é trivial, não é uma coincidência, é um projeto. A Amazônia é vista como um lugar para ser ocupado militarmente, e que isso é sinônimo de proteção e defesa da região. E militarizar não é só ter um número grande de unidades militares, o que é compreensível do ponto de vista de defesa da soberania, mas é colocar os militares como atores centrais da gestão da Amazônia. A Amazônia Legal é praticamente metade do território brasileiro, e os militares têm um poder enorme na região. A gente começa a ver isso na ditadura militar,  mas mesmo naquela época isso não era tão evidente, porque o movimento de criação de unidades militares na Amazônia se intensifica a partir do processo de redemocratização, principalmente na década de 1990.

Os militares desempenham, em sua visão, um papel de civilizadores, de conquistadores da Amazônia, são os novos bandeirantes. Acham que a estão desbravando e que são eles que a protegem. O projeto Calha Norte, por exemplo, que começou na calha norte do rio Amazonas e agora vai até o Mato Grosso do Sul, teve um impulso enorme no governo Bolsonaro. É um projeto de desenvolvimento regional, mas está alocado no Ministério da Defesa justamente por essa percepção de que desenvolvimento e segurança são binômios, inseparáveis. Além do “integrar para não entregar”, o outro lema da época da ditadura, “segurança e desenvolvimento”, não foi abandonado. É um lema central nos documentos de defesa escritos desde a década de 1990. Desde então, temos um deslocamento de unidades militares para a Amazônia, e no governo Bolsonaro vemos o movimento de militarização de órgãos que não eram militares.


A militarização da área ambiental sob Bolsonaro se deu também por meio do Conselho Nacional da Amazônia Legal – que de 2020 até o fim do governo foi liderado pelo general da reserva Hamilton Mourão (Republicanos-RS), ex-vice-presidente da República e agora senador – e das operações de Garantia da Lei e da Ordem (GLOs) na Amazônia – Verde Brasil 1 e 2 e Sumaúma. Como você avalia essas medidas?

Os resultados do trabalho do Conselho equivalem aos resultados do trabalho da Casa Civil coordenando o enfrentamento à pandemia. A gente viu que não não teve resultado. O Brasil, a partir da década de 2010, usou as operações de Garantia da Lei e da Ordem rotineiramente para os grandes eventos e questões de segurança pública. Mas não tinham sido usadas até então para combater crimes ambientais. As GLOs ambientais são uma novidade que não deu certo, é só ver os índices [de desmatamento na Amazônia, que cresceram de 2019, quando a primeira GLO ambiental foi instituída, até 2021, de acordo com o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais]. Na verdade, essas operações foram a solução rápida encontrada pelo fato de os órgãos de fiscalização ambiental terem sido desmontados. A resposta do governo Temer já era essa: quando aparecia algum problema, chamavam-se as Forças Armadas. O presidente Bolsonaro seguiu a mesma lógica. Ele militarizou o Ministério da Saúde e a questão ambiental. Militarizar era um projeto. Que os militares pensavam dessa maneira em relação à Amazônia, a gente já sabia, mas nunca havíamos tido um ministro do Meio Ambiente que trabalhava contra o meio ambiente. Já existia essa percepção [dos militares], mas ela não encontrava eco nos outros ministérios. A partir do momento em que isso passou a acontecer, a tragédia ocorreu. E aí depois novamente vêm os militares para tentar minimizar ou conter os danos de uma política ambiental que eles endossavam. As políticas [ambientais] implementadas durante o último governo eram consonantes com a visão que os militares tinham de como gerir a Amazônia. Isso podemos falar com bastante tranquilidade.


Nos registros das reuniões do Conselho Nacional da Amazônia Legal a que tivemos acesso via Lei de Acesso à Informação (leia mais), Mourão diz que “neste século 21, a questão da sustentabilidade é um dos fatores que influenciam a soberania”. De que maneira esse pensamento militar, que enxerga sustentabilidade e ONGs como ameaças à soberania nacional, contribuiu para que as verdadeiras ameaças à Amazônia não fossem combatidas nos últimos anos?

A Amazônia não é só brasileira, embora a maior porção da floresta esteja no Brasil. Compartilhamos o bioma com outros países sul-americanos. Qualquer questão ali só pode ser resolvida de forma cooperativa, tanto no nível doméstico como internacional. E isso se rompeu no último governo. O Brasil construiu uma reputação na agenda ambiental nos fóruns internacionais que garantia prestígio e voz ao país nos temas ambientais. O que foi  construído por todos os governos da Nova República até o governo Temer foi destruído, caiu como um castelo de cartas.

O primeiro discurso que o presidente Bolsonaro fez na [Assembleia Geral da] ONU, em 2019, já foi um indicativo de que o Brasil estava abandonando tudo que havia construído durante décadas. Recuperou-se a ideia de querer se retirar dos fóruns ambientais e retomar o discurso de que os países desenvolvidos querem limitar o nosso desenvolvimento ao mesmo tempo em que se criou tensão com os países vizinhos. Países, estes, que poderiam ser nossos parceiros nas fronteiras amazônicas, compartilhar informação e ajudar tanto na proteção da floresta e dos povos indígenas, como no combate aos ilícitos transnacionais e às redes criminosas que existem ali.

Quando o governo Temer resolveu se retirar da Unasul [União de Nações Sul-Americanas, organização formada por doze países da região, uma das consequências foi essa. Havia uma cooperação que vinha se intensificando entre o Brasil e outros países amazônicos principalmente na área de defesa clássica, mas também em relação a crimes transnacionais, e isso tudo foi deixado de lado. O governo Bolsonaro ainda adotou uma postura hostil com a Venezuela. A diplomacia não atuou, o Ministério do Meio Ambiente não atuou. Foi um caldeirão de questões que levaram à tragédia que a gente viu. As ameaças que os militares consideram são suposições.

Agora, a tragédia Yanomami, os assassinatos de Bruno Pereira e Dom Phillips [indigenista e jornalista britânico mortos em junho de 2022 no Vale do Javari, no Amazonas], a devastação ambiental, temos evidências empíricas sobre isso [de que há ameaças reais na região], e é com base nisso que as pessoas discutem, não vão discutir com base e em fake news e em teorias da conspiração. Tem outro fator que é uma novidade do último governo em relação aos anteriores: até o início do governo Bolsonaro, algumas missões religiosas [internacionais] eram vistas com desconfiança, inclusive pelas próprias Forças Armadas, como Meva [Missão Evangélica da Amazônia], Novas Tribos [do Brasil]. Esses grupos evangélicos não tinham permissão, por exemplo, para ter contato com povos isolados, essa dinâmica de evangelização dos povos indígenas estava em desuso, e essa barreira foi quebrada pelo governo Bolsonaro. Grupos que não tinham possibilidade de atuar na região encontraram ali as portas abertas. Isso era uma ameaça maior à Amazônia, para não falar das mineradoras e madeireiras. Se hoje a Amazônia está mais desprotegida, é por conta das ações e omissões do último governo. 


O governo Lula, em teoria, quer combater a militarização da administração pública que ocorreu sob Bolsonaro. Se isso se concretizar, qual será o lugar do pensamento militar em relação à Amazônia daqui para frente?

Se a Política Nacional de Defesa não for rediscutida, essas percepções não vão mudar, porque nenhuma organização se autorreforma, ainda mais uma organização como a militar brasileira, que teve tanta autonomia e poder durante toda a nossa história republicana. Me preocupa um pouco que, na fala das autoridades, não vemos a discussão sobre quais devem ser as tarefas desempenhadas pelos militares nos próximos anos – não sobre quais devem ser as missões, estas estão claramente colocadas na Constituição. No caso do Brasil, a oportunidade seria a revisão dos documentos de defesa. É nesses documentos que iriam se estabelecer as principais vulnerabilidades e ações a serem tomadas. Os militares poderiam ter ajudado muito mais no enfrentamento da crise Yanomami, mas [vem] essa ideia novamente de que a atuação militar na região é a panaceia. Acho que a gente tem que superar essa maneira de ver o papel dos militares, os outros órgãos têm que fazer o seu papel, e se cada um o fizer, os militares vão finalmente poder fazer o papel deles, que é justamente pensar a defesa nacional.

 

Como essa discussão deveria ser feita?

Tenho defendido a criação de uma conferência nacional de defesa nos moldes das conferências nacionais de saúde que acontecem desde a década de 1990. Para discutir as políticas públicas que depois o governo federal pode ou não implementar. Fala-se muito que a discussão sobre os currículos militares não pode ficar restrita aos militares, que eles não podem ter autonomia para discutir isso. Na verdade, eles não podem ter autonomia para definir a política de defesa. Aí, acho que a questão da Amazônia e dos povos indígenas tem um papel central, porque se a gente tivesse uma discussão franca que envolvesse, por exemplo, ambientalistas e lideranças indígenas, muitas dessas desconfianças e visão conspiratória que existem dentro da caserna seriam desfeitas. Dá para fazer, mas precisa ter vontade política. Mas não sei se existe vontade política. Não vejo muita nesse Ministério da Defesa. 

 

Nos últimos anos, vimos militares bolsonaristas – com destaque para o general da reserva Eduardo Villas Bôas, ex-comandante do Exército – aderindo ao negacionismo climático. Isso predomina nos meios militares? Por que o negacionismo climático tem se disseminado nesses ambientes?

Não tenho como dizer a extensão desse pensamento [entre os militares]. Na verdade, o negacionismo climático está associado a outros negacionismos, como o eleitoral e aquele relacionado à pandemia. É uma visão desconfiada e negativa em relação à ciência. Isso é uma novidade nos meios militares brasileiros, porque eles sempre estiveram muito vinculados a essa ideia do positivismo, a uma visão cientificista do mundo. No caso do general Villas Bôas e do general Heleno, vemos claramente que eles aderiram a essa agenda negacionista, mas isso está relacionado aos laços com a extrema direita global. Esse não é um fenômeno só do Brasil. A extrema direita teve uma inserção nos meios militares nos próprios Estados Unidos. Como é um fenômeno recente – não é que historicamente as Forças Armadas brasileiras foram negacionistas –, acho que isso pode ser revertido. Mas, novamente, não vai ser revertido sozinho, tem que ter ação e vontade política, políticas públicas voltadas para essa reversão. Isso de fato é uma questão muito grave. Tem parte dos militares brasileiros que não se vacinou. Quando aquele profissional que pagamos para pegar em armas e lutar para defender o país não está cuidando da sua própria saúde, a saúde dele não é uma questão individual. 

 

De que forma o conceito de globalismo se incorporou ao pensamento militar sobre a Amazônia nos últimos anos?

O pensamento globalista se moldou muito bem à visão que já existia entre militares em relação à região amazônica. Essa ideia de que existe um grande pacto globalista que quer suprimir a soberania nacional, eles já pensavam isso. É fato que essa teoria tem se disseminado [nos meios militares] e isso tem que ser revertido com política pública. Todos os países democráticos olham com muito cuidado a questão da ascensão da extrema direita, esse é um inimigo a ser combatido.

*Esta entrevista faz parte do especial Emergência Climática, que investiga as violações socioambientais decorrentes das atividades emissoras de carbono – da pecuária à geração de energia. A cobertura completa está no site do projeto.

11
Mar23

Destruir ianomamis sempre foi obsessão para Bolsonaro

Talis Andrade

por Fernando Brito /Tijolaço

Ótima reportagem de Lira Neto, publicada hoje no Diário do Nordeste,(leia aqui) documenta a história que é indispensável para entender a tragédia que se passa na reserva ianomami, onde pessoas estão morrendo como moscas por conta da devastação e do envenenamento dos rios provocados pelo garimpo ilegal estimulado durante o governo Jair Bolsonaro.

É a trajetória do Projeto de Decreto Legislativo apresentado pelo então deputado de primeiro mandato, em 1993, pretendendo anular a demarcação das terras indígenas para aquela etnia, assinado um ano antes, por Fernando Collor, sob o argumento que não se poderia destinar áreas de fronteira para reservas e, entre outras razões, que a área era “riquíssima em madeiras nobres e minerais raros”.

O projeto chegou a ir a plenário, para votação em urgência, recusada pela maioria da Câmara.

Bolsonaro jamais desistiu de tirar a terra dos índios e, em 2003, conseguiu desarquivar seu projeto, para ser novamente rejeitado quatro anos depois.

Sempre foi sua ideia fixa, uma espécie de Mein Kampf, ao ponto de ser objeto de 44 pronunciamentos em seus mandatos. Em 2015, ele bradava:

“A reserva ianomâmi, lá em Roraima, e um pedacinho no Amazonas, tem duas vezes o tamanho do Rio de Janeiro, para 9 mil índios! Isso é um crime! O Brasil tem que ser nosso!

É possível acreditar que o desastre humanitário que está sendo revelado agora é resultado apenas de desídia ou incompetência deste homem?

Os antecedentes mostram que a destruição daqueles índigenas – aliás na mesma região onde ele disse ter se interessado em “ver o índio sendo cozinhado” – sempre foi uma obsessão de Bolsonaro.

É uma questão de honra para o nosso país levar esta monstruosidade aos tribunais. E não é possível fugir, desta vez, da palavra infamante: genocídio.

 

 

 

11
Mar23

Militares se recusam a corrigir 46 pistas de pouso que ajudariam no socorro aos ianomâmi

Talis Andrade
www.brasil247.com -
(Foto: FAB/7º/8º GAV - Esquadrão Hárpia)

 

AMAZÔNIA SEM LEI

Comandante do Estado-Maior militar disse à Funai que o pedido emergencial deveria ser tratado com outro órgão público


* Pedido caráter urgente foi dirigido pela Funai em 6 de fevereiro
* Almirante qualificou o pedido urgente da Funai como “consulta”

 

por Rubens Valente /Agência Pública

Um ofício do Ministério da Defesa obtido pela Agência Pública via Lei de Acesso à Informação (LAI) mostra como o órgão se recusou a atender um pedido urgente feito pela presidente da Funai (Fundação Nacional dos Povos Indígenas), Joênia Wapichana, que poderia agilizar o socorro de emergência e a distribuição de alimentos aos indígenas Yanomami em Roraima.

O MD argumentou que o pedido deveria ser direcionado a outro órgão do governo, a Secretaria Nacional de Aviação Civil, que é vinculado a outro ministério, o de Portos e Aeroportos. Em resumo, disse que é um assunto civil, não militar. De uma lista prioritária de 50 pistas, aceitou discutir reformas em apenas quatro, que estão vinculadas a instalações militares.

 
Militares se recusam a corrigir 46 pistas de pouso que ajudariam no socorro  aos Yanomami : Tribuna do Sertão
 
 

Em 6 de fevereiro, também por ofício, a presidente da Funai havia solicitado o apoio do Ministério da Defesa para a manutenção e a reforma de 50 pistas de pouso dentro do território Yanomami “em caráter emergencial”, medidas que são “necessárias para a realização das ações de saúde, segurança e infraestrutura, e em caráter emergencial, o combate à desnutrição e à malária, que tanto assola aquele povo”. A Funai também havia pedido que o MD encaminhasse um plano de trabalho “com cronograma detalhado” das reformas para que pudesse “acompanhar as ações com equipe em campo, o mais brevemente possível, considerando a urgência do pleito”.

Conforme um relatório apresentado por Joênia ao MD e produzido pela empresa de táxi aéreo que presta serviços à Sesai (Secretaria Especial de Saúde Indígena), a Voare Ltda., das 50 pistas listadas como prioritárias, 31 têm “cabeceiras comprometidas por obstáculos”, 26 têm seu cumprimento “comprometido por avanço da vegetação”, 33 têm a pavimentação “comprometida pela presença de vegetação rasteira densa”, 17 têm “pavimentação comprometida pelo acúmulo de água”, entre outros problemas (os números somados excedem a 50 porque há pistas com mais de um defeito ao mesmo tempo).

Assim, muitas das ações que a Funai pediu ao Ministério da Defesa são consideradas por indigenistas de baixa dificuldade de execução. Em muitos casos, seria apenas retirar o mato rasteiro das pistas e podar árvores nas proximidades. Em outras pistas é necessária a instalação de sinalização para evitar acidentes, inclusive com a população indígena. A melhoria dessas pistas permitiria, segundo a Funai, o acesso mais rápido das equipes de saúde às aldeias, em um vasto território no qual o transporte aéreo é fundamental para reduzir as mortes dos Yanomami consideradas evitáveis, como desnutrição, malária, pneumonia e doenças diarreicas.

 
Militares se recusam a corrigir 46 pistas de pouso que ajudariam no socorro  aos Yanomami
 

De acordo com o relatório apresentado pela Funai, a vegetação alta nas cabeceiras de várias dessas pistas “compromete os procedimentos de pouso e decolagem”. Nas laterais, “dificulta os procedimentos de manobras durante a corrida da aeronave nas pistas, agravando o perigo em condições de emergências de pouso ou decolagem”. Os buracos e valas, que acumulam água em períodos chuvosos (a temporada das chuvas está começando na terra Yanomami), levam a uma “redução significativa das margens de segurança, uma redução na habilidade do operador em responder às condições operacionais adversas”.

 
A 12 km”: indígenas Yanomami isolados nunca viram o garimpo tão próximo - Agência  Pública
 
 

“Todas as condições observadas neste relatório podem contribuir para ocorrências que coloquem a vida dos tripulantes, equipe médica e a dos próprios indígenas em risco. Ainda, que compromete todo o atendimento à comunidade indígena”, diz o documento assinado pelo diretor de segurança operacional da Voare. 

O pedido em caráter urgente foi dirigido pela Funai ao MD em 6 de fevereiro, uma semana depois que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva assinou um decreto sobre a emergência Yanomami. Os militares do MD levaram 20 dias para responder por escrito. Em ofício do último dia 26, o comandante do Estado-Maior Conjunto das Forças Armadas, vinculado ao Ministério da Defesa, o almirante de esquadra Renato Rodrigues de Aguiar Freire, primeiro disse que “foram realizadas duas reuniões, nos dias 14 e 15 de fevereiro” sobre o assunto. Os encontros teriam sido “coordenados” pela Casa Civil da Presidência da República com a presença de representantes do MD e “integrantes do Estado-Maior do Exército e do Estado-Maior da Aeronáutica”.

Defesa Aérea & Naval
Conheça o novo Chefe do EMCFA: Almirante de Esquadra Renato Rodrigues de Aguiar  Freire – Defesa Aérea & Naval
 

O almirante qualificou o pedido urgente da presidente da Funai de “consulta”. Sobre a “consulta”, disse o almirante, “cabe mencionar que a Secretaria Nacional de Aviação Civil (SAC) é responsável por propor ao Ministério de Portos e Aeroportos (MPA) a celebração de instrumentos de cooperação técnica e de investimentos que envolvem o setor de aviação civil e de infraestruturas aeroportuária e aeronáutica civil”.

“Neste contexto”, escreveu o comandante do Estado-Maior, “aquela Secretaria [SAC] possui contratos firmados com diversos órgãos e empresas, inclusive, no caso da Região Amazônica, também com a Comissão de Aeroportos da Região Amazônica (COMARA), órgão subordinado ao Comando da Aeronáutica, cuja missão compreende a manutenção das pistas de pouso de interesse daquele Comando, visando contribuir para a soberania nacional e o progresso do país. No tocante aos contratos atualmente firmados com a COMARA, cabe salientar que equivalem à plena capacidade daquela Comissão nos próximos dois anos”.

Ou seja, o representante do Ministério da Defesa argumentou que o Comara não tem condições de fazer novos contratos pelo menos até 2025. O almirante encerrou o ofício dizendo que “faz-se necessário, por parte da Funai, realizar gestões junto à SAC” para atender apenas quatro pistas, Surucucu, Auaris, Palimiú e Missão Catrimani, isto é, apenas as quatro pistas que estão ligadas a instalações militares. Em duas delas, Surucucu e Auaris, as obras estariam encerradas, segundo os militares.

A Pública apurou que, depois do mal-estar causado entre indigenistas por essa resposta, houve uma nova reunião entre representantes do MD, da Funai e do Ministério dos Povos Indígenas. Nesse encontro, os militares teriam então apresentado um cálculo do suposto custo total das obras solicitadas pela Funai, indicando que não caberia a ele, MD, pagar pelas reformas. Tal cálculo, porém, não aparece em nenhum trecho do processo administrativo que trata do assunto e que tramita na administração pública federal – a Pública teve acesso na íntegra ao documento de 66 páginas e seus anexos. De qualquer forma, o valor apresentado foi considerado irreal e impossível de ser atendido, na casa das dezenas de milhões de reais, o que também inviabilizou qualquer avanço nas conversas. Foi entendido como um número apresentado para nunca ser atendido, o que “eximiria” o MD de responsabilidade na solução do problema.

Procurado nesta quinta-feira (9), o MD não havia se manifestado até o fechamento deste texto. Entre outros pontos, a Pública indagou se o ministro José Múcio e o almirante Freire não temem também se tornar alvos da investigação já solicitada ao Tribunal Penal Internacional contra o ex-presidente Jair Bolsonaro a propósito do genocídio dos Yanomami em Roraima.

Em janeiro, quatro organizações não governamentais da área da saúde – Abrasco, Cebes, Rede Unida e SBB – apresentaram ao procurador-chefe do TPI, Karim Khan, uma representação criminal contra Bolsonaro. Na representação, ainda sob análise na Procuradoria, as entidades mencionam que “a omissão” de Bolsonaro, após “ter sido notificado por diversas entidades e órgãos oficiais” a respeito da grave situação vivida pelos Yanomami, “é conduta suficiente para a sua responsabilização criminal”. Em 2021, em outra denúncia sob análise no TPI, a APIB (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil) já havia atribuído a Bolsonaro a responsabilidade pela prática dos crimes de genocídio e contra a humanidade por extermínio, perseguição e outros atos desumanos contra os povos indígenas do Brasil.

A Pública também indagou ao MD porque ele não adota uma postura “pró-ativa, positiva, cooperativa, a fim providenciar obras que são essenciais para a sobrevivência do povo indígena Yanomami”. Indagou se o MD “não tem Orçamento próprio para isso”. De acordo com a previsão para 2023, o Orçamento de investimentos da Defesa prevê R$ 10,8 bilhões. Caso o MD se manifeste, este texto será atualizado.

Indígenas isolados do povo Yanomami foram registrados em operação da Funai  — Fundação Nacional dos Povos Indígenas
 
11
Mar23

A vergonha da fome yanomami não pode ser escondida

Talis Andrade

 

 

por Fernando Brito

 

Valeu a pena esperar até a penúltima reportagem do Fantástico para ver o belo trabalho de dois repórteres veteranos, Sonia Bridi e Carlos Zero, ambos calejados pelas experiência que tiveram como correspondentes de guerra, pata registrar, com imagens chocantes e depoimentos emocionantes a situação em que se encontram os indígenas yanomami em Roraima e em suas terras.

O algo que não pode deixa de ser mostrado, replicado, viralizado nas redes sociais, para que este país saiba o que se fazia e o que se deixava de fazer por aqueles nossos irmãos, dois quais tiramos as terras, a identidade e, agora, a sua vida e a de seus filhos.

Como viveram guerras declaradas, sabem mostrar que é uma guerra mal-disfarçada, sua crueldade e a crueldade de um genocídio infantil. E a desfaçatez de um governo que, cinicamente, ainda diz que foi o que mais fez pelos indígenas.

Reproduzo dois trechos disponíveis no Twitter, mas recomendo assistir aos 21 minutos da reportagem, que pode ser acessada aqui.

Sabe-se das dificuldades, mas não é possível que demora muito mais uma grande operação de retirada dos garimpeiros da região, sem que até a comida e os remédios levados aos yanomami será saqueado pelos invasores.

O Brasil tem de mostrar aos seus cidadãos e ao mundo estas vergonha, para que elas jamais ocorram outra vez.

 

 

 

03
Mar23

Não há política de direitos humanos sem pensar na questão racial, diz ministro brasileiro em Genebra

Talis Andrade

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O ministro dos Direitos Humanos e da Cidadania, Silvio Almeida, durante reunião da ONU em Genebra em março de 2023.
O ministro dos Direitos Humanos e da Cidadania, Silvio Almeida, durante reunião da ONU em Genebra em março de 2023. © Violaine Martin/ONU

Daqui para frente, tudo vai ser diferente. Essa é a mensagem que o ministro brasileiro dos Direitos Humanos e da Cidadania, Silvio Almeida, quis passar esta semana em que esteve em Genebra, na Suíça, participando de reuniões do Conselho de Direitos Humanos da ONU.

“Não é só porque eu quero, é que precisa ser diferente. Precisa ser diferente, em primeiro lugar, por conta do que todo mundo viu, que foram esses últimos quatro anos. Ou seja, quatro anos de vergonha. Vergonha para nós brasileiros de uma maneira geral, vergonha para a história do Brasil, daquilo que o Brasil construiu de melhor. Pode parecer que tudo aquilo que falamos é cheio de ambição, mas sem ambição não haveria necessidade de estarmos aqui hoje, de contribuir para um Brasil novo”, disse ele à RFI.

O ministro explicou que a vinda dele à Genebra teve a “intenção de reconectar o Brasil com o sistema internacional de direitos humanos, que é um palco importantíssimo da atuação política do Brasil”. Ele diz acreditar que “essa reconexão é muito importante para a recondução, para a reorientação da política nacional de direitos humanos”

“Nos últimos anos, o Brasil teve uma série de prejuízos por conta desse afastamento. Acho que muitas das conquistas que o Brasil teve em termos de direitos humanos são resultado desse diálogo, desse debate em que o Brasil não só recebeu uma série de subsídios importantes para construção da sua política nacional, mas também o Brasil contribuiu e muito com o mundo, para demonstrar que existem outras perspectivas em relação aos direitos humanos, que não aquelas perspectivas conduzidas a partir de uma visão do Norte do mundo”.  

 

Yanomamis: preocupação com candidatura de Damares

 

O ministro vê com “com muita preocupação” a candidatura da senadora Damares Alves, ex-ministra dos direitos humanos, a uma vaga para comissão que monitora a crise dos Yanomami. Ele lembre que ela foi integrante do governo Bolsonaro que negligenciou a assistência aos Yanomami. Isso demonstra, segundo Almeida, um “grave problema da institucionalidade brasileira”.

Segundo o ministro, “não somos capazes de estabelecer formas de contenção desse tipo de ação, de movimentação que, na verdade, tem o propósito de minar, de descredibilizar as próprias ações institucionais em prol dos direitos humanos”. Ele afirma que um relatório com conclusões das investigações realizadas sobre a situação dessa população indígena, resultado de visitas das equipes à Roraima, será divulgado na próxima semana.

“O relatório que vai demonstrar todas as coisas que foram feitas e deixaram de ser feitas e que redundaram nessa tragédia. Encontramos alguns documentos que demonstram que houve negativa para envio de ajuda emergencial aos povos yanomami. Havia, inclusive, uma ordem judicial da Corte Interamericana de Direitos Humanos que determinava a tomada de providências para garantir a vida, a sobrevivência, que foi descumprida”, afirmou.

Segundo o ministro, as conversas todas nas Nações Unidas foram no sentido de apresentar que o Brasil tem uma série de projetos que demandam apoio internacional. Ele disse também que o que ele pediu e que o que pediram a ele nas reuniões e encontros na ONU foi a mesma coisa: cooperação.

“Pedir aos Estados e seus representantes e aos organismos internacionais que pudessem dar suporte a essa nova visão que a nova administração brasileira traz, que é pensar os temas dos direitos humanos a partir de uma perspectiva que leva em consideração a questão econômica, a necessidade de fortalecer os mecanismos democráticos, o combate aos discursos de ódio. Ao mesmo tempo, nós fomos solicitados para a mesma coisa. O que nos foi pedido é aquilo que pedimos também: uma cooperação no esforço para que nós pudessemos fazer uma política de direitos humanos coordenada”.

 

Fortalecer sistema de proteção social para enfrentar trabalho escravo

 

Ao ser questionado sobre a situação dos mais de 200 trabalhadores resgatados em condição de escravidão, o ministro disse que esse episódio “nem de longe é um caso isolado”. Segundo ele, “o Brasil ainda possui uma série de problemas que levam à reprodução desse tipo de violência contra os trabalhadores e as trabalhadoras”. Também disse não ter se surpreendido com declarações das próprias empresas.

“A luta contra o trabalho escravo envolve o fortalecimento do sistema de proteção social dos trabalhadores. Precisamos fortalecer as representações dos trabalhadores, os sindicatos. É isso que vai garantir que os trabalhadores não fiquem à mercê desse tipo de exploração”.

Segundo o ministro, está marcada uma reunião em que será tratada a possibilidade de revisão do plano nacional de erradicação do trabalho escravo.

Ele diz que o Brasil é um país forjado no autoritarismo, na dependência econômica que gera desigualdade e no racismo. “Toda e qualquer política de direitos humanos que se pense tem que levar em consideração a questão racial”, disse ele, que escreveu o livro “Racismo Estrutural”. “Eu sou o primeiro homem negro a ser ministro de Estado de Direitos Humanos do Brasil. Pra mim, é um compromisso ético e político dos mais relevantes”.

 

Guerra na Ucrânia: “Alguns fantasmas continuam muito vivos”

 

Sobre a guerra na Ucrânia, o ministro frisou que a posição do Brasil “prioriza a abertura de espaços de diálogo, de conversação, de compreensão, que é a única forma, na verdade, de encerrar um conflito dessa proporção, que é chamando as pessoas para conversar, mas nunca transigindo com violação de direitos humanos”.

“O fato de o Brasil estar aberto ao diálogo não significa que o Brasil não reconhece que haja violação de direitos humanos. Não significa que o Brasil se cale diante disso e não significa que o Brasil tenha uma posição de, digamos, de neutralidade diante da violação de direitos humanos”.

De acordo com o ministro, essa é uma guerra “que interessa a todos nós, do mundo inteiro”. O conflito na Ucrânia também desnuda, segundo ele, “algumas faces da humanidade que nós não queríamos encarar, como a instrumentalização da política de direitos humanos para interesses de países específicos, a seletividade racial”.

“Acho que essa guerra está demonstrando, tristemente, que alguns fantasmas que nós achávamos que haviam sido superados, principalmente depois dos desastres que a humanidade já conheceu, continuam muito vivos”.  

 

Uma guerra global

 

Silvio Almeida disse ainda que em todo contexto de guerra a violação dos direitos humanos se apresenta e os afetados “são os trabalhadores, as minorias, as mulheres, as meninas, as pessoas que mais sofrem em toda e qualquer guerra. Eu estou falando que sofrem as pessoas de todos os envolvidos na guerra.

“Acredito que essa guerra não é uma guerra regional, não é uma guerra que envolve apenas a Europa. É uma guerra que, na minha concepção, tem contornos globais, e que faz com que cada um de nós, em todos os lugares do mundo, sejamos por ela afetados e temos, portanto, a responsabilidade de recolocar as coisas no seu devido lugar”.

 

Visita de relatores da ONU ao Brasil: "não tenho nada a esconder"

 

No último dia de missão em Genebra, o ministro Silvio Almeida se reuniu com o Alto Comissário das Nações Unidos para os Direitos Humanos, Volker Turk, e o convidou para ir ao Brasil. As visitas dos relatores da ONU, que há anos não vão ao país, deverão ser retomadas.

“Esse governo não tem problema nenhum com visita de relatores porque não tenho nada a esconder, nada, muito pelo contrário. Acreditamos que abrir a situação dos direitos humanos no Brasil é algo que nos favorece porque faz com que tenhamos que tomar as atitudes necessárias para proteger o nosso povo”, disse.

Questionado por um jornalista estrangeiro se tinha pretensões de se candidatar à presidência no futuro, Almeida foi diplomata. “O presidente Lula me deu a honra e a missão de ser ministro de Estado de Direitos Humanos e Cidadania do meu país. Isso é um fardo, mas é uma honra. E quais são as minhas intenções? A primeira delas é honrar a confiança que o presidente me deu e a minha intenção mais ambiciosa nesse momento é ser o melhor ministro de Direitos Humanos e Cidadania que o Brasil já teve. Essa é a minha intenção. Se eu fizer isso, acho que já cumpri um belíssimo papel e meus ancestrais ficaram muito orgulhosos de mim”.

Almeida falou ainda da necessidade de retomar certos debates, como a relação entre direitos humanos e economia, direitos humanos e democracia, “a participação política efetiva das minorias, daqueles que são afetados pelas decisões que são tomadas no âmbito político. Aumentar a possibilidade de participação popular, por exemplo, “para não transformar a humanidade num clube”, em que só alguns podem entrar, “aqueles que não parecem com a maioria das pessoas que vivem e levam sua vida no Sul global”.

15
Fev23

2021 foi ano de maior desnutrição entre crianças yanomâmi

Talis Andrade
 
 
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15
Fev23

Publicado pelo Exército, livro que diz que yanomamis não existem inspirou políticas que levaram a crise humanitária

Talis Andrade
 
Teoria conspiratória do Exército guiou ataques de | Direitos Humanos
 
 
 por Mariana Alvim /BBC News

 

Em meio à grave crise humanitária que atinge os indígenas yanomami, textos com teorias conspiratórias sobre esse povo voltaram a ser lidos em blogs e compartilhados nas redes sociais.

Em comum, eles reproduzem citações e argumentos de um livro publicado em 1995 pela editora da Biblioteca do Exército e escrito pelo falecido coronel Carlos Alberto Lima Menna Barreto.

Com acusações não comprovadas e um conjunto de documentos controversos, A Farsa Ianomâmi  insinua, em linhas gerais, que um povo identificado como yanomami não existia antes que a fotógrafa Claudia Andujar e organizações internacionais com interesses na Amazônia o inventassem para, com isso, se beneficiarem da demarcação da terra indígena (leia abaixo informações que refutam esses argumentos do livro).

O Exército publicou 3.000 exemplares do livro em 1995, mesmo ano em que morreu Menna Barreto.

 

Capa do livro mostra homem loiro de olhos azuis segurando máscara com feições indígenas
 

Hoje, o livro circula em arquivos compartilhados gratuitamente pela internet e foi recomendado algumas vezes por Olavo de Carvalho (1947-2022), como mostram textos de seu site e seus programas de aula.

Além da influência de Carvalho, guru de parte da direita, dois especialistas entrevistados pela BBC News Brasil apontam que a relação entre o livro e a política conduzida pelo ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) em seus quatro anos de governo (2019-2022) é maior.

"Com certeza esse livro ressoa ao longo do governo Bolsonaro. Inclusive, eu comecei a estudar esse livro a partir do discurso do Bolsonaro em 2019 na ONU (Organização das Nações Unidas). Quando eu escutei aquela fala, eu lembrei do livro, que eu tinha lido por curiosidade. A fala tinha total correspondência com o livro”, diz o historiador João Pedro Garcez, que teve A Farsa Ianomâmi como um de seus objetos de estudo no mestrado na Universidade Federal do Paraná (UFPR).

"Parece que o governo Bolsonaro fez um tipo de gestão de acordo com o livro porque, neste, os indígenas são colocados como uma massa de manobra de interesses estrangeiros. Então, eles são vistos como inimigos do Brasil. Dentro dessa racionalidade, faz sentido deixá-los na beira da morte, porque eles não fazem parte da ideia de Brasil que está presente no pensamento militar", acrescenta o pesquisador, referindo-se à crise humanitária entre o povo yanomami.

Não se sabe se Bolsonaro leu A Farsa Ianomâmi ou não, mas o que Garcez e outro entrevistado, o geógrafo francês François-Michel Le Tourneau, afirmam é que o livro simboliza as posições do ex-presidente e aliados acerca dos indígenas e da Amazônia.

No Telegram, Bolsonaro afirmou que as acusações de descaso de seu governo com os indígenas eram uma "farsa de esquerda" e defendeu que a saúde indígena foi uma das prioridades da sua gestão.

A conduta do antigo governo nessa área está passando agora por intenso escrutínio, depois que o site jornalístico Sumaúma revelou fotos e dados da sofrida situação da saúde de crianças, adultos e idosos yanomami.

No final de janeiro, o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Luís Roberto Barroso pediu a abertura de uma investigação sobre "a possível participação de autoridades do governo Jair Bolsonaro na prática, em tese, dos crimes de genocídio, desobediência, quebra de segredo de justiça, e de delitos ambientais relacionados à vida, à saúde e à segurança de diversas comunidades indígenas".

Na decisão, Barroso menciona haver evidências de "ação ou omissão" do antigo governo que agravaram a situação dos yanomami. Um exemplo trazido pelo ministro do STF foi a publicação, no Diário Oficial, de data e local de uma operação sigilosa contra o garimpo ilegal em território yanomami, o que pode ter alertado os invasores.

 

Indígenas vistos como 'ameaça'

 

Carlos Alberto Lima Menna Barreto se apresenta, logo no início de sua obra, como um “gaúcho natural de Porto Alegre, oriundo de tradicional família de militares”. Foi em 1968 que, segundo o próprio, ele “travou os primeiros contatos com a Amazônia, que a partir dessa data o seduziu”.

Em Roraima, Menna Barreto atuou como primeiro comandante do 2º Batalhão Especial de Fronteira e do Comando de Fronteira e, após ir para a reserva, foi secretário de Segurança do Estado.

Nas páginas finais de sua obra, o coronel propôs algumas ações. A primeira recomendação era a anulação da criação da reserva yanomami — homologada em 1992 —, por conta das “fraudes” que o militar disse ter apresentado no livro. Uma segunda proposta consistia em “regulamentar a exploração do ouro, do diamante e de outros minérios por pessoas físicas e empresas”.

Talvez essas bandeiras lembrem posições de Jair Bolsonaro.

Quando deputado federal, o então capitão da reserva pediu, em 1993, a anulação da demarcação da terra indígena yanomami; quando presidente, ele declarou em diversas ocasiões que não haveria mais demarcação de terras indígenas em seu governo.

Em fevereiro de 2022, o então presidente comemorou que na sua gestão no Planalto “não foi demarcada nenhuma terra indígena”.

Por longos anos, Bolsonaro também defendeu o garimpo em terras indígenas e, na presidência, agiu nesse sentido. Veio do Executivo, por exemplo, um projeto de lei de 2020 que tentou regulamentar a mineração nessas áreas protegidas — mas a proposta acabou não avançando.

Autor de livros e pesquisas sobre os yanomami e a Amazônia, o francês François-Michel Le Tourneau identifica três grupos de pressão sobre o governo Bolsonaro que buscaram limitar direitos do indígenas: os ruralistas, as igrejas evangélicas e os militares.

Para Tourneau, o general Augusto Heleno, então chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI) e ex-comandante militar da Amazônia, era uma figura emblemática de uma geração de oficiais e generais que vê a Amazônia como um ponto vulnerável para a unidade nacional brasileira.

“O fato de ter deixado a Funai (Fundação Nacional dos Povos Indígenas) e os índios do Brasil completamente abandonados por quatro anos era realmente isso. Para eles, se fomentava dentro da Funai um movimento de desmembramento do Brasil e se defendia que esses territórios estavam cheios de riquezas que precisavam ser exploradas”, diz o geógrafo, diretor de pesquisas do Centre National de la Recherche Scientifique, na França.

“Os índios do Brasil não têm nenhum interesse em independência política. Há uma confusão, pois eles podem querer autonomia, mas autonomia não é independência”, explica o francês, que diz ter “aprendido a viver” com as suspeitas que desperta por ser um estrangeiro estudando a Amazônia.

Para Torneau, o livro A Farsa Ianomâmi é mais um exemplo dessa interpretação de um segmento dos militares sobre os indígenas da Amazônia.

“Por que o governo Bolsonaro recebeu bem esse tipo de teoria, ou até mesmo propagou esse tipo de teoria [do livro]? Porque o fundo ideológico e cultural deles está fundamentando sobre a ideia de que as identidades indígenas de certa forma são uma ameaça ao Brasil.”

Segundo o catálogo online do Exército, há hoje 56 exemplares do livro espalhados por bibliotecas da força pelo Brasil — 12 deles estão em colégios militares, que oferecem ensino fundamental e médio.

 

Reação militar à Constituição de 1988

 

O historiador João Pedro Garcez lembra de estudos que já demonstraram que, em 1988, ano de promulgação da Constituição, e em 1992, ano de realização da conferência Eco-92 no Rio de Janeiro, aumentou a produção acadêmica militar sobre a Amazônia.

“Eu acredito que tanto esse crescimento quanto a publicação do livro A Farsa Ianomâmi têm a ver com uma reação dos militares à Constituição Federal, que defende a autodeterminação dos povos, e por consequência a demarcação das terras indígenas; e a própria Eco-92, que trouxe muito forte para o Brasil a discussão ambiental”, diz Garcez, doutorando em história na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

O historiador aponta que o autor de A Farsa Ianomâmi usou muitos artigos de opinião publicados em jornais para validar seus argumentos, ao mesmo tempo em que se valeu de sua experiência em Roraima. O livro é escrito em primeira pessoa.

“Ele reivindicava muito essa autoridade testemunhal. O livro tem uma característica autobiográfica”, explica Garcez.

Menna Barreto também traz no livro um documento datado de 1981 e atribuído ao Conselho Mundial de Igrejas Cristãs, que teria sede na Suíça. O texto, reproduzido inicialmente pelo jornal O Estado de S.Paulo, expõe planos de “infiltrar missionários e contratados, inclusive não religiosos, em todas as nações indígenas”. Mas a veracidade do documento é controversa.

Em 1987, foi criada uma Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) para apurar denúncias “formuladas pelo jornal O Estado de S.Paulo, referentes a uma conspiração internacional envolvendo restrições à soberania nacional sobre a região amazônica”, segundo documentos do Congresso.

Após investigação, o relator concluiu “que a instituição ‘Conselho Mundial de Igrejas Cristãs’, elemento-chave das denúncias, não teve sua existência confirmada […]. Ao contrário, todas as entidades consultadas negaram conhecer sua existência”.

Menna Barreto recorreu também a relatos de viajantes europeus de séculos passados para sustentar o argumento de que a identificação yanomami não era citada. Assim, o coronel defendeu um dos principais argumentos de seu livro: o de que os yanomami não existem e foram inventados por interesses alheios.

“Ele ignora toda a produção antropológica contemporânea a ele. Essa produção mostra que os yanomâmi são um supergrupo e que tem divisões dentro desse supergrupo”, afirma Garcez.

A antropóloga e indigenista Hanna Limulja explica que os indígenas que compõem o grande território yanomami podem até se referir com outras palavras a seus subgrupos, mas que a consideração deles como yanomami pelos especialistas não é nada arbitrária.

“Por que esse povo é considerando yanomami? Porque eles compartilham um território, práticas culturais, uma língua. O yanomami é uma língua isolada, é um tronco, e dentro disso você pode ter variações. Por exemplo, o latim é um tronco, e aí você tem variações como o português e o espanhol, que são próximos”, aponta Limulja.

“O fato de a gente catagorizar os yanomami ou não não quer dizer que a gente invente um povo. O povo está lá. A gente o define da maneira que a gente consegue, com nossos estudos, dentro das nossas categorias.”

 

Exército afirma que livro não é usado pedagogicamente

 

François-Michel Le Tourneau explica que boa parte do conteúdo de A Farsa Ianomâmi é uma “cópia” de teorias conspiratórias abastecidas nos anos 1990 pelo americano Lyndon LaRouche.

“Para mim, o mais importante nesse livro não é só o autor, mas quem publicou. Ele foi publicado pela Biblioteca do Exército, e isso dá um peso para o livro”, aponta o geógrafo.

A reportagem enviou perguntas ao Exército brasileiro, que foram parcialmente respondidas. Em nota, o Exército informou que, apesar de exemplares de A Farsa Ianomâmi estarem em colégios militares, “a obra não consta da lista de livros paradidáticos constantes das Normas de Planejamento e Gestão Escolar (NPGE) do Sistema Colégio Militar do Brasil”.

Por isso, não está “autorizada nenhuma atividade pedagógica com o livro nos Colégios Militares”.

A BBC News Brasil também tentou entrevistar líderes yanomami mas, em meio à crise humanitária no território, não pôde ser atendida por falta de disponibilidade.

Também foi oferecida uma oportunidade de posicionamento à fotógrafa Claudia Andujar, por meio do contato com uma galeria de arte que a representa. Não houve retorno. Em 2010, porém, foi publicada uma entrevista em que a artista aborda o livro A Farsa Ianomâmi.

Segundo ela, o livro foi construído em um período em que ela participou dos esforços para a demarcação da terra yanomami.

“Olha, naquela época, fui muito perseguida pelos militares que estavam na presidência e nas diretorias da Funai. Apesar de tudo isso, e graças a bons contatos políticos em Brasília, conseguimos a demarcação das terras. Mas em Roraima continuei odiada. Esse cara que escreveu sobre mim era de lá. Saíram tantas notícias negativas contra nosso trabalho que você nem imagina. Saiu publicamente que eu era uma espiã americana, depois que era uma espiã belga, coisas simplesmente absurdas. Eu não tenho nada haver com a Bélgica”, disse Andujar, em entrevista a uma revista acadêmica.

 

Circulação deveria ser restrita?

 

Apesar de criticarem o conteúdo do livro e sua disseminação pelo Exército, os especialistas entrevistados pela BBC News Brasil opinam que não deveria haver algum tipo de restrição à circulação de A Farsa Ianomâmi.

“Até pensando no caso do meu estudo, eu acho que ele é uma obra sintomática de um pensamento militar acerca dessas das questões indígena e ambiental. Eu entendo que ele reproduz e talvez até dissemine algumas ideias que são bem problemáticas, mas não acredito que a censura ou a tentativa de tirar ele de circulação seja o meio mais efetivo de combater ele”, diz Garcez.

“E algo muito presente no livro e na circulação dele é a colocação de que há uma grande conspiração para deixar tudo aquilo escondido. Então, retirando-o de circulação, talvez acabe validando mais esse ponto.”

François-Michel Le Tourneau concorda.

“Acho que, se você começar a andar do lado da censura, é um caminho sem volta. Acredito que é mais interessante se produzir um outro livro que demonstre os equívocos com argumentos mais sólidos”, sugere o pesquisador francês.

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