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O CORRESPONDENTE

Os melhores textos dos jornalistas livres do Brasil. As melhores charges. Compartilhe

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O CORRESPONDENTE

25
Mar23

"Não basta resgatar, mas libertar da miséria e da pobreza"

Talis Andrade
 
 
 
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Professora na UFMG, Lívia Miraglia analisa os casos recentes de resgates de trabalhadores em situação análoga à escravidão. Neste sábado celebra-se o Dia Internacional em Memória das Vítimas da Escravidão.

 

por Edison Veiga /DW

Em balanço divulgado no início desta semana, o Ministério do Trabalho apontou que foram resgatados 918 trabalhadores em condição de trabalho análogo à escravidão no Brasil no primeiro trimestre — número 124% maior do que no mesmo período do ano passado e um recorde histórico, considerando os últimos 15 anos.

Autora do livro Trabalho Escravo Contemporâneo: Conceituação à Luz do Principio da Pessoa Humana, a professora de direito Lívia Mendes Moreira Miraglia afirma em entrevista à DW que a visibilidade que a mídia tem dado aos casos nos últimos anos contribui para que haja avanços nessas operações de resgate.

 
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"[Isso faz com que] as pessoas vejam que é possível denunciar, entendam o que é a escravidão contemporânea, consigam identificar essas situações e quais vezes elas mesmas são submetidas sem a total consciência do que é errado", diz ela, que é docente na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), onde coordena a Clínica de Trabalho Escravo e Tráfico de Pessoas.

A conceituação chama esse tipo de exploração contemporânea de "trabalho análogo à escravidão" porque, explica Miraglia, a escravidão só pode ser assim chamada quando se refere a atos anteriores à Lei Áurea de 1888, quando o ordenamento jurídico brasileiro permitia a sua existência. Era, portanto, uma possibilidade lícita.

De lá para cá, esses abusos criminosos precisam ser tecnicamente tratados como formas que se assemelham, pela natureza, à escravidão. E basta que contenham ao menos uma das características para que se configure o crime. São elas: trabalho forçado, servidão por dívidas, submissão a condições degradantes de trabalho e jornadas exaustivas.

Neste sábado, 25 de março, em que se celebra o Dia Internacional em Memória das Vítimas da Escravidão e do Tráfico Transatlântico de Escravos, data instituída pela Organização das Nações Unidas pare recordar a tragédia de 400 anos de escravidão no mundo, Miraglia compara a escravidão histórica do Brasil com a contemporânea.

"A gente vê que várias formas de escravidão contemporânea ainda subsistem, acabam sendo a herança desse passado", diz.

 

Edison Veiga entrevista Lívia Miraglia

 
 
 
Lívia Mendes Moreira Miraglia, Autor em JOTA
Lívia Miraglia
 

 

DW: Nesta semana, o Ministério do Trabalho divulgou dados recordes de regate de trabalhadores em situação de trabalho análogo à escravidão. O que explica esse salto nos casos?

Lívia Miraglia: Uma razão é o aumento do número de denúncias e, consequentemente, o aumento o número de resgates, de operações que vem sendo feitas. O que é de extrema relevância para demonstrar que as nossas instituições vêm funcionando e atuando de forma precisa e de forma bem combativa. Tem havido uma força-tarefa nesse sentido do Ministério do Trabalho, que é o coordenador das operações, junto ao Ministério Público do Trabalho, ao Ministério Público Federal e às polícias rodoviárias federais, para que as denúncia sejam efetivamente apuradas.

Há uma outra razão: esse aumento das denúncias se deve muito também a um trabalho que vem sendo feito por vocês da mídia, de dar destaque aos casos, de levar o assunto para a pauta, para que as pessoas vejam que é possível denunciar, entendam o que é a escravidão contemporânea, consigam identificar essas situações e quais vezes elas mesmas são submetidas sem a total consciência do que é errado. E há também a questão da crise econômica, que assola o mundo e já assolava o mundo antes da pandemia, e com a pandemia foi agravada.

 

Quem são os mais vulneráveis?

São pessoas de 18 a 35 anos, em sua maioria homens, com baixa escolaridade, negros e pardos. A gente sabe que há um contingente de pessoas que passam por miserabilidade e pobreza, que acaba se submetendo a qualquer tipo de trabalho, inclusive o análogo à escravidão. Se há uma perspectiva de miséria e fome, e de outro lado um trabalho qualquer, não dá nem para falar em escolha: a gente não escolhe entre morrer de fome e tentar sobreviver, simplesmente vai para onde se acredita que haja pelo menos alguma chance de melhorar um pouquinho.

 

Já é possível comparar a ação do atual governo nesse combate com a gestão anterior?

Estamos apenas em março, então fica difícil traçar um comparativo. Mas acho importante dizer que nos últimos quatro anos houve uma tentativa de desmonte da fiscalização do trabalho, da importância do Ministério do Trabalho. Na verdade, isso é anterior ao governo [Jair] Bolsonaro, começa lá com a extinção do Ministério do Trabalho [a pasta foi reestruturada por meio de medida provisória no governo Michel Temer em 2016, extinta no primeiro dia do governo Bolsonaro e recriada em julho de 2021].

Nos últimos seis anos, o Ministério do Trabalho sofreu de forma reiterada uma tentativa de desmonte, de redução de importância. Dito isso, é digno de nota o trabalho que com todas as dificuldades [os agentes da pasta] estão conseguindo fazer, com resgates em números recordes de trabalhadores. Fico pensando como seria se houvesse um investimento adequado na fiscalização do trabalho, talvez estivéssemos quase chegando à erradicação [do trabalho análogo à escravidão].

 

Neste sábado, a ONU convida a celebrar a memória das vítimas da escravidão. De que forma esse olhar ao passado contribui para sensibilizar com relação ao presente?

É preciso que a gente conheça o nosso passado para que a gente possa não repetir os mesmos erros e possa construir um futuro melhor. A gente vê que várias formas de escravidão contemporânea ainda subsistem, acabam sendo a herança desse passado de quase 400 anos de escravidão no mundo. Dessa subjugação de um ser humano pelo outro, dessa incapacidade que o ser humano tem de enxergar o outro como espelho.

Isso é muito relevante para que a gente possa pensar novas formas para mudar o nosso presente a partir da perspectiva da lembrança do que já foi feito, do que se permitiu fazer um dia na nossa história com uma outra pessoa.

 

De que forma essa memória precisa ser feita para que não relativize o ocorrido, tampouco não seja preconceituosa às vítimas e a seus descendentes?

É preciso fazer um resgate histórico para tentar contar essa história do nosso passado escravocrata não apenas a partir da visão do vencedor, do escravizador, dos povos que escravizaram. É preciso resgatar a memória daqueles que foram escravizados, dando voz para aqueles que conseguiram ser resgatados. E que não relativizemos o ocorrido, não reproduzindo preconceitos com a vítima nem seus decendentes.

É preciso fazer, de forma intelectualmente honesta, a recontagem do período da escravidão, para que consigamos enxergá-lo em sua complexidade. A gente não pode esquecer que houve, na verdade, uma tentativa de extermínio dessa população negra que veio ao Brasil como escravizada durante a escravidão e no período posterior à escravidão. E isso continuou e talvez continue até hoje.

 

Como interromper esse ciclo histórico?

Como diz a [historiadora e antropóloga] Lilia Schwarcz, é preciso evitar que o 13 de maio [Dia da Abolição da escravidão, em 1888] seja o dia mais longo da nossa história, tendo começado em 1888 e não terminado até hoje. Toda vez que a gente liberta alguém, legalmente falando, não basta que essa liberdade seja forma, não basta que ele ganhe a liberdade. É preciso que haja liberdade tanto formal quanto efetivamente, materialmente, porque se as condições de miséria e pobreza que levaram a pessoa a não ter escolha e a se submeter a essa situação continuarem, a gente vai continuar nesse ciclo.

 
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15
Mar23

As cidades devastadas pela fúria bolsonarista

Talis Andrade
 
 
 
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O poder de destruição da extrema direita implode as cidades, suas marcas e suas almas

 

por Moisés Mendes

- - -

O bolsonarismo raiz é um fenômeno paroquial, que se disseminou virtualmente pela ação de tios e tias do zap de pequenas e médias cidades e virou modo de vida.

A vidinha da província, mobilizada pelas milícias digitais de Bolsonaro, multiplica extremismos, mentiras e ódios disfarçados de posições e atitudes pretensamente moralistas e religiosas.

O efeito é devastador contra as próprias comunidades. Um exemplo recente. Bento Gonçalves, a cidade dos vinhos na Serra gaúcha, era até agora apenas um lugar ultraconservador com índole bolsonarista. É há uma semana uma cidade que tem bolsonaristas e escravistas.

Três empresas do centro da região da uva, Aurora, Salton e Garibaldi, foram flagradas como contratantes de trabalho escravo de mais de 200 nordestinos, num sistema que o eufemismo chama hoje de análogo à escravidão.

Não são bodegas. São grandes grupos com fama fora do país, são grifes internacionais. Desfrutavam de um serviço sujo terceirizado gerido por gatos de fora da região.

Não há surpresa. O escravismo é coerente com as discriminações e os ódios propagados pelo bolsonarismo. Também o escravizado do século 21 é visto como um ser inferior, e mais ainda se for baiano.

Mas o bolsonarismo não poupa nem os seres superiores com os quais discorda. Em maio do ano passado, líderes de Bento Gonçalves mandaram dizer ao ministro Luiz Fux que não aparecesse por lá para uma palestra.

Fux deveria ir a Bento em junho a convite da Câmara da Indústria, Comércio e Serviços (CIC). A reação de grandes empresários bolsonaristas acionou ataques ao ministro nas redes sociais.

A CIC tornou público que não seria seguro manter a palestra em sua sede, considerada desprotegida, e transferiu o evento para o prédio da OAB.

A mais poderosa entidade empresarial da cidade avisava ao presidente do Supremo que sua segurança estava em risco. Fux desistiu da viagem. O tema da conferência era Risco Brasil e segurança jurídica.

Foi desfeito o roteiro de um faroeste com desfecho previsível. Fux seria cercado, se conseguisse passar pelo pórtico da cidade, representado por um gigantesco barril de vinho. E assim o caso foi encerrado.

Ninguém mais fala do episódio, como ninguém quer saber o que resultou na polícia, no Ministério Público ou na Justiça do cerco de manés ao ministro Luis Roberto Barroso na famosa praia de Porto Belo, em Santa Catarina.

Barroso jantava com a família e amigos num restaurante, no dia 3 de novembro, quando uma turba cercou o prédio.

O grupo do ministro teve de abandonar o restaurante. Barroso se refugiou na casa onde estavam hospedados.

O local também foi cercado. Os agressores gritavam e ameaçavam. Às 4h da madrugada do dia 4, sob escolta policial, a família abandonou a casa e a região da enseada de Porto Belo.

O fim de semana na praia havia sido interrompido por bandidos em fúria. Não se sabe até hoje das medidas legais e formais contra quem ameaçou Fux em Bento Gonçalves e Barroso em Porto Belo, até porque as pautas foram abandonadas pela grande imprensa.

E a vida segue. As paróquias têm regras e sistemas institucionais próprios de proteção aos seus delinquentes furiosos e poderosos.

É como funcionava a Chicago dos gângsteres e como funcionam as regiões dominadas por milicianos. Fux não entrou em Bento e Barroso foi corrido de Porto Belo.

Um era o presidente do Supremo e o outro será o próximo a ocupar o comando da mais alta Corte do país, hoje com a ministra Rosa Weber.

Os personagens que afrontaram os ministros são de apenas dois dos muitos redutos interioranos tomados pelo bolsonarismo. 

O Sul tem centenas dessas trincheiras, muitas transformadas em fortalezas impenetráveis durante a ocupação de quartéis por manés e patriotas.

Cidades gaúchas que agridem ‘esquerdopatas’ (e fazem listas de boicote a empresas e profissionais) têm as suas Gangues do Relho.

Pequenas e médias cidades foram dominadas por forças que não existiram nem na ditadura. Os agressores mais destemidos subiram na hierarquia do fascismo e se transformaram em terroristas, no 8 de janeiro em Brasília.

O bolsonarismo exacerba a índole de suas lideranças e das bases de manés e patriotas e acaba expondo Bento, Porto Belo, Itajaí, Sorocaba como bolsões incontroláveis.

Ao extremismo, soma-se agora, no caso de Bento, a chaga do escravismo. O bolsonarismo que avançou em todas as áreas, em quatro anos, deixa sequelas destruidoras.

No segundo turno do ano passado, Bolsonaro teve 75,8% dos votos em Bento e 74,29% em Porto Belo.

Em Itajaí, Santa Catarina, onde se formou um dos maiores acampamentos pelo golpe, Bolsonaro venceu com 72,96%.

Mais do que hegemonia, a extrema direita pretende ou pretendia ter controles absolutos. Grupos organizados, com forte base popular, se apropriaram das comunidades.

A escravidão é parte desse contexto. A elite branca, tomada pelo sentimento de superioridade política, econômica e moral, impõe as leis locais do bolsonarismo.

Vinha dando certo, mas não dá mais. A Bento Gonçalves dos vinhos e espumantes não sai das manchetes. Quantos escravistas estavam nos grupos de tios do zap que enxotaram Luiz Fux?

O poder de destruição da extrema direita implode as cidades, suas marcas e suas almas.

 
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