Caso Queiroz joga luz sobre o passado oculto de Jair Bolsonaro
O escândalo das rachadinhas, nome popular para a prática criminosa do peculato, revela o passado oculto do presidente Jair Bolsonaro. Este é o tema do podcast "UOL Investiga - A vida Secreta de Jair": você pode ouvir o primeiro episódio completo, intitulado "Passado Oculto", e ler na íntegra o roteiro do programa.
Em formato narrativo, o podcast apresentado pela jornalista Juliana Dal Piva, com ajuda da equipe do núcleo investigativo do UOL, foca em aspectos não revelados do envolvimento direto do presidente da República no esquema ilegal de entrega de salários de assessores na época em que ele exerceu seguidos mandatos de deputado federal (entre os anos de 1991 e 2018).
O primeiro episódio do podcast apresenta o início do escândalo da movimentação financeira do policial Fabrício Queiroz, ex-assessor do senador Flávio Bolsonaro. Mais que atingir o filho, o caso faz eclodir vários aspectos do passado do presidente Jair Bolsonaro e de sua família.
"A VIDA SECRETA DE JAIR"
EPISÓDIO 1: "PASSADO OCULTO"
JAIR BOLSONARO, em sessão na Câmara dos Deputados, em 2013: "Senhor presidente, semana passada, no programa da TV Globo, o repórter perguntou pro médico cubano quanto ele ganhava. Senhor presidente, ele respondeu: 'Mil reais'. Ou seja, a dupla dos irmãos Castro pega 90% do salário dos cubanos. Nem um rufião faz isso. Com mil reais por mês, esse médico?
JULIANA DAL PIVA: O programa Mais Médicos sempre foi um alvo do presidente Jair Bolsonaro.
Só não sei se ele lembra lá em 2013 de quando ele subiu na tribuna da Câmara em 2013 para reclamar do governo cubano.
A fúria do Bolsonaro era que os irmãos Castro iam ficar com 90% dos salários dos médicos que estavam chegando pro Brasil pra trabalhar naquele programa.
JAIR BOLSONARO, em sessão na Câmara dos Deputados, em 2013: "Com mil reais por mês, esse médico não pode sequer comprar um Fusca. E mais ainda, Sr. Presidente, pelo Partidão e no regime cubano, já que falaram aqui, nem aquela deputada do PSOL do Rio de Janeiro pegava tanto dos seus funcionários. Pegava parece 50%. A família Castro pega 90%. Então, Sr. Presidente, o médico?"
JULIANA DAL PIVA: Parece até ironia do destino. Agora, falar em devolução de salário é um problema para o presidente Jair Bolsonaro.
Tudo por conta de uma história que envolve ele, o filho mais velho, Flávio, e um amigo de longa data, o Fabrício Queiroz. Ele sai do sério.
Você já deve ter ouvido.
JAIR BOLSONARO: "O senhor tem algum comprovante? Pergunta para a tua mãe o comprovante que ela deu pro teu pai? Pelo amor de Deus, fica quieto, tô respondendo."
JAIR BOLSONARO, em entrevista a José Luiz Datena, em dezembro de 2020: "E a pressão em cima do meu filho é pra me atingir. Não só meu filho. É em cima de esposa, de ex-mulher, outros filhos, parentes meus, amigos que estão do meu lado?"
JAIR BOLSONARO, em transmissão ao vivo nos Emirados Árabes, em 2019: "É o tempo todo isso. Na questão do Flávio, por exemplo, eu não quero discutir? A revista Época publica uma materiazinha fajuta lá qualquer, inventa alguma historinha qualquer, às vezes com algum fundo de verdade também, e o que o MP faz? Investiga todo mundo do gabinete. E aí tenta construir uma narrativa para tentar constranger a minha família."
JULIANA DAL PIVA: Constrangimento, pressão, presidente reclama o tempo todo. É provável que você já saiba um pouco dessa história.
De um relatório que mostrou uma movimentação financeira milionária do Queiroz, quando trabalhava pro Flávio, na Assembleia Legislativa do Rio.
E dá para notar que o presidente também se preocupa.
E ele tem motivo pra isso.
Até porque, se tudo isso veio à tona num enredo que envolve o Queiroz e o Flávio, agora, dois anos depois, a gente tem certeza que está tudo muito longe de acabar só com eles.
Quem acompanhou desde o início, notou que o tal relatório iluminava um caminho de dinheiro.
Uma trilha entre pessoas da família do presidente e da família do Queiroz.
E a cada passo dado depois disso, surgiam mais e mais pessoas ligadas ao sobrenome Bolsonaro.
Apareceram dúvidas sobre a existência de funcionários fantasmas nos gabinetes da família e, no mínimo, ficou uma pulga atrás da orelha com a compra de tantos imóveis com dinheiro vivo. Cash.
JAIR BOLSONARO, em entrevista à Folha de S.Paulo: "Peraí, você tem que divulgar é o meu patrimônio. Você vai pegar da minha mãe daqui a pouco, meu pai já morreu. Meus irmãos? Tem que pegar é o meu, esquece os meus filhos."
JULIANA DAL PIVA: Se eu tivesse que resumir para você, eu diria que é como se o Bolsonaro tivesse uma caixa onde ele guardava vários segredos super íntimos. Para mim, lembrou até aquele mito grego da caixa de Pandora. Que quando foi aberta deixou escapar vários males contra a humanidade.
No caso do Bolsonaro, que também é chamado de mito pelos apoiadores, foi como se o Queiroz tivesse aberto a caixa dele. E de lá saiu tudo de ruim que o presidente escondia: explodiram problemas envolvendo os três casamentos, diferentes filhos e até o patrimônio dele.
Tudo em cima do homem que se elegeu defendendo o combate à corrupção, a Lava Jato e escolheu o ex-juiz Sergio Moro para ministro da Justiça.
O que eu quero contar para você não é o "caso Queiroz", mas como essa história tornou público o passado oculto dos 30 anos da vida pública do presidente Jair Bolsonaro.
Nesse podcast, vou te convidar a mergulhar na trajetória do Bolsonaro antes e depois da Presidência.
Mas primeiro, deixa eu me apresentar. Eu sou Juliana Dal Piva, sou colunista do UOL, e fiz poucas coisas nesses últimos dois anos além de investigar essa história.
Muito do que eu descobrir vou compartilhar com você nessa primeira temporada do podcast UOL Investiga, sobre A Vida Secreta de Jair Bolsonaro.
Vou tentar te ajudar a entender essa novela com as minhas andanças pelo Brasil. Tenho muitas histórias dos casamentos, bastidores, reviravoltas e gravações inéditas de familiares do presidente Jair Bolsonaro.
ANDREA SIQUEIRA VALLE, áudio de 2018/2019: "Na hora que eu estava aí fornecendo também e ele também estava me ajudando porque eu ficava com mil e pouco e ele ficava com sete mil reais, então assim, certo ou errado agora já foi, não tem jeito de voltar atrás."
JULIANA DAL PIVA: Os principais personagens dessa história vão ter voz aqui. Inclusive aqueles que nunca quiseram me dar uma entrevista. Fica comigo até o final que você não vai se arrepender.
[VINHETA]
JULIANA DAL PIVA: Tava chovendo no Rio de Janeiro naquela sexta-feira, 6 de dezembro. Nenhum temporal, mas o suficiente para baixar um pouco o calor daquele verão.
Seria o início de um fim de semana qualquer.
Mas o jornal O Estado de São Paulo publicou uma matéria mostrando a movimentação de um milhão e duzentos mil reais de um policial que era assessor do senador Flávio Bolsonaro.
Essa notícia acabou formando um outro tipo de tempestade lá na Barra da Tijuca, na zona oeste do Rio de Janeiro.
O assunto logo pautou a imprensa inteira, que acompanhava a vida do presidente Jair Bolsonaro, dias antes da posse.
E um batalhão de jornalistas estava na frente do condomínio Vivendas das Barra, quando o senador Flávio Bolsonaro chegou em um Toyota preto no fim daquela tarde.
JULIANA DAL PIVA: A calçada na frente da casinha dos porteiros tinha virado uma espécie de acampamento desde o fim da eleição, um mês antes.
Os funcionários tinham colocado até umas grades para controlar o movimento de pessoas por ali.
O condomínio tem uma porção de casas de alto padrão, mas não chega a ser de luxo.
Ele fica bem de frente para a praia da Barra da Tijuca.
Quando o Bolsonaro quer dar um mergulho no mar, ele só precisa atravessar a rua.
Você talvez tenha visto na televisão. Muita gente vinha na frente daquela portaria só para tirar uma foto e gritar "mito".
JULIANA DAL PIVA: E como o presidente eleito não despachava em nenhum escritório, a imprensa teve que fazer plantão na frente da casa dele
Era o único jeito de a gente acompanhar a escolha de ministros.
Os vizinhos não gostavam muito, mas a gente não tinha outra escolha.
Naquele dia, o Flávio saiu do carro e caminhou em direção à portaria, olhando para os lados, tentando mostrar alguma tranquilidade.
Ele estava bem informal. De calça jeans, camisa polo cinza, e na mão esquerda, carregava o celular o tempo todo.
Atrás dele, caminhava um homem de camisa branca e calça preta, com um olhar meio envergonhado.
Ele tinha cara de quem não queria aparecer nas imagens, embora não tenha conseguido evitar.
Ninguém prestou atenção, mas era o advogado Victor Granado.
Como essa história é cheia de gente, eu vou ter ajuda de uma colega do UOL, a Gabi Pessoa.
É ela que vai ajudar a entender quem é quem nesse enredo. Então conta pra gente, Gabi, quem é o Victor?
GABRIELA SÁ PESSOA: O Victor Granado é um amigo da faculdade do Flávio. Eles se conhecem há muitos e muitos anos. Aquele dia, além de amigo, ele estava ali também como um assessor, um advogado do senador eleito. Ele, inclusive, é o primeiro advogado que tenta ajudar o Flávio no caso do Queiroz.
JULIANA DAL PIVA: Como eu estava contando, os dois chegaram juntos e entraram no condomínio. Foram lá na casa do presidente, e voltaram algum tempo depois.
Na volta, o Flávio não conseguiu fugir dos jornalistas, e deu a primeira declaração dele sobre esse assunto.
Alguém perguntou se o Queiroz explicou como movimentou 1 milhão e duzentos mil reais em um ano. E o Flávio fez questão de deixar claro que a resposta quem tinha que dar era o assessor, e não tinha nada a ver com ele.
FLÁVIO BOLSONARO, em entrevista a jornalistas em frente ao condomínio Vivendas da Barra: "Não posso dar detalhes aqui. Porque é o que ele vai falar ao Ministério Público. É o Ministério Público que vai ter que ouvir e se convencer ou não."
JULIANA DAL PIVA: O Flávio falou, falou, mas não explicou a origem do dinheiro do Queiroz. E a verdade é que o Queiroz não foi ao Ministério Público tão cedo.
Nem essas explicações parecem plausíveis até hoje.
Dois anos depois, quando o Queiroz foi preso por causa desses repasses, ele teve que prestar um depoimento e falou sobre essa conversa entre ele e o Flávio lá em dezembro de 2018.
FABRÍCIO QUEIROZ, em depoimento ao Ministério Público: "Eu tive um contato com o senador? ele não era senador, era deputado, mas já estava eleito, eu dei satisfação a ele do que aconteceu. Ele estava muito chateado,revoltado eu não acredito que tu tenha feito isso. Não acredito."
PROMOTOR: "O senador disse ao senhor isso, dessa forma?"
FABRÍCIO QUEIROZ: "Todo mundo falando, eu tinha que dar satisfação pra ele. Meu encontro com ele durou 5 minutos, eu estava com muita vergonha. Porque aconteceu isso, um fato isolado meu. E ele falou: 'O que você fez? Não acredito!'. Eu resumi pra ele, e nunca mais tive com ele."
JULIANA DAL PIVA: Só que esse "fato isolado" não foi explicado naquela época.
Nem o Queiroz apresentou qualquer justificativa para a movimentação milionária de alguém que não ganhava o suficiente.
Os dias foram passando e o silêncio do Queiroz gerou um suspense.
E criou uma pergunta que rodou o Brasil por muito tempo. Você sabe qual é, né?
Sentindo o clima pesado, o próprio Bolsonaro se adiantou.
Já no dia seguinte à explosão do escândalo, ele falou da relação dele com o Queiroz.
Ele foi em uma formatura na Marinha, no Rio de Janeiro, e confrontado pelos jornalistas tentou se explicar.
JAIR BOLSONARO, em entrevista: "Eu conheço o senhor Queiroz desde 1984. Vamos aí 34 anos. Depois, nos encontramos novamente, eu deputado federal e ele sargento da Polícia Militar do Rio de Janeiro. Somos paraquedistas. Nasceu ali... Continuou uma amizade? Em muitos momentos estivemos juntos, em festas... Até porque me interessava, tinha uma segurança pessoal ao meu lado. Um tempo depois foi trabalhar com meu filho. Em outras oportunidades, eu já o socorri financeiramente. Nessa última agora, houve um acúmulo de dívida. E resolveu pagar com cheques. Não foram cheques de 24 mil reais, nem seis cheques de 4 mil reais. Na verdade, 10 cheques de 4 mil reais. E assim foi feito. E eu não botei na minha conta, porque eu tenho dificuldade pra ir em banco, andar na rua. Eu deixei pra minha esposa. Eu lamento o constrangimento que ela está passando, com sua família, no tocante a isso. Mas ninguém dá dinheiro sujo por cheque nominal, meu Deus do céu."
JULIANA DAL PIVA: Vamos recapitular. O Bolsonaro falou sobre um conjunto de cheques do Queiroz para a primeira-dama, Michelle Bolsonaro. (Continua)