Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

O CORRESPONDENTE

Os melhores textos dos jornalistas livres do Brasil. As melhores charges. Compartilhe

Os melhores textos dos jornalistas livres do Brasil. As melhores charges. Compartilhe

O CORRESPONDENTE

22
Ago23

Etarismo, da invisibilidade à educação intergeracional

Talis Andrade

aposentadoria  velhice age_kills__rodrigo_de_matos

 

Não se trata somente do que pensamos e sentimos sobre a velhice e os velhos, mas esses sentimentos e pensamentos se expressam na prática do dia a dia de modo real como agressividade, violência e discriminação

 

por Flávia Maria de Paula Soares

Você já ouviu falar em etarismo ou idadismo? Ou ainda, velhismo? Se você tem mais de 50 anos, talvez você tenha passado por uma situação de etarismo, mas não saiba o nome. O etarismo, idadismo ou velhismo são estereótipos (a forma como pensamos), os preconceitos (como nos sentimos) e a discriminação (como agimos) em relação à idade mais avançada. A questão do etarismo é que não se trata somente de um conjunto de ideias inofensivas e sem consequências. Não se trata somente do que pensamos e sentimos sobre a velhice e os velhos, mas esses sentimentos e pensamentos se expressam na prática do dia a dia de modo real como agressividade, violência e discriminação.

Pouco se fala disso, e essa é uma característica que faz o etarismo se manter e se perpetuar: os eventos etaristas muitas vezes nos passam despercebidos, pois eles têm essa característica de invisibilidade. Mas, se você tem 50 anos ou mais, talvez você já tenha sofrido seus efeitos e sentido um constrangimento, um mal-estar em alguma situação, se sentido desvalorizado ou como se fosse incapaz de fazer algo de que você é capaz de fazer, mas que até há pouco tempo antes dessa situação atual você não se sentia, tudo isso em razão de você ter atingido uma certa idade. O etarismo tem muitas faces, às vezes bem explícitas e grosseiras, como xingamentos e agressões, e outras maquiadas por uma piada ou “brincadeira” em relação à idade. As expressões do etarismo podem ainda ser mascaradas por um modo infantilizado de se tratar as pessoas e/ou pelo cuidado ou excesso de zelo, inibindo os idosos de realizarem atividades das quais têm autonomia para fazê-las.

Mas como mudar essa situação? Como podemos fazer para sustentarmos uma sociedade democrática onde os velhos tenham seu lugar, seu espaço de expressão e direitos de existirem com suas especificidades, estilos e pluralidade? É preciso que a gente reflita e avalie em si mesmo as nossas condutas estereotipadas e preconceituosas sobre idade e que principalmente, a gente fale disso/sobre isso. Muitas vezes não nos damos conta de frases e condutas etaristas (não somente em relação aos velhos/idosos, mas o etarismo também ocorre quando usamos de estereótipos generalizados sobre as crianças e jovens, por exemplo).

A invisibilidade do etarismo acontece porque essas ideias — que são modelitos prontos — sobre “como seria uma pessoa de certa idade” ocorre porque são aprendidas e internalizadas inconscientemente e, muitas vezes, não são por nós, sequer percebidas. Por consequência, não são questionadas. Elas fluem como que automaticamente. Mas é necessário que possamos prevenir que elas ocorram, não porque vamos reprimi-las, mas porque, ao trazê-las à luz, podemos fazer, em um primeiro momento, uma autorreflexão e autoquestionamento sobre qual é a minha ideia sobre a velhice, sobre a velhice dos meus pais e dos meus avós... A velhice, frequentemente, é considerada como uma fase da vida de muitas perdas e associada à morte e, mais raramente, como um tempo de ganho, sabedoria e de um saber-viver.

A autorreflexão e autoquestionamento não são suficientes. É preciso que a gente fale disso, traga o etarismo à visibilidade, à discussão nas nossas relações dentro da família, com amigos, na comunidade em que vivemos e, principalmente, nos diversos campos de educação em níveis de ordem intergeracional, incluindo as pessoas mais velhas. Isso porque, em geral, o etarismo ocorre da parte dos mais jovens em relação aos mais velhos, mas podemos muitas vezes perceber uma identificação ao lugar que é atribuído ao velho nas suas relações com os mais próximos, na comunidade e na sociedade mais ampla. Nesse caso, temos o autoetarismo que pode vir a produzir o sentimento de autodesvalorização, solidão e isolamento culminando no adoecimento psicológico e físico. Quanto mais isolado e sozinho um idoso se sente — mesmo que ele esteja cercado de pessoas — maiores são as chances de adoecimento e de modo mais grave, a sua morte prematura. Se tudo der mais ou menos certo e não morrermos jovens, chegaremos na velhice. Como eu trato os meus e os seus velhos? Como quero ser tratada na minha velhice? Que sociedade queremos para todos nós? Convido todos para pensarmos e falarmos, cada vez mais, sobre a velhice.

18
Abr22

A pílula azul e a pornochanchada bolsonarista

Talis Andrade

vai tomar viagra por gilmar.jpeg

 

por 

 

Em pleno festival de suspeitas de corrupção no governo Bolsonaro, o vice-presidente Hamilton Mourão partiu para o deboche: “O que são 35 mil comprimidos de Viagra para 110 mil velhinhos que tem? Não é nada”, disse. “Então, tem o velhinho aqui. Eu não posso usar o meu Viagra, pô?”

Óbvio que pode, deve, sexo é bom e faz bem em qualquer idade. O problema é a compra da milagrosa pílula azul com dinheiro público. O caso se torna ainda mais grave no momento em que carestia da farmácia tem matado de susto e humilhação os aposentados e aposentadas de todo o país. Carestia de tirar do ramo. Carestia da moléstia das cachorras, como dizia Marivone, uma prima costureira lá do Crato.

Com renda mensal na casa dos R$ 100 mil, incluindo o salário de político e os benefícios da reserva das Forças Armadas, é fácil levar a realidade no deboche, como faz o vice e a sua turma, na boa vida e na maresia do Posto 6 da praia de Copacabana.

Antes do “kit sexual”, incluindo próteses penianas, a lista de supermercado para as altas patentes já era um escracho com os brasileiros da fila do osso. Olha só como andam as despensas e geladeiras dos Mourões e das famílias militares, segundo a última comprinha: 557,8 toneladas de filé mignon, 372,2 toneladas de picanha e 254 toneladas de salmão.

A divulgação das mordomias, por parte da imprensa, virou rotina. Somente em leite condensado, doce que virou símbolo da “simplicidade” bolsonarista na campanha eleitoral, o governo gastou R$ 15 milhões em 2021, com sinais de superfaturamento na avalição de técnicos do Tribunal de Contas da União, o TCU.

A fala do vice foi digna de galã de pornochanchada, disseram alguns amigos nas redes sociais. Discordo. A bela sacanagem do cinema nacional dos anos 1970 e 80 tinha a sua graça. O general não passou do cinismo e do deboche.

E sabe o que o presidente acha disso tudo? “Com todo respeito, não é nada. Quantidade... O efetivo das três forças, obviamente... Muito mais usado pelos inativos e pensionistas", argumentou sobre o abastecimento de Viagra, diante de pastores e líderes evangélicos que o acompanhavam em um banquete em Brasília.

No Cabaré de Glorinha, e aqui retorno proustianamente mais uma vez aos cheiros e sensações do Crato, a cartilha da ética e da etiqueta era bem mais observada.Image

 

 

13
Mar22

A armadilha da insignificância

Talis Andrade

SciELO - Brasil - O conservadorismo moderno: esboço para uma aproximação O  conservadorismo moderno: esboço para uma aproximação

 

por Gustavo Krause

- - -

“Estou aqui de passagem – alerta Caetano – sei que adiante um dia vou morrer de susto, de bala ou vício”. Seja como for, o Homem é o único animal que tem consciência de sua própria finitude, fonte de angústia que se manifesta de várias formas.

Não abandona, porém, a luta inglória pela sobrevivência e, neste sentido, ensina o filósofo francês Luc Ferry: “Apender a viver, aprender a não mais temer em vão as diferentes faces da morte, ou, simplesmente superar a banalidade da vida cotidiana, o tédio e o tempo que passa”.

Trata-se de um sério desafio, especialmente, quando as trombetas da guerra não cessam de anunciar a nossa fragilidade existencial.

Inconformado, o ser humano segue a busca improvável da imortalidade. No alvorecer do século XXI, pensadores transumanistas, bioconservadores e bioprogressistas desbravam novos horizontes ao manejar a NBIC (Nanotecnologia, Biologia, Informática, Ciências Cognitivas – Inteligência Artificial e Ciências do Cérebro).

Polêmico, Alexandre Laurent, autor de A morte da morte (Barueri: Manole, 2018) argumenta com o crescimento expressivo da longevidade (200 anos no fim do século XXI) para afirmar: “A morte é um problema a resolver e não uma realidade imposta”.

À afirmação que o homem híbrido ou o pós-humano são possibilidades, prefiro, as dúvidas de Harari, expressas na obra Homo Deus: uma breve história do amanhã (Ed. SCHWARTZ. São Paulo, 2016): “1. Será que os organismos são apenas algoritmos, e a vida apenas processamento de dados? 2. O que é mais valioso – a inteligência ou a consciência? O que vai acontecer à sociedade, aos políticos e à vida cotidiana quando os algoritmos não conscientes, mas altamente inteligentes nos conhecerem melhor do que nós mesmos?”

Atualmente, a Humanidade enfrenta quatro persistentes ameaças: fome, pestes, guerras e aquecimento global. “Pela primeira vez na história – escreve Harari – morrem mais pessoas que comeram demais do que de menos; mais pessoas morrem de velhice do que de doenças contagiosas; e mais pessoas cometem suicídio do que todas as que, somadas, são mortas por soldados, terroristas e criminosos”.

Aí percebemos a armadilha da insignificância. O ser humano perde relevância em distintas situações; a luta pela vida em tensão doentia; a luta contra a guerra, vítima, por atacado, da tecnologia do assassinato.

Neste cenário, o poder despótico manipula pessoas em massa. Na sequência das vertiginosas mudanças, serão usadas como chips do Dataísmo – a religião dos dados, uma configuração de poder com efeito explosivo em que algoritmos eletrônicos decifrem e superem os algoritmos bioquímicos.

14
Jan22

Biblioteca realiza Exposição sobre Histórias em Quadrinhos em Franca

Talis Andrade

artista-Gilmar.jpeg

 

“Os tipos esquisitos do Gilmar”

 

 

Acontece entre os dias 12 e 31 deste mês, a exposição que comemora o Dia Nacional das Histórias em Quadrinhos, na Biblioteca Municipal “Américo Maciel de Castro Júnior”, instalada no prédio do Colégio Champagnat. A visitação está aberta ao público, com as medidas e cuidados sanitários, de segunda a sexta-feira, durante o expediente comercial, das 8h às 17h.

A mostra “Os tipos esquisitos do Gilmar” conta com obras do cartunista Gilmar Machado Barbosa. Esta é a segunda apresentação do trabalho deste artista na Biblioteca, oferecendo uma nova oportunidade para quem aprecia essa modalidade de arte.

Gilmar, além do seu trabalho para o Jornal Folha de São Paulo, conta com passagens pelo Diário de São Paulo, Você S/A, O Pasquim e Vida Econômica, publicação editada em Portugal. Desde que iniciou sua carreira, em Mauá, venceu inúmeros prêmios de humor. O principal deles é o HQMix como melhor cartunista, em 2002. No ano de 2006, conquistou o prêmio Vladimir Herzog, na categoria Artes.

A exposição tem por objetivo incentivar a reflexão sobre o comportamento humano, através dos quadrinhos, apresentando ao público os personagens criados com o traço leve e único do cartunista Gilmar, vivendo situações típicas do nosso cotidiano como a solidão, a relação a dois, a velhice e a impotência humana.

03
Jul20

Entre a fortuna, a Coca-Cola e o povo brasileiro

Talis Andrade

água cofre Alfredo Martirena.jpg

 

 

III - Jereissati, PSDB, Cid, Ciro Gomes & CIA: devolvam a água para o Brasil

por Roberto Bueno

- - -

O Senador Jereissati (1948-) é homem de provecta idade, o que desperta a curiosidade por refletir sobre a condição humana quando o umbral do além se aproxima: o que mais falta faz, bens de ordem moral ou bens de ordem econômica? Quando todos nós chegarmos ao momento em que divisarmos o horizonte assim de tão perto, teremos ciência da inevitabilidade do resultado do avanço dos dias, mas que juntamente à velhice não acompanha a velhacaria. Esta última sempre esteve mobilizada para a destruição aos instrumentos de efetivação dos interesses populares, a exemplo dos representantes que tentaram reduzir fortemente a taxa de juros, postos que atinge o mundo do rentismo, assim como a importante redução da margem de lucro da iniciativa privada nas parcerias com o setor público. Destituir do poder por vias golpistas foi sempre a resposta dos setores oligárquicos brasileiros casados ao militarismo.

O eixo das ocupações da oligarquia nacional a qual pertence o Sen. Jereissati e o seu PSDB nunca foi a corrupção, a qual, por certo, conhecem como poucos, pois se assim fosse, os holofotes e o protagonismo seriam integralmente da oligarquia demofóbica que controlou os cofres do Brasil desde a colônia até o recente advento do Rodoanel paulista. É a este círculo de homens que pertence com destaque o Sen. Jereissati, que entre a fortuna, a Coca-Cola e, por outro lado, o povo brasileiro, não hesitou em mobilizar as forças políticas auxiliares, como é o caso da família Gomes, Cid e Ciro, que correram em seu apoio com voto e silêncio obsequioso, respectivamente. E pensar que Ciro Gomes já encontrou tempo e espaço para repreender penosamente a Deputada Federal Tabata Amaral por sua posição política na reforma da previdência! O tempo, sempre o senhor da razão.

Ciro Gomes cavou espaço nas fileiras do histórico PDT herdeiro das tradições do melhor PTB, legenda negada pelo establishment através da estratégia da Golbery do Couto e Silva para interditar a retomada das melhores chances eleitorais de Brizola quando de seu regresso ao Brasil após longo período de exílio. Ciro Gomes realizou o movimento político orientado a cooptar o sólido eleitorado trabalhista cultivado por Brizola, mas pretendeu fazê-lo ao arrepio dos princípios partidários de defesa da ideia de que a propriedade privada deve vir acompanhada do condicionamento ao bem-estar social, sob o reconhecimento da importância da intervenção do Estado na economia e o desenho de uma sociedade socialista e democrática.

Justamente neste grave momento da vida nacional em que são acumulados cadáveres a cada dia os irmãos Cid e Ciro Gomes abraçaram irresolutamente os interesses do cacique Jereissati para projetar no futuro outros tantos mortos, estes, de sede e males outros derivados da insuficiência de água para higiene, além dos problemas energéticos. Após o fato, Ciro Gomes já não precisará preocupar-se com encontrar respostas para perguntas incômodas, não carecerá de disfarçar ou tergiversar, e já tampouco haverá espaço para fazer o famoso mea culpa, que a tantos exige, dedo em riste, aliás, assacando práticas corruptas, quando o realismo político indica com decisão que não há maior corrupção do que apoiar a entrega de bens públicos como foi o caso da Vale do Rio Doce, da privatização de tantas empresas à baixo preço, e agora, por fim, da entrega para a exploração da iniciativa privada de um bem de domínio público de importância existencial, como é o caso da água. Fossem todos os homens dotados de doses expressivas de vergonha como condição essencial para a sua sobrevivência e, temo, alguns talvez simplesmente evaporassem em face de suas opções políticas.

Brizola alertava aos jovens para evitar que cavassem a própria sepultura, enquanto aqueles que hoje mal trajam as honradas e honrosas vestes trabalhistas são os próprios coveiros desta juventude. Sinal dos tempos! Quanta mudança! Ciro Gomes supõe que poderá cavalgar sobre a imagem histórica e genuinamente popular de Brizola, mas não lhe bastará pronunciar “interésse” para ludibriar o povo. Brilho próprio, rica herança e trajetória singular e coerente, a memória política de Brizola dispõe da autonomia e independência à similaridade dos indomáveis cavalos selvagens, que não se prestam a subjugação. Ainda impacta no imaginário popular o legado intelectual e prático de Brizola, distanciado de qualquer relação com as opções políticas dos irmãos Gomes e seu patrocinador, o grande oligarca das terras cearenses, o Sen. Jereissati.

Para aproximar-se ao núcleo doutrinário do trabalhismo Ciro Gomes teria de adotar práticas compatíveis que neste momento implica proteção à água, notável bem de domínio comum. A privatização do saneamento básico e da água no bojo do PL 4.162/2019 representa duríssimo ataque ao povo e, por conseguinte, às tradições do trabalhismo. A herança de Brizola é de sincero esforço pela justiça social, tão bem expressa em seu constante combate de que apenas a “minoria, os filhos da fortuna, cercados de todas as garantias, possa[m] realizar as suas aspirações, e os filhos da pobreza somente o consigam, à custa de suas própria saúde, ou então, inexoravelmente morram na ignorância?” A posição assumida pela família Gomes é de tratar o poder com a deferência necessária, indiferente a primeira das aspirações dos filhos da pobreza mais profunda: a água.

Aos que sobreviverem das consequências detratoras da vida os Gomes implicitamente sugerem encarregar-se de ofertar algo para obter a legitimação política indispensável que se traduza nas urnas. A partir desta votação sobre o PL 4.162/2019 Ciro Gomes explicitou que já não dispõe de pretextos ou justificativas para encobrir posições nacionalistas, populares e em defesa da soberania, pois manifestou que está ao lado e defendendo os interesses da direita ultracapitalista, voraz e inescrupulosa. A ela Ciro Gomes denunciou em tantos discursos inflamados, alguns dos quais assisti pessoalmente, como se pretendesse, realmente, atacar tais interesses uma vez detentor do poder.

No momento da votação à sorrelfa de tão relevante matéria como a do PL 4.162/2019, sem mediar o devido aprofundamento e maturação dos debates, todos testemunhamos, sob a limpidez do céu de brigadeiro, que os irmãos Gomes são amigos da retórica e do capital tanto quanto adversários ferrenhos da mais genuína doutrina do trabalhismo pedetista-brizolista. Não há espaço para a convivência desta histórica doutrina trabalhista que a família Gomes brande em público e sua união indissolúvel com os interesses do Sen. Jereissati, disposto a cultivar a sede do povo brasileiro através da continuidade ao processo de expropriação de suas riquezas.

Esta oligarquia nacional não devolverá por vontade própria as riquezas que estão sendo celeremente retiradas do controle do povo brasileiro. Jereissati encarna a extrema-direita civil que está unida à extrema-direita que anda com fuzil ao ombro, unidas indissociavelmente pelo interesse econômico em que pontifica a política neofascista. Estão todos juntos nisto e a recuperação da água e demais riquezas passa pela reordenação do campo progressista e de intensa mobilização popular.

água privatizada.jpg

 

 

 

30
Mai20

Armar a população para eliminar comunistas

Talis Andrade

beijoDa Morte - bolsobaro.jpeg

 

 

BENGALADAS

 

 

Andei caindo, ou caí andando. Cara no chão, joelhos esfolados, mas nada grave. Uma das simpáticas enfermeiras que me atenderam na emergência do hospital se chamava Verlaine. Só vi os seus olhos, por cima da máscara. Um dos efeitos colaterais dessa maldita pandemia é que nos obrigou a migrar, de uma civilização de rostos inteiros para uma civilização só de olhos. Os rostos perderam os recursos de comunicação que tinham, como o beicinho e o muxoxo e, principalmente, o sorriso. Agora, os olhos precisam fazer trabalho dobrado, o trabalho de um rosto inteiro. A máscara nos roubou o rosto. Não posso dizer nada sobre o sorriso da Verlaine. Mas foi diferente ser atendido por uma enfermeira com nome de poeta.

Não foi minha primeira queda adulta, e não foi a primeira vez que ouvi a sugestão de passar a andar com uma bengala, para restabelecer o prumo perdido. Há quem diga que a bengala mais atrapalha do que ajuda quem precisa de uma terceira perna, e tropeçar na própria bengala é uma ocorrência que se repete, para divertimento geral. Outros dizem que a bengala não ajuda nem atrapalha, é apenas uma maneira de parecer inglês sem necessariamente ser inglês, uma exigência desumana. Existiriam tipos diferentes de cabos de bengala, dependendo do tipo e do caráter de quem as usa. Cabos com uma forma sensual feminina proporcionariam aos cavalheiros o prazer de uma bolina interminável, eximindo-o de bolinar sua mulher, ou cabos de guarda-chuvas usados como bengalas – três utilidades em uma! E, claro, cabos ocos, com espaço para um bom conhaque.

Mas é preciso lembrar que, do jeito que as coisas vão ou não vão no país, estamos à beira de uma guerra civil. O presidente Bolsonaro & Filhos já anunciou que quer armar a população brasileira para eliminar comunistas como o kal7xp0t!! do João Doria e tem sua própria polícia, o Primeiro Filho Flávio Bolsonaro tem, notoriamente, contatos com gente da milícia, e o Exército brasileiro se dedica ao seu papel constitucional, que é o de mal governar o país enquanto os outros poderes se xingam mutuamente. Nós precisamos ter lado nessa briga. Bengalas, gente!

 

06
Mai20

A carta-manifesto de Flávio Migliaccio é um alerta sobre o mundo em que vivemos

Talis Andrade

migliaccioconfissoes.jpg

O ATOR FLÁVIO MIGLIACCIO EM CENA EM "CONFISSÕES DE UM SENHOR DE IDADE", EM 2018. FOTO NEIA FARIA
 

 

Ocultar dos brasileiros o derradeiro protesto do ator seria um insulto à sua memória e à luta de sua geração pela democracia

por Cynara Menezes

Socialista Morena 

- - -

“Só existe um problema filosófico realmente sério: é o suicídio. Julgar se a vida vale ou não vale a pena ser vivida é responder à questão fundamental da filosofia”, diz Albert Camus nas célebres primeiras linhas de seu Mito de Sísifo, o livro onde resolve encarar o tabu de dar cabo à própria vida como um fenômeno individual, não social. Decidir seguir ou parar é um dilema, antes de tudo, pessoal, Camus defende. “Um gesto como este se prepara no silêncio do coração, da mesma forma que uma grande obra.”

Quem sou eu para sondar os mistérios que levaram Flávio Migliaccio a se matar aos 85 anos de idade? O que sei é que, há pelo menos três anos, o ator dava sinais de, homem inteligente, estar questionando sua existência, sua razão de estar neste mundo. Sua última peça, Confissões de Um Senhor de Idade, que ele mesmo escreveu, dirigiu e protagonizou em 2017, mostra exatamente isso: um ser humano no final da jornada olhando para dentro de si e tentando entender, digerir a trajetória que o levou até ali.

Um sentimento normal, trivial em qualquer um que tem a sorte de chegar à “terceira idade”, nas mãos do artista se transformou em obra-prima. A peça, autobiográfica, percorre da infância à velhice do ator, em pleno domínio de suas faculdades mentais e, arrisco dizer, no auge de sua capacidade intelectual. Flávio, o personagem e alterego, em diálogo com Deus na escuridão do quarto, demonstra perplexidade diante do planeta e do país. Reflete sobre a carreira. Manifesta saudades profundas dos pais e da irmã, Dirce Migliaccio, um ano mais velha e também atriz brilhante, que se foi em 2009. Flávio carrega “o sentimento do mundo”, no dizer de Drummond. Sobre o tablado, emociona e ao mesmo tempo faz rir com suas dores e dilemas, virtudes do gênio.

Muita gente se sentiu indignada com a divulgação da carta-manifesto deixada pelo ator após seu suicídio. Invocam “protocolos” da OMS e de conselhos de psicologia que desaconselham divulgar cartas suicidas para não influenciar mais gente a fazer o mesmo, ainda mais num momento como este de pandemia, em que nos encontramos todos em isolamento social. Divulgar a carta acionaria “gatilhos” em pessoas com histórico de depressão. Eu entendo, mas não compartilho dessa opinião. Ocultar uma carta que o ator escreveu com o claro propósito de que viesse à luz seria um insulto à memória e à inteligência de Flávio Migliaccio.

Manuscrito com letra firme e deixado à vista sobre uma mesinha exatamente para que fosse encontrado, o relato breve de despedida diz o seguinte: “Me desculpem, mas não deu mais. A velhice neste país é o caos como tudo agora. A humanidade não deu certo. Eu tive a impressão que foram 85 anos jogados fora num país como este. E com este tipo de gente que acabei encontrando. Cuidem das crianças de hoje!” Não se trata de uma “carta suicida”, mas de um protesto, um apelo, uma súplica. Um documento histórico dos tempos atuais.

cartamanifesto.jpeg

 

Vivemos numa época tão rasa em termos de pensamento que optou-se pela crítica à divulgação da carta em vez de se destacar o valor das palavras contidas nela. Quando Flávio fala, por exemplo, de a velhice ser “um caos” no Brasil, impossível dissociar da maldita reforma da Previdência ou do profundo desprezo de nossos atuais governantes pelos idosos, a ponto de reduzirem o Covid-19 a uma doença que “só mata velho”. Ou ainda do fato de termos um ministro da Saúde que já defendeu como médico que, entre um paciente jovem e um idoso, não há dúvidas sobre qual priorizar.

O coronavírus evidenciou nossa “velhofobia”, como definiu, com perfeição, a antropóloga e escritora Mirian Goldenberg, da UFRJ, em entrevista à BBC Brasil. “Estamos assistindo horrorizados a discursos sórdidos, recheados de estigmas, preconceitos e violências contra os mais velhos. Esse tipo de discurso já existia antes da pandemia: os velhos são considerados inúteis, desnecessários e invisíveis. Mas agora está mais evidente. Políticos, empresários e até o presidente da República já vieram a público dar declarações ‘velhofóbicas'”, disse. Bolsonaro chegou a defender que apenas os idosos fossem isolados.

Às vezes me pego pensando que sinto alívio de que Elis Regina não esteja viva para assistir o Brasil entregue de volta aos “gorilas”, como ela chamava os militares contra quem lutou. Elis teria hoje 75 anos… Ou para assistir às “bestas-feras” governando o mundo, como disse Flávio Migliaccio em sua peça, diante de uma foto de Donald Trump. “A gente está sendo castigado, é muita besta-fera que está aparecendo.” O desgosto dele era visível.

Me corta o coração ver todos estes artistas, hoje septuagenários ou octogenários como Flávio, que batalharam e arriscaram a pele durante anos para que a democracia fosse reinstaurada no país, assistindo ao que o Brasil se tornou… Beth Carvalho, Aldir Blanc, Moraes Moreira já se foram, sem direito a sequer uma nota de pesar de um governo que despreza abertamente a classe artística. Chico Buarque, Gilberto Gil, Caetano Veloso, Fernanda Montenegro estão aí, vivenciando o retorno, pelas urnas, do que tanto combateram.

Não é para qualquer um questionar a razão de sua existência?Não é só a depressão que leva ao suicídio. O desespero, o desencanto, também levam. Na Alemanha hitlerista, houve ondas de suicídios, primeiro entre os judeus alemães perseguidos pelo nazismo e, depois da derrota, entre os próprios alemães “arianos”. Suicídios também podem ser uma forma de rebelião, como aconteceu no Vietnã do Sul em 1963, quando o monge Thích Quảng Đức ateou fogo às próprias vestes para chamar a atenção para a repressão dos budistas pelo regime de Ngô Đình Diệm. Acaso sua atitude não é digna de respeito?

monge Thích_Quảng_Đức_-immolation.jpg

A CARTA DEIXADA PELO ATOR 

 

Quando, em sua carta, Flávio Migliaccio lamenta o “tipo de gente” que acabou encontrando nesta vida, como não pensar nos bárbaros de verde e amarelo domingo em Brasília, sem máscara e sem respeito algum pelos mortos pelo coronavírus, a endeusar seu “mito” irresponsável enquanto agrediam jornalistas? Não tem como não perder a fé diante da vida, do futuro, presenciando espetáculos macabros como estes. Quem está criticando a divulgação da carta quer o quê? Que escondamos a absoluta miséria moral, material e espiritual em que nos encontramos em 2020 para que isso não provoque “gatilho”? Se não querem gatilhos, que comecem tirando Bolsonaro de lá.

Nós que temos mais de meio século sofremos com o país, mas olhamos para trás e vemos uma vida inteira. Já vimos o Brasil em tempos melhores e mais felizes. Mas e os nossos filhos? Nossos netos? O que será deles num mundo tão desesperançado como este? “Cuidem das crianças de hoje!”, Flávio suplicou ao final de sua carta amorosa. Divulgá-la não é só defensável, é importante, necessário, fundamental. É uma questão de justiça à vida dele e à sua história, assim como de muitos de sua geração.

Flávio Migliaccio saiu de cena para entrar na História. Viva Flávio!

 

21
Mai19

97% têm aposentadorias miseráveis no Chile

Talis Andrade

 

Charge do site Fenasic-Chile
Por Felipe Bianchi e Leonardo Severo, de Santiago, no site do Centro de Estudos Barão de Itararé:

Nesta entrevista realizada na sede do movimento No+AFP (Não mais Administradoras de Fundos de Pensão), em Santiago, o porta-voz da organização, Luis Mesina, denuncia como o sistema de capitalização da Seguridade Social implantado “em meados dos anos 1980, sob a tirania de Augusto Pinochet”, “condena 97% dos chilenos a aposentadorias miseráveis”, “sendo a expressão trágica de um sistema que nega direitos fundamentais, lançando idosos a cenários desesperadores”.
 
Desmontando a propaganda neoliberal, o dirigente das massivas manifestações populares em defesa da Previdência pública alertou os brasileiros dos impactos negativos da privatização e defendeu que “é preciso desmontar o argumento de Paulo Guedes de que a reforma enxugará os gastos públicos”. “É mentira, pois é o governo chileno quem paga pelo menos sete entre dez aposentadorias. A capitalização, portanto, aumenta o gasto público, enquanto reduz consideravelmente os benefícios, com o cidadão recebendo menos de 30% do seu último salário”.

Considerando o informe da Organização Internacional do Trabalho (OIT), “um elemento imprescindível para a batalha de ideias contra a reforma da Previdência no Brasil”, Mesina lembrou que, “categórico e contundente”, “o estudo compila ideias que não convêm e nem interessam ao governo de Bolsonaro”, fazendo com que seja praticamente invisibilizado pela grande mídia. O fato, assinala, é que até mesmo “países com governos de direita, como Romênia, Polônia e Hungria, desprivatizaram o sistema de capitalização da Previdência e voltaram ao sistema público”. “A capitalização leva a uma desigualdade brutal e a uma alta concentração da riqueza, pois os grandes grupos econômicos – fundamentalmente estrangeiros – usam nossa poupança, nossa humanidade e nossas vidas para financiarem seus projetos espúrios”. “E deixo uma pergunta para reflexão: se o grosso do dinheiro está nas mãos de AFP estrangeiras e de companhias de seguros que são donas das AFP, o que acontece se essas empresas estadunidenses quebram? A Lehman Brothers não quebrou? A Enron não quebrou?”. “É preciso desprivatizar”, sublinhou.

No Brasil, estamos vivendo uma batalha campal neste momento contra o projeto do governo de reforma da Previdência, em que o ministro Paulo Guedes, um dos fundadores do banco BTG Pactual, coloca o modelo chileno como uma maravilha. O que dizer desta declaração?

previdencia.jpg

 



O que tem ocorrido nos últimos 20 anos é que os sucessivos governos investiram muito dinheiro em difundir fora do país o modelo chileno. A tal ponto que, em muitas partes, consideram nosso país como um exemplo, como um modelo de desenvolvimento. Mas escondem cifras tremendamente abismais: temos os indicadores de distribuição de renda mais desiguais da região. A participação dos salários dos trabalhadores em relação ao Produto Interno Bruto (PIB) é uma das menores da região, temos uma das maiores jornadas de trabalho do mundo, 45 horas semanais. Isso fez com que no Chile fosse se conformando uma espécie de divisão social muito forte, em que 1% dos chilenos concentra quase 36% da renda. Segundo a Revista Forbes do ano passado, temos 12 multimilionários. A Argentina não tem nenhum, a Colômbia não tem nenhum e o Brasil tem dois. Como se explica isso, sendo o Chile com um país de 18 milhões de habitantes, diante de uma Argentina com 44 milhões, de uma Colômbia com 49 milhões de habitantes e de um Brasil tem 210 milhões? O PIB brasileiro é quase oito vezes o chileno. O que explica que o Chile tenha tantos multimilionários em relação a esses países? É muito simples: Porque esse sistema que se instalou conseguiu capturar uma parte expressiva dos salários dos trabalhadores, suas poupanças, e desenvolvido o mercado de capitais no Chile. O mercado de capitais é força de trabalho acumulada, é subtração de humanidade, de vida humana. É a expressão monetária da vida que as pessoas deixam na relação que estabelecem com o capital. É o trabalho que gera a riqueza. São os homens e mulheres trabalhadores que geram a riqueza, nada diferente disso.

Há uma superexploração pelas grandes corporações.

É evidente. E preocupa ao governo se o Itaú é hoje o quarto ou quinto maior banco do Chile? O fato é que as grandes corporações financeiras nacionais e internacionais vêm ao Chile para serem financiadas com a nossa humanidade. O Itaú quando vem fazer um negócio, o que faz? Emite ações no mercado. Quem as compra? As Administradoras de Fundos de Pensão (AFP). E o que ocorre em troca? Levam nossa vida, nossa humanidade. Este é o problema de fundo. Hoje em dia, e isso é muito importante que saibam os brasileiros, do total da nossa poupança mais de 40% está fora do país, são mais de US$ 87 bilhões de dólares investidos nos Estados Unidos. Como se faz este investimento, com quais instituições? Por meio das AFP. Temos três AFP norte-americanas. Qual é a dona da maior companhia seguradora do Chile? A MetLife, a maior companhia seguradora do planeta. Tomam nossa economia, levam para os Estados Unidos, compram ações da Bolsa e tratam de buscar rentabilidade, que está cada vez mais baixa.

Mas quem compra esse dinheiro, esse capital? Empresas imobiliárias que vão ao mercado de capitais, emitem ações e tomam de novo nosso capital. O que fazem? Expandem seus investimentos. O faturamento dos estados do Norte, Michigan, Illinois, por que estes dois estados? Porque aí ganhou Donald Trump. Prometendo o quê? Emprego a cidades como Detroit, que estão na bancarrota por conta da quebra da indústria automotriz. E como Trump foi prometer empregos, se antes de assumir baixou o imposto? Ao baixar o imposto entraram menos recursos para o Estado e viu reduzido o orçamento para fazer obras públicas. E como construir se precisa de recursos?

Como as empresas pagaram menos impostos, se revalorizaram na Bolsa – isso é tudo nominal – fazendo com que os especuladores saíssem do Chile e fossem para lá investir mais nestas companhias norte-americanas. Ou seja, transferimos mais capital de países emergentes como o Chile para países imperialistas como os Estados Unidos. E o que fazem por lá com nossos recursos? Investem em rodovias, pontes, não estão investindo em veículos automotrizes, porque esta é uma questão de concorrência, de custos, porque os japoneses e, sobretudo, os coreanos têm custos de produção muito mais baratos, sendo mais eficientes que os norte-americanos, a tal ponto que muitas companhias europeias estarem se fundindo com empresas japonesas e coreanas de automóvel.

Então temos o paradoxo que nós, os chilenos, habitantes de um país tão pequeno, com uma força de trabalho de pouco mais de oito milhões, com dez milhões de filiados ao sistema de AFP, estamos financiando Donald Trump.

Os Estados Unidos sendo o país com o maior déficit fiscal do mundo, tendo especialmente um déficit gigantesco com a China, como se financia? Com a transferência de recursos. Isso há 20 anos era impossível de sustentar porque os países emergentes, subdesenvolvidos entre aspas ou em vias de desenvolvimento, tinham como problema a dívida externa, sempre. Naquela época cada vez que um país entrava em crise – pelo ciclo da dívida – todos os emergentes se endividavam junto. Hoje isso passou de moda.

Pois há uma brutal sangria de recursos, uma transferência desmedida de capital…

A transferência por um país tão pequeno como o Chile, de mais de US$ 87 bilhões para qualquer país do mundo, é algo descomunal. O investimento que as AFP fizeram em celulose no estado do Rio Grande do Sul foi de US$ 4 bilhões. Como as AFP são as maiores investidoras de vários países, se o emprego formal no Chile vem caindo fortemente? Somos um país de serviços, que segue reproduzindo a velha matriz produtiva extrativista do cobre, a grande mineração, destruindo praticamente todo o ecossistema. Temos um deserto no norte que vem aumentando em direção ao sul em razão de que não há uma política de Estado frente a esse modelo, que nem vou chamar sequer de desenvolvimentista, é preciso mudar a palavra.

As empresas mineradoras estão contaminando o sul do Chile, que é o melhor que temos. Há seca. Este é um país que está secando, sempre tivemos muita água e hoje estamos tendo problemas sérios de abastecimento porque as grandes corporações agrícolas estão produzindo abacate nos montes. Para isso sugam a água subterrânea e as pequenas comunidades, criadoras de gado, estão morrendo.

A privatização da Previdência e sua substituição pelas AFP apenas reproduz a irracionalidade e a perversidade do sistema. Daí o achaque às aposentadorias.

As aposentadorias dos trabalhadores que conseguem se aposentar hoje em dia são tão baixas que a média dos benefícios está quase a metade do que é o salário mínimo do país. Estamos falando da média, temos 50% inferiores ao que é o salário mínimo. Este é um bom indicador para ser levado em conta porque se expressamos em dólar isso se deforma, porque há variedade cambial e cem dólares não é o mesmo no Brasil que no Chile, é complexo. Por isso é melhor comparar com o salário mínimo. Qual é o percentual do mínimo que recebe um aposentado no Chile? A grande maioria da população recebe menos da metade. E se dá o paradoxo de que estamos com um percentual muito alto de mulheres que está recebendo um quarto do valor do salário mínimo. Este é um dado objetivo, real. Então este é um sistema que não serve ao país, mas a um pequeno grupo de multimilionários que está espalhando seus negócios já não apenas pela América Latina, mas pelos Estados Unidos. Um dos homens mais ricos deste país que se chama Andreoni Conluxi, tem investimentos na Espanha, onde comprou um banco, tem aplicações nos Estados Unidos. Ele, assim como vários banqueiros chilenos, segue expandindo seus negócios porque, diferentemente dos burgueses brasileiros, argentinos ou colombianos, tem um mercado de capitais, que é muito vigoroso e por meio do qual pode adquirir dinheiro, esta mercadoria chamada capital a um preço muito baixo.
 
Quantos chilenos estão aposentados ?

Temos 1,3 milhão de aposentados pelo sistema da AFP e um pouco mais de 600 mil pelo antigo sistema, e que vão desaparecendo. Pertenciam às caixas de previsão, que eram 32. Aí está o custo da transição porque ainda não morreram todos os velhos que pertenciam a estas caixas. Da noite para o dia acabou o fluxo de ingressos porque os ativos passaram para as AFP.

Obrigatoriamente, não havia opção.

Já não iam para as caixas de previsão, mas para as AFP. As caixas foram tomadas pelo Estado que criou um organismo, o Instituto Nacional de Previsão, que se encarregou de todos os aposentados. A pergunta é de que forma, se os ativos já não pagavam, quem sustentou os novos aposentados? O Estado, lógico.

Há um número de quantos aposentados chilenos recebem pelo sistema antigo?

Um pouco mais de 650 mil aposentados pelo sistema antigo e um milhão trezentos e oitenta mil aposentados pelo atual sistema, a metade por “retiro programado”, que é uma forma que as AFP pagam, e a outra metade por “renda vitalícia”.

Explique esta diferença.

Temos um pouco mais de um milhão trezentas e oitenta mil pessoas aposentadas por AFP. Um pouquinho mais da metade, 51% por AFP, e outros 49% por companhias de seguro, todos no novo sistema. O que significa isso? Que quando chegas à idade de te aposentar, economizaste um montante na tua conta individual, uma poupança pessoal. Tua conta individual tem uma quantidade de dinheiro xis. Há uma idade determinada: 65 anos para o homem e 62 anos para a mulher. Então vais até a Administradora de Fundos de Pensão e ela vai te dizer: bom, tens a idade já, mas as previsões é que vivas até os 90 anos, por exemplo. Portanto, se tens 65 anos precisas financiar uma sobrevida de 25 anos. Quanto tens agora? 100 milhões de pesos (US$ 144.224,00) e isso é insuficiente. De qualquer forma se divide os 100 milhões pelo período de vida e se estabelece o valor. Um lixo. Esse é o retiro programado pelas AFP. Se busca a fórmula para dividir e pronto. Outro exemplo: a pessoa estabelece um benefício anual e quer receber US$ 100 por mês. Passados os 12 meses, tens de voltar à AFP para recalcular. Porque tinhas uma torta de cem que poderia ter sido comida de uma vez, mas não foi, e o resto que sobrou ficou aplicada na Bolsa de Valores e caiu. Então a aposentadoria que era 100 já virou 80. No segundo ano, voltas para renegociar e assim sucessivamente. O que está comprovado é que passados oito anos, mais ou menos, sua aposentadoria foi reduzida pela metade.

O que é feito então?

Isso é muito importante que seja compreendido. Existem dois sistemas: as AFP e as Companhias de Seguro, que são as mesmas donas das AFP. Então o que as Companhias de Seguro dizem: você está se aposentando pelas AFP, ganhando por exemplo 500 mil pesos. A pessoa pensa, bem não está tão mal, mas vai baixar o outro ano para 480 mil, 450, 300 e ao final de oito anos vai ter 250. Porém no esquema de “renda vitalícia”, as Companhias de Seguro dizem: nós lhe garantimos uma aposentadoria mais baixa que os 500 mil (US$ 721), mas será de renda vitalícia, até sua morte. As Companhias dizem: as AFP lhes pagam 500 e nós pagamos 380, mas é até que você morra, enquanto pelo outro modelo você acabará recebendo a metade. E o idoso fica com os 500 das AFP. Mas o que acontece no modelo AFP: no primeiro ano o valor já se reduz, no segundo um pouco mais, no terceiro ano a pessoa quer ir para a renda vitalícia das Companhias de Seguro.

E o que significa isso na prática?

Significa que você tem uma poupança e diz que é proprietário desta economia. Se você compra a renda vitalícia precisa repassar todo o dinheiro à Companhia de Seguro. Se és casado e morre, baixam 60% do valor da renda para sua mulher. Está na lei. E se morre a mulher, todo o dinheiro fica para a Companhia de Seguro. Porque é preciso que a poupança seja endossada às Companhias. Como as pessoas não querem endossar, estamos praticamente meio a meio entre as AFP e as Companhias de Seguro. Porque os velhos, passados dois três anos, saem do retiro programado e vão para a renda vitalícia. Mas as Companhias de Seguro também quebram. Ou alguém pensa que não?

E o que acontece quando as Companhias de Seguro quebram?

Conforme está escrito em lei, se tens uma aposentadoria de 500, o Estado vai responder com 100.

A privatização dos lucros e a socialização dos prejuízos.

Evidente.

Nas conversas que tivemos com aposentados em Valparaíso muitos nos disseram que devido aos baixos salários recebidos ao longo de suas vidas sequer tiveram a oportunidade de poupar. Então agora dependem de uma pequena ajuda do governo.

Se chama Pensão Básica Solidária, são 107 mil pesos, um terço do salário mínimo. No Chile são 660 mil pessoas que dependem dela. Desse montante, quanto os idosos destinam a medicamentos, em média? 20%. Ou seja, sobra 80 mil pesos para pagar água, luz, moradia, transporte, alimentação e vestuário, o que não é suficiente. No Chile, nem o transporte é grátis para o idoso. Se paga um valor menor no metrô, mas se paga. Temos o metrô mais caro do mundo, competindo com Londres e Paris. Isso explica um pouco o nível de precariedade na qual vivem centenas de milhares de aposentados chilenos. Os medicamentos também são caríssimos.

E olhem só, que paradoxo: os doze grupos multimilionários do Chile somaram forças para alterar o preço dos medicamentos. Foram punidos, mas as penas que a Justiça dá aos ricos são patéticas. O Chile pode ser a expressão mais clara do que é uma sociedade de total injustiça em matéria jurídica. Os poderosos estão à vontade para cometer quaisquer delitos que queiram, sem precisar pagar nada por seus crimes e abusos. Não vão presos nunca.

São muitas as injustiças.

Nós defendemos eliminar esta pensão básica e garantir uma aposentadoria universal, para todos. Porque este benefício é recebido somente pelos 60% mais pobres do país. Se a pessoa é de classe média, entre aspas, tem uma casa ou algo, vais morrer sem o acesso. Quando falas com alguém na Espanha ou outro país da Europa as pessoas não conseguem entender, porque para poder compreender isso precisas baixar à Antípoda do que é a civilização, ir para antes da Revolução Francesa, porque os europeus têm direitos fundamentais garantidos pelo Estado, a pessoa nasce e tem direitos. Perguntas a uma pessoa com instrução média, a um alemão, com quanto contribui… A única coisa que sabe é que tem direito à saúde, à educação e à aposentadoria. Todos sabem que têm um sistema de benefícios definidos, aqui não.

É recente, mas impactante o estudo que revela que o idoso chileno tem a maior taxa de suicídios em toda a América Latina. Isso significa algo. Muitos dos idosos que cometeram suicídio deixaram carta e, nelas, explicitaram seu sofrimento pela baixa renda e pela precariedade sob a qual viviam.

Há uma cortina de fumaça encobrindo estes horrores.

É evidente. O sistema de manipulação midiática distorce a realidade, acentuando outros aspectos que, obviamente, estão relacionados aos suicídios, como o abandono familiar. A expressão mais trágica de um sistema que nega direitos fundamentais como o nosso é que os chilenos e as chilenas estão chegando à velhice e se deparando com cenários desesperadores. A pessoa adoece e simplesmente não tem como bancar o tratamento. Está aumentando vertiginosamente o número de pessoas jogadas nas ruas. Isso é novidade para nós. Pode ser comum em São Paulo, mas no Chile não havia. Isso é a expressão de que algo está passando.

A Organização Internacional do Trabalho elaborou um estudo recente sobre a questão da Previdência.

Os informes que a OIT publicou sobre o tema não foram à toa. Dos 30 países que privatizaram a Previdência, 18 regressaram ao sistema público. A OIT conclui, categoricamente, que a privatização acarretou maior transferência de recursos públicos ao sistema de aposentadoria, ou seja, maior gasto público; maior concentração da riqueza; e, por fim, aposentadorias menores. A recomendação sensível da OIT é o retorno ao sistema público, é desprivatizar.

O discurso tradicional da mídia hegemônica é de que o sistema público é coisa do passado, de que a Previdência está quebrada. Mas não se pode ignorar um estudo como o da OIT. Se de 30 países que privatizaram a aposentadoria na década de 1990, principalmente no Leste Europeu, mais da metade voltou ao sistema anterior, é também porque regressar ao modelo anterior significa uma menor carga em cima do próprio Estado. O Chile é um exemplo: de cada 10 aposentadorias recebidas pelo cidadão, pelo menos sete são bancadas pelo Estado. Quando se privatizou o sistema, a promessa era de enxugar gastos públicos, pois o Estado não precisaria se preocupar com isso. A promessa era de uma taxa de retorno imenso, o que não ocorreu. Isso tudo sem mencionar o gasto do período de transição, que é gigantesco.

O sistema de capitalização é prova disso.

O paradoxo deste sistema vigente no Chile é que quem paga o Pilar Básico Solidário é o Estado, com recurso público. Ou seja, para que financiar um sistema privado se você já está gastando? O Estado recorre aos recursos públicos e aos impostos para isso. Por que o Estado faz isso? Todos pagam imposto, os pobres, para o Estado gastar com aposentadoria financiando as AFP. Os mais ricos podem ainda optar por um respirador artificial, o APV (Aporte Provisional Voluntário)*. [É uma alternativa de poupança adicional à poupança forçada, que tem como principal objetivo aumentar o montante da aposentadoria ou compensar períodos em que não contribuiu. Nesta modalidade o filiado pode depositar mais de 10% do valor obrigatório de sua renda tributável em sua AFP ou em alguma das instituições autorizadas para a administração deste tipo de poupança]. Eles destinam mais dinheiro para a poupança e são compensados com isenções tributárias.

Há uma disputa ideológica dura na sociedade sobre a Previdência.

O informe da OIT é um elemento imprescindível para a batalha de ideias contra a reforma da Previdência no Brasil. Categórico e contundente, o informe compila ideias que não convém e não interessam ao governo de Bolsonaro. Países com governo de direita, como Romênia, Polônia e Hungria, desprivatizaram o sistema de capitalização da Previdência e voltaram ao sistema público.

A Seguridade Social é um tema que tem muita complexidade. Não se trata de posições ideológicas ou fanatismos. É preciso, por exemplo, enfrentar a realidade de mudanças demográficas. Uma pergunta simples: como lidar com o envelhecimento da população? O Chile tem esse problema. Uma grande população idosa. Como lidar com esse problema? Com a capitalização individual, cada um rasgando-se com a sua própria unha, ou fazemos de forma solidária, entre todos?A resposta não é difícil. É preciso ser solidário. A mudança estrutural no mundo do trabalho reforça a nossa tese. A Seguridade Social nasce no mundo do trabalho. Sem o trabalho, não se pode entender a Seguridade Social.

O emprego formal, que tem certas garantias, está cada vez mais escasso. O emprego informal toma conta da sociedade. Como essa parcela massiva de trabalhadores informais destinará uma fração importante de sua renda para financiar uma aposentadoria como temos no Chile? Nem se ela quisesse! É uma questão prática. Logo, os mais afortunados têm que contribuir mais. Os mais afortunados, que têm empregos, têm de ser mais solidários com os menos afortunados.

A realidade material é que não se pode enfrentar as mudanças demográficas e as mudanças estruturais do mundo do trabalho, com uma política individualista.

Neste sentido o exemplo chileno é a prova cabal de que apostar nesta toada seria um erro.

previdencia de bolsonaro_adnael.jpg

 



Ainda no combate de ideias, o caso chileno é um dos melhores argumentos para barrar a reforma e para barrar a capitalização. Primeiro, é preciso desmontar o argumento de Paulo Guedes de que a reforma enxugará os gastos públicos. É mentira. O governo chileno paga sete em dez aposentadorias. A capitalização da Previdência aumenta o gasto público. Segundo elemento: este modelo reduz consideravelmente a taxa de retorno da poupança. Se o brasileiro recebe em torno de 70% do salário com o qual se aposentou, sob o modelo chileno o cidadão recebe menos de 30%. Terceiro ponto: um sistema de capitalização incrementa a desigualdade na distribuição de renda no país. Como se explica uma economia tão frágil em um país tão pequeno como o Chile produzir 12 multimilionários? O Brasil não tem praticamente nenhum. Isso eu digo em seminários internacionais, no Brasil, na Argentina. Como um país tão pequeno pode ter multimilionários investindo em países como o Brasil e a Argentina, e não o contrário?

Não há transferência de conhecimento, não há desenvolvimento tecnológico. O que vendemos, nós, chilenos, aos brasileiros? É transferência de humanidade, que gera este mundo financeirizado. O Chile é, de longe, o país mais financeirizado da América Latina.

O Chile serve de exemplo para o Brasil. Um país pequeno que mostra, na prática, os efeitos da capitalização da Previdência. São milhões os que marcham contra as AFP, empresas absolutamente desacreditadas.

Segundo estudos, 97% dos chilenos estão condenados a aposentadorias miseráveis. De todos os chilenos que contribuem, 97% alcançará, no melhor do casos 40% de taxa de retorno e, no pior dos casos, menos de 20%. E deixo uma pergunta para reflexão: se o grosso do dinheiro está nas mãos de AFP estrangeiras e de companhias de seguros que são donas das AFP, o que acontece se essas empresas estadunidenses quebrarem? A Lehman Brothers não quebrou? A Enron não quebrou? Ninguém diria que quebrariam. Nem eu, bancário, diria. Por que uma seguradora norte-americana, com o déficit que os Estados Unidos têm, com a guerra dos Estados Unidos contra a China, não poderia quebrar? Quem vai responder aos 600 mil aposentados chilenos? O Estado.

Temos o caso italiano.

O caso da Itália é interessante. Sob um governo de extrema-direita, a Itália previu, ao Banco Europeu, um aumento orçamentário de dois pontos do PIB. O Banco devolveu o plano imediatamente, impondo restrições. O governo italiano voltou a apresentá-lo e o banco voltou a recusar, com ameaças. Os italianos ficaram doidos. O aumento de 2% para que era? Para melhorar as aposentadorias. Um governo de extrema-direita melhorando a aposentadoria. Eles compreendem o caráter político desta questão. Há muita gente dormindo nas ruas. Onde essas pessoas fazem suas necessidades, como vivem? É uma total involução.

No Chile, está em alta a tese de que todos os cidadãos nascidos no país agora viverão cerca de 100 anos. Na década de 1950, a expectativa de vida do homem era de 50 anos e a da mulher, 55. O que passa é que essas pessoas que vivem nas ruas, sem nenhum saneamento básico, sem comida, sem higiene, vai morrer aos 50.

Fale um pouco sobre como se dá o retorno da “rentabilidade” atual da AFP aos aposentados por esse sistema?

Este sistema já tem 40 anos. Nos primeiros 10 anos, a poupança do trabalhador teve taxas de rentabilidade de aproximadamente 12,4%. Na segunda década, por volta de 1991, a rentabilidade chegou a 10%. Na terceira década, 5%. Agora, na quarta década, iniciada em 2010, qual é a rentabilidade? 3,5%. Por que vem caindo? Segundo os especialistas sérios, os fundos de investimento buscam rentabilidade no mercado financeiro. Eles especulam, buscando onde comprar, onde vender, onde investir. Não estamos comprando batatas, sapatos ou carne. Esta é uma mercadoria peculiar, pois quem a compra pode expandir seu negócio. Se eu compro carne, não posso produzir sapatos. Se eu compro sapatos, não consigo transformá-los em remédio, mas com esta mercadoria, sim. A economia mundial vem caindo.3,5%, 3% e não podemos esperar que se a economia siga esses números, haja uma rentabilidade de 10%. O número mais alto da rentabilidade na primeira década das AFP se deveu ao simples fato de que, à época, o Chile privatizou as grandes empresas públicas. A privatização de setores estratégicos foi simultânea à implementação das AFP, que se aproveitaram disso durante aquele período. E ponto. Então é bom que os brasileiros estejam alertas.

Gostaríamos que desse um último alerta.

bolsonaro previdencia_lila.jpg

 



Quero me dirigir a todos os amigos e irmãos deste importante país de nosso continente, o Brasil. O país está ameaçado por uma política que pretende destruir um direito fundamental que os brasileiros e brasileiras têm: a Seguridade Social. Nós, chilenos, falamos com conhecimento de causa. Nos retiraram esse direito em meados dos anos 1980, sob a tirania de Augusto Pinochet. E quais foram as consciências após quase 40 anos? Temos a pior distribuição de renda, temos 12 multimilionários que se apoderam deste dinheiro e investem, inclusive, no Brasil, destruindo a Amazônia, ou no sul do país, explorando a nossa humanidade e destruindo o emprego. Investem no Peru, na Colômbia, na Argentina. O que aconteceu após quase 40 anos? O Estado gasta mais dinheiro com este sistema de aposentadoria do que gastava antes. Temos que drenar ainda mais recursos do Estado para pagar aposentadorias. Qual é outra consequência? Uma desigualdade brutal e uma alta concentração da riqueza, pois os grandes grupos econômicos usam nossa poupança, nossa humanidade, nossas vidas para financiarem seus projetos espúrios. A terceira e mais concreta consequência: as aposentadorias no Chile, que antes da ditadura contavam com uma taxa de retorno na casa dos 70%, hoje em dia estão majoritariamente por baixo de 30% e, segundo estudos, dentro de cinco anos, despencarão para a casa dos 20%. No Brasil, os brasileiros e as brasileiras não podem acreditar em Bolsonaro e em um governo que pretende implantar um modelo absolutamente fracassado como o chileno – conforme classificou a própria OIT. Saúdo a todos e faço um apelo para que estejam firmes e unidos na defesa deste direito humano que é a Seguridade Social.

previdência aposentadoria.jpg

 



*****
 
O Coletivo de Comunicação Colaborativa ComunicaSul esteve no Chile recentemente, com os seguintes apoios: Centro de Estudos da Mídia Alternativa Barão de Itararé, Diálogos do Sul, Federação Única dos Petroleiros (FUP), Jornal Hora do Povo, Sindicato dos Metalúrgicos de São José dos Campos, Sindicato dos Metroviários de São Paulo, CUT Chile e Sindicato Nacional dos Carteiros do Chile (Sinacar). A reprodução é livre, desde que citados os autores e apoios.

previdencia primeiro emprego aposentadoria.jpg

 

 
26
Set18

de Fabianna Freire Pepeu

Talis Andrade

pete_kreiner.jpg

 




Na padaria


Fico sabendo que seu D., que há dois anos tomava um cafezinho aqui toda tarde, pulou do 11o andar do prédio no qual ainda trabalhava. Tinha uns 70 anos e era médico. Eu conversei com ele, rapidamente, apenas uma vez, mas era meu preferido entre os frequentadores habituais. Perguntei em quem votaria pra presidente, depois de um rápido pedido de desculpas pela intromissão. Afirmou que estava em dúvida. Falei qualquer coisa sobre o Bolsofasci e ele retrucou, com ligeiro desprezo: “ganha nada.” Pensei que o veria muitas outras vezes, antes e depois do dia 7 de outubro.


A padaria ficou vazia e sem graça. A rua S., pela primeira vez, me pareceu triste. Tive uma vontadezinha de chorar. Quis voltar no tempo pra fazer qualquer coisa que estivesse ao meu alcance. Não havia mais nada que pudesse ser feito. Adeus, seu D

 

 

22
Set18

Sem previdência pública, Chile tem suicídio recorde entre idosos com mais de 80 anos

Talis Andrade

velhice age_kills__rodrigo_de_matos.jpg

 

 

Apontada como modelo pelo Fundo Monetário Internacional (FMI), a privatização da Previdência Social chilena, promovida pelo general Augusto Pinochet na década de 1980, continua vigente e cobrando um preço cada vez mais elevado. O colapso do sistema tem ganhado maior visibilidade nos últimos dias à medida que o arrocho no valor das pensões e aposentadorias se reflete no aumento do número de suicídios.

 

De acordo com o Estudo Estatísticas Vitais, do Ministério de Saúde e do Instituto Nacional de Estatísticas (INE), entre 2010 e 2015, 936 adultos maiores de 70 anos tiraram sua própria vida no período. O levantamento aponta que os maiores de 80 anos apresentam as maiores taxas de suicídio – 17,7 por cada 100 mil habitantes – seguido pelos segmentos de 70 a 79 anos, com uma taxa de 15,4, contra uma taxa média nacional de 10,2. Conforme o Centro de Estudos de Velhice e Envelhecimento, são índices mórbidos, que crescem ano e ano, e refletem a “mais alta taxa de suicídios da América Latina”.

 

Uma das autoras da pesquisa ministerial, Ana Paula Vieira, acadêmica de Gerontologia da Universidade Católica e presidenta da Fundação Míranos, avalia que muitos dos casos visam simplesmente acabar com o sofrimento causado, “por não encontrar os recursos para lidar com o que está passando em sua vida”.

 

O fato é que à medida que a idade avança e os recursos para o acompanhamento e o tratamento médico vão sendo reduzidos pela própria irracionalidade do projeto neoliberal de capitalização da Seguridade, os idosos passam a se sentir cada vez mais como um fardo para os seus familiares e entes queridos.

 

JORGE E ELSA

 

Entre tantos casos, ganhou notoriedade recentemente o do casal Jorge Olivares Castro (84) e Elsa Ayala Castro (89) que, após 55 anos, decidiu “partir juntos” para “não seguir molestando mais”. A evolução do câncer de Elsa, conjugada a uma primeira etapa de demência senil, faria com que tivesse de ser internada numa casa de repouso. O marido calculou que poderiam pagar, mas somente se somassem ambas as aposentadorias e vendessem a casa. Sem qualquer perspectiva, Jorge e Elsa decidiram abreviar suas vidas com dois disparos.

 

Infelizmente, diz a psicogeriatra Daniela González, “enfermidades que geram uma impossibilidade de serem enfrentadas economicamente acabam colocando o tema do suicídio como uma saída honrosa”.

 

Como ficou comprovado, o desmantelamento do Estado serviu tão somente para beneficiar as corporações privadas que assaltaram o sistema público de pensões e aposentadorias chileno sob o pretexto que era deficitário, (até nisso os ladrões e a grande mídia tupiniquins demonstram a mais completa falta de criatividade), por outro de capitalização administrado pelo “mercado”. A “justificativa” era de que assim seria resolvido o problema fiscal e se abririam as portas ao crescimento econômico. Assim, foram montadas as Administradoras de Fundos de Pensão (AFP), instituições financeiras privadas encarregadas de administrar os fundos e poupanças de pensões. O rendimento destes fundos, com base nas flutuações do “mercado”, determina a quantidade de dinheiro que cada pessoa acumulará quando chegar o momento da aposentadoria.

 

Desta forma, com a capitalização para fins de aposentadoria integralmente bancada pelo trabalhador, milhões de pessoas foram obrigadas a entregar 10% de seus salários a arapucas especulativas, sem haver nenhuma contribuição dos empregadores, nem do Estado. “Houve crises financeiras nas que perdemos todas as economias depositadas ao longo da vida, porque ficamos sujeitos aos vaivéns do mercado”, explicou Carolina Espinoza, dirigente da Confederação de Funcionários de Saúde Municipal (Confusam) e porta-voz da Coordenação “No Más AFP”..

 

MULTINACIONAIS

 

Atualmente, das seis AFPs que atuam no Chile, cinco são controladas por empresas financeiras multinacionais: Principal Financial Group (EUA); Prudential Financial (EUA); MetLife (EUA); BTG Pactual (Brasil) e Grupo Sura (Colômbia), que administram fundos de 10 milhões de filiados. No total, são mais de US$ 170 bilhões aplicados no mercado de capitais especulativos, nas bolsas de Londres e Frankfurt, para serem repassados sob a forma de empréstimos usurários aos próprios trabalhadores.

 

O resultado prático deste mecanismo, assinala a Fundação Sol, entidade que estuda as condições de trabalho no país, é que a pensão média recebida por 90% dos aposentados chilenos é de pouco mais de 60% do salário mínimo, cada vez mais insuficiente para os gastos de um idoso.

 

“Como sociedade não podemos permitir que pessoas que construíram com tanto esforço este país estejam passando seus últimos anos na tristeza”, declarou o doutor José Aravena, diretor da Sociedade de Geriatria e Gerontologia do Chile, para quem os suicídios deveriam fazer “soar o alerta para a reflexão sobre como se está envelhecendo no país”. “Para ninguém é justo viver os últimos anos de sua vida sentindo-se triste ou com vontade de não seguir vivendo”, acrescentou, apontando a “dependência e a depressão” entre os principais fatores do suicídio em idosos.

LEONARDO SEVERO

 

Mais sobre mim

foto do autor

Subscrever por e-mail

A subscrição é anónima e gera, no máximo, um e-mail por dia.

Arquivo

  1. 2023
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D
  14. 2022
  15. J
  16. F
  17. M
  18. A
  19. M
  20. J
  21. J
  22. A
  23. S
  24. O
  25. N
  26. D
  27. 2021
  28. J
  29. F
  30. M
  31. A
  32. M
  33. J
  34. J
  35. A
  36. S
  37. O
  38. N
  39. D
  40. 2020
  41. J
  42. F
  43. M
  44. A
  45. M
  46. J
  47. J
  48. A
  49. S
  50. O
  51. N
  52. D
  53. 2019
  54. J
  55. F
  56. M
  57. A
  58. M
  59. J
  60. J
  61. A
  62. S
  63. O
  64. N
  65. D
  66. 2018
  67. J
  68. F
  69. M
  70. A
  71. M
  72. J
  73. J
  74. A
  75. S
  76. O
  77. N
  78. D
  79. 2017
  80. J
  81. F
  82. M
  83. A
  84. M
  85. J
  86. J
  87. A
  88. S
  89. O
  90. N
  91. D
Em destaque no SAPO Blogs
pub