Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

O CORRESPONDENTE

Os melhores textos dos jornalistas livres do Brasil. As melhores charges. Compartilhe

Os melhores textos dos jornalistas livres do Brasil. As melhores charges. Compartilhe

O CORRESPONDENTE

20
Mar23

Antonio Maria, do Recife e do Mundo

Talis Andrade
Foto: Arquivo familiar

 

 

As crônicas de Antônio Maria misturavam humor, crueldade e lirismo, a depender dos dias e da vida, que não eram iguais, para ele ou para ninguém

 

10
Mar23

Canção para Soledad Barrett

Talis Andrade
Soledad Barret - lustração: Ral

 

Se remorso houver em relação a Soledad, e a todos os socialistas que a tortura destruiu, se remorso houvesse, ele deveria perseguir o Cabo Anselmo.

 

Para o Dia Internacional das Mulheres, recupero algumas páginas do romance “A mais longa duração da juventude”. Nele está uma tentativa musical para a guerreira Soledad Barrett Viedma. Mas bem sei que este compositor é precário, então lhe deem por favor o perdão de ter escolhido tão alta musa.

“Nestes dias, obedecendo a impulso incontrolável, tentei compor esta canção para Soledad Barrett:

‘Quando te vi pela primeira vez, Soledad
Me deu vontade de cantar.
Lá no Pátio de São Pedro
Correu um fogo em meu coração
Que me dizia
Haveria incêndio se eu tocasse as tuas mãos.

Mas em 1973, Sol, o amor era uma alienação.
E a canção que não vinha me torturava assim:
‘Como posso tocar a sua alma? Como posso tê-la junto a mim?’

Em 73, no calor dos teus olhos, Soledad,
havia um fogo irresistível para todos
Não sei se era uma alucinação
Pois sentia o perfume dos jasmins,
Como se as pétalas do teu corpo
batessem num feitiço em cima de mim

Os beija-flores, mais educados que os amantes,
sabem que podem tocar a intimidade da flor
e por isso são felizes.
Diferente de ti, Soledad, que eras flor vermelha
e não recebeste o carinho de acender a centelha.

Por isso minha lembrança evitou a dor da tua morte,
Por isso pude ouvir o canto da criança guarani:
‘Filha do paraíso azul / entra para mim’.

Ainda ontem, em um ato público, ao gritarem o teu nome, Soledad,
a minha voz ao responder ‘presente’ fraquejou,
como se fraqueja diante de quem se ama
pois o teu nome em meu coração não cessou

As santas do Paraguai carregam o filho nos braços
e a aos pés delas têm anjos,
até lua em quarto minguante.
Mas um feto nos pés e sangue na fogueira
Somente Soledad, a guerreira

Por isso estás presente hoje nas cordas do violão
E para a tua nova vida eu fiz esta canção’.

Perdoem o lugar-comum da rima e o quanto fui tosco. Talvez importe mais o não-dito, que desejou apenas dizer ‘a voz fraqueja porque a tua presença não terminou em meu coração’. Não é nem ‘continuou’, porque a pessoa agora é melhor compreendida, e nesse entendimento o nosso afeto cresce. É próprio do homem crescer com humanos. Por que ela acorda e nos acorda dessa maneira? Toda a gente, quando simplifica histórias de terror, pensa que um remorso persegue o criminoso. Mas não é assim que a realidade nos toca. Se remorso houver em relação a Soledad, e a todos os socialistas que a tortura destruiu, se remorso houvesse, ele deveria perseguir o Cabo Anselmo. Mas esse anda, gargalha, palita os dentes e chega a reclamar dinheiro da Anistia, porque afinal teria sido perseguido pela ditadura. Dizer o quê diante do cinismo endurecido? Não, a ele o remorso não fere.’“Você dorme bem?’, um repórter lhe perguntou. ‘Putz, tranquilamente’. E o repórter: ‘Você dorme tranquilo?! Nunca sentiu pesadelo durante a noite? Não tem remorso pelo que fez?’. E Anselmo: ‘Absolutamente. Não tenho’. E riu. Se o remorso persegue uma pessoa, talvez atinja as que nada fizeram, ou calaram depois do massacre de militantes contra a ditadura no Recife. Mas a esses mesmos, penso, o remorso ainda não fere. Loucas e tortuosas são as voltas da consciência. Ela é esperta e só quer a sobrevivência confortável. Não, a essa gente a verdade ainda é vedada.

Leia também: Soledad Barrett, presente

Cabo Anselmo 

 

Então, como volta a pessoa que foi separada de modo brutal da vida? É como se não a procurássemos, é como se delas até quiséssemos fugir, mas de repente, por caminhos imprevisíveis, ela retorna. Penso e creio que ela está conosco, sempre, e fazemos de conta que nem mais existia. Assim aconteceu comigo, no cemitério, ao acompanhar o enterro da tia de um amigo. Súbito, me apareceu uma senhora de cabelos branquinhos, que falou me conhecer desde menino. A idosa me conhecera desde o tempo em que eu possuía mãe viva. E se pôs a falar e despertou numa avalanche tudo que estava submerso em mim. De modo igual ocorre quando fingimos não estar com a pessoa querida, para assim ignorar o nosso próprio corpo. Andamos com ele, com ele vamos à feira, ao bar, à livraria, às festas, como se nos transportasse um fluido imaterial. Mas ele está conosco, e só lhe prestamos atenção quando no íntimo nos pula uma dor. ‘Ah, este meu corpo existe’, e não mais podemos correr, ver o mar, inspirar o azul, porque o seu peso e aflição nos prendem. Assim também com as pessoas fundamentais, elas são o nosso corpo, estão conosco, com elas vamos à cama, à mesa, enquanto a sua presença sussurra e segreda em nós. Discreta, fundamental e silenciosa. Mais forte e senhora do nosso corpo que um câncer, porque ela nos vence com a ternura daquilo que nos funda. Assim, de repente, quando penso que Soledad está morta e sepultada não se sabe onde, de repente me aparece à frente um senhor baixinho, cabelos prateados, olhos vivos como os possuem os militantes comunistas que muito viveram. Ele me considera de modo firme e fala

– Eu conheci Soledad.

Eu recebo o golpe e de imediato não o compreendo. Estou no Teatro Hermnilo Borba Filho, acabo de ver o monólogo sobre Soledad no palco. Então tudo é meio vivo, meio teatro, não sei, o momento em que estamos é o da suspensão da lógica mecânica.

– Eu conheci Soledad.

‘Será que ele se refere ao conhecimento que teve dela nesse espetáculo, ou ao livro que escrevi?’, penso, mas não consigo falar. Estou naquelas zonas de estupefação em que a gente pensa e perde a fala. Mas de tal modo ele repete a frase, que num esforço de gentileza articulo:

-Foi? – E ele responde:

 Ela foi à minha casa. – E se aproxima de nós uma senhora, que venho a saber depois ser a sua esposa. E fala: – Muitas vezes. – E volta o senhor: – Conheci os dois. Ela e Anselmo.

Enquanto ele fala, se acerca de nós a jovem senhora Ñasaindy, filha de Soledad. E num impulso o abraça, calorosa. Então o senhor lhe fala.

-Parece que estou abraçando a sua mãe.

Leia também: “Em busca de Anselmo” e a gravidez de Soledad Barrett

E saímos da sala de recepção do teatro. Eu estou tonto, porque saltam de repente os fenômenos adormecidos. Vamos para o pátio e conversamos como velhos amigos, aquela conversa em que estamos com toda a nossa pessoa. Só atenção, fraternidade e conhecimento antigo. Amigo será irmão de antigo? Aliás, as palavras que não saíam vêm num atropelo. O senhor com quem converso, que tem o nome de Marx, fala da sua prisão, de como caiu a máscara do infiltrado Anselmo. De um fusca verde que Anselmo usava sempre “com gasolina pela boca”, e de como um vizinho reconheceu o carro, propriedade de um coronel do Exército anticomunista. Mas para mim resulta mais a lembrança da esposa de Marx:

– A gente fazia sapatinhos de bebê com Soledad.

– Sapatinhos para quem? – pergunto.

– Para o bebê que ela estava esperando.

 Mas Anselmo fala que Soledad não estava grávida.

Marx sorri fino. A sua esposa o acompanha, negaceando com o queixo. E sinto que falam sem palavras: ‘Quanto cinismo. Que canalha’. Mas o movimento de condenação ao criminoso passa por ele e se dirige para a mãe que espera o filho, encostada ao muro do quintal da casa. Então a sua pessoa volta, desce e falamos sobre Soledad, como se ela estivesse presente e lhe prestássemos um reconhecimento. Na verdade, essa é uma sensação que temos presente. Quando eu falava para Hilda Torres, a atriz que a reencarna no palco, quando eu falava para Hilda lá na Ilha de Kos, eu lhe disse:

– Eu sinto Soledad como se ela entrasse agora por aquela porta. Eu sou ateu, mas sinto a sua presença viva.

Soledad Barret

 

É um vivo sem a matéria do corpo, eu poderia ter dito. Mas isso podia ser interpretado de um modo tão espírita, que cairíamos numa discussão de gênero Allan Kardec. Mas a pessoa de Soledad é real, a pessoa que nos acompanha é real, e se nela não tocamos com os dedos, podemos sentir o seu cheiro, as pernas, o rosto, o riso, sentir quase sem ver, se me entendem. Sabem a luz da estrela que vemos e não pegamos? A pessoa que amamos se toca, se pega, mas sem o tato, ou melhor, com um longo e total sentido, ainda que não o queiramos. É um imperativo do coração. É como se o sentimento se desprendesse da nossa vontade e autônomo nos desse uma ordem. Age, anda e voa. E o ser limitado que éramos ganha o espaço para abarcar o valor que não tínhamos sido. Mistura de empatia, solidariedade e sentimento oculto. É como se estivéssemos bêbados de amor, enfim. Então o beijo em Soledad voltou, lá do fundo daquela tarde de antes. Com mais precisão, voltou aos lábios que abraçam a sua pessoa”.

Trecho do romance “A mais longa duração da juventude”.

soledad urariano.jpg

03
Mar23

Heróis do Recife

Talis Andrade

Lembro os sem nomes, aqui nomeados pela primeira vez. Lembro a professora Termutes, do Ginásio Ipiranga, que sumiu no tempo

26
Fev23

Para uma menina do Recife

Talis Andrade

 

Recupero um texto que publiquei em 2012. Mas não é possível, há 11 anos? Uma explicação é que talvez o tempo tenha passado muito depressa

 

 

Penélope, a menina do Recife a quem me dirijo em 2012, não está só, ainda que fale em seu nome ao me procurar por e-mail. De modo bem didático, ela me conta que, num coletivo de alunos da 8ª série do Instituto Capibaribe, prepara um trabalho para ser exibido na feira de conhecimento da escola. E que esse trabalho foi solicitado pelos professores Mauro Santos, de Português, e Júlia Vergeti, de História. Eu deveria responder logo que ainda há educadores no Recife. Mas me calo para aqui terminar a didática da história.

Penélope Andrade tem apenas 13 anos. Pois a menina mocinha me procura pra saber notícias da ditadura no Recife, e com uma maturidade que talvez eu não tivesse na sua idade. É preciso dizer que o mais ardente em curiosidade sou eu? O que viria das perguntas e entrevista da menina? Acompanhem por favor a história.

 

Quantos anos tinha nessa época? E o que fazia? – Penélope começa. 

Ao que respondo:

– Quando houve o golpe, no dia primeiro de abril e não em 31 de março como os militares golpistas dizem com medo, porque desejam afastar o ridículo que é um golpe no dia universal da mentira, em primeiro de abril de 1964 eu estava com 13 anos de idade.

Era estudante de escola pública, que na época era a melhor escola que havia, e de tal maneira que chamávamos as escolas privadas de PP (Pagou, Passou). Eu era um adolescente angustiado – e que adolescente não é? – carregado de traumas familiares (aqueles traumas que não confessamos a ninguém), que adorava ler, que sonhava em ser ator de teatro, poeta, desenhista, pintor e galã de cinema. Se possível, na ordem inversa. Mas o espelho e a realidade me livraram de ser Rodrigo Santoro. (Embora digam que depois de maduro eu melhorei muito…). As ideias da esquerda já me chegavam, mas eu era um reacionário leitor de Seleções Reader’s Digest, uma revista infame de propaganda norte-americana. Pra minha sorte, os amigos que mais me influenciaram eram de esquerda. De um deles ouvi pela primeira vez o nome Darwin, e a sua teoria da evolução, que batia de frente contra a criação do homem por Deus, como eu acreditava e discutia furioso. Em resumo: eu tive a sorte de as melhores pessoas que eu conheci, quando eu mais precisava, terem sido de esquerda. Isso foi, é uma riqueza sem tamanho.

 

– Considerando fatores econômicos e político, sabendo que nessa época estávamos sendo governados por João Goulart, como estava a situação do país? – Penélope continua.

Respondo:

– O Brasil era subdesenvolvido, o que quer dizer: atrasado, tanto do ponto de vista econômico quanto social. Pra você ter ideia, os trabalhadores da zona da mata de Pernambuco, os cortadores de cana, recebiam menos, muito menos que o salário-mínimo. Foi no primeiro governo de Arraes, a partir de 1962, que os trabalhadores da cana tiveram a conquista do salário-mínimo. Isso foi tão bom, que Paulo Cavalcanti (historiador e jornalista, comunista histórico do Recife) contou que os trabalhadores compravam 2 relógios, “um pro horário de verão, outro pro horário de mesmo”. As ligas camponesas nasciam e ameaçavam o domínio dos latifundiários, os grandes donos de terras. O Nordeste, Pernambuco em particular, fervia muito além do frevo. Estávamos com o MCP, Movimento de Cultura Popular, que reunia artistas de valor, engajados na luta pelas reformas (como chamavam as reivindicações para dar ao povo o direito de cidadão), um movimento em que Abelardo da Hora, o maior escultor do Brasil, vivo e trabalhando ainda hoje, criou tantas esculturas, lindas, como o Vendedor de Pirulito, que pode ser visto no Parque 13 de maio.

Abelardo da Hora 

 

Era o tempo em que no Recife estavam Celso Furtado, Josué de Castro, Paulo Freire, intelectuais que foram reconhecidos em todo o mundo, mas perseguidos pelo regime militar que se instalou. Vale dizer, a repressão que se abateu veio com força absoluta sobre os pernambucanos, a ponto de cometerem barbaridades públicas, como o espancamento de Gregório Bezerra nas ruas, com golpes de ferro na cabeça. Queriam inclusive enforcá-lo na praça de Casa Forte. Esse era o tempo e o clima. Um país que exigia reformas urgentes, que os Estados Unidos interpretaram como um caminho aberto para o comunismo, e por isso apoiaram o golpe que os militares deram.

 

– Após o regime, como foi a redemocratização do país e a escolha do presidente? – A menina do Recife pergunta.

Respondo:

– Você pulou cedo demais. Antes de “após o regime”, houve o pior, o “durante o regime”. Isto é, o tempo da ditadura. Você não pode nem imaginar o filme de terror, pior que um filme de terror, porque era real, insuportavelmente real, os anos de ditadura. Artes, música, cinema, literatura censuradas. Jornais sob censura prévia. Prisões, mortes e assassinatos sob torturas. Deixo pra você alguns artigos que escrevi sobre aquele tempo em Ivanovitch, 1964  e Raquel, a viúva que amamos, mais suave, mas igualmente verdadeiro.

Deputados defendem frente democrática, como a das Diretas Já, que reuniu, entre outros, Tancredo Neves e Ulysses Guimarães (Foto: Célio Azevedo)

 

A redemocratização do país não veio como sonhávamos. Ou seja, queríamos a realização, a continuação da história interrompida, com o aprofundamento da democracia pela qual o povo lutara antes do golpe. Queríamos trabalho para todos, as artes e a ciência para todo o mundo, o socialismo no poder, a punição severa dos crimes praticados pelos torturadores. Nada disso se cumpriu. Para nós, a redemocratização começou a dar uns lampejos no governo Lula e na continuação com a presidenta (atenção, a forma “presidenta” é legítima) Dilma. Começou, apenas.

 

– Que heranças econômicas foram deixadas após o regime? Você as considera boas ou ruins? – Penélope continua.

Respondo:

– É claro que a herança vinda do regime é a pior possível. Tanto do ponto de vista social, porque houve um desmantelamento da qualidade do ensino público no Brasil (e a direita, esperta, põe na conta do pós-ditadura), quanto do econômico, porque aumentou a centralização do desenvolvimento no Sudeste. Isso quer dizer, o Nordeste afundou sob os anos de ditadura. A cultura brasileira foi rompida, rasgada, e muitos de seus melhores artistas enlouqueceram (Glauber, Torquato Neto, Vandré…).

Mais: e se houve algum avanço econômico, e depois de 21 anos algum deve ter havido, paga o preço de tantas pessoas cortadas, barbarizadas? Seria o mesmo que acreditar que a herança deixada por um homem morto é melhor que a sua vida.  

 

– Comparando o antes e depois do regime militar o que mudou na sua vida?

– Muito mudou. Fiquei menos feio e sou escritor. Mas as perdas pessoais foram imensas, e aqui faço uma homenagem a uma pessoa em particular, que vem a ser o seu tio-avô Luiz Paulo. Ele foi uma das melhores pessoas que conheci naquele maldito ano de 1973, quando foram assassinados seis militantes socialistas no Recife, e sobre os quais escrevi Os Corações Futuristas e Soledad no Recife. (Em 2023, acrescento: “A mais longa duração da juventude”)

Urariano Mota

 

Luiz Paulo era um intelectual, um escritor de grande senso de humor, que perdemos antes do seu fim, porque ele se autoexilou em São Paulo, por conta das burrices e divisões autofágicas na esquerda do Recife. Com ele fundamos o jornal A Xepa, o primeiro jornal alternativo no Recife sob a ditadura. E escrevo “com ele” pra não dizer: A Xepa foi Luiz Paulo e o resto. Para esse jornal, dele veio o maior estímulo e dedicação, porque acreditávamos, na época, que estávamos fundando um novo Pasquim no Recife. Sonhar era bom e Luiz Paulo esteve ao nosso lado nesse sonho.

E aqui terminei a entrevista.

Terminei, não, fiz uma pausa, fizemos uma pausa, eu e Penélope, eu e os alunos como ela. Essa continuação da história que passamos adiante, essa continuidade de gênese e recriação do mundo com que nos confraternizamos, esse despertar de educadores para a realidade política da ditadura é como descobrir um mundo melhor do que imaginávamos.

Calderón de La Barca dizia que a vida é sonho, ao que a realidade nos diz que o sonho é a vida, apesar de tantos pesadelos. O que afinal guarda uma coerência interna, pois o pesadelo é gêmeo univitelino do sonho. Esse pesadelo imenso e geral tem pausas e intervalos felizes, como o da curiosidade histórica dessa mocinha Penélope. Para mim, ela é A menina do Recife a quem mando um sorriso e um abraço.

OS_CORACOES_FUTURISTAS urariano mota.jpg

12
Fev23

Para o Dia do Frevo

Talis Andrade

O texto a seguir é uma adaptação do verbete Frevo no Dicionário Amoroso do Recife

29
Jan23

Uma condenação da tortura e morte na ditadura

Talis Andrade
Monumento Tortura Nunca Mais, no Recife

 

 

Condenação de delegados algozes da ditadura militar é saudada por Urariano Mota com um trecho de seu romance “A mais longa duração da juventude”

 

20
Jan23

Para o Dia Nacional de Combate à Intolerância Religiosa

Talis Andrade

 

 

No sábado 21 de janeiro, temos o Dia Nacional de Combate à Intolerância Religiosa. Então a hora é boa de cantar o Terreiro do Pai Adão, sobre o qual escrevi no Dicionário Amoroso do Recife.

 

Xangô, Terreiro de Pai Adão *

 

Não estranhem que usemos xangô em lugar do nome candomblé, porque em Pernambuco é assim. O dicionário Houaiss registra que Xangô é 1. orixá iorubá dado como o quarto rei (lendário) de Oyo, na Nigéria, cuja epifania são os raios e os trovões; 2. culto afro-brasileiro que constitui uma alteração do padrão litúrgico nagô, adaptado por diversos grupos étnicos conviventes no Nordeste do Brasil.

Mas curvado aos fatos da língua, pois assim são os bons dicionários, Houaiss define que Xangô também é, da Paraíba até Sergipe, o “local onde se realiza esse culto; Terreiro”. É o nosso caso, neste em especial, da Estrada Velha de Água Fria, 1644 – Recife. Ali reside e resiste há 148 anos o mais antigo xangô de Pernambuco.

Nesse particular de xangô, o mestre é o maestro José Amaro Santos da Silva, que sobre o Terreiro de Pai Adão escreveu no livro Memórias de Água Fria:

“O xangô mais tradicional de Água Fria sempre foi o Terreiro do Pai Adão, na Estrada Velha de Água Fria, próximo a onde tinha o Chapéu de Sol e depois o cinema Império”. Fundado por Iyá Tinukê, tia Inês, uma mulher negra africana que adquiriu aquele espaço terra, que, além do Terreiro onde ainda hoje se fazem os toques de candomblé, fez construir anexa uma capelinha consagrada a Santa Inês. Foi sucedida por Adão. Mais tarde, o antropólogo Renê Ribeiro chegou a dizer e tentar validar que todos os Terreiros surgidos naquelas redondezas não passavam de satélites daquele daquela casa matriz.

Quando menino, nas brincadeiras de rua, alguns outros brincantes que acompanhavam os toques nos terreiros de candomblé, ou de xangô, como sempre foi chamado, estavam sempre a lembrar cânticos que ouviam nos salões, e cantavam brincando: Ogum da guerra, guerria-ê, Ogum da Guerra, guerria-ô. E ainda: Oraiêiê, bebé shoró. Oraiêiê, bebé shoró. Shorô pai, shorô mãe, bebé shorou-ô”.

Na infância, eu me lembro do fascínio do Terreiro de Pai Adão. Nos raros momentos em que o espionávamos — sim, o termo é este, espionar, porque havia nele algo de clandestino, pois era de maldição e de inferno o culto dos negros, como nos doutrinavam os padres e pastores —, lembro primeiro das luzes na noite, das saias largas, axó, voluptuosas das filhas de santo. E tudo envolvido no profundo e sensorial dos toques divinos dos tambores, tão sagrados, tão tentadores, que soavam a beleza como coisa do satanás. Penso que o cinema, com a sua arte onde se misturam imagem, som, cores e personagens, jamais conseguirá reproduzir, que digo, jamais conseguirá uma vizinhança do encanto, encantação daquelas noites furtivas, em que nos metíamos entre os assistentes da manifestação que diziam ser demoníaca. Ali se fuma erva, nos diziam.

É preciso ser menino, é preciso ter passado pela repressão de cultura e de religião da época, é preciso saber que todo o bom da vida era proibido, que o magnífico, por ir além do medíocre, era vetado, porque se tratava sempre de um trato não escrito com as profundezas do mal, ou de um acordo com o seu mais ilustre representante. É preciso esse mais que cinema para compreender os olhos esbugalhados da infância que bebiam uma noite de toque no Terreiro de Pai Adão. E de tal modo é permanente essa marca e feitiço, que na entrevista com Iá Luiza, em 2014, eu lhe perguntei se todos os dias eram de celebração e festa dos santos. Ela me respondeu, para meu maior desapontamento, que as comemorações eram quatro por ano. “Mas não é nem todo fim de semana?”, perguntei. “Naaão”, ela me respondeu. E o menino persistente apenas resmungou, “interessante”, para não cair em um silêncio absurdo.

Na enciclopédia digital se informa que a história do Sítio, o Terreiro de Pai Adão “começa por volta de 1875, com a chegada ao Brasil da africana Inês Joaquina da Costa (Ifá Tinuké) também chamada de Tia Inês, que morreu em 1905. Foi a fundadora do atual Sitio de Pai Adão, no Sítio de Água Fria, no Recife. É a mais antiga casa de culto Nagô de Pernambuco e uma das mais venerandas do Brasil, considerada uma das matrizes da nação de culto afro-brasileiro Nagô…

O sítio ainda preserva em seu espaço físico um baobá com mais de um século de existência e com mais de 10m de diâmetro, raro no Brasil por ser mais comumente encontradas espécimes desse porte nos locais de onde são nativas, na ilha de Madagascar (o maior centro de diversidade, com seis espécies), no continente africano e na Austrália (com uma espécie em cada)”.

Leia também: Brasil passa a ter dia para celebrar tradições africanas e candomblé

Mas nessa informação do baobá a Wikipédia comete um forte engano. Apesar da semelhança, grosso modo de olhar essa árvore somente pela altura e tronco, não é um baobá, é uma gameleira, há mais de 138 anos no Terreiro de Pai Adão. Acreditamos que erros assim possuem uma razão mais funda, muito além e distante de uma falha acadêmica. Como sempre ocorre com as manifestações populares, que ou não têm intelectuais nascidos no seu meio, ou quando os têm, mal falam da sua gente, porque se encontram mortos de vergonha da origem e querem ser aceitos pelo chamado mundo erudito, aqui também, no Terreiro de Pai Adão, falta uma história sistematizada, diria mesmo, até arqueológica, de recuperação do que foi coberto e enterrado. Uma história sem fronteiras com a literatura, que pesquise os registros indiretos do Terreiro até em notícias das páginas policiais, quando os pais de santo eram presos.

Para este dicionário, tive uma conversa, entre receosa e desconfiada com a Ialorixá Luiza. Receio e desconfiança de Iá Luiza, o que era natural, pois ela nunca me havia visto antes, e desci, baixei de repente à sua casa numa noite de segunda-feira de 2014. Pensei em escrever que ela me prestou um depoimento, mas isso ainda é falso, porque apenas anotei aqui e ali algumas frases da Ialorixá, que saíam a custo. E não poucas vezes ela recriminou a profunda ignorância deste estranho sobre as coisas sagradas do terreiro. Por exemplo, a dificuldade de entender a descendência e os seus laços com o mais famoso pai de santo, porque ela é viúva do neto de Pai Adão. Entender a sua vitalidade, pois ela estava com mais de 85 anos, sorrindo diante de algumas perguntas, para dizer o mínimo, bastante óbvias. Ela sorria à beira da gargalhada, de tal modo que difícil era o intruso acreditar na data do seu nascimento, em 24 de outubro de 1928.

Da conversa com ela, anotei a frase “eu sei ler, tenho caligrafia e tenho ortografia”. Bonito. Mas o mais grato foi saber da existência de uma corrente de solidariedade entre todos os moradores do Sítio, uma comunidade de 66 pessoas, com laços que se cruzam em parentes de sangue ou afinidade. Quando Iá Luzia enviuvou, não lhe deixaram faltar nada, ela me falou. Se adoecer, todos correm para o socorro urgente. No Terreiro existe uma defesa mútua e sólida, que não conheço em outros aglomerados ou vizinhanças. A vontade que deixa na gente é de um dia pertencer à comunidade. No momento mesmo da conversa, pude sentir a vigilância que mantinham sobre este estranho, numa guarda que não aparece, mas se espalha onipresente. A idosa Iá, que não é velhinha, estava amparada.

O Babalorixá atual é Manoel do Nascimento Costa, mais conhecido como Manoel Papai. Eu já havia conversado com Papai em outra oportunidade, no tempo em que ele brigava para que fosse reconhecido o Terreiro de Pai Adão como um templo religioso, e assim merecer a isenção do IPTU, como acontece com outras religiões. Naquela ocasião, ele também me espantou de outra maneira. Papai falava com naturalidade sobre as coisas do espírito, sobre a crença no sagrado, no mesmo campo e tempo em que discorria sobre o direito terreno do Sítio. Sereno e culto, sem afobação.

Desta última vez, com Iá Luzia a maior surpresa foi a revelação no fim da nossa conversa. Então eu soube que ela, mãe de santo, nunca se manifestou no terreiro. Isso quer dizer, ela nunca deu mostras de estar possuída por um santo, com o corpo em transe. No entanto, o quanto e como ela me olhava sem piscar, atenta e penetrante. Agora ao terminar o verbete Xangô é que percebo, o santo de Iá Luiza é ler a gente nos olhos. E da leitura concluir que não havia maldade nas perguntas de um ignorante.

Dicionário Amoroso do Recife.jpg

 

*Publicado originalmente no Dicionário Amoroso do Recife   

 

15
Jan23

A civilização brasileira contra Bolsonaro

Talis Andrade

 

por Urariano Mota

- - -

Para estes dias de luta, divulgo o capítulo pós-escrito que publiquei na edição norte-americana do romance “A mais longa duração da juventude”. Nas últimas páginas da tradução de Peter Lownds , “Never-Ending Youth”, acrescentei estas linhas: 

“Os cartazes tomam conta da cidade nos últimos tempos.

‘Parem o incêndio das florestas no Brasil’

‘Queremos vacinas!’

‘Fora o desprezo pelas mortes do coronavírus’

‘Fora, Bolsonaro’

Eu os vejo e penso. Todos os militantes socialistas do Brasil, nos anos da ditadura, jamais esperaram completar a idade que agora atravessamos ao ver os protestos que voltam às ruas e aos quais voltamos. Antes, a morte estava ali, aqui, já, hoje ou logo amanhã de manhã. As prisões, torturas e assassinatos de companheiros se sucediam, e chegavam cada vez mais perto de nós mesmos, dos camaradas da última sexta-feira de carnaval. Por que nos poupariam o fim? Daí que vivíamos todos sob alta tensão. Daí que vivíamos todos como se ganhássemos as últimas horas do último dia. Mas sobrevivemos, só Deus e o Diabo sabem como.

Agora, sob um governo fascista, problemas que julgávamos resolvidos voltam à tona. O que será dos nossos direitos? O que será do trabalho dos nossos filhos? Haverá um mundo digno do nome para as novas gerações? Para essas perguntas bem sabemos a resposta: vamos à luta, não podemos submergir em um mar de angústia e desesperança. O problema é que no contexto geral desse fascismo vêm as perguntas particulares para a nossa idade: como podemos encarar o futuro? Que planos faremos? Que perspectivas temos?

Para quem atinge além dos 70 anos, o futuro a ser vivido é curto, pode até nem atingir o fim deste dia. Nesse aspecto, é uma repetição dos anos de ditadura, em inesperada semelhança. No entanto, a resposta hoje é bem diferente daqueles dias. Hoje, devemos encarar o futuro sem lhe destacar o prazo certo, pequeno de tempo. Para o breve futuro caminhamos na certeza de que até o fim viveremos com a força do que sabemos fazer e acreditamos. Ateus, materialistas, não teremos o céu depois da morte. O céu é nosso trabalho, aqui, agora, de hoje até o último segundo. O inferno é negar o que temos de melhor em nossa alma, porque de ideias e sentimentos somos feitos.

Mas que planos faremos? Para tão curto espaço de horas o plano é amar, beijar as pessoas, dizer-lhes o que nunca lhes dissemos, porque temos a consciência do próximo mergulho que não projetamos. E trabalhar, e trabalhar, e trabalhar para realizar o melhor que somos. Admitamos, esse é um grande plano. Pois devemos dividir e multiplicar as lições que acumulamos.  Queremos aquele alto que Joaquim Nabuco expressou tão genial em seu fim:

– Doutor, tudo, menos perder a consciência!

Se perdemos a consciência, já não somos. E quando a perdermos, não seremos. Não deve haver lágrimas para um corpo inútil corpo, sem identidade. Então o plano é ser, o ser pleno, o plano é pleno. Até onde possamos sorver a plenitude.   

Mas que perspectivas temos? Daqui onde estamos, nesta hora, que olhar podemos lançar para o porvir? Uma resposta está no que vimos há pouco, nas linhas anteriores.

A resistência, que é vida, se faz na brevidade pelas ações e trabalho dos que partiram e partem. Mas nós, os que ficamos, não temos a imobilidade da espera do nosso trem. Nós somos os agentes dessa duração, o trem não chegará com um aviso no alto-falante, ‘atenção, senhor passageiro, chegou a sua hora’. Até porque talvez chegue sem aviso, e não é bem o transporte conhecido. O trem é sempre de quem fica. E porque somos agentes da duração, a nossa vida é a resistência ao fugaz.  

Por isso a nossa mais longa juventude protesta nestes dias. Voltamos às ruas, voltamos à luta, aqui, agora, em palavras, em ações e arte, de todas as maneiras. Canta de novo para todos nós, ó Ella Fitzgerald! Estamos voltando.

Texto publicado em inglês no internacional Pressenza

juventude revolução urariano.jpg

06
Jan23

O amor de Maria que não pôde ser

Talis Andrade

 

… em lugar desse ideal nunca atingido em um só namorado, amante ou marido, Maria buscava um amor que, apesar de jamais admiti-lo em consciência, ela queria  um amor à semelhança do irmão gêmeo.

 

 

Diferente era o amor de que ela necessitava. Em vez de desejar astros do cinema, artistas do rádio, dos galãs à feição de Clark Gable,  Cauby Peixoto, como era comum nos desejos das mocinhas dos anos 1950, ou se apaixonar por homens ideais que misturassem, na tradução das mulheres do beco, altura, cabelos, porte e rosto do cinema ao mestiço do Brasil, ou seja, indivíduos fortes, de braços potentes, pele morena e olhos verdes, ou, quem sabe, até mesmo olhos escuros, castanhos, mas com uma conversa melosa de sentimentos amorosos – o que era o amor para as mulheres românticas de então exigiria um capítulo à parte para melhor corporificação -, em lugar desse ideal nunca atingido em um só namorado, amante ou marido, Maria buscava um amor que, apesar de jamais admiti-lo em consciência, ela queria  um amor à semelhança do irmão gêmeo. Ao modo e aparência de Maciel, o gêmeo, homossexual sem alarde. E com isso, no seu ideal, também se cruzavam vários caminhos, ou, se quiserem, o seu ideal era um cristal de muitas faces. Numa delas, na mais evidente, o amor conforme Maciel era um homem que a respeitasse, à pessoa de Maria, pois que ela era uma pessoa acima de tudo. Em sua melhor imagem, antes de se apresentar como mulher, ela se queria uma pessoa. O que para um homem, nesse vê-la como uma pessoa, seria um contato assexuado, indigno de um macho, para Maria era um plano de mais conforto e ambição, ver-se no espelho como gente humana, antes do sexo. Ela possuía suas razões, além das mais dignas e gerais.

Com Maciel, com o irmão, com o seu gêmeo de alma, ela falava e se fazia ouvir, ela ouvia e se permitia ouvir. Ou seja, havia entre eles, macho e fêmea, uma igualdade de planos e terreno. Ela o queria porque a ele falava. Ele a queria porque a ela, sua igual, ele falava, se ouvia, se respeitava. Ao diabo que Maciel fosse baixinho, necessitado, pois a procurava por não ter onde comer, almoçar, num tempo em que a carga feroz contra homossexuais era mais perseguidora, dentro do inferno em que já estavam os homens pobres e pequenos, a esse pobre-diabo ela não via, porque punha no seu lugar um homem de ternura e bigodinho, de voz suave, que a ouvia e escutava. Que lhe importava se esse Maciel não seria nem era capaz de se levantar contra a selvageria do marido? Não havia problema, porque para isso ela própria tinha força e ânimo para responder. Mas ao não ver o pobre-diabo em Maciel não lhe ocorria propriamente uma cegueira, uma miopia mágica, de não ver nada do que todos viam. Ela não era cega nem louca. Apenas, apenas, àquelas características informadas por todos Maria punha sob outros valores. Ela respondia à infâmia de outros parentes contra o irmão:

– Ele é uma pessoa de coração, ele sente.

“Ele me ama”, ela queria dizer. E o que mais desejava o seu peito que ser amada, ainda que num terreno íntimo, particular, privado, mesmo que fossem xifópagos separados? Que viessem os bárbaros, que viessem os tártaros, ela os atacaria por mais de um flanco. No entanto, é claro, numa outra face do prisma, que esse amor à semelhança do respeito fraterno era um amor de possibilidades. Ou, numa aproximação da face nua e limpa, era um amor vicário, que não se satisfazia no vicariato. E por isso pegava dele características que seriam uma graça dos céus, mas passava por elas e seguia mais longe. Pois além de uma pessoa, pessoa geral, Maria era uma pessoa específica, certa e determinada mulher. Ela queria ser desejada e tomada e vista e acariciada como Mulher. Sim, com maiúscula no calor do seu desejo e imaginação. E, coisa estranha, apesar de Maciel ser modelo para seu coração, ele não a poderia satisfazer por um duplo impedimento. No menor deles, que Maria na consciência se falava ser o maior, ele era o seu irmão. “Está doida? Coisa de doido. Nem pensar”. E aqui, mesmo que não possamos esperar dela atos e percepções além do seu tempo e cultura, a narração pode e deve falar de Maria o que a sua pessoa não via. Ou não queria ou não podia ver.

Em sonhos, há muito, ela estava com o marido à hora do almoço, e ele, o marido, de forma a mais carinhosa alisava-a com os pés sobre os pés dela, subia com eles até suas coxas, rodeava com o dedão o seu sexo, ao que ela respondia, em abandono, ao pezinho do seu marido:

– O que é isso? Os vizinhos podem ver.

A isso o seu marido, de pele escura, bem escura, sorria com um bigodinho que ela adorava, que a deixava sem forças para reagir com força, com raiva. Ah, que raiva ela se sentia possuída por não reagir contra aquela obscenidade! Mas como reagir àquele antimarido? Pois apesar de todos os traços exteriores, cor, cabelo, voz, olhos, apesar de toda anatomia do marido, aquele homem com quem ela almoçava era terno, delicado, atencioso, e até nos pés a ouvia como ela desejava. Havia ali, apesar de, sempre “apesar de”, apesar da presença física do marido, havia ali o marido em sua negação. E, dividida, Maria olhava aquela cena como se estivesse em um plano mais alto, a pairar sobre os dois na mesa, entre a “safadeza” de sua pessoa, pois não retirava brusca aquele dedão pecaminoso – sim, aquilo era um pecado -, e o desejo de afeto que o dedão continha. Era um pé ternura. Era um pé, que sendo sexo, pois era duro e tentava penetrá-la, era também um carinho, porque a rodeava, enredava, sim, a enredava de deixá-la em rede de pesca, e a enredava também porque lhe contava enredos, fuxicos, bisbilhotices, enquanto a alisava nos pelos íntimos, tão íntimos que existiam antes até  de serem pelos. Aquele marido, se o encarava bem, ou se a encarava, era másculo e feminino, macho e fêmea, marido e Maria. Então o sonho ia se desenvolver, e Maria não deixava, ela não o queria, pois sabia aonde o sonho a levava, levaria, o sonho ia tornar o pé em ponte de ligação, que encolhia, que se desenvolvia pelo desaparecimento, como, coisa estranha, como um crescimento que some, algo de mecânica impossível, a não ser que o pé crescesse por sumir dentro dela. E o desenvolvimento de tal absurdo era Maria abraçada ao marido, amalgamada e fundida nele como uma estátua de bronze em uma praça, enquanto o marido lhe sussurrava, “sabe, Maria?”, e tão confortável e conhecida há muito era a voz, que a Maria soava em conteúdo de “sabe, mana? sabe, maninha?”, um absurdo absoluto, pois ela acordava ao lado de um corpo estranho à sua intimidade.

Então ela não poderia saber, ou – muro imperioso – ela não devia saber, era porta vedada a seu desejo: a pessoa de Maciel ser um irmão era o menor impedimento. O incesto era uma vedação de costumes, de cultura do tempo, uma vedação ao pensamento dos dias. Então lhe vinha um breve pigarro, como a engolir algo áspero. Porque o desejo, naquelas aprisionadas circunstâncias, era livre como projeto. De um ponto de vista anatômico, eram macho e fêmea, ou, engulho ou salvação maior, eram macho e fêmea nascidos de mesmos ventre e hora. Que mais intimidade, pecaminosa, bendito pecado, haveria? De um ponto de vista, digamos, funcional, todas as condições estavam dadas para o sucesso da vicária felicidade. Eles, ela e ele, em estatura e gênese se completavam. Vistos de um modo cru, os seus corpos eram harmônicos em acidental variedade da natureza. Maria e Maciel Deus os criou. Ali não havia um obstáculo, digamos, objetivo, se de um modo grosseiro nos expressamos. Escrevemos o adjetivo “grosseiro” porque os impedimentos na ideia, na formação de uma pessoa, também são um impedimento objetivo, mesmo que não se apresente como um muro de pedra. Mas se separamos, sempre com um método brutal, corpo e alma, matéria e espírito, o incesto não era o limite do proibido: “pecado, Maria, pecado, Maciel”. Mas com pecado, ainda que mortal, ainda que impulso animal sem freio, a penetração era possível. Poderia até ser penetrada pelo sonho, para melhor consumação da vitória sobre o impedimento.

*Do romance “O filho renegado de Deus”

urariano o filho renegado.jpg

31
Dez22

Caetano Veloso x Chico Buarque

Talis Andrade

 

Pregar a revolução com palavras e música é uma coisa, Vargas. Fazer a revolução é outra coisa, eu diria, se soubesse em 1972 os acontecimentos de 1973.

 

por Urariano Mota */Vermelho

- - -

– Eu gosto de Caetano Veloso – Alberto fala. – Ele tem umas coisas boas.

– Boas?! – Vargas se exalta. – Ele é o melhor compositor da música brasileira…. – “de todos os tempos”, ele ia dizer. Hoje percebo que se conteve com uma modéstia do Barão de Itararé, que ia se chamar de Duque,  mas baixou o título para Barão. E continuou Vargas:  – É o melhor! Caetano Veloso é o melhor compositor do tempo da revolução.

Olho em volta e percebo que nas mesas vizinhas se faz um silêncio. Todos nos escutam, concluo. Assuntos de música popular, no Brasil, são os que mais despertam interesse depois do futebol. Mas na ditadura falar na altura da voz de Vargas, usando a palavra “revolução”, é demais. Nelinha lhe toca o braço e sussurra “cuidado”. Ele sorri:

– Tranquilo, minha santa. Estou falando de cultura.

– Estamos falando sobre música, não tem problema – Alberto fala.

– E tudo é revolucionário, não é? – Vargas completa. – O cinema de Glauber é revolucionário, a juventude é revolucionária, tudo é revolucionário. Menos Chico Buarque.

Todos riem. Ocorre o que às vezes se chama brincar com o perigo. Zombar do abismo. Mas na hora o que me ocorre é o cometimento de uma injustiça.

– Eu não acho – falo. – Chico, para mim, é o melhor compositor de música popular brasileira hoje. Ele tem uma poesia que não tem Caetano. Chico é de fazer música, não é de dar espetáculo. Caetano é escandaloso, entende?

– A revolução é um escândalo! – Vargas quase grita. Alberto ri, Nelinha sorri para o companheiro, que se vê estimulado. – Chico é o compositor de Carolina, Januária na janela. É o poeta dos olhos verdes das meninas. Isso é revolucionário? Preste atenção: a música de Chico é o passado. Ele é um compositor de 1960 pra trás.

– Olhe… – eu queria dizer, se compreendesse então, que Chico ligava a tradição à música de 1970, assim como Paulinho da Viola fez essa ligação como samba. Mas há um tempo em que possuímos o sentimento, mas não encontramos as palavras, que ainda não nos chegaram pela experiência. Então arquejo, como um náufrago, diante da catilinária. – Olhe, você quer poesia melhor que … – e tento cantarolar “se uma nunca tem sorriso, é pra melhor se reservar…” – que “a dor é tão velha que pode morrer”, hem? – E baixo a voz: – Chico é a esquerda do futuro.

– Ele não é nem do presente – Vargas responde. – Que dirá do futuro. Preste atenção, muita atenção: “sei que um dia vou morrer de susto, de bala ou vício”. Escutou? Esta é a música de agora, dos jovens revolucionários de hoje.

– Isso não é de Caetano. É de Gil, Torquato e Capinam – falo.

De Gil? – Vargas responde. – Não importa. Está no disco de Caetano. Ele fez da música um hino revolucionário. Isso é o que importa.

– Hum, sei  – falo, mas ainda não sei. Vou do rosto de Vargas até Nelinha, sigo para Alberto, retorno a Vargas. – É bom também – admito, a fórceps.        

Olho para Vargas e me pergunto “será bom mesmo?”, e o que vem a ser o conteúdo da pergunta eu não me digo nem quero ver. Se eu soubesse na noite o que soube depois, eu diria “esta música é o anúncio da morte”. Esse ritmo alucinante, à caribe, é enganoso e leviano. Pregar a revolução com palavras e música é uma coisa, Vargas. Fazer a revolução é outra coisa, eu diria, se soubesse em 1972 os acontecimentos de 1973. Mas ainda ali, percebo agora, eu seria injusto até a estreiteza e maledicência. Então os artistas não podem expressar o sentimento que corre na gente? Então é justo acusar de leviano, de traidor da revolução, quem escreve como homem poético o homem prático? Só a raiva, no que tem de embrutecedora, verá a canção da luta armada no Brasil dessa maneira. Se assim fosse justo e real, o que dizer de Lorca, de Víctor Jara, até mesmo de  Neruda? Então eu, que de nada sabia, escuto Vargas cantarolar “estou aqui de passagem, sei que adiante um dia vou morrer de susto, de bala ou vício”. E para ser mais preciso, em meio à intuição do horror, se põem acordes do frevo lá na Dantas Barreto. Meus olhos correm do rosto de Vargas, vão até a barriga de Nelinha, tão desamparada me parece na tormenta. Me dá uma vontade à beira do irreprimível de acariciar o fruto que virá no temporal. Vargas, que é vigilante insone da mulher, flagra o meu olhar nesse instante. Mas o macho vigia da sua fêmea é derrubado pela humanidade que pressente nessa ternura solidária. Assim sei, assim soube, porque a sua voz baixa o tom, e me fala como a um camarada, um irmão de jornada:

– Companheiro, desculpe. Pensamos diferente, mas você é um companheiro. Estamos juntos, não importa o que fazem de nós. O companheiro me desculpe.

– Que é isso, rapaz? Não foi nada. – Comovido pela gravidez de Nelinha e pelo descobrimento do Vargas que vem, fico embargado. E como sempre, tento corrigir a emoção com uma frase que me salve:  – Eu também gosto de Caetano Veloso.

– Eu também gosto de Chico Buarque de Holanda. – Vargas me responde e sorri: – Que revolucionário.

– Sim – falo – Mas não na forma, na altura de um Caetano.

Todos gargalhamos. Então Alberto puxa desafinado, à sua maneira desafinado, “Apesar de você”. E mesmo com os sons do frevo que se aproxima, cantamos juntos “amanhã vai ser outro dia, amanhã vai ser outro dia”.

- - -

* Do romance “A mais longa duração da juventude”

Mais sobre mim

foto do autor

Subscrever por e-mail

A subscrição é anónima e gera, no máximo, um e-mail por dia.

Arquivo

  1. 2023
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D
  14. 2022
  15. J
  16. F
  17. M
  18. A
  19. M
  20. J
  21. J
  22. A
  23. S
  24. O
  25. N
  26. D
  27. 2021
  28. J
  29. F
  30. M
  31. A
  32. M
  33. J
  34. J
  35. A
  36. S
  37. O
  38. N
  39. D
  40. 2020
  41. J
  42. F
  43. M
  44. A
  45. M
  46. J
  47. J
  48. A
  49. S
  50. O
  51. N
  52. D
  53. 2019
  54. J
  55. F
  56. M
  57. A
  58. M
  59. J
  60. J
  61. A
  62. S
  63. O
  64. N
  65. D
  66. 2018
  67. J
  68. F
  69. M
  70. A
  71. M
  72. J
  73. J
  74. A
  75. S
  76. O
  77. N
  78. D
  79. 2017
  80. J
  81. F
  82. M
  83. A
  84. M
  85. J
  86. J
  87. A
  88. S
  89. O
  90. N
  91. D
Em destaque no SAPO Blogs
pub