Artista recifense apresenta afiado repertório autoral no segundo disco, gravado com participações do pianista Amaro Freitas e do cantor Chico César.
por Mauro Ferreira
"Explodam / Saiam daqui / Quero me divertir / Com as minhas coleguinhas...", ordena Flaira Ferro aos machos nos versos cheios de som, ironia e fúria deFaminta, parceria da cantora e compositora pernambucana com o conterrâneo Igor de Carvalho.
Famintaé a composição que abreVirada na jiraya, o forte, firme e sólido segundo álbum dessa artista que vem despontando na movimentada cena musical do Recife (PE).
Quatro anos após o álbum de estreiaCordões umbilicais(2015), Flaira Ferro reaparece com álbum reativo aos desmandos e injustiças do mundo ainda patriarcal. O títuloVirada na jirayareproduz expressão popular que significa estar com raiva.
Esse título sinaliza que há leveza e eventual humor (mordaz) na ira feminina destilada por Flaira no álbum produzido por Yuri Queiroga, com exceção deCoisa mais bonita, faixa produzida por Pupillo Oliveira e previamente apresentada em março de 2018.
Capa do álbum 'Virada na jiraya', de Flaira Ferro — Foto: Matheus Melo
Música formatada em tom lúdico,Ótima(Flaira Ferro) é exemplo da habilidade de Flaira de sustentar a leveza de ser mulher apta a amar em mundo em que muitos homens ainda sujam as mãos de sangue para impor vontades e desejos.
Tal leveza se alterna com o som arretado do disco.Revólver(Flaira Ferro) disparamixhardcore de frevo, rock ebeatseletrônicos em mistura que reverbera emSuporto perder(Flaira Ferro e Igor de Carvalho)."Minha alma é a arma", fuzila a artista com altivez existencial nessa música gravada pela cantora com a adesão de Chico César.
Flaira Ferro tem alvos certeiros no álbumVirada na jiraya."Tem lábia de fascista / Joga o jogo da milícia / Por dentro é terrorista / E paga de espiritual", vocifera emLobo, lobo(Flaira Ferro, Igor de Carvalho e Mayara Pêra).
"Mesmo que o destino / Reserve um presidente adoecido / E sem amor / A juventude sonha sem pudor / Flor da idade e muito hormônio / Não se curva ao opressor", ensina emEstudantes(Flaira Ferro), balada turbinada pela guitarra climática de Yuri Queiroga.
Flaira Ferro lança o segundo álbum, gravado com participações do pianista Amaro Freitas e de Chico César — Foto: Matheus Melo / Divulgação
Por mais queGerminar(Flaira Ferro e Ylana Queiroga) faça brotar sons delicados, evocativos de caixinha de música na faixa formatada com participações como a de Isaar, o álbumVirada na jirayadança conforme o ritmo de tempos embrutecidos.
A atitude é a do rock em músicas comoEssa modelo(Flaira Ferro), mesmo que a batida quase nunca seja a do rock mais ortodoxo.Maldita(Flaira Ferro), por exemplo, é música belamente subjugada ao toque luminoso do piano de Amaro Freitas, gênio do Recife (PE) que vem ganhando o mundo no manuseio do instrumento.
As letras afiadas, atuais e diretas da artista dão vigor aVirada na jiraya, álbum que firma Flaira Ferro na cena alternativa brasileira com repertório quase inteiramente autoral (a exceção éCasa coração, de Isabela Moraes).
"Eu me sinto ótima / Forte, firme e sólida / Solidária ao mundo", perfila-se a cantora na letra da já mencionada músicaÓtima.Virada na jiraya corrobora a sensação de Flaira Ferro.
Além de cantora, compositora você é bailarina. Conte para os leitores, como foi o seu envolvimento com cada uma dessa área?
A memória mais viva sobre meu envolvimento com a dança e com a música vem aos seis anos de idade, quando brinquei meu primeiro carnaval em Recife, em 1996. Sou de Recife e lá fevereiro é mês de tradição carnavalesca, a cidade fica em função da festa. Há uma explosão de manifestações populares, ritmos, danças e fantasias, o que me seduziu desde o primeiro contato.
A dança, em especial o frevo, foi minha porta de entrada para o universo das artes. Fui me interessando, me dedicando, e entrei na Escola Municipal de Frevo do Recife, tive aulas com o Mestre Nascimento do Passo e nunca mais parei. Aos poucos, conheci outras linguagens, fiz sapateado, ballet, dança contemporânea e a dança virou profissão.
Meu envolvimento com a música e a composição foram consequências diretas dessa relação com o movimento corporal. Sinto que essas linguagens conversam o tempo todo entre si, tudo passa pelo corpo.
Queria saber um pouco mais sobre seu passado pré-musica. O que você ouvia quando era pequena? E quando você descobriu seu amor pela musica e composição?
Por influência dos meus pais, ouvi muita música regional na infância. Coco, ciranda, maracatu, bumba-meu-boi, forró e frevo sempre foram ritmos presentes na prateleira de CDs da minha casa. Só vim conhecer música internacional na adolescência. Luiz Gonzaga, Jackson do Pandeiro, Elis Regina e Raul Seixas eram os artistas que mais tocavam no som do carro durante as viagens da família pro interior de Pernambuco.
Meu pai é um poeta tímido. Apesar de não seguir carreira artística, sempre gostou de declamar poesias e escrever versos e rimas. Acredito que por influência dele tomei gosto pela palavra escrita, falada e cantada. Compus minha primeira música aos 8 anos e descobri esse amor quando percebi que através da composição eu conseguia desafogar minha energia criativa. Coisas que eu não conseguia dizer numa conversa ou ideias que eu não desenvolvia na escola iam acumulando na minha cabeça e desaguavam em poesias e canções. Até hoje é um tipo de escape que me ajuda a entender meus sentimentos.
Há pouco tempo você lançou seu álbum “Cordões Umbilicais”. Como foi a escolha do nome do álbum e do repertorio do seu novo trabalho?
O nome do álbum veio da necessidade de dar uma imagem ao afeto. Quando vim morar em SP tive que me reinventar para me adequar a uma cidade na qual eu não tinha vínculos afetivos. Conheci a solidão e aliada a ela, paradoxalmente, o sentimento de não estar só, de estar conectada com todas as pessoas, com a criação de algo maior, o divino.
Além das questões existenciais, minha mãe é obstetra e assisti muitos partos feitos por ela. Um certo dia, após presenciar uma cesariana, saí inspirada e compus uma música que nomeei Cordões Umbilicais e é também uma faixa do disco.
Quanto ao repertório, percebi que a temática do autoconhecimento era predominante na maioria das minhas letras. Selecionei as músicas que mais representavam meu momento de vida e organizei o repertório. O disco é um estado de espírito.
No seu álbum você traz 11 faixas de autorais. Qual música do seu cd mais te representa?
Por se tratar de um disco inteiramente autoral no qual a maioria das letras são minhas, cada música é um pedaço do que sinto e penso. Sou tudo que tá lá, o que muda é a intensidade, eu acho. Tem dias que me vejo mais numa música do que noutra, por exemplo. Depende.
O álbum vem com ritmos bastante brasileiros e você mistura esses ritmos. Qual ritmo musical mais te encanta ou chama sua atenção?
Além do frevo, eu tenho um carinho especial pelo caboclinho perré e pelo batuque de umbigada. São ritmos que adoro dançar e me tocam de maneira mais visceral.
Como foi o processo de composição para o álbum “Cordões Umbilicais”? Alguma influencia em especial?
Tom Zé, Elis Regina, Gilberto Gil, Lenine e Bjork são artistas que me influenciam muito. Mas não teve nenhuma música que pensei em um artistas específico para compor. Eles estão presentes de maneira inconsciente, tudo que escuto é referência e alimenta meu processo de composição.
No disco você contou com algumas participações especiais. Como maestro Spok e do pandeirista Léo Rodrigues entre outros. Como foi a escolha das participações especiais?
Conheço Spok há 12 anos, trabalhamos juntos em vários projetos. Além de excelente maestro e instrumentista, ele é um grande amigo que a vida me deu. Eu queria que o disco tivesse um frevo e ninguém melhor do que ele para compor o arranjo instrumental na faixa Bom dia, doutor cuja letra é de outro grande amigo, Ulisses Moraes. Já Léo Rodrigues eu o conheci no Instituto Brincante e tornamo-nos amigos rapidamente. Quando vi ele tocar fiquei encantada com a propriedade e o domínio do pandeiro de couro. Admiro muito o trabalho dele e o convidei pra participar na música Mundo invisível.
Como você descrever no geral o seu álbum?
É uma obra de afeto e um retrato do tempo.
Gostaríamos de saber mais sobre seu gosto musical. Quais as 6 músicas preferidas e o por que?
Como falei antes, cada música me representa com muita verdade e não tem nenhuma que eu ache menos importante. Elas estão dentro de um conceito e a ideia de cada uma agrega à mensagem do disco como um todo. Mas se eu fosse fazer um pocket show e tivesse que escolher seis músicas, eu escolheria: Templo do tempo, Atriz Cantora ou dançarina?, Pondera, Me curar de mim, Bom dia, doutor e Lafalafa.
Fiz duas matérias sobre você aqui no blog. E as criticas foram muito positivas. Como é para você ver o carinho do publico e até mesmo dos críticos musicais falando bem do seu álbum?
É bom né? Um estímulo, sem dúvida. É gostoso compartilhar algo que ressoa em outras pessoas de maneira positiva. A coisa vai ganhando outras dimensões, interpretações e significados. Mas acredito que a aceitação do público nunca deve ser o objetivo de um artista. A opinião dos outros, positiva ou não, deve ser apenas consequência daquilo que nasce da verdade de quem cria.
Como é seu contato com o publico? Você usar muito as redes sociais para bate um papo com os fãs? Você acha importante esse contato?
Não gosto muito da palavra fã como denominação de alguém. Tenho a impressão de que ela cria uma fronteira entre o público e o artista que não deveria existir. Tenho pavor desse endeusamento do artista, essa coisa de colocá-lo num pedestal para se admirar e contemplar, como algo inalcançável.
Sim, uso muito as redes sociais e quem se interessa pelo meu trabalho e entra em contato eu adoro trocar ideia. Respondo, pergunto, leio, opino, etc. E é isso que rola, uma troca constante com quem chega junto.
Entrevista quase no final. Quais as próximas novidades, lançamento e agenda de show?
Recentemente gravei dois clipes. Um da música Lafalafa, dirigido por Patrícia Black e outro da música Me curar de mim. Em breve estarei lançando eles nas redes sociais. Quanto aos shows, as agendas são divulgadas na fanpage e no meu site flairaferro.com.br
Qual mensagem você deixa para os fãs e leitores do blog?
Leiam a autobiografia de Gandhi.
AgoraFlairalança um clipe, no qual pode, de alguma forma, unir música e dança. Escolheu a canção “Lafalafa”para inspirar esse primeiro vídeo que foi gravado em junho de 2015, entre as ruas de São Paulo e o Instituto Brincante, espaço onde atua como artista e professora.
Os vídeos de dança solo da bailarina Sylvie Guillem foram grandes fontes de inspiração. O minimalismo, a simplicidade estética e a pesquisa de intenções de movimento de seu trabalho clarearam o rumo do que seria o clipe e a performance deFlaira.“Como venho da dança popular e o ritmo de ‘Lafalafa’ é o cavalo-marinho, mergulhei numa pesquisa de movimentos que partissem dessa matriz. Decidimos que minha atuação se basearia no improviso, sem coreografia definida”– explica ela. Quando a música termina, o clipe ainda continua por alguns instantes. Fique por dentro de todas as novidades sobre a cantora: