Paula Adamo Idoeta entrevista Frederico de Almeida
BBC News Brasil - De fato existe, na sua visão, um distanciamento muito grande entre a população julgada e a elite que a julga?
Almeida - Acho que tem um distanciamento de várias ordens. O primeiro deles é de acesso — o percentual de pessoas que conseguem levar seus casos à Justiça. Desde a redemocratização até hoje isso já mudou muito, em grande parte pelos juizados especiais. A questão das pequenas causas vingou e virou uma reforma importante. Mas uma pesquisa regular feita pela Fundação Getulio Vargas, o Índice de Confiança na Justiça, mostra que quanto mais as pessoas usam (as instâncias judiciais), menos elas gostam.
Outra coisa importante: o acesso à Justiça é muito mediado. Diferentemente de uma pessoa que procura uma Unidade Básica de Saúde e lida diretamente com um médico, para você propor uma ação você tem que passar por um advogado, um cartorário, um escrevente, e o juiz só vai falar com você — se falar — no momento da audiência.
E lá, até a forma física, da disposição da mesa e das pessoas, o coloca em distância. Geralmente a mesa dele (juiz) é um pouco mais alta, ou ele está na cabeceira da mesa. Ele não fala com as partes, fala com os advogados, não tem muito esforço em simplificar a linguagem. E a gente tem que pensar também que os advogados vivem disso — estamos falando dos juízes, mas todas essas reformas que tentaram tirar essas mediações (encontraram resistência).
(...) Outro problema é o de acesso à carreira. Com toda a expansão do ensino superior que tivemos, (Direito) ainda é um curso elitista. (...) E dessas pessoas (formadas), quantas vão sequer passar no exame da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil)? A pessoa não vira nem advogado, se forma em Direito para prestar concurso de escrivão, de oficial de Justiça.
Então tem uma estratificação social das funções dentro do Direito.
O que eu penso que poderia promover uma mudança de fato é primeiro uma democratização do serviço judiciário, em termos quantitativos. Isso já aconteceu relativamente bem no Brasil. Segundo, uma mudança qualitativa: que a pessoa não pudesse só entrar com uma ação, mas que entendesse o que está acontecendo, sem muitas mediações ou custos, e com respostas rápidas e satisfatórias. Porque (hoje) a pessoa acessa (o serviço), mas não fica feliz.
E também uma democratização das carreiras, que deveria passar por outro tipo de seleção, com cursos mais acessíveis, mas também diminuir a diferença de remuneração.
Com base (nas declarações de) Imposto de Renda, as maiores remunerações no Brasil são de carreiras públicas jurídicas. Então tem uma desigualdade gritante dentro do próprio serviço público e do Judiciário — entre o oficial de Justiça e o juiz.
Óbvio, isso é muito difícil (mudar), o ideal seria promover as outras carreiras com uma equiparação salarial melhor. Mas daí cria-se um outro problema: tudo o que a magistratura conquistou em 1988 virou parâmetro (de equiparação salarial) para outras carreiras no mundo do Direito. (...) Hoje, até agente penitenciário reivindica isso.
Então em vez de a gente pensar em como democratizar essas carreiras, as carreiras fazem movimentos corporativos para se tornarem mais elitizadas. É uma lógica perversa e difícil de mudar.
BBC News Brasil - Uma pesquisa do acadêmico Luciano Da Ros, da UFRGS, apontava que o Brasil tinha altos gastos com o Poder Judiciário (em relação ao PIB), maior do que todos os diversos países analisados. Mas essas questões de que falamos — de dificuldade no acesso à Justiça ou da criação de uma elite — existem também em outros países, não?
Almeida - Em geral, as profissões jurídicas são de muito prestígio e poder político. Mesmo porque, em geral, os Estados modernos, de poder centralizado, surgem em grande parte pelo papel dos juristas em construí-los.
Mas alguns países conseguiram fazer isso de maneira mais democrática e acessível, seja pela expansão do serviço, pelo tipo de remuneração simbólica e material dada aos juízes, pela possibilidade de ter formas de prestação de serviço menos mediadas e mais comunitárias.
Geralmente os casos emblemáticos para se estudar profissões em qualquer país são os de médico e advogado, profissões que no mundo ocidental são muito prestigiadas. Mas há diferenças importantes. O estudo do Luciano Da Ros mostra que o gasto público do Judiciário brasileiro é muito alto, para um atendimento ruim.
Vou fazer a minha defesa corporativa: se pensarmos na pandemia e na (busca por uma) vacina, a universidade pública, com muito menos recursos e muito menos salário, produz muito mais. Mesmo o médico na Unidade Básica de Saúde ou o professor lidando com 50 alunos em uma sala, quantitativamente, eles estão fazendo muito mais. Porque a gente universalizou muito do acesso à educação, mas não universalizamos o acesso à Justiça.
BBC News Brasil - Por outro lado, será que toda essa construção da qual falamos de fato não ajuda a garantir a autonomia do Poder Judiciário, frente inclusive ao Executivo, e a fazer um equilíbrio mais forte entre Poderes?
Almeida - Claro que a autonomia de orçamento e de carreira é importante para evitar inclusive interferências políticas. Mas a gente não pode pular de um extremo para o outro. O que a gente tem que pensar é em autonomia combinada com controle externo, que não seja de um Poder sobre o outro. Um controle social, por exemplo um Conselho Nacional de Justiça que fosse mais plural.
Há formas de controle democráticas, pelo Legislativo, por exemplo, que tem menos poder concentrado que o Executivo. Colocar em público a discussão dessas questões internas e corporativas não é por si só uma ameaça à autonomia.
Tem uma coisa salarial importante: muitas vezes os juízes dizem que se você não pagar um bom salário, o juiz fica sujeito à corrupção ou vai preferir ir para um escritório (privado de advocacia). (...) Mas essa comparação é enviesada, porque esse mercado (de advogados) que ganha muito dinheiro é muito pequena. A maioria não ganha tanto.
Mesmo no caso da corrupção, a comparação não é verdadeira. O juiz pode ter uma remuneração boa e ser protegido da tentação de ganhar uma propina. Mas se a gente levar a palavra "corrupção" a sério, não apenas seu sentido criminal, o que o Eduardo Siqueira fez é uma pequena corrupção — a ideia de corromper e desvirtuar a autoridade que ele tem.
O fato de ele ganhar bem não evita que ele corrompa o seu poder. (...)
BBC News Brasil - Internamente, existe um debate sobre elitismo na carreira jurídica, ou ele ocorre apenas fora — na imprensa ou na academia, por exemplo?
Almeida - Existe, mas é encaminhado de uma maneira muito difícil. Volto àquele primeiro ponto que a gente conversou: os juízes que tentam fazer um caminho alternativo vão acabar sendo malvistos na instituição, por colegas e pela cúpula. (...) Há mecanismos de controle interno que tornam muito custosa essa expressão da dissidência ou da mudança de cultura.
Nos anos 1970, houve uma experiência importante em alguns países, principalmente Portugal, Espanha e Itália, de associações de juízes progressistas. Os juízes que se associavam em sindicatos eram forças externas e ao mesmo tempo internas que pressionaram por mudanças.
O associativismo no Brasil não tem esse perfil (...) e não conseguiu criar uma força desse tipo. Há a associação dos juízes pela democracia, que pensa um Judiciário mais democrático, menos elitista, mais próximo de promover um serviço público e que questiona essas questões de remuneração. Mas são completamente marginais.
Vai sair esta reportagem e eu tenho grandes amigos juízes, que vão ler e não vão gostar. Eu não estou fazendo uma crítica a eles, mas o espírito de corpo é muito forte. Na conversa com amigos, eles podem até concordar com o que eu digo, mas eles sentem que, se forem a público endossar essas críticas, vão fragilizar a instituição, que já é malvista.
Então muitos juízes ficam em uma corda bamba (quanto a) jogar pedra no Judiciário, porque o povo já não gosta do Judiciário. E, ao mesmo tempo, eles não têm força política para mudar internamente.
BBC News Brasil - A sensação é de que podem tirar mais força do Poder Judiciário, em vez de melhorá-lo?
Almeida - Exatamente. Isoladamente, eles podem fazer um trabalho como juiz muito digno, muito bom, competente, atencioso. Mas não vão fazer esse movimento político interno, que tem que ser coletivo, de promover uma mudança de cultura.
BBC News Brasil - O sr. comentou que o caso do Eduardo Siqueira era um em um universo de mais de 300 desembargadores só em São Paulo. Esse elitismo é de uma minoria que acaba ganhando muita força política ou é o comportamento (ou anuência) de uma maioria?
Almeida - Eu não diria que o Judiciário é formado por uma maioria de Eduardos Siqueiras, mas me incomoda muito, como alguém que estuda isso e como cidadão, o certo silêncio dos que não são como ele.
É o peso do corporativismo — a ausência de uma condenação pública de associações, de grupos de juízes. A gente viu críticas (ao episódio) entre desembargadores, mas daí é briga de cachorro grande — é que nem ministro do Supremo criticar um ao outro. Mas você não vê uma repulsa coletiva.
Até acredito que não seja o comportamento generalizado, mas há um certo silêncio corporativista que acaba alimentando esse tipo de comportamento.
BBC News Brasil - E a origem disso, nas sociedades ocidentais, é pelo fato de a ascensão social se dar muito por carreiras jurídicas e médicas, ou há questões específicas do Brasil?
Almeida - Tem uma coisa específica do Brasil, (embora) todas as sociedades ocidentais tenham passado por processos em que juristas foram atores importantes: nós somos profundamente desiguais.
Isso (construção da sociedade) não ocorreu de uma forma em que a relação de poder dos juristas com outros grupos se desse de uma forma mais equalizada. Se deu com uma concentração de poder.
E o Estado brasileiro é formado em bases muito patrimonialistas. Essa ideia de que a pessoa que está no serviço público não é um servidor, é alguém que está acima da sociedade, porque é o Estado, é muito forte na nossa cultura. É muito típico do nosso desenvolvimento