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O CORRESPONDENTE

Os melhores textos dos jornalistas livres do Brasil. As melhores charges. Compartilhe

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O CORRESPONDENTE

17
Nov20

"Uma parceria de Moro com EUA visou destruir Lula", dizem advogados do ex-presidente

Talis Andrade

Lula da Silva foi presidente do Brasil entre 2003 e 2011.

Lula da Silva foi presidente do Brasil entre 2003 e 2011. © Filippo MONTEFORTE / AFP

 

Em entrevista ao DN, a propósito do lançamento em Portugal do livro Lawfare: Uma Introdução, os defensores do antigo sindicalista que foi presidente entre 2003 e 2011 afirmam ainda que sem a prática da "guerra jurídica" Bolsonaro não seria hoje presidente do Brasil.

 

por João Almeida Moreira /Diário de Notícias /Portugal
 
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Os advogados de Lula da Silva acreditam numa parceria de interesses entre os líderes da Operação Lava Jato e o governo dos EUA para acusar Lula da Silva e, com isso, deixá-lo de fora das eleições de 2018, que acabaram ganhas por Jair Bolsonaro. Sem essa "guerra jurídica", Bolsonaro, que convidaria o líder da operação Sérgio Moro para seu superministro da Justiça e da Segurança, não seria eleito, afirmam ainda ao DN Cristiano Zanin e Valeska Martins, autores, ao lado do também jurista Rafael Valim, de Lawfare: Uma Introdução.
 

O livro, à venda no Brasil há quase um ano, chega hoje a Portugal, editado pela Almedina e com prefácio de Francisco Louçã. A apresentação online terá a presença de Ana Rita Duarte de Campos e do deputado Pedro Bacelar de Vasconcelos, a partir das 18.00.

Eis a conversa do DN com os três autores, a propósito de Lawfare, mas também de Lula.

 

Lula é ou foi alvo de mais de uma dezena de ações: não fica um pouco difícil argumentar perante a opinião pública que todos esses processos são devidos apenas a uma guerra política?
Cristiano Zanin: Todos os processos têm em comum o facto de serem desprovidos de qualquer materialidade. São hipóteses acusatórias construídas não com base em elementos concretos, mas com base na "convicção", ou seja, naquilo que alguns membros do Sistema de Justiça brasileiros que não gostam do ex-presidente Lula imaginaram com o objetivo de o pôr na prisão e para o retirem da política. Tanto é verdade que até ao momento nós conseguimos a absolvição de Lula em cinco processos em que o ex-presidente foi julgado fora da Lava Jato de Curitiba. Ou seja, quando juízes imparciais e independentes analisaram as acusações à luz da defesa que apresentamos, eles absolveram Lula. Só nos processos originados em Curitiba, onde a condenação de Lula estava predefinida, é que esse resultado ainda não ocorreu. Mas temos a real expectativa de que esses processos da Lava Jato de Curitiba sejam anulados pelo Supremo Tribunal Federal diante da indiscutível parcialidade do então juiz Sérgio Moro, que fez toda a instrução e ainda julgou um deles.

Temos um habeas corpus que está pendente de julgamento desde dezembro de 2018 na Suprema Corte, que foi bastante reforçado pelos incríveis diálogos entre os procuradores e o então juiz Sérgio Moro divulgados pela série que ficou conhecida no Brasil como Vaza Jato, capitaneada pelo portal The Intercept BrasilO facto é que, mesmo com toda a campanha mediática e as operações psicológicas realizadas pela Lava Jato, o nosso trabalho técnico, associado a alguns factos recentes, acabou escancarando o lawfare praticado contra Lula, e isso está sendo notado por parte significativa da população, com reflexos também nos processos envolvendo o ex-presidente.

 

Quais são então os momentos nos processos de Lula que ilustram lawfare?
Cristiano Zanin: Todos os processos abertos contra o ex-presidente Lula são desprovidos de materialidade e buscavam resultados políticos, inclusive o de retirá-lo das eleições presidenciais de 2018, e por isso fazem parte indistintamente do lawfare que denunciamos desde 2016.

Por outro lado, não há dúvida de que a causa para a abertura desses processos está na atuação parcial do ex-juiz Sergio Moro, dos procuradores da Lava Jato de Curitiba e da parceria informal e estratégica que eles fizeram com autoridades norte-americanas. Moro e os procuradores usaram a lei como uma arma contra Lula, porque queriam destruí-lo.

Para viabilizar essa atuação ilegítima, como é parte do lawfare, conseguiram o apoio de uma parte significativa dos media para promover uma verdadeira campanha visando criar um ambiente artificial de culpa contra Lula. Uma parte dos media brasileiros dedicou muitas horas de televisão e muitas páginas de jornais e revistas para atacar Lula com base exclusivamente no material que era divulgado pela Lava Jato.

Os agentes da Lava Jato também utilizaram operações psicológicas, definidas em manuais, para realizar a gestão da perceção de uma parte da população em desfavor do ex-presidente e de sua defesa. Enfim, o lawfare é uma prática que possui táticas e técnicas definidas, como mostramos no livro agora lançado também em Portugal. Todas estão presentes no caso do ex-presidente Lula.

 

Moro e os Estados Unidos estariam então por trás dos processos contra Lula?
Valeska Martins: A partir das provas que coletámos ao longo dos últimos anos, concluímos que houve uma conjugação de interesses geopolíticos dos Estados Unidos e de interesses políticos e pessoais de alguns agentes do Sistema de Justiça do Brasil que compuseram a Lava Jato.

Após ter descoberto petróleo na camada pré-sal e definido a sua partilha, o Brasil se tornou um alvo dos EUA, tanto é que em 2013 houve uma primeira investida com a espionagem da Petrobras, da então presidente da República Dilma Rousseff e membros do alto escalão de seu Governo.

Havia, da parte dos EUA, o interesse de mudar esse jogo e viram no Sistema de Justiça do Brasil o maior aliado para isso. Levámos aos processos como prova disso, por exemplo, um vídeo em que um procurador norte-americano, em uma reunião em 2017 com o então procurador-geral da República do Brasil, afirmou claramente que fez uma aliança com procuradores brasileiros baseada na "confiança" e fora dos canais oficiais para construir acusações contra Lula.

Isso somente foi possível porque o então juiz Moro e os procuradores da Lava Jato queriam fama e poder e também porque tinham a ambição de realizar muitas palestras que tinham as acusações contra o ex-presidente Lula como ponto central.

Cristiano Zanin e Valeska Martins.

Cristiano Zanin e Valeska Martins. © HENRY MILLEO / AFP

 

No seu entendimento, é justo concluir que, sem a prática de lawfare, Bolsonaro não seria hoje presidente do Brasil?
Cristiano Zanin: Entendo que sim. Primeiro, porque Lula era o primeiro colocado nas intenções de voto nas eleições presidenciais de 2018 quando foi impedido de concorrer pelo Tribunal Superior Eleitoral do Brasil - mesmo após Valeska, eu e Geoffrey Robertson [advogado internacional de Lula] termos obtido em favor do ex-presidente uma liminar obrigatória e vinculante no Comité de Direitos Humanos da ONU, inédita no país, para que ele pudesse concorrer.

Segundo, porque a Lava Jato, com a campanha mediática e as operações psicológicas que ela utilizou para praticar lawfare, especialmente contra Lula, acabou por induzir a população à negação da política, e o presidente Jair Bolsonaro é o resultado disso. Recentemente, o professor Fábio Sá e Silva, da Universidade de Oklahoma, nos Estados Unidos, publicou uma pesquisa em que analisou 194 entrevistas do ex-juiz Sérgio Moro e dos procuradores da Lava Jato, mostrando que as ideias por eles difundidas, sobretudo de perseguição ao inimigo e de um exagerado quadro de corrupção sistémica, serviram de plataforma para a extrema-direita chegar ao poder no Brasil.

 

O ex-juiz Moro, segundo notícias da semana passada, vem conversando com outros protagonistas tendo a eleição 2022 em mente. Pensam que foi motivado por pretensões políticas individuais?
Valeska Martins: Em 2016, quando levámos ao Comité de Direitos Humanos da ONU o comunicado individual em favor do ex-presidente Lula - o primeiro recurso dessa natureza feito por um cidadão brasileiro -, descrevemos que o então juiz Sérgio Moro estava se utilizando do cargo de magistrado para tracionar uma carreira política. Dissemos já naquela oportunidade perante a ONU que Moro queria ser um político e que ele desejava ser candidato, até mesmo ao cargo de presidente da República.

É sempre preciso lembrar que logo após ter impedido Lula de participar das eleições presidenciais de 2018, o ex-juiz foi participar do Governo do presidente Jair Bolsonaro, que foi eleito fundamentalmente em virtude dessa circunstância. Não é novidade alguma para nós, portanto, que após ter ficado 16 meses no Governo Bolsonaro, Moro esteja agora trabalhando para ser candidato ou para continuar participando da política do Brasil, inclusive com pronunciamentos que tentam polarizar com Lula.

 

Pessoalmente veem algum mérito na Operação Lava Jato?
Rafael Valim: É comum dentro e fora do Brasil relativizarem-se os abusos da Operação Lava Jato pelo seu suposto efeito "moralizador" e por ter atingido relevantes políticos e empresários brasileiros. A verdade, porém, é que a Operação Lava Jato foi um projeto autoritário de poder cujos propósitos agora estão completamente desnudados.

A título de combater a corrupção, arruinou-se a economia brasileira e abriu-se caminho para uma profunda crise democrática, de que são exemplos eloquentes a destituição ilegítima de uma presidente da República e a ascensão de um líder de extrema-direita antitético aos nossos valores constitucionais.

Do ponto de vista económico, convém lembrar que, segundo um estudo recente, estima-se que apenas no seu primeiro ano a Lava Jato tenha subtraído cerca de 142,6 mil milhões da economia brasileira. Significa dizer que a operação produziu pelo menos três vezes mais prejuízos económicos do que aquilo que ela aponta ter sido desviado com corrupção. Some-se a isso a devastadora demissão de 2,5 milhões de trabalhadores de empresas investigadas ou das suas fornecedoras nos três primeiros anos da operação.Rafael Valim

Rafael Valim © Twitter

 

lawfare é a tradução, no século XXI, das velhas guerras, com tanques e munições?
Rafael Valim: lawfare constitui um novo tipo de guerra, muito sofisticado e menos custoso do que as "velhas guerras"; não substitui os tanques e as munições, senão que se coloca como uma alternativa ou um complemento muito eficaz para a destruição de inimigos. Até pelo hermetismo da linguagem jurídica, incompreensível para a maioria das pessoas, o lawfare é uma modalidade de guerra silenciosa, discreta, porém de consequências tão ou mais devastadoras do que as guerras convencionais.

Naturalmente, não estamos com isso defendendo o uso do direito como arma de guerra. É justamente o contrário. No livro procuramos demonstrar que o lawfare é uma completa negação do direito, cujo objetivo é a construção da paz social.

 

No livro são referidos os casos Siemens e Ted Stevens: o lawfare não persegue apenas políticos de esquerda e nem sequer persegue apenas políticos?
Valeska Martins: Exatamente. O conceito de lawfare que propusemos no livro consiste no uso estratégico do direito para fins de deslegitimar, prejudicar ou aniquilar um inimigo. O lawfare envolve, como detalhamos na obra, a utilização ilegítima do direito nas mesmas dimensões da guerra tradicional que pode resultar na destruição de pessoas e também de empresas. Políticos de todas as ideologias estão sujeitos ao lawfare, assim como empresas.

Aliás, as empresas geralmente são a porta de entrada dolawfare para atacar políticos e agentes públicos, por isso precisam estar bastante atentas ao fenómeno, necessitam fazer permanentes análises de riscos também sob essa perspetiva.

Para ilustrar essa situação, citamos no livro os casos da Siemens e do Senador Ted Stevens. A Siemens foi submetida a uma bateria de processos decisivos (bet-the-company) após os EUA descobrirem que a empresa estava vendendo produtos para o Irão.

Ted Stevens era um senador republicano que seria reeleito e poderia ser um voto decisivo no Congresso norte-americano contra o Obamacare, mas a sua candidatura foi impedida em virtude de acusações inconsistentes que foram feitas contra ele por alguns procuradores do Departamento de Justiça dos EUA. Aliás, essas acusações frívolas feitas contra o senador republicano nos EUA são parecidas com as acusações feitas contra o ex-presidente Lula no Brasil.

 

Pergunta em particular para Cristiano Zanin: como vê a inclusão do seu nome na Operação E$quema, com operações de busca e apreensão autorizadas pelo juiz Marcelo Bretas, da Lava Jato, no Rio de Janeiro?
Cristiano Zanin: Conforme registámos no livro já na sua versão originária lançada no Brasil em 2019, uma das táticas de lawfare consiste justamente no ataque feito a advogados que denunciam a sua prática. Sabíamos, portanto, que isso poderia ocorrer. É lamentável, porém, que o Sistema de Justiça do Brasil, depois de ter ficado bastante desgastado em virtude da perseguição imposta ao ex-presidente Lula, ainda tenha protagonizado um ataque a mim por meio de acusações nitidamente infundadas, atualmente suspensas por decisão da Suprema Corte brasileira.

Acho pedagógico para quem quer entender o lawfare que assista o vídeo que está disponível na internet e mostra como uma procuradora da Lava Jato dirige o depoimento de uma pessoa para que ela fizesse acusações contra mim. A procuradora define o que deveria ser dito e escrito por essa pessoa, que, em troca, deixou de ir para prisão a despeito de ter confessado crimes e ainda ficou com o valor que havia desviado para o estrangeiro. Além disso, a essência da acusação reporta-se à cobrança de honorários por serviços jurídicos realizados pelo nosso escritório a uma entidade privada. Isso é constrangedor para qualquer Sistema de Justiça. Tanto isso é um disparate que diversas entidades brasileiras e internacionais de juristas prontamente se manifestaram para prestar solidariedade a mim e aos meus colegas de escritório e também para repudiar o ataque. Também o Relator Especial da ONU para independência do Judiciário e da Advocacia emitiu um pronunciamento cobrando explicações do Brasil, inclusive pelo facto de o juiz que autorizou as medidas invasivas contra mim e contra o meu escritório ser um notório apoiante político do presidente Jair Bolsonaro e um aliado do ex-juiz Sérgio Moro.

Infelizmente, esse jogo baixo da Lava Jato contra advogados que cumprem o seu papel não é uma novidade. Em 2016 a Lava Jato tentou intimidar a defesa técnica do ex-presidente Lula de outras formas. O então juiz Moro chegou até a autorizar a gravação do principal ramal do nosso escritório sob a desculpa de ter-se confundido, para ficar ouvindo as conversas que nós mantínhamos entre advogados e também as minhas conversas com Lula sobre a estratégia de defesa. Quando levamos o caso do ex-presidente Lula ao Comité de Direitos Humanos da ONU sabíamos que o Sistema de Justiça do Brasil passava por grandes problemas. E está na raiz desses problemas justamente o lawfare.

 

Na apresentação do livro no Brasil esteve presente o ex-primeiro-ministro português José Sócrates; pelo que conhecem do seu caso, ele pode ter sido vítima de lawfare?
Rafael Valim: Não tive acesso aos autos do processo que envolve o ex-primeiro-ministro José Sócrates e, portanto, não tenho elementos para opinar sobre a sua culpabilidade. Entretanto, pelo que conheço do caso, posso dizer que estão presentes típicas táticas de lawfare, tais como a figura de um "superjuiz", a decretação de uma longa prisão cautelar, uma maciça cobertura mediática (o trial by media) e obstáculos ao trabalho dos advogados. São sinais que sugerem a instrumentalização do processo penal para deslegitimar uma pessoa que se considera inimiga.

"Uma parceria de Moro com EUA visou destruir Lula", dizem advogados do ex-presidente

20
Jul20

“A Lava Jato foi desde o começo uma máfia”

Talis Andrade

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por Amanda Massuela

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“Ideias envenenadas e juízes corruptos no lugar de bombas e balas”. Essa frase, que abre um dos capítulos do novo livro de Jessé Souza, Guerra ao Brasil (Estação Brasil), resume o conceito de soft power, utilizado pelo sociólogo para explicar a dominação estadunidense moderna. Trata-se de um imperialismo indireto ou informal, baseado no poder simbólico de ideias e valores que se prestam à expansão econômica do capital estadunidense, no caso. “Não existe exploração econômica duradoura se a inteligência do oprimido não for colonizada”, escreve.

Lava Jato, segundo ele, é resultado desse processo, no qual o discurso da corrupção é utilizado tanto para fragilizar instituições quanto a imagem que o brasileiro tem de si. São ideias que, de acordo com o autor, encontram respaldo na ciência, e por isso são tão poderosas. Ele cita Talcott Parsons, nos Estados Unidos, e Sérgio Buarque de Holanda, no Brasil, como expoentes de uma “pseudociência culturalista cujo fim é legitimar situações de dominação”.

A crítica a Sérgio Buarque não é inédita e aparece em A elite do atraso (2017), livro em que apontou pela primeira vez a influência estadunidense na Lava Jato. “Moro ia para os Estados Unidos aprender com o FBI desde 2007. Isso foi montado. A Lava Jato foi desde o começo uma máfia”, diz em entrevista à Cult, por videoconferência. No início de julho, uma série de reportagens da Pública em parceria com o Intercept comprovou a proximidade entre a operação, Polícia Federal, procuradores e FBI. 

 


Você vem afirmando que há influência americana na Lava Jato desde pelo menos A elite do atraso (2017), ideia que muitos consideraram uma “teoria da conspiração”. O que te levou para esse raciocínio?

O estudo de autores que me ensinaram a perceber como o jogo da estratégia política e social funciona. O que eu tentei mostrar foi exatamente como a ciência hegemônica no Brasil – percebida como crítica e verdadeira apenas porque aponta o dedo para a corrupção estatal – é no fundo um mecanismo de dominação. O que acontece com a Lava Jato é que ela assume uma forma judicial de uma espécie de representação de um partido extraparlamentar, que se utiliza mafiosamente das estruturas do Estado. São máfias na Polícia Federal, no Ministério Público e na Justiça que, junto com a imprensa – boca da elite financeira -, queriam tirar o PT do poder. Para isso, era preciso destruir esse projeto de forma extra-eleitoral, dada a hegemonia eleitoral petista, e a Lava Jato foi isso. O que fizeram com Lula foi feito exatamente nos Estados Unidos contra um senador do Alasca, Ted Stevens, um caso que foi reconstruído pelos advogados de Lula. [procuradores do Departamento de Justiça americano pretendiam implicar Stevens em um caso de corrupção tendo como base uma reforma de 200 mil dólares que este havia realizado em seu chalé no Alasca. Foi inocentado em 2009]. Se você vê a mesma estratégia sendo aplicada no Brasil, por que vai precisar de um print do Telegram para acreditar? Claro que agora isso foi levado para o olhar leigo, para o grande público, que confia mais nesse tipo de prova, mas a gente não precisa depender disso porque mesmo sem acesso às mensagens é possível traçar uma cadeia causal, uma vez que a estratégia é a mesma. (Continua)

26
Jan20

Como uma operação que começa no Brasil leva a Petrobras a ser processada nos EUA?

Talis Andrade

Nos últimos 5 anos, a Petrobras recebeu da Lava Jato um ressarcimento de R$ 4 bilhões. Mas perdeu 4 vezes mais do que isso só em multas para evitar julgamentos em solo norte-americano

Por Luis Nassif e Cintia Alves, do GGN

A Lava Jato já foi definida na mídia internacional como uma benção e, ao mesmo tempo, uma maldição para os brasileiros.

Uma benção porque revelou o esquema de corrupção que existiu nas entranhas da Petrobras. Mas, por outro lado, a operação devastou a economia e comprometeu a democracia brasileira.

Uma presidente caiu, outro foi preso e impedido de disputar a eleição em 2018, e um terceiro chegou ao poder com a ajuda da principal estrela da operação, que depois ganhou o cargo de ministro da Justiça. Tudo porque a Lava Jato criou a tempestade perfeita que levou a política nacional ao colapso.

 

Nos últimos 5 anos, a Petrobras recebeu por meio da Lava Jato um ressarcimento de 4 bilhões de reais. Mas perdeu cerca de 4 vezes mais do que isso só em multas para evitar julgamentos nos Estados Unidos.

O que mais existe por trás dessa operação que rompeu fronteiras, desmontou a política do pré-sal e ameaça a estabilidade e a democracia na América Latina?

Como uma operação que começa no Brasil conseguiu colocar a Petrobras no banco dos réus nos Estados Unidos?

É o que vamos mostrar na série especial “Lava Jato Lado B – A influência dos EUA e a indústria do compliance.”

CAPÍTULO 1 – COMO A ANTICORRUPÇÃO SE TORNOU BANDEIRA POLÍTICA DOS EUA

As perdas da Petrobras nos Estados Unidos se devem à montagem de uma estrutura global dedicada ao combate à corrupção, que cresceu exponencialmente após o atentado às Torres Gêmeas, levando o País a se tornar uma espécie de polícia do mundo.

Essa estrutura foi construída a partir de três leis e duas instituições que vamos abordar neste capítulo.

As leis permitem investigações contra estrangeiros mesmo quando os crimes não têm origem nos Estados Unidos.

Já as duas instituições fundaram uma notável rede de cooperação internacional, um arranjo que alguns críticos consideram inconstitucional porque desrespeita a soberania dos estados nacionais.

LEI #1: FOREIGN CORRUPT PRACTICES ACT (FCPA), A LEI DE PRÁTICAS CORRUPTAS NO EXTERIOR

FCPA é a sigla em inglês para Lei de Práticas Corruptas no Exterior, usada pelas autoridades norte-americanas para processar empresas e pessoas de praticamente qualquer parte do mundo. Para isso, basta que o crime investigado tenha algum vínculo com o País.
Por exemplo: se o dinheiro passou por um banco norte-americano ou se a empresa investigada vende ações na Bolsa de Nova York, os Estados Unidos se julgam habilitados para agir.

Foi assim que eles entraram no escândalo da Fifa. E, além da Petrobras, também processaram a Odebrecht, a Braskem, a Embraer, a alemã Siemens, a francesa Alstom, a holandesa SBM Offshore, entre outras empresas.

“Isso é porque se passar por um banco americano vira assunto interno americano. Esse exemplo que você deu mostra a força dos EUA. Houve a denúncia da Fifa e uma das consequências disso, compra de imóveis ou transações financeiras via bancos americanos, fez com que o Departamento de Justiça ficasse autorizado a atuar dessa maneira. E eles têm uma força tal que prenderam na Suíça nacionais de outros países, inclusive do Brasil”, explica o ex-embaixador do Brasil em Washington, Rubens Barbosa.

A FCPA foi criada no final dos anos 1970, em resposta a um esquema de corrupção envolvendo a Lockheed Martin, empresa responsável por grandes sucessos da aviação, incluindo caças da segunda guerra mundial.

Apesar de ter sido acusada de distribuir mais de 3 bilhões de dólares em propina na Itália, Holanda e Japão muitas décadas atrás, a Lockheed sobreviveu e faz parte do império militar norte-americano. O combate à corrupção não quebrou a empresa.

Hoje a FCPA é aplicada pelo Departamento de Justiça, no campo criminal, e pela Comissão de Valores Mobiliários, no âmbito civil e administrativo.

Foi por conta da atuação dessas instituições que a Petrobras assinou, em 2018, um acordo de 853 milhões de dólares com o Departamento de Justiça, para não ser julgada nos Estados Unidos, depois das revelações da Lava Jato.

LEI #2: A CONVENÇÃO DA OCDE

No final dos anos 1990, os Estados Unidos pressionaram e a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico, a OCDE, haprovou a Convenção Antissuborno.

Na prática, foi uma forma diplomática encontrada pelos Estados Unidos para levar os princípios da lei anticorrupção norte-americana a outros países.

Entre eles, o Brasil, que ratificou o acordo em 2000, se comprometendo a combater o pagamento de propina a agentes públicos em transações internacionais.

A Convenção inspirou o Brasil a criar, em 2013, a Lei 12.846, a nossa própria Lei Anticorrupção, que abriu caminho para o uso da delação premiada nos termos que transformaram a Lava Jato no que ela é hoje.

LEI #3:  SARBANES-OXLEY ACT (SOX)

No início dos anos 2000 o mundo assistiu à explosão de uma das muitas bolhas especulativas que sacudiram a economia global. Foi neste ambiente que começaram a pipocar escândalos contábeis, e um dos maiores foi o caso Enron.

O grupo gigantesco, líder em distribuição de energia, foi denunciado em 2001 por manipular o balanço com o propósito de esconder as dívidas e inflar os lucros.

As investigações respingaram em bancos e na auditoria Arthur Andersen, uma das mais prejudicadas no processo.

A condenação contra a auditoria foi revertida quando o processo chegou em tribunal superior, mas o estrago já estava feito. Os mais de 100 mil trabalhadores da empresa foram reduzidos a apenas 200 depois do escândalo.

Em 2002, foi a vez da WorldCom se envolver num julgamento que custou 30 mil empregos e mais de 100 bilhões de dólares em perda de valor de mercado.

O Congresso reagiu a esses casos que envolveram setores importantes da economia criando a Lei Sarbanes-Oxley, conhecida como SOX.

Seu objetivo é evitar a fuga de investidores por causa de crimes financeiros e contra o mercado de capitais, tudo entendido como falta de governança nas empresas.

Por isso, a lei obriga a contratação de auditorias independentes e a criação de controles internos para reduzir a ocorrência de fraudes.
Estamos falando do que pode ser considerado o embrião do compliance, uma palavra que a Lava Jato ajudou a popularizar no Brasil.

Compliance pode ser entendido como a adoção de um conjunto de regras que previnem desvios nas empresas.

Para cumprir com as determinações da SOX, a Petrobras mantém uma espécie de ouvidoria que recebe denúncias de qualquer tipo de irregularidade que possa vir a causar danos ao patrimônio da estatal ou prejuízo aos acionistas.

Foi por este canal que chegaram alertas sobre problemas em refinarias, incluindo a polêmica em Pasadena.

Como consequência da falha no controle interno, investidores estrangeiros moveram contra a Petrobras uma ação coletiva nos Estados Unidos, e conseguiram um acordo de quase 3 bilhões de dólares.

A SOX entrou em vigor pouco tempo depois do atentado das Torres Gêmeas, um acontecimento que não só mudou o conceito de segurança do Departamento de Estado norte-americano, como também fez da luta anticorrupção uma maneira de intervir na economia global.

“Acho que há uma série de fatos históricos que vai mudando. O fim da Guerra fria faz mudar, a questão do comunismo deixa de ser central, é mais uma questão de geopolítica mais ampla. O que o 11 de setembro acrescenta fortemente é a guerra contra terror, que tem uma dimensão ligada à corrupção, de certa maneira, por causa da lavagem de dinheiro”, afirmou o ex-chanceler Celso Amorim.

“Eu achava que aquele ataque às torres iriam ter profundas consequências não só na sociedade americana, mas na política externa americana. Foi isso o que ocorreu. Você teve uma psique americana que ficou alterada”, acrescentou Rubens Barbosa.

O atentado também produziu um apagão nos direitos civis depois que o governo Bush assinou um decreto batizado de Lei Patriota, em outubro de 2001.

“Eu dizia na época que era o Ato-5 dos Estados Unidos. O Ato-5 aqui foi esse Patriot Act americano, que deixava todos os direitos garantidos pelas Constituições suspensos. O governo americano poderia interferir na correspondência, endereços, e-mails, telefone, correspondências. Foi uma reação violenta”, pontuou Barbosa.

O decreto vinha com a promessa de aprimorar o combate ao terrorismo, mas na prática também acabou com freios e contrapesos que dificultam abusos nos tribunais e nas agências de segurança.
E nenhum outro setor contribuiu mais para a selvageria que se instalou no País do que a Seção de Integridade Pública do Departamento de Justiça.

ISTITUIÇÃO #1N – Setor de Integridade Pública do Departamento de Justiça

Esse departamento é uma espécie de unidade anticorrupção de elite, com dezenas de promotores encarregados de investigar autoridades públicas.

Uma das figuras mais polêmicas é Andrew Weissmann, um ex-promotor que liderou inquéritos de grande repercussão na imprensa nas últimas décadas, passando pelo caso Enron até chegar à Petrobras.

Enquanto Weismann esteve no Departamento de Justiça, técnicas nada ortodoxas foram desenvolvidas e depois incorporadas pela Lava Jato.

Como, por exemplo, o uso da mídia para escandalizar conduções coercitivas; a ocultação de provas e ameaça a testemunhas de defesa, além do uso intenso de prisões que acabam em delação premiada.

O emblemático caso Ted Stevens

Uma das mais graves violações que já ocorreram na história da seção de Integridade Pública do Departamento de Justiça atingiu o ex-senador republicano Ted Stevens.

O caso lembra um pouco o que aconteceu com o ex-presidente Lula na Lava Jato.

Stevens era o senador mais antigo dos Estados Unidos, tinha mais de 40 anos de vida pública quando foi acusado de receber milhares de dólares em presentes de um amigo pessoal, que também era sócio de uma das maiores empresas de petróleo do Alasca.

O empresário foi associado à reforma de uma cabana que pertencia a Stevens, que foi transformada num modesto chalé de dois andares no meio de uma zona florestal.

No decorrer do julgamento, descobriram que a empresa que fez as melhorias teria se aproveitado da situação para superfaturar o valor da obra.

Mas os promotores criaram outra narrativa, uma que sustentava crime de corrupção.

Stevens acabou condenado em primeira instância em 2008, e não conseguiu se reeleger. Foi o fim da sua carreira política.

O jogo só começou a virar quando um agente do FBI denunciou erros e abusos cometidos por investigadores durante o processo.

A força-tarefa escondeu provas e até testemunhas da defesa, e levou ao júri indícios de culpa que depois foram considerados uma fraude pela Justiça.

O juiz Emmet Sullivan derrubou a sentença em 2009 e mandou investigar a atuação dos promotores. Em crise, o próprio Departamento de Justiça pediu desculpas a Stevens e reconheceu que a ação da força-tarefa foi irresponsável e deveria ser apurada.
Stevens morreu num acidente de avião em 2010.

Logo depois, um dos promotores, afastado do cargo por causa dos abusos, cometeu suicídio.

Essa má conduta que marcou o caso Stevens não é exatamente uma novidade.

A operação Enron já havia inaugurado esse perfil de promotor que acredita que os fins justificam os meios.

E o fato é que investigar e punir esses desvios não é regra, é exceção.

Andrew Weissmann, por exemplo, seguiu normalmente com sua vida de estrela no Departamento de Justiça, até decidir abandonar o cargo público e retornar à advocacia privada, em outubro de 2019.
Durante anos, ele acumulou críticas de setores da mídia pelo histórico de violações.

Algumas são retratadas no livro “Autorizado a mentir”, escrito pela ex-promotora Sidney Powell.

No caso Enron, por exemplo, houve situações desumanas, como o relato de um ex-executivo que ficou trancado numa “gaiola infestada de insetos, com apenas uma fenda de luz”.

Muitos investigados enfrentaram meses de prisão e alguns, até de solitária, e receberam ameaças contra seus familiares, até decidirem cooperar com o Departamento de Justiça.

INSTITUIÇÃO #2 – DHS, o Departamento de Segurança Interna

Em 2002, depois do atentado às Torres Gêmeas, da criação da Lei Patriota e da SOX, os Estados Unidos fizeram uma outra grande mudança na estrutura anticorrupção.

Eles criaram o DHS, o Departamento de Segurança Interna, que tem um objetivo muito claro: manter a América segura.

Com orçamento estimado em 40 bilhões de dólares, as 22 agências desse departamento juntam todos os serviços de inteligência e compartilham informações obtidas através de espionagem.

Seus 240 mil funcionários são capacitados para responder à ameaça terrorista, em chamados internos, nas fronteiras ou no campo cibernético.

“Uma das razões pelas quais não foi detectado esse ataque [às torres gêmeas] é porque não havia comunicação entre os órgãos de segurança e informação. Se eles tivessem um sistema ágil de comunicação. Se tivessem melhor aparelhados… Isso é uma grande potência que tinha essas vulnerabilidades. A curto prazo foi criado o Departamento de Defesa Interna, que centralizou essas informações todas as agência americanas estão subordinadas ao Homeland Department”, comentou Barbosa.

Juntos, o DHS e a Agência Nacional de Segurança, a NSA, formam o núcleo de proteção dos Estados Unidos.

Uma das primeiras parcerias entre o DHS e as autoridades brasileiras aconteceu durante a operação Banestado, que contou com a participação do ex-juiz Sérgio Moro e de outros agentes da Lava Jato.

No capítulo 2 dessa série (assista aqui), veremos como a relação com os Estados Unidos se intensificou nos últimos anos, a ponto de respingar em interesses nacionais.

LAVA JATO LADO B (2019)
Argumento: Luis Nassif 
Roteiro, pesquisa e entrevistas: Luis Nassif e Cintia Alves 
Imagens e edição: Nacho Lemus 
Locução: Marco Aurélio Carvalho Coordenação geral: Cintia Alves e Lourdes Nassif
Colaboradores: André Sampaio (entrevista Mark Weisbrot) e Zé Bernardes (imagens Pedro Serrano) 
Agradecimento especial: Estúdio do Criar Brasil.

 
 

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