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O CORRESPONDENTE

Os melhores textos dos jornalistas livres do Brasil. As melhores charges. Compartilhe

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O CORRESPONDENTE

25
Nov22

Na guerra algorítmica, devemos brigar com a notícia da movimentação golpista?

Talis Andrade

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por Sylvia Debossan Moretzsohn /Objethos

Não compartilhe. Não envie mensagem. Não comente. Não faça nada. Simplesmente ignore.

Essa orientação vem circulando intensamente nos grupos de militantes e simpatizantes de Lula e nas mídias sociais desde que começaram as movimentações de contestação ao resultado eleitoral, ainda na noite de domingo passado (30), com o anúncio do bloqueio das estradas pelo país afora. É uma orientação destinada ao comportamento das pessoas nas redes, mas parece ter sido adotada também pela direção das empresas jornalísticas, à exceção da Jovem Pan, que continua dando sustentação a teses golpistas.

Não é novidade: desde que as redes se organizaram, começou-se a formar uma convicção sobre essa necessidade de silenciar sobre o que o outro lado está fazendo, já que passamos a viver uma permanente guerra algorítmica – e psicológica, cuja intensidade aumenta enormemente em períodos de maior tensão como o atual – e qualquer ação, mesmo de crítica ou denúncia, serviria para impulsionar e amplificar essas mensagens. Serviria, portanto, para transformar boato em fato, concretizar balões de ensaio. Em suma: contribuiria para fazer o jogo “deles”.

Poderia fazer sentido, não fossem duas contradições. Em primeiro lugar, sempre lamentamos que não conseguimos furar nossas bolhas, que falamos apenas para nós mesmos. Nesse caso, que impacto poderiam ter nossas ações para beneficiá-los? Segundo, e talvez mais importante: se deliberadamente ignorarmos o que se passa no outro lado, como poderemos nos preparar para enfrentá-lo?

A convicção é de tal ordem que, no Facebook, mesmo em posts fechados para amigos, há quem recrimine, ao comentá-los, a simples divulgação do que se constata nas ruas – o que costuma provocar uma resposta à altura. Para quem exerce o jornalismo por conta própria, com todo o rigor que a profissão exige, o quadro é semelhante. Um exemplo: Hugo Souza, que criou o site Come Ananás e tem se empenhado exemplarmente em fornecer informações sobre as articulações golpistas desde antes do início da campanha eleitoral, vem cobrindo as manifestações na região de Resende, onde fica a Aman, e recebeu críticas de uma leitora, ao publicar, em sua página pessoal, um vídeo mostrando o bloqueio na Via Dutra, em 1º de novembro. “Não divulgo nada porque é guerra de algoritmos”, diz ela. Divulgar, isto é, noticiar: não se deve, não se pode. “Isso não faz o menor sentido”, contesta Hugo. “A guerra não é de algoritmos, a guerra é bem real”. E, a seguir: “É cansativo ter que dizer que há uma tentativa de golpe em curso que precisa ser denunciada, escancarada”. A resposta: “É público e notório, bem como a falta de apoio internacional a ela”.

Público e notório, sim, mas como seria, se ninguém tivesse publicado nada?

O papel da imprensa

Se recordarmos dos tempos pré-internet – e é preciso não esquecê-los, porque afinal de contas as coisas têm história –, o trabalho de edição jornalística sempre significou a necessidade de se fazer escolhas, destacar determinados fatos em detrimento de outros. A responsabilidade ética mandava tratar com especial cuidado informações que pudessem provocar pânico. Mas não se tratava de deixar de noticiar, e sim de calibrar a ênfase. Inversamente, o abandono da ética levava a promover balões de ensaio, lamentavelmente muito comuns. No limite, levava a ignorar a realidade, como as Organizações Globo fizeram durante a campanha das Diretas, entre 1983 e 1984. Esforço inútil, porque a campanha só fez crescer, apesar de derrotada na votação na Câmara dos Deputados.

Hoje a situação é muito distinta e o poder dessa mídia, que nunca foi absoluto, é muito menor agora. Portanto, seria apenas uma tolice adotar a mesma atitude de antes, quando se pretendia ocultar ou reduzir o alcance do que estava acontecendo. Inclusive porque essa mesma mídia, ou pelo menos parte dela, noticiou fartamente a articulação da extrema-direita no Brasil, embora não a chamasse por esse nome. Essa extrema-direita tem seus próprios canais, não precisa dessa mídia para promover o caos. Por isso, brigar com a notícia – como se ironizava antigamente nas redações – é mais que uma atitude antiprofissional, e mais que um esforço inútil: é um erro que pode ter graves consequências.

Assim, não se compreende por que, depois de noticiar o bloqueio das estradas pelos caminhoneiros – que talvez não fossem exatamente isso, como mostrou Alceu Castilho, outro incansável jornalista que atua à margem da mídia hegemônica, em seu De Olho nos Ruralistas, identificando a atuação do agronegócio nesse “levante contra a democracia” (ver aqui e aqui) –, não se compreende por que, depois de desmobilizado o bloqueio, a pauta se voltou para os detalhes da transição e para especulações sobre o que Lula fará (ou deve fazer, de acordo com o programa que essa mesma mídia, de modo geral, defende). Como se o perigo já tivesse passado, como se agora tudo voltasse aos velhos bons tempos dos acordos de gabinete.

A jornalista Ana Lagoa, aposentada mas sempre muito alerta aos acontecimentos e com larga experiência na cobertura política, apontou em sua página no Facebook o que essa imprensa deveria estar fazendo num momento desses:

Deviam estar com as equipes na rua para apurar coisas básicas: de onde saem as ordens para irem para a rua ao mesmo tempo em 24 estados? de onde veio a ordem para cercar os quartéis? de onde vem a grana pra isso tudo? quem está transportando os ‘civis’ para os pontos marcados com os motoristas de caminhões? quem está no comando de cada grupo de PRF que fica assistindo ao – e assistindo o – espetáculo fascista? o que os filhotes do verme estão fazendo nas redes sociais desde sei lá quando e principalmente na noite de segunda para terça? enfiar a cabeça na areia não é uma boa estratégia neste momento. Corre-se o risco de ficar com a cabeça lá para sempre.”

Sobre a infraestrutura, digamos assim, gastronômica dessas manifestações, Marcos Nogueira deu sua contribuição em sua coluna “Cozinha bruta”, na Folha de S.Paulo, ao perguntar quem pagava a “churrascada dos golpistas”.

Mudanças de tática

Sobre o mais, ficamos em compasso de espera, a depender das informações que, apesar das recomendações em contrário, conseguimos obter marginalmente. Só assim podemos perceber as mudanças de discurso e tática, na tentativa de dar continuidade ao movimento golpista.

Tentemos puxar esse fio.

Primeiro, o longo silêncio de Bolsonaro após a proclamação da vitória de Lula, um silêncio que funcionou como estímulo aos bloqueios nas estradas. Depois, seu pronunciamento dúbio – que certa imprensa, sabe-se lá por quê, resolveu considerar como reconhecimento da derrota –, com o mesmo efeito. Mais tarde, o segundo pronunciamento – agora já no modelito Zelensky, como bem observou Reinaldo Azevedo, com os inequívocos sinais de vitimização e disposição à resistência próprios a essa representação –, que recomendava o fim dos bloqueios mas incentivava as demais “manifestações democráticas”. Finalmente, a sucessiva mudança de discurso, que os “patriotas” repetiam invariavelmente: primeiro o apelo à intervenção militar, depois à intervenção federal, depois exclusivamente às Forças Armadas, num progressivo movimento de afastar Bolsonaro de qualquer reivindicação, conforme os itens da cartilha distribuída para esses grupos:

É importante notar também o duplo discurso que orienta os “patriotas”. O primeiro é o que acusa fraude na contagem dos votos, e aqui é essencial pensar no prazo que os militares convidados pelo ministro Luís Roberto Barroso a integrar a tal “Comissão de Transparência” do TSE se autoconcederam, e que se estende até 5 de janeiro, para apresentar os resultados da famosa auditoria das urnas. Protelar a divulgação dessa conclusão é manter viva a suspeita, e é sobre isso que investe o grupo argentino Derecha Diario, aliado de Bolsonaro, na sua longa live intitulada “Brazil was stolen” (O Brasil foi roubado), retirada do ar pelo Youtube horas depois de circular e atingir ampla audiência. 

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O segundo discurso, que tem aparentemente prevalecido, é o que reconhece a derrota mas não a aceita, porque rejeita que o país seja governado por um “ladrão”, um “descondenado”, que não poderia sequer ter concorrido. É o argumento decorrente da declaração do ainda vice-presidente e futuro senador, general Hamilton Mourão, com a diferença de que ele não defende, pelo menos explicitamente, a possibilidade de se virar a mesa: “não adianta mais chorar”.

Diante do evidente isolamento internacional e interno de Bolsonaro, no campo da política institucional, é provável que todos esses movimentos sirvam apenas para uma demonstração de força que o beneficie, de modo a não ser sequer julgado pelos muitos crimes de que é acusado, e que possa continuar a transitar livremente para liderar essa massa de gente nessa “guerra espiritual” por “Deus, pátria, família e liberdade”. Por isso mesmo é necessário o acompanhamento jornalístico dessas manifestações: porque, antes de mais nada, elas são essencialmente golpistas – como a Folha, por sinal, ousou classificar, embora apenas por um dia –, ao apelarem às Forças Armadas para uma intervenção que contesta um resultado eleitoral legítimo. E, por isso, essas pessoas precisariam ser identificadas e punidas, para que não se sintam à vontade para prosseguir em sua escalada.

Mas, principalmente, porque não podemos nos fechar numa bolha, à semelhança do Show de Truman, famoso filme de mais de duas décadas atrás, do qual os mais novos provavelmente jamais ouviram falar. Podemos e devemos comemorar a vitória, como tão bem resumiu Gregório Duvivier na reestreia do Greg News, podemos e devemos nos divertir com os memes do patético “patriota” atracado ao caminhão, mas não podemos ignorar o que eles andam tramando. Porque, enquanto dormimos na ignorância, eles continuam a agir.

 

21
Jun21

Pazuello, a “coisa de internet” e a distorção fascista da linguagem

Talis Andrade

 

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por Sylvia Debossan Moretzsohn /Objethos

- - -

“Jamais alguém pôs em dúvida que verdade e política não se dão muito bem uma com a outra, e até hoje ninguém, que eu saiba, incluiu entre as virtudes políticas a sinceridade”.

Gosto de recordar esta afirmação de Hannah Arendt na abertura de seu ensaio sobre “Verdade e Política”, publicado originalmente há quase setenta anos, para desfazer algumas ilusões que costumam acompanhar as esperanças sobre a ética na política. Sempre achei curioso o espanto diante do recrudescimento da mentira deslavada dos tempos atuais, a ponto de se inventar a expressão “pós-verdade” para defini-los. Afinal, Arendt viveu o nazismo, quando a mentira deslavada era a regra. Mas nem em tempos de democracia se pode imaginar que prevaleça a sinceridade – ou a “transparência”, como está na moda dizer –, dado que a política envolve interesses e, por isso, segredos. Inevitavelmente, em qualquer época histórica.

Mas também deveria ser evidente que em uma democracia as coisas decorrem de outra forma, diferentemente do momento atual em países como o Brasil e, até recentemente, os Estados Unidos então comandados por Trump. E a tecnologia digital favoreceu enormemente a ascensão e o protagonismo desse tipo de liderança demagógica, com uma penetração muito distinta da do período pré-internet, devido à possibilidade de selecionar algoritmicamente o público a ser atingido e, mais ainda, formar bolhas para blindá-lo de ações que possam eventualmente despertar-lhe alguma dúvida em relação às informações distorcidas que recebe.

É aí que se insere a tentativa de defesa do general Pazuello, na CPI da Covid. Especialmente sua resposta sobre o cancelamento da compra de 46 milhões de doses da Coronavac, em outubro do ano passado, que ele mesmo havia comemorado, para logo depois dizer, sem qualquer constrangimento, que “um manda, o outro obedece”. Na época, o destaque da notícia foi para a humilhação de um general subordinado a um capitão.

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Agora, diante dos senadores, o general alegava que a manifestação de Bolsonaro, num tuíte em resposta ao protesto de um de seus apoiadores contra a compra da vacina chinesa, era apenas uma postagem na internet. Questionado, disse que uma coisa era falar publicamente, outra era dar uma ordem a um ministro. E não importava se, por alguma incrível coincidência, essa ordem supostamente não dada acabou sendo cumprida, ainda por cima arrematada com aquela declaração sorridente sobre quem manda e quem tem juízo.

Das muitas mentiras descaradas na CPI, esta foi das que mais repercutiram na imprensa. José Casado, na Veja, ironizou a revelação do “avatar político” do presidente: “pela descrição do ex-ministro da Saúde, existe o Bolsonaro real e o Bolsonaro avatar. Um manda, o outro não. E ambos nem sempre estão de acordo”. Malu Gaspar, no Globo, lembrou que Pazuello havia tentado se esquivar do depoimento à CPI mas, diante da decisão do STF – de que ele poderia, sim, ficar calado sobre o que se referia a suas ações durante a pandemia, mas teria de responder, sem mentir, ao que dissesse respeito a outras pessoas –, “produziu uma inovação simbólica dos tempos que vivemos: a ‘coisa de internet’”.

Era sempre como reagia, a cada questionamento sobre uma ordem de Bolsonaro contra a compra de vacinas ou pela adoção da cloroquina como “tratamento precoce”: tudo “coisa de internet”, bravatas, balelas que não se deveria levar a sério.

É claro que é fundamental desmontar a farsa produzida pelo general nessa encenação comum a toda CPI – embora sejam raros os que apontem a aberração da obediência a esses rituais num momento de urgência que o próprio tema do inquérito impõe, porque as pessoas estão morrendo aos milhares todos os dias –, mas o principal ficou por dizer: a “coisa de internet” não é uma banalidade, é decisiva na condução da política e facilita a operação da inversão discursiva já apontada em clássicos da literatura como 1984, de George Orwell, ou no estudo de Victor Klemperer sobre a Linguagem do Terceiro Reich.

O primeiro a se notar nessa “coisa da internet” é a facilidade de se editar informações de maneira distorcida, ou simplesmente produzi-las para fazer propaganda – como se pode ver aqui no levantamento da agência Aos Fatos – e enviá-las a determinado público, para que ele se convença do contrário do que de fato ocorreu e ajude a disseminar a mentira.

Mas o mais importante é a formação de referências para a sedimentação dessa operação de inversão discursiva, já visível na campanha eleitoral de 2018 – o programa de Bolsonaro denunciava o que o próprio candidato praticava contra seus oponentes e, no mesmo estilo de Trump, alertava para as alegadas fake news de que estaria sendo vítima, prometendo restabelecer “a verdade” – e na crítica às instituições, entre elas a imprensa, numa apropriação canhestra da crítica historicamente produzida por pesquisadores, na academia e fora dela. 

O mais relevante em todo esse processo é a apropriação da ideia de dúvida, esvaziada da fundamentação iluminista original. Durante a pandemia isso ficou mais visível porque nem os especialistas tinham certezas a oferecer. No estudo “Ciência contaminada: analisando o contágio de desinformação sobre coronavírus via youtube”, publicado há um ano, em maio de 2020, o Laut (Centro de Análise da Liberdade e do Autoritarismo) dava como um dos exemplos o canal “Desperte – Thiago Lima”, que na época contava com mais de 1 milhão de assinantes e misturava símbolos místicos a apelos racionais: “Pense”, “Raciocine”, “Faça a sua escolha”.

São apelos visíveis em perfis bolsonaristas na internet, que formalmente assumem o valor da racionalidade para invertê-lo e degradá-lo, do mesmo jeito que Bolsonaro justifica suas sucessivas ofensas à democracia como forma de defendê-la, ou como os vídeos que circularam no início deste ano, contestando o uso de máscara, o lockdown ou a vacinação e exaltando a liberdade individual. “Paz sem voz é medo”, dizia-se num desses vídeos, numa evidente distorção do famoso verso de Marcelo Yuka.

Mais ou menos na mesma época em que Hannah Arendt escrevia seu ensaio sobre Verdade e Política, Lukács publicava A Destruição da razão – traduzido para o português apenas em 2020 –, em que desenvolvia uma teoria crítica dos fascismos em geral e do nazismo em particular, buscando entender, no campo filosófico, o caminho que a Alemanha percorreu até eleger Hitler. Observava que a emergência do irracionalismo naquela época tinha suas raízes na vida cotidiana das massas.

Em momentos dramáticos como o que estamos vivendo, é muito difícil encontrar serenidade para refletir. Mas é exatamente nesses momentos que a reflexão é mais necessária. É preciso entender melhor os mecanismos históricos de apropriação, deturpação e degradação da linguagem, que se repetem agora com recursos mais sofisticados proporcionados pela tecnologia digital, para tentar enfrentar a barbárie.

Não creio que haja saída fora da identificação do que se enraizou “na vida cotidiana das massas”, a ponto de vermos cartazes afirmando que Bolsonaro foi escolhido por Deus – e me parece ocioso assinalar o tamanho da regressão que essa simples frase indica, como negação dos ideais republicanos que há mais de dois séculos demoliram a justificativa do poder por direito divino.Presidente Bolsonaro, o escolhido por DEUS - Home | Facebook

Perceber o papel da religião nesse processo – como faz, por exemplo, Evandro Bonfim num artigo recente, sobre “O espírito santo e o ‘rei do fim do mundo’”, mostrando as raízes arcaicas da mobilização do apoio a Bolsonaro – pode ser um bom início para reorientar o esforço de esclarecimento, empreendido por tantas e tão distintas iniciativas de combate à mentira.A cristologia cristofascista de Jair Bolsonaro - CartaCapital

 

07
Fev21

Ponto de Vista: Folha, Datafolha: a fraude monumental e a normalização do golpe

Talis Andrade

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por Sylvia Debossan Moretzsohn /objETHOS

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Reprodução Tijolaço

 

Quando a Folha de S.Paulo publicou, na manchete de sua edição de domingo (14/7), uma pesquisa que destacava o apoio de metade da população brasileira à permanência de Michel Temer na presidência, muita gente estranhou. Afinal, outras pesquisas – inclusive do próprio Datafolha – apontavam rejeição em torno de 60% ao personagem que conspirou para afastar do poder sua companheira de chapa. Essas pesquisas também indicavam mais ou menos o mesmo percentual de respostas favoráveis a novas eleições. Como seria possível que as expectativas tivessem mudado tão subitamente?

A resposta não demorou muito. No dia 20, reportagem de Glenn Greenwald e Erick Dau, do Intercept, e de Fernando Brito, do Tijolaço, esclareciam tudo.

Tratava-se de uma fraude. Uma fraude monumental, que coincide com um claro movimento da mídia hegemônica para a normalização do golpe.

Uma das perguntas da pesquisa era: “Na sua opinião, o que seria melhor para o país: que Dilma voltasse à presidência ou que Michel Temer continuasse no mandato até 2018?”. Era óbvio que a pergunta propunha apenas duas possibilidades. Como Greenwald e Dau observaram, as pessoas “disseram apenas que essa seria a melhor opção se a única alternativa fosse o retorno de Dilma. Além disso, simplesmente não procede alegar que apenas 3% dos entrevistados querem novas eleições, já que essa pergunta não foi feita. O que aconteceu foi que 3% dos entrevistados fizeram um esforço extra para responder dessa forma frente à opção binária entre ‘Dilma retorna’ ou ‘Temer fica’”.

O jornal, entretanto, ignorou esse pequeno detalhe e distorceu completamente o sentido dessas respostas, apresentando-as como se os entrevistados tivessem respondido a uma pergunta bem diferente, estampada na primeira página – com o atrativo das figurinhas coloridas do infográfico – e reproduzida em página interna: “O que seria melhor para o país?”, com a fantástica dianteira de Temer (50%, contra 37% de Dilma), e apenas 3% dos que pediam novas eleições.

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Reprodução: The Intercept

Os repórteres do Intercept então especulavam sobre o verdadeiro contingente dos que desejavam a antecipação das eleições, pois ainda não tinham as informações descobertas por Fernando Brito: esse percentual era de 62% e constava de uma tabela que o Datafolha simplesmente havia omitido em seu relatório inicial. A pergunta era: “Você é a favor ou contra Michel Temer e Dilma Rousseff renunciarem para a convocação de novas eleições para a presidência da República ainda neste ano?”.

“Não foi a única pergunta ‘abduzida’ do relatório”, informou o jornalista. “Também foi tirada a questão sobre a legalidade/ilegalidade da condução do impeachment – que apontou 49% para a primeira opção e 37% para a segunda. Talvez alguém tenha achado ‘pouco’”.

 

A pista do escândalo

 

O Intercept informou que a matéria da Folha começou a desabar quando Brad Brooks, correspondente chefe da Reuters no Brasil, “observou uma enorme discrepância: enquanto a Folha anunciava em sua capa que apenas 3% dos brasileiros queriam novas eleições e que 50% queriam a permanência de Temer, o instituto de pesquisa do jornal, Datafolha, havia publicado um comunicado à imprensa com os dados da pesquisa anunciando que 60% dos brasileiros queriam novas eleições”.

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Reprodução The Intercept

 

Entretanto, no relatório do instituto, não havia nenhuma informação relativa a esse percentual.

Fernando Brito desvendaria o mistério. Ele observou que o endereço URL do documento do Datafolha terminava em “v2”. Era, portanto, uma segunda versão. Como não encontrou a versão original no site do instituto, começou a “tentar adivinhar” o endereço da primeira versão, até que achou. “Embora a versão original tivesse sido retirada do ar pelo Datafolha”, diz o Intercept, ela “ainda se encontrava nos servidores do instituto”. Quando encontrou o endereço URL correto, o Tijolaço obteve o documento.

Brito esclareceu em seu site: “Houve uma segunda versão do relatório – veja aqui – na qual a pessoa encarregada de eliminar as ‘inconveniências’ se distraiu e deixou a chamada para ‘nova eleição’ no subtítulo, o que me deu a dica para ir atrás do primeiro arquivo. Mas foi a única distração. O resto foi escondido de forma deliberada, em verdadeira fraude aos leitores”.

O jornalista mencionou ainda a supressão integral de dois parágrafos inteiros da análise dos resultados, que constava no documento. Reproduziu o texto:

O Datafolha também consultou os brasileiros sobre a possibilidade de uma nova eleição presidencial neste ano, caso Dilma e Temer renunciassem a seus cargos, e a maioria (62%) declarou ser a favor de uma nova votação para o cargo de presidente. Uma parcela de 30% é contra a hipótese, e 8% são indiferentes ou não opinaram. A realização de uma nova eleição tem mais apelo entre os jovens de 16 a 24 anos (68% favoráveis) e na faixa de 25 a 34 anos (também 68%). Entre aqueles que consideram o governo Temer ótimo ou bom, 50% são a favor de nova eleição, e 44%, contra. 

Questionados se o processo de impeachment contra a presidente Dilma Rousseff está seguindo a regras democráticas e a Constituição ou está desrespeitando as regras democráticas e a Constituição, 49% disseram acreditar que as regras e a Constituição estão sendo seguidas. Uma parcela de 37% discorda e acredita que estão sendo desrespeitadas, e 14% não opinaram. Na parcela dos mais escolarizados, 58% avaliam que o processo de impeachment da petista segue as regras democráticas e a Constituição, índice que cai para 40% entre os menos escolarizados (neste segmento, 37% aderem à tese contrária e o índice dos sem opinião sobe para 23%)”.

Em outro texto, no mesmo dia 20, Brito reiterava: “É um enorme escândalo, comprovado com documentos, e joga um facho de luz sobre como se faz manipulação da opinião pública com pesquisas. Não são acusações:  é uma prova, concreta, material, indiscutível de que se sonegou informações ao público”.

Sobre manipulação da opinião pública, aliás, o Tijolaço já havia publicado longo artigo de Letícia Sallorenzo no dia 19, expondo as artimanhas de uma pesquisa que misturava a avaliação do governo Temer com o índice histórico de confiança – que supostamente mede “o sentimento dos brasileiros em relação ao país” –, a intenção de voto em 2018 e a opinião sobre a Previdência, e de quebra metia no meio uma avaliação do desempenho do juiz Sérgio Moro.

No dia 21, Fernando Brito detalharia melhor os passos da sua investigação e mostrava que, além da “sorte, um pouco de palpite” e da necessidade de “estar ligado” e “não aceitar o que não faz sentido”, importava ressaltar que todo trabalho é coletivo.

 

Uma “justificativa” cínica

 

O escândalo levou a Folha a se pronunciar – e a maneira como o fez evidenciou essa mistura de cinismo e canalhice que marca o jornalismo aliado ao golpe.

Num texto sobre o que chamou, candidamente, de “polêmica”, publicado on line na noite do dia 20 e na edição impressa do dia seguinte, o jornal trazia as “explicações” do editor executivo, Sérgio Dávila, e do diretor do Datafolha, Alessandro Janoni. “O resultado da questão sobre a dupla renúncia de Dilma e Temer não nos pareceu especialmente noticioso, por praticamente repetir a tendência de pesquisa anterior e pela mudança no atual cenário político, em que essa possibilidade não é mais levada em conta”, disse Dávila.

Se essa possibilidade não é mais levada em conta, por que incluí-la numa pesquisa?

Sobre a óbvia manipulação da pergunta original feita pelo Datafolha, que provocou o resultado falseador de apoio majoritário à permanência de Temer, nenhuma palavra. Já a exclusão de algumas questões do relatório da pesquisa obedeceriam, como é praxe, a critérios editoriais. Foi o que Dávila reiterou, afirmando que “é prerrogativa da Redação escolher o que acha jornalisticamente mais relevante no momento em que decide publicar a pesquisa”.

Curioso critério, entretanto. Pois é evidente que a publicação do percentual verdadeiro sobre os defensores de novas eleições simplesmente derrubava a tese que o jornal pretendeu impor: tratava-se da ligeira diferença entre 3% e 62%.

Já Alessandro Janoni conseguiu produzir uma afirmação espantosa: “Não há erro, e tanto a Folha quanto o Datafolha agiram com transparência”.

Notável “transparência”, que omite informações essenciais no próprio relatório de pesquisa. Quanto à ausência de erro, não há dúvida: o que houve foi mesmo uma fraude. Uma fraude escandalosa, indiscutível, indesculpável.

A falta de constrangimento diante das evidências, o despudor em mentir descaradamente, é algo assustador.

Finalmente, a matéria informava o link de acesso para a íntegra do levantamento, mas nessa “íntegra” ainda havia um buraco entre a pergunta 14 e a 21.

Em suma, uma mentira atrás da outra.

No mesmo dia, O Globo saía em defesa de seu concorrente-parceiro, com o mesmo eufemismo sobre a “polêmica” provocada pela pesquisa, tentando já no subtítulo desqualificar as críticas, atribuídas a “blogs pró-Dilma”. (Que o Intercept seja incluído nessa classificação talvez seja mais um dos surpreendentes critérios adotados por nossa imprensa, sempre tão criativa).

Já o El País, embora também falasse em “controvérsia” e em informações apresentadas “de maneira imprecisa” – e não na evidente fraude –, puxava para o título a informação correta: “62% apoiam novas eleições, diz dado que Datafolha publica agora”.

 

O efeito multiplicador e a normalização do golpe

 

A primeira reportagem do Intercept demonstrava bem a gravidade do que ocorreu. “Não se pode subestimar o impacto dessa pesquisa. É a única pesquisa de um instituto com credibilidade a ser publicada em meses. Sua publicação se deu exatamente antes da votação final do impeachment no Senado. E contém a extraordinária alegação de que metade do país deseja que o Michel Temer permaneça na presidência até 2018: uma manchete tão sensacionalista quanto falsa”. Os repórteres apontavam o efeito multiplicador daquela “notícia”, reproduzida, como seria esperado, em outros jornais e sites jornalísticos – sem contar os programas televisivos, como o Fantástico.

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Restaria assinalar que o que não pareceu “jornalisticamente relevante” aos olhos do editor executivo da Folha é nada menos do que decisivo na tentativa de reverter o impeachment: como lembrou o El País em reportagem anterior, a adesão popular à tese da convocação de novas eleições é uma das últimas possibilidades para a presidente afastada tentar obter os votos que lhe faltam no Senado.

 

A “normalização” do golpe

 

Não é difícil concluir que a fraude agora desmontada foi mais um passo – no caso, especialmente arriscado – na tentativa sistemática que a mídia comprometida com o golpe vem fazendo para dar o impeachment como fato consumado. Seja escondendo notícias favoráveis a Dilma – os “critérios jornalísticos” dos principais jornais do país não viram motivo para manchete, nem mesmo para chamada de primeira página, na decisão do MPF de arquivar o processo criminal sobre as “pedaladas fiscais”, que estão na base do pedido de impeachment –, seja promovendo a “agenda positiva” do governo interino. No dia 20 de julho, por exemplo, o colunista Elio Gaspari se derramava em elogios: “Com serenidade, Temer conseguiu estabilizar seu governo”. A própria manchete da Folha na reportagem fraudada, sublinhando o “otimismo” com a economia, é outro exemplo.

Nossa imprensa tem um longo histórico de deturpações escandalosas, no qual a famosa edição do debate entre Lula e Collor, pelo Jornal Nacional, no segundo turno das eleições de 1989, ocupa lugar de destaque. A Folha, que chegou a ser o “jornal das Diretas”, em 2009 virou o jornal da “ditabranda” e da ficha falsa da Dilma – o documento atribuído ao DOPS foi imediatamente contestado e se revelou uma montagem, mas o jornal insistiu numa esfarrapada justificativa para o suposto “erro”. Já então insinuava o discurso sinuoso incompatível com uma publicação que se preze: “a autenticidade [da ficha] não pode ser assegurada – bem como não pode ser descartada”. Nos últimos anos, a guinada à direita se radicalizou, culminando com a contratação de um adolescente político líder de um movimento golpista para escrever uma coluna semanal – ainda que “só no site”, como se isso fosse atenuante.

Se tivéssemos uma legislação que regulasse o exercício do jornalismo, provavelmente estaríamos em boas condições de contestar judicialmente essa monstruosa fraude cometida pela Folha. De qualquer forma, o desmascaramento dessa manipulação escandalosa abala diretamente tanto o jornal quanto seu instituto de pesquisa, naquilo que, para ambos, é um valor fundamental: a credibilidade.

É assim que uma publicação outrora referencial trilha o caminho de uma vergonhosa decadência.

[leia também: A fraude da Folha, a ombudsman e a objetividade da crítica]

 

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