Na crise da democracia, devemos ir aos clássicos. Aristóteles dizia que o homem é um ser sociável por natureza. É um politikon zoom, animal político. Ou isso, ou somos deuses. Ou somos bestas.
Por isso, foi enfático: a política é uma ciência estritamente humana, não é assunto nem de bestas nem de deuses.
Também Aristóteles dizia que, por ser um animal político, o ser humano busca parceiro(a) para se unir e formar família, grupos e assim vai.
Talvez hoje em dia o homem (ou mulher) busca parceiros de WhatsApp para formar neocavernas. É o novo "homowhatszapiens".
Acima dos grupos humanos estão os grupos de WhatsApp. Viva. E o TikTok, é claro.
Platão, professor de Aristóteles, talvez tenha sido o primeiro a criticar as bestas, os néscios. Contra esses, formulou a Alegoria da Caverna.
As sombras são sombras, denunciava. Mas de nada adiantava. O rei filósofo foi apedrejado ao dizer que as sombras não eram a realidade.
Hoje em dia já não há fatos. Há apenas narrativas. Mas, como vimos, isso é coisa velha. E, pior, sempre cabe qualquer narrativa. Eis o novo mundo. Vasto mundo. Que, assim, pode, sim, ser chamado de Raimundo, para desdizer o poema de Drummond.
Hoje já é possível dar às palavras o sentido que se quer, dando razão ao personagem Humpty Dumpty, de Alice Através do Espelho, de Lewis Carroll.
Como exercitar a democracia nestes tempos em que já não há fatos? Eis a pergunta de 2.500 anos de filosofia. E de política.
Pergunta-se: do modo como se apresentam, hoje, as redes sociais são compatíveis com a democracia?
As redes, com seus algoritmos e quejandos, criam seus próprios critérios de verificação. É esse o ponto. Daí a incompatibilidade com a democracia.
A democracia moderna é uma questão de linguagem pública. Há critérios para se dizer as coisas — e esses critérios são públicos, construídos intersubjetivamente.
Por isso não surpreende os "outsiders". Outsider é quem vem de fora do jogo de linguagem da política. As redes facilitam isso. Por quê? Ora, exatamente porque criam seus próprios critérios de verdade.
O que é uma república? A resposta é polis. É res pública. Coisa pública. Política. Coisa essencialmente pública. Porém, quando o meio de se fazer política passa a ser as redes, privatiza-se os critérios de verificação. Desaparece a mediação.
Daí passam a valer todos os paradoxos e paroxismos: gente contra a corrupção que tem orgulho de sonegar. Médico a favor de cloroquina. Médicos que possuem autonomia absoluta para receitar cloroquina; mas canabidiol, não. Pastores e evangelizadores que apoiam tortura, misturam o que é de Deus e o que é de César para prosperar (anti)politicamente com base na fé alheia. Fracassamos? A pergunta é retórica.
As redes permitem isso, porque, assumindo o já paradoxal papel de meio — porque não há mediação —, substituem a política, pública e tradicional, por um simulacro em que os critérios são ad hoc.
A mentira como critério da verdade.
A política foi degenerada — pelos tais outsiders — e, fundamentalmente, "evangelizada": pastores da fé e da carteira alheia, "padres" de festa junina — os outsiders de um Estado que é laico.
A esperança? Recuperar o politikon zoom. O animal político. E não as bestas "políticas".
Afinal, fatos existem, por mais que as narrativas queiram se impor. E, sim, as sombras eram mesmo sombras.
Às vezes, o padre é mesmo só de festa junina. E o que é de Deus não é de César.
A política é pública. Como disse Aristóteles, a política não é assunto nem de bestas nem de deuses.
Logo, como os tais "outsiders" e os protagonistas — que misturam religião e sua (anti)política — à toda evidência não são deuses, resta-lhes a segunda hipótese, segundo o velho Aristóteles: bestas.
A metáfora proposta pela Alegoria da Caverna pode ser interpretada da seguinte maneira:
Os prisioneiros: os prisioneiros da caverna são os homens comuns, ou seja, somos nós mesmos, que vivemos em nosso mundo limitado, presos em nossas crenças costumeiras.
A caverna: a caverna é o nosso corpo e os nossos sentidos, fonte de um conhecimento que, segundo Platão, é errôneo e enganoso.
As sombras na parede e os ecos na caverna: sombras e ecos nunca são projetados exatamente do modo como os objetos que os ocasionam são. As sombras são distorções das imagens e os ecos são distorções sonoras. Por isso, esses elementos simbolizam as opiniões erradas e o conhecimento preconceituoso do senso comum que julgamos ser verdadeiro.
A saídadacaverna: sair da caverna significa buscar o conhecimento verdadeiro.
A luzsolar: a luz, que ofusca a visão do prisioneiro liberto e o coloca em uma situação de desconforto, é o conhecimento verdadeiro, a razão e a filosofia.
A vitória de Bolsonaro levaria avante seu projeto de desmontagem das instituições de forma abertamente autoritária e ameaçadora de um golpe de Estado
O atual presidente apresenta traços desvairados e tem feito constantes ameaças à normalidade democrática, caso venha perder as eleições. No primeiro turno em 2 de outubro recebeu 43,44% dos votos enquanto o ex-presidente Lula levou 48,5% dos votos. Há grande expectativa que Lula venha a ganhar a eleição, pois a superioridade sobre Jair Bolsonaro é notável.
Lula tem recebido o apoio de quase todos os partidos até dos mais distantes. Pois, perceberam que a democracia está em jogo e também o destino histórico de nosso país. A vitória de Jair Bolsonaro levaria avante seu projeto de desmontagem das instituições de forma abertamente autoritária e ameaçadora de um golpe de Estado.
Precisamos tentar entender por que irrompeu esta onda de ódio, de mentiras como método de governo,fake news, calúnias e corrupção governamental impedida de ser investigada. Vieram-me à mente um artigo que publiquei tempos atrás e que aqui reformulo.
Duas categorias parecem esclarecedoras: uma da psicanálise junguiana, a dasombrae outra da grande tradição oriental do budismo e afins e entre nós, do espiritismo, okarma.
A categoria desombra, presente em cada pessoa ou coletividade, é constituída por aqueles elementos negativos que nos custa aceitar, que procuramos esquecer ou mesmo recalcar, enviando-os ao inconsciente seja pessoal seja coletivo.
Efetivamente, cinco grandessombrasmarcam a história político-social de nosso país.
A primeira é o genocídio indígena, persistente até hoje, pois, suas reservas estão sendo invadidas e durante a pandemia foram praticamente abandonados pelas autoridades atuais. A segunda é a colonização que nos impediu que ter um projeto próprio, de um povo livre, mas, ao contrário, sempre dependente de poderes estrangeiros de outrora e de hoje. Criou a síndrome do “vira-lata”.
A terceira é o escravagismo, uma de nossas vergonhas nacionais, pois, implicava tratar a pessoa escravizada como coisa, “peça”, posta no mercado para ser comprada e vendida e submetida constantemente à chibata, ao desprezo e ao ódio.
A quarta é permanência da conciliação entre si, dos representantes das classes dominantes, seja herdeiras da Casa Grande ou do industrialismo especialmente a partir de São Paulo, denominadas por Jessé Souza de “elites do atraso”. São profundamente egoístas a ponto de Noam Chomsky ter afirmado: “O Brasil é uma espécie de caso especial, pois, raramente vi um país onde elementos da elite tenham tanto desprezo e ódio pelos pobres e pelo povo trabalhador”. Estes nunca pensaram num projeto nacional que incluísse o povo, projeto somente deles e para eles, capazes de controlar o estado, ocupar seus aparelhos e ganhar propinas e fortunas nos projetos estatais.
A quinta sombra represeta a democracia de baixa intensidade entrecordada por golpes de Estado mas que sempre se refaz sem, entretanto, mudar de natureza. Perdura até hoje e atualmente mostra grande debilidade pelo grau dos representantes de direita ou extrema direita, com suas maracutaias como o orçamento secreto. Medida pelo respeito à constituição, pelos direitos humanos pessoais e sociais, pela justiça social e pelo nível de participação popular, comparece antes como uma contradição de si mesmo do que, realmente, uma democracia consolidada.
Sempre que algum líder político com ideias reformistas, vindo do andar de baixo, da senzala social, apresenta um projeto mais amplo que abrange o povo com políticas sociais inclusivas, estas forças de conciliação, com seu braço ideológico, os grandes meios de comunicação, como jornais, rádios e canais de televisão, associados a parlamentares e a setores importantes do judiciário, usaram o recurso do golpe seja militar (1964), seja jurídico-político-mediático (2016) para garantir seus privilégios.
O desprezo e o ódio, outrora dirigido aos escravizados, foi transferido covardemente aos pobres e miseráveis, condenados a viver sempre na exclusão.Estas sombras pairam sobre a atmosfera social de nosso país. É sempre ideologicamente escondida, negada e recalcada.
Com o atual presidente e com o séquito de seus seguidores, o que era oculto e recalcado saiu do armário. Sempre estava lá, recolhido, mas atuante, impedindo que nossa sociedade, dominada pela elite do atraso, fizesse as transformações necessárias e continuasse com uma característica conservadora e, em alguns campos, como nos costumes, até reacionária e por isso de fácil manipulação política. Dentro da alma de uma porção de brasileiros há um pequeno “bolsonaro” reacionário e odiento. O Jair Bolsonaro histórico deu corpo a esse “bolsonaro” escondido. O mesmo aconteceu com o “Hitler” escondido dentro de uma porção do povo alemão.
As cinco sombras referidas foram agravadas atualmente pela aquisição incentivada de armas na população, pela magnificação da violência até da tortura, pelo racismo cultural, pela misoginia, pelo ódio aos de outra opção sexual, pelo desprezo aos afrodescendentes, aos indígenas, aos quilombolas e aos pobres em geral. É de estranhar que muitos, até pessoas sensatas, inclusive acadêmicos e gente da classe média, possam seguir uma figura tão destemperada, deseducada e sem qualquer empatia pelos sofredores que perderam entes queridos pelo Covid-19.
Essa é uma explicação, certamente, não exaustiva, através da categoria dasombra que subjaz às várias crises político-sociais.
A outra categoria é a dokarma.Para conferir-lhe algum grau analítico e não apenas hermenêutico (esclarecedor da vida), valho-me de um longo diálogo entre o grande historiador inglês Arnold Toynbee e Daisaku Ikeda, eminente filósofo japonês, recolhido no livroElige la vida(Emecé). Okarmaé um termo sânscrito originalmente significandoforça e movimento, concentrado na palavra “ação” que provocava sua correspondente “re-ação”. Aplica-se aos indivíduos e também às coletividades.
Cada pessoa é marcada pelas ações que praticou em vida. Essa ação não se restringe à pessoa, mas conota todo o ambiente. Trata-se de uma espécie de conta-corrente ética cujo saldo está em constante mutação consoante as ações boas ou más que são feitas, vale dizer, os “débitos e os créditos”. Mesmo depois da morte, a pessoa, na crença budista e espírita carrega esta conta; por isso se reencarna para que, por vários renascimentos, possa zerar a conta negativa e entrar no nirvana ou no céu.
Para Arnold Toybee não se precisa recorrer à hipótese dos muitos renascimentos porque a rede de vínculos garante a continuidade do destino de um povo. As realidades kármicas impregnam as instituições, as paisagens, configuram as pessoas e marcam o estilo singular de um povo. Esta força kármica atua na história, marcando os fatos benéficos ou maléficos, coisa já vista por C.G.Jung em suas análises psico-sócio-históricas.
Arnold Toynbee em sua grande obra em dez volumesUm estudo da história[A Study of History] trabalha a chave desafio-resposta (challange – response) e vê sentido na categoria dokarma.Mas dá-lhe outra versão que me parece esclarecedora e nos ajuda entender um pouco as sombras nacionais, especialmente, da extrema direita brasileira e até internacional, sempre ligando-se à religião de versão moralista e fundamentalista que facilmente chega ao coração do povo, normalmente, religioso.
A história é feita de redes relacionais dentro das quais está inserida cada pessoa, ligada com as que a precederam e com as presentes. Há um funcionamento kármico na história de um povo e de suas instituições consoante os níveis de bondade e justiça ou de maldade e injustiça que produziram ao largo do tempo. Este seria uma espécie de campo mórfico que permaneceria impregnando tudo.
Tanto Arnold Toynbee quanto Daisaku Ikeda concordam nisso: “a sociedade moderna (nós incluídos) só pode ser curada de sua carga kármica, acrescentaríamos, de sua sombra, através de uma revolução espiritual e social começando no coração e na mente, na linha da justiça compensatória, de políticas sanadoras e instituições justas.
Entretanto, elas sozinhas não são suficientes e não desfarão as sombras e o karma negativo. Faz-se mister o amor, a solidariedade a compaixão e uma profunda humanidade para com as vítimas. O amor será o motor mais eficaz porque ele, no fundo, afirmam Arnold Toynbee e Daisaku Ikeda “é a última realidade”. Algo semelhante diz James Watson, um dos descodificadores do código genético: o amor está em nosso DNA.
Uma sociedade, perpassada pelo ódio e pela mentira como em Jair Bolsonaro e em seus seguidores, alguns fanatizados, é incapaz de desconstruir uma história tão marcada pelas sombras e pelo karma negativo como a nossa. Não se trata um veneno com mais veneno ainda. Isso vale especificamente pelos modos rudes, ofensivos e mentirosos do atual presidente e de seus ministros.
Só a dimensão de luz e o karma do bem livram e redimem a sociedade da força das sombras tenebrosas e dos efeitos kármicos do mal como os grandes sábios da humanidade como o Dalai Lama e os dois Franciscos, o de Assis e o de Roma o testemunham.
Se não derrotarmos eleitoralmente atual presidente neste segundo turno a realizar-se no dia 30 de outubro, o país se moverá de crise em crise, criando uma corrente de sombras e karmas destrutivos, comprometendo o futuro de todos. Mas a luz e a energia do positivo sempre se mostraram historicamente mais poderosas que as sombras e o karma negativo.
Estamos seguros de que serão elas que garantirão, assim esperamos, a vitória de Lula que não guarda rancor nem ódio no coração, mas se move pela amorosidade e pela política do cuidado do povo, especialmente dos empobrecidos e de suas necessidades.
Desde o começo da pandemia, Bolsonaro fez o que pôde para que os brasileiros acreditassem na cilada da cloroquina e continuassem saindo às ruas, como gado a caminho do matadouro. A aposta foi na imunidade de rebanho. Nada de parar a economia ou planejar a compra de vacinas. Novas provas desse crime surgiram nos últimos dias em vídeos de conteúdo estarrecedor.
Para que o intento criminoso fosse bem sucedido, seria preciso arregimentar um bando de vigaristas que desse credibilidade à fraude do “tratamento precoce”. É exatamente isso que o vídeo publicado pelo site Metrópoles comprova, ao mostrar uma reunião do tal “gabinete paralelo”, que, mais apropriadamente, deveria se chamar “gabinete da morte”.
Na reunião, o virologista Paolo Zanotto fez ressalvas às vacinas, recomendando que Bolsonaro tivesse “cuidado enorme” com elas. Foi dele também a sugestão para que os membros do grupo não fossem expostos à “popularidade”. Deveriam agir à “sombra”. Nessa ocasião, ofertas de vacinas da Pfizer jaziam sem resposta em computadores da Esplanada.
Em outro vídeo que circula em redes sociais, Arthur Weintraub, ex-assessor de Bolsonaro, se vangloria de ter recebido do presidente a missão de formar o gabinete paralelo. Foi assim: “Magrelo, você que é porra louca (…) vai lá e estuda isso daí [ a pandemia]”. Ele conta, ainda, como informava o chefe: “Mando [artigos] no zap”. Outro médico que prestou serviços ao covil do Planalto foi Luciano Azevedo que, segundo Weintraub, tem uma “networking” da hidroxicloroquina, conforme vídeo divulgado nesta Folha.
Arthur Weintraub é um tipo tão reles quanto o irmão mais famoso, Abraham, ex-ministro da Educação. Delirante, disse em rede social que não gosta de usar máscara porque é um “broche do partido comunista”. O “gabinete da morte” reuniu o que há de pior na medicina para conspirar contra o povo brasileiro. Sua atuação configura formação de quadrilha e permite caracterizar com clareza o comando desse genocídio.
Pontífice publica sua terceira encíclica, ‘Todos Irmãos’, uma análise sobre a crise do mundo atual em plena pandemia, de uma perspectiva radicalmente social: “O mercado sozinho não resolve tudo”
No primeiro de oito capítulos, intitulado "As sombras dum mundo fechado", o documento debruça-se sobre as muitas distorções da época contemporânea: a manipulação e a deformação de conceitos como democracia, liberdade, justiça; o egoísmo e a falta de interesse pelo bem comum; a prevalência de uma lógica de mercado baseada no lucro e na cultura do descarte; o desemprego, o racismo, a pobreza; a desigualdade de direitos e as suas aberrações como a escravatura, o tráfico de pessoas, as mulheres subjugadas e depois forçadas a abortar, o tráfico de órgãos (10-24). Estes são problemas globais que requerem ações globais, sublinha o Papa, apontando o dedo também contra uma "cultura de muros" que favorece a proliferação de máfias, alimentadas pelo medo e pela solidão (27-28).
A muitas sombras, porém, a Encíclica responde com um exemplo luminoso, o do bom samaritano, a quem é dedicado o segundo capítulo, "Um estranho no caminho". Nele, o Papa assinala que, numa sociedade doente que vira as costas à dor e é "analfabeta" no cuidado dos mais frágeis e vulneráveis (64-65), somos todos chamados a estar próximos uns dos outros (81), superando preconceitos e interesses pessoais. De fato, todos nós somos corresponsáveis na construção de uma sociedade que saiba incluir, integrar e levantar aqueles que sofrem (77). O amor constrói pontes e nós "somos feitos para o amor" (88), acrescenta o Papa, exortando em particular os cristãos a reconhecerem Cristo no rosto de cada pessoa excluída (85). O princípio da capacidade de amar segundo "uma dimensão universal" (83) é também retomado no terceiro capítulo, "Pensar e gerar um mundo aberto": nele, Francisco exorta cada um de nós a "sair de si mesmo" para encontrar nos outros "um acrescentamento de ser" (88), abrindo-nos ao próximo segundo o dinamismo da caridade que nos faz tender para a "comunhão universal" (95). Afinal – recorda a Encíclica - a estatura espiritual da vida humana é medida pelo amor que nos leva a procurar o melhor para a vida do outro (92-93). O sentido da solidariedade e da fraternidade nasce nas famílias que devem ser protegidas e respeitadas na sua "missão educativa primária e imprescindível" (114).
O Papa se inspirou, em parte, nas desigualdades e falhas do sistema que o período atual ressaltou, explica ele em uma introdução pessoal. “Além das respostas diferentes dadas pelos distintos países, ficou evidente a incapacidade de agir em conjunto. Apesar de estarmos hiperconectados, houve uma fragmentação que tornou mais difícil resolver os problemas que afetam todos nós. […] O mundo avançava implacavelmente para uma economia que, utilizando os avanços tecnológicos, procurava reduzir os ‘custos humanos’, e alguns pretendiam nos fazer acreditar que bastava a liberdade de mercado para que tudo estivesse garantido. Mas o golpe duro e inesperado desta pandemia fora de controle obrigou, à força, a voltar a pensar nos seres humanos, em todos, mais do que no benefício de alguns”, assinala.
O neoliberalismo e as formas de capitalismo menos compassivas voltam a ser alvo de críticas abertas na proposta política detalhada pelo Papa. Assim como a falta de aprendizagem depois da última crise econômica, quando “as atividades financeiras especulativas e da riqueza fictícia” não foram reguladas. “O mercado sozinho não resolve tudo, embora mais uma vez queiram nos fazer acreditar nesse dogma de fé neoliberal. É um pensamento pobre, repetitivo, que propõe sempre as mesmas receitas diante de qualquer desafio que surja”, afirma. “Existem regras econômicas que foram eficazes para o crescimento, mas não para o desenvolvimento humano integral”, insiste Francisco no texto.
A crítica ao sistema econômico atual, que produz “escravos” e “descartes”, é clara, mas sua articulação fica menos nítida quando insiste na crítica à globalização atual ou aborda questões como nacionalismo e populismo. Principalmente um certo tipo de populismo (críticos de Francisco o consideram um dos principais representantes dessa corrente). “Nos últimos anos, a expressão ‘populismo’ ou ‘populista’ invadiu os meios de comunicação e a linguagem em geral. Assim, perde o valor que poderia conter e se transforma em uma das polaridades da sociedade dividida. […] A pretensão de instalar o populismo como chave de leitura da realidade social tem outra fragilidade: ignora a legitimidade da noção de povo.” Esta é uma palavra que o Papa usa de forma recorrente, inclusive para se referir à comunidade de fiéis: “O povo de Deus”.
Francisco considera que a vertente negativa dessa corrente política brota paralelamente aos nacionalismos e soberanismos que percorrem o mundo. Esse nacionalismo que fecha os povos em si mesmos e lembra tempos sombrios. “A história dá sinais de estar retrocedendo. Acendem-se conflitos anacrônicos que eram considerados superados, ressurgem nacionalismos fechados, exasperados, ressentidos e agressivos. Em vários países, uma ideia de unidade do povo e da nação, permeada por diversas ideologias, cria novas formas de egoísmo e de perda do sentido social, mascaradas sob uma suposta defesa dos interesses nacionais.”
A solução, acredita Francisco, também não passa pelo atual sistema de globalização. O Papa faz alusão à expressão “abrir-se para o mundo”, que segundo ele foi sequestrada pela economia e pelas finanças. “Refere-se exclusivamente à abertura para os interesses estrangeiros ou à liberdade das potências econômicas de investir sem obstáculos nem complicações em todos os países. Os conflitos locais e o desinteresse pelo bem comum são instrumentalizados pela economia global para impor um modelo cultural único. Essa cultura unifica o mundo, mas divide as pessoas e as nações”. Uma divisão da qual grandes empresas e nações tiram proveito para negociar individualmente com os países e ter mais força, assinala o texto, em uma referência que aponta potências como os Estados Unidos e suas tentativas por dividir a União Europeia nos últimos anos.
A encíclica aponta até mesmo para os velhos fantasmas políticos do socialismo, como a propriedade privada, que o Papa considera um direito “natural secundário e derivado do princípio do destino universal dos bens criados, que frequentemente [...] se sobrepõe ao que é prioritário”. “Nesta linha, lembro que a tradição cristã nunca reconheceu como absoluto ou intocável o direito à propriedade privada e enfatizou a função social de qualquer forma de propriedade privada. O princípio do uso comum dos bens criados para todos é o primeiro princípio de todo o ordenamento ético-social, é um direito natural, originário e prioritário. Todos os outros direitos sobre os bens necessários para a realização integral das pessoas, incluindo o de propriedade privada e qualquer outro, não devem atrapalhar sua realização, pelo contrário, devem facilitá-la, como afirmava São Paulo VI".
Pontífice publica sua terceira encíclica, ‘Todos Irmãos’, uma análise sobre a crise do mundo atual em plena pandemia, de uma perspectiva radicalmente social: “O mercado sozinho não resolve tudo”
No primeiro de oito capítulos, intitulado "As sombras dum mundo fechado", o documento debruça-se sobre as muitas distorções da época contemporânea: a manipulação e a deformação de conceitos como democracia, liberdade, justiça; o egoísmo e a falta de interesse pelo bem comum; a prevalência de uma lógica de mercado baseada no lucro e na cultura do descarte; o desemprego, o racismo, a pobreza; a desigualdade de direitos e as suas aberrações como a escravatura, o tráfico de pessoas, as mulheres subjugadas e depois forçadas a abortar, o tráfico de órgãos (10-24). Estes são problemas globais que requerem ações globais, sublinha o Papa, apontando o dedo também contra uma "cultura de muros" que favorece a proliferação de máfias, alimentadas pelo medo e pela solidão (27-28).
A muitas sombras, porém, a Encíclica responde com um exemplo luminoso, o do bom samaritano, a quem é dedicado o segundo capítulo, "Um estranho no caminho". Nele, o Papa assinala que, numa sociedade doente que vira as costas à dor e é "analfabeta" no cuidado dos mais frágeis e vulneráveis (64-65), somos todos chamados a estar próximos uns dos outros (81), superando preconceitos e interesses pessoais. De fato, todos nós somos corresponsáveis na construção de uma sociedade que saiba incluir, integrar e levantar aqueles que sofrem (77). O amor constrói pontes e nós "somos feitos para o amor" (88), acrescenta o Papa, exortando em particular os cristãos a reconhecerem Cristo no rosto de cada pessoa excluída (85). O princípio da capacidade de amar segundo "uma dimensão universal" (83) é também retomado no terceiro capítulo, "Pensar e gerar um mundo aberto": nele, Francisco exorta cada um de nós a "sair de si mesmo" para encontrar nos outros "um acrescentamento de ser" (88), abrindo-nos ao próximo segundo o dinamismo da caridade que nos faz tender para a "comunhão universal" (95). Afinal – recorda a Encíclica - a estatura espiritual da vida humana é medida pelo amor que nos leva a procurar o melhor para a vida do outro (92-93). O sentido da solidariedade e da fraternidade nasce nas famílias que devem ser protegidas e respeitadas na sua "missão educativa primária e imprescindível" (114).
O Papa se inspirou, em parte, nas desigualdades e falhas do sistema que o período atual ressaltou, explica ele em uma introdução pessoal. “Além das respostas diferentes dadas pelos distintos países, ficou evidente a incapacidade de agir em conjunto. Apesar de estarmos hiperconectados, houve uma fragmentação que tornou mais difícil resolver os problemas que afetam todos nós. […] O mundo avançava implacavelmente para uma economia que, utilizando os avanços tecnológicos, procurava reduzir os ‘custos humanos’, e alguns pretendiam nos fazer acreditar que bastava a liberdade de mercado para que tudo estivesse garantido. Mas o golpe duro e inesperado desta pandemia fora de controle obrigou, à força, a voltar a pensar nos seres humanos, em todos, mais do que no benefício de alguns”, assinala.
O neoliberalismo e as formas de capitalismo menos compassivas voltam a ser alvo de críticas abertas na proposta política detalhada pelo Papa. Assim como a falta de aprendizagem depois da última crise econômica, quando “as atividades financeiras especulativas e da riqueza fictícia” não foram reguladas. “O mercado sozinho não resolve tudo, embora mais uma vez queiram nos fazer acreditar nesse dogma de fé neoliberal. É um pensamento pobre, repetitivo, que propõe sempre as mesmas receitas diante de qualquer desafio que surja”, afirma. “Existem regras econômicas que foram eficazes para o crescimento, mas não para o desenvolvimento humano integral”, insiste Francisco no texto.
A crítica ao sistema econômico atual, que produz “escravos” e “descartes”, é clara, mas sua articulação fica menos nítida quando insiste na crítica à globalização atual ou aborda questões como nacionalismo e populismo. Principalmente um certo tipo de populismo (críticos de Francisco o consideram um dos principais representantes dessa corrente). “Nos últimos anos, a expressão ‘populismo’ ou ‘populista’ invadiu os meios de comunicação e a linguagem em geral. Assim, perde o valor que poderia conter e se transforma em uma das polaridades da sociedade dividida. […] A pretensão de instalar o populismo como chave de leitura da realidade social tem outra fragilidade: ignora a legitimidade da noção de povo.” Esta é uma palavra que o Papa usa de forma recorrente, inclusive para se referir à comunidade de fiéis: “O povo de Deus”.
Francisco considera que a vertente negativa dessa corrente política brota paralelamente aos nacionalismos e soberanismos que percorrem o mundo. Esse nacionalismo que fecha os povos em si mesmos e lembra tempos sombrios. “A história dá sinais de estar retrocedendo. Acendem-se conflitos anacrônicos que eram considerados superados, ressurgem nacionalismos fechados, exasperados, ressentidos e agressivos. Em vários países, uma ideia de unidade do povo e da nação, permeada por diversas ideologias, cria novas formas de egoísmo e de perda do sentido social, mascaradas sob uma suposta defesa dos interesses nacionais.”
A solução, acredita Francisco, também não passa pelo atual sistema de globalização. O Papa faz alusão à expressão “abrir-se para o mundo”, que segundo ele foi sequestrada pela economia e pelas finanças. “Refere-se exclusivamente à abertura para os interesses estrangeiros ou à liberdade das potências econômicas de investir sem obstáculos nem complicações em todos os países. Os conflitos locais e o desinteresse pelo bem comum são instrumentalizados pela economia global para impor um modelo cultural único. Essa cultura unifica o mundo, mas divide as pessoas e as nações”. Uma divisão da qual grandes empresas e nações tiram proveito para negociar individualmente com os países e ter mais força, assinala o texto, em uma referência que aponta potências como os Estados Unidos e suas tentativas por dividir a União Europeia nos últimos anos.
A encíclica aponta até mesmo para os velhos fantasmas políticos do socialismo, como a propriedade privada, que o Papa considera um direito “natural secundário e derivado do princípio do destino universal dos bens criados, que frequentemente [...] se sobrepõe ao que é prioritário”. “Nesta linha, lembro que a tradição cristã nunca reconheceu como absoluto ou intocável o direito à propriedade privada e enfatizou a função social de qualquer forma de propriedade privada. O princípio do uso comum dos bens criados para todos é o primeiro princípio de todo o ordenamento ético-social, é um direito natural, originário e prioritário. Todos os outros direitos sobre os bens necessários para a realização integral das pessoas, incluindo o de propriedade privada e qualquer outro, não devem atrapalhar sua realização, pelo contrário, devem facilitá-la, como afirmava São Paulo VI".