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O CORRESPONDENTE

Os melhores textos dos jornalistas livres do Brasil. As melhores charges. Compartilhe

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O CORRESPONDENTE

14
Jan22

Biblioteca realiza Exposição sobre Histórias em Quadrinhos em Franca

Talis Andrade

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“Os tipos esquisitos do Gilmar”

 

 

Acontece entre os dias 12 e 31 deste mês, a exposição que comemora o Dia Nacional das Histórias em Quadrinhos, na Biblioteca Municipal “Américo Maciel de Castro Júnior”, instalada no prédio do Colégio Champagnat. A visitação está aberta ao público, com as medidas e cuidados sanitários, de segunda a sexta-feira, durante o expediente comercial, das 8h às 17h.

A mostra “Os tipos esquisitos do Gilmar” conta com obras do cartunista Gilmar Machado Barbosa. Esta é a segunda apresentação do trabalho deste artista na Biblioteca, oferecendo uma nova oportunidade para quem aprecia essa modalidade de arte.

Gilmar, além do seu trabalho para o Jornal Folha de São Paulo, conta com passagens pelo Diário de São Paulo, Você S/A, O Pasquim e Vida Econômica, publicação editada em Portugal. Desde que iniciou sua carreira, em Mauá, venceu inúmeros prêmios de humor. O principal deles é o HQMix como melhor cartunista, em 2002. No ano de 2006, conquistou o prêmio Vladimir Herzog, na categoria Artes.

A exposição tem por objetivo incentivar a reflexão sobre o comportamento humano, através dos quadrinhos, apresentando ao público os personagens criados com o traço leve e único do cartunista Gilmar, vivendo situações típicas do nosso cotidiano como a solidão, a relação a dois, a velhice e a impotência humana.

06
Out20

Papa Francisco critica neoliberalismo e populismo em seu documento mais político

Talis Andrade

O papa Francisco durante o Angelus deste domingo no Vaticano.

 

Pontífice publica sua terceira encíclica, ‘Todos Irmãos’, uma análise sobre a crise do mundo atual em plena pandemia, de uma perspectiva radicalmente social: “O mercado sozinho não resolve tudo”

No primeiro de oito capítulos, intitulado "As sombras dum mundo fechado", o documento debruça-se sobre as muitas distorções da época contemporânea: a manipulação e a deformação de conceitos como democracia, liberdade, justiça; o egoísmo e a falta de interesse pelo bem comum; a prevalência de uma lógica de mercado baseada no lucro e na cultura do descarte; o desemprego, o racismo, a pobreza; a desigualdade de direitos e as suas aberrações como a escravatura, o tráfico de pessoas, as mulheres subjugadas e depois forçadas a abortar, o tráfico de órgãos (10-24). Estes são problemas globais que requerem ações globais, sublinha o Papa, apontando o dedo também contra uma "cultura de muros" que favorece a proliferação de máfias, alimentadas pelo medo e pela solidão (27-28).

A muitas sombras, porém, a Encíclica responde com um exemplo luminoso, o do bom samaritano, a quem é dedicado o segundo capítulo, "Um estranho no caminho". Nele, o Papa assinala que, numa sociedade doente que vira as costas à dor e é "analfabeta" no cuidado dos mais frágeis e vulneráveis (64-65), somos todos chamados a estar próximos uns dos outros (81), superando preconceitos e interesses pessoais. De fato, todos nós somos corresponsáveis na construção de uma sociedade que saiba incluir, integrar e levantar aqueles que sofrem (77). O amor constrói pontes e nós "somos feitos para o amor" (88), acrescenta o Papa, exortando em particular os cristãos a reconhecerem Cristo no rosto de cada pessoa excluída (85). O princípio da capacidade de amar segundo "uma dimensão universal" (83) é também retomado no terceiro capítulo, "Pensar e gerar um mundo aberto": nele, Francisco exorta cada um de nós a "sair de si mesmo" para encontrar nos outros "um acrescentamento de ser" (88), abrindo-nos ao próximo segundo o dinamismo da caridade que nos faz tender para a "comunhão universal" (95). Afinal – recorda a Encíclica - a estatura espiritual da vida humana é medida pelo amor que nos leva a procurar o melhor para a vida do outro (92-93). O sentido da solidariedade e da fraternidade nasce nas famílias que devem ser protegidas e respeitadas na sua "missão educativa primária e imprescindível" (114).

O Papa se inspirou, em parte, nas desigualdades e falhas do sistema que o período atual ressaltou, explica ele em uma introdução pessoal. “Além das respostas diferentes dadas pelos distintos países, ficou evidente a incapacidade de agir em conjunto. Apesar de estarmos hiperconectados, houve uma fragmentação que tornou mais difícil resolver os problemas que afetam todos nós. […] O mundo avançava implacavelmente para uma economia que, utilizando os avanços tecnológicos, procurava reduzir os ‘custos humanos’, e alguns pretendiam nos fazer acreditar que bastava a liberdade de mercado para que tudo estivesse garantido. Mas o golpe duro e inesperado desta pandemia fora de controle obrigou, à força, a voltar a pensar nos seres humanos, em todos, mais do que no benefício de alguns”, assinala.

O neoliberalismo e as formas de capitalismo menos compassivas voltam a ser alvo de críticas abertas na proposta política detalhada pelo Papa. Assim como a falta de aprendizagem depois da última crise econômica, quando “as atividades financeiras especulativas e da riqueza fictícia” não foram reguladas. “O mercado sozinho não resolve tudo, embora mais uma vez queiram nos fazer acreditar nesse dogma de fé neoliberal. É um pensamento pobre, repetitivo, que propõe sempre as mesmas receitas diante de qualquer desafio que surja”, afirma. “Existem regras econômicas que foram eficazes para o crescimento, mas não para o desenvolvimento humano integral”, insiste Francisco no texto.

crítica ao sistema econômico atual, que produz “escravos” e “descartes”, é clara, mas sua articulação fica menos nítida quando insiste na crítica à globalização atual ou aborda questões como nacionalismo e populismo. Principalmente um certo tipo de populismo (críticos de Francisco o consideram um dos principais representantes dessa corrente). “Nos últimos anos, a expressão ‘populismo’ ou ‘populista’ invadiu os meios de comunicação e a linguagem em geral. Assim, perde o valor que poderia conter e se transforma em uma das polaridades da sociedade dividida. […] A pretensão de instalar o populismo como chave de leitura da realidade social tem outra fragilidade: ignora a legitimidade da noção de povo.” Esta é uma palavra que o Papa usa de forma recorrente, inclusive para se referir à comunidade de fiéis: “O povo de Deus”.

Francisco considera que a vertente negativa dessa corrente política brota paralelamente aos nacionalismos e soberanismos que percorrem o mundo. Esse nacionalismo que fecha os povos em si mesmos e lembra tempos sombrios. “A história dá sinais de estar retrocedendo. Acendem-se conflitos anacrônicos que eram considerados superados, ressurgem nacionalismos fechados, exasperados, ressentidos e agressivos. Em vários países, uma ideia de unidade do povo e da nação, permeada por diversas ideologias, cria novas formas de egoísmo e de perda do sentido social, mascaradas sob uma suposta defesa dos interesses nacionais.”

A solução, acredita Francisco, também não passa pelo atual sistema de globalização. O Papa faz alusão à expressão “abrir-se para o mundo”, que segundo ele foi sequestrada pela economia e pelas finanças. “Refere-se exclusivamente à abertura para os interesses estrangeiros ou à liberdade das potências econômicas de investir sem obstáculos nem complicações em todos os países. Os conflitos locais e o desinteresse pelo bem comum são instrumentalizados pela economia global para impor um modelo cultural único. Essa cultura unifica o mundo, mas divide as pessoas e as nações”. Uma divisão da qual grandes empresas e nações tiram proveito para negociar individualmente com os países e ter mais força, assinala o texto, em uma referência que aponta potências como os Estados Unidos e suas tentativas por dividir a União Europeia nos últimos anos.

A encíclica aponta até mesmo para os velhos fantasmas políticos do socialismo, como a propriedade privada, que o Papa considera um direito “natural secundário e derivado do princípio do destino universal dos bens criados, que frequentemente [...] se sobrepõe ao que é prioritário”. “Nesta linha, lembro que a tradição cristã nunca reconheceu como absoluto ou intocável o direito à propriedade privada e enfatizou a função social de qualquer forma de propriedade privada. O princípio do uso comum dos bens criados para todos é o primeiro princípio de todo o ordenamento ético-social, é um direito natural, originário e prioritário. Todos os outros direitos sobre os bens necessários para a realização integral das pessoas, incluindo o de propriedade privada e qualquer outro, não devem atrapalhar sua realização, pelo contrário, devem facilitá-la, como afirmava São Paulo VI".

04
Out20

Papa Francisco critica neoliberalismo e populismo em seu documento mais político

Talis Andrade

O papa Francisco durante o Angelus deste domingo no Vaticano.

 

Pontífice publica sua terceira encíclica, ‘Todos Irmãos’, uma análise sobre a crise do mundo atual em plena pandemia, de uma perspectiva radicalmente social: “O mercado sozinho não resolve tudo”

No primeiro de oito capítulos, intitulado "As sombras dum mundo fechado", o documento debruça-se sobre as muitas distorções da época contemporânea: a manipulação e a deformação de conceitos como democracia, liberdade, justiça; o egoísmo e a falta de interesse pelo bem comum; a prevalência de uma lógica de mercado baseada no lucro e na cultura do descarte; o desemprego, o racismo, a pobreza; a desigualdade de direitos e as suas aberrações como a escravatura, o tráfico de pessoas, as mulheres subjugadas e depois forçadas a abortar, o tráfico de órgãos (10-24). Estes são problemas globais que requerem ações globais, sublinha o Papa, apontando o dedo também contra uma "cultura de muros" que favorece a proliferação de máfias, alimentadas pelo medo e pela solidão (27-28).

A muitas sombras, porém, a Encíclica responde com um exemplo luminoso, o do bom samaritano, a quem é dedicado o segundo capítulo, "Um estranho no caminho". Nele, o Papa assinala que, numa sociedade doente que vira as costas à dor e é "analfabeta" no cuidado dos mais frágeis e vulneráveis (64-65), somos todos chamados a estar próximos uns dos outros (81), superando preconceitos e interesses pessoais. De fato, todos nós somos corresponsáveis na construção de uma sociedade que saiba incluir, integrar e levantar aqueles que sofrem (77). O amor constrói pontes e nós "somos feitos para o amor" (88), acrescenta o Papa, exortando em particular os cristãos a reconhecerem Cristo no rosto de cada pessoa excluída (85). O princípio da capacidade de amar segundo "uma dimensão universal" (83) é também retomado no terceiro capítulo, "Pensar e gerar um mundo aberto": nele, Francisco exorta cada um de nós a "sair de si mesmo" para encontrar nos outros "um acrescentamento de ser" (88), abrindo-nos ao próximo segundo o dinamismo da caridade que nos faz tender para a "comunhão universal" (95). Afinal – recorda a Encíclica - a estatura espiritual da vida humana é medida pelo amor que nos leva a procurar o melhor para a vida do outro (92-93). O sentido da solidariedade e da fraternidade nasce nas famílias que devem ser protegidas e respeitadas na sua "missão educativa primária e imprescindível" (114).

O Papa se inspirou, em parte, nas desigualdades e falhas do sistema que o período atual ressaltou, explica ele em uma introdução pessoal. “Além das respostas diferentes dadas pelos distintos países, ficou evidente a incapacidade de agir em conjunto. Apesar de estarmos hiperconectados, houve uma fragmentação que tornou mais difícil resolver os problemas que afetam todos nós. […] O mundo avançava implacavelmente para uma economia que, utilizando os avanços tecnológicos, procurava reduzir os ‘custos humanos’, e alguns pretendiam nos fazer acreditar que bastava a liberdade de mercado para que tudo estivesse garantido. Mas o golpe duro e inesperado desta pandemia fora de controle obrigou, à força, a voltar a pensar nos seres humanos, em todos, mais do que no benefício de alguns”, assinala.

O neoliberalismo e as formas de capitalismo menos compassivas voltam a ser alvo de críticas abertas na proposta política detalhada pelo Papa. Assim como a falta de aprendizagem depois da última crise econômica, quando “as atividades financeiras especulativas e da riqueza fictícia” não foram reguladas. “O mercado sozinho não resolve tudo, embora mais uma vez queiram nos fazer acreditar nesse dogma de fé neoliberal. É um pensamento pobre, repetitivo, que propõe sempre as mesmas receitas diante de qualquer desafio que surja”, afirma. “Existem regras econômicas que foram eficazes para o crescimento, mas não para o desenvolvimento humano integral”, insiste Francisco no texto.

crítica ao sistema econômico atual, que produz “escravos” e “descartes”, é clara, mas sua articulação fica menos nítida quando insiste na crítica à globalização atual ou aborda questões como nacionalismo e populismo. Principalmente um certo tipo de populismo (críticos de Francisco o consideram um dos principais representantes dessa corrente). “Nos últimos anos, a expressão ‘populismo’ ou ‘populista’ invadiu os meios de comunicação e a linguagem em geral. Assim, perde o valor que poderia conter e se transforma em uma das polaridades da sociedade dividida. […] A pretensão de instalar o populismo como chave de leitura da realidade social tem outra fragilidade: ignora a legitimidade da noção de povo.” Esta é uma palavra que o Papa usa de forma recorrente, inclusive para se referir à comunidade de fiéis: “O povo de Deus”.

Francisco considera que a vertente negativa dessa corrente política brota paralelamente aos nacionalismos e soberanismos que percorrem o mundo. Esse nacionalismo que fecha os povos em si mesmos e lembra tempos sombrios. “A história dá sinais de estar retrocedendo. Acendem-se conflitos anacrônicos que eram considerados superados, ressurgem nacionalismos fechados, exasperados, ressentidos e agressivos. Em vários países, uma ideia de unidade do povo e da nação, permeada por diversas ideologias, cria novas formas de egoísmo e de perda do sentido social, mascaradas sob uma suposta defesa dos interesses nacionais.”

A solução, acredita Francisco, também não passa pelo atual sistema de globalização. O Papa faz alusão à expressão “abrir-se para o mundo”, que segundo ele foi sequestrada pela economia e pelas finanças. “Refere-se exclusivamente à abertura para os interesses estrangeiros ou à liberdade das potências econômicas de investir sem obstáculos nem complicações em todos os países. Os conflitos locais e o desinteresse pelo bem comum são instrumentalizados pela economia global para impor um modelo cultural único. Essa cultura unifica o mundo, mas divide as pessoas e as nações”. Uma divisão da qual grandes empresas e nações tiram proveito para negociar individualmente com os países e ter mais força, assinala o texto, em uma referência que aponta potências como os Estados Unidos e suas tentativas por dividir a União Europeia nos últimos anos.

A encíclica aponta até mesmo para os velhos fantasmas políticos do socialismo, como a propriedade privada, que o Papa considera um direito “natural secundário e derivado do princípio do destino universal dos bens criados, que frequentemente [...] se sobrepõe ao que é prioritário”. “Nesta linha, lembro que a tradição cristã nunca reconheceu como absoluto ou intocável o direito à propriedade privada e enfatizou a função social de qualquer forma de propriedade privada. O princípio do uso comum dos bens criados para todos é o primeiro princípio de todo o ordenamento ético-social, é um direito natural, originário e prioritário. Todos os outros direitos sobre os bens necessários para a realização integral das pessoas, incluindo o de propriedade privada e qualquer outro, não devem atrapalhar sua realização, pelo contrário, devem facilitá-la, como afirmava São Paulo VI".

22
Jun20

Urariano Mota: Felicíssimo Oratório das Águas

Talis Andrade

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A maioria das pessoas o vê apenas como um editor, mas Gustavo Felicíssimo vive e procura viver no mundo material da poesia

 

10
Abr20

Um tempo de grande incerteza. Entrevista com o papa Francisco

Talis Andrade

The Tablet | International Catholic News & Opinion | Graphic ...

Em uma entrevista exclusiva ao The Tablet – a sua primeira para uma publicação britânica – o papa Francisco fala que essa extraordinária Quaresma e Tempo Pascal pode ser um momento de criatividade e conversão para a Igreja, para o mundo e para toda a criação.

Próximo ao final de março, sugeri ao papa Francisco que este poderia ser um bom momento para se dirigir ao mundo da língua inglesa: a pandemia que tanto afetou a Itália e a Espanha estava chegando ao Reino Unido, aos Estados Unidos e à Austrália. Sem compromisso com nada, ele me pediu para que lhe enviasse algumas questões. Eu escolhi seis temas, cada um com uma série de questões que ele poderia responder ou não, conforme ele quisesse. Uma semana depois, recebi o comunicado de que ele escreveu algumas reflexões em resposta às questões.

A entrevista é de Austen Ivereigh, autor da biografia do papa Francisco, intitulada, em português, "O Grande Reformador", publicada por The Tablet, 07-04-2020. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.

A entrevista também é publicada por Commonweal, EUA, e pelo jornal ABC, Espanha.

 

A primeira questão foi sobre como ele estava vivenciando a pandemia e o lockdown, ambos na residência Santa Marta e na administração do Vaticano (“a Cúria”), mais amplamente, tanto na prática quanto na espiritualidade.

Cúria está tentando fazer o seu trabalho, e vive normalmente, se organizando em escalas, para que não estejam todos presentes ao mesmo tempo. Isso tem funcionado bem. Nós estamos aplicando as medidas recomendadas pelas autoridades de saúde. Aqui na residência Santa Marta nós temos duas escalas para as refeições, o que nos ajuda a amenizar o impacto. Todos trabalham em seus escritórios ou salas, usando a tecnologia. Todos estão trabalhando; não há infectados aqui.

Como eu estou vivendo a espiritualidade? Eu estou rezando mais, porque eu sinto que devo. E eu penso no povo. Isso é o que me preocupa: o povo. Pensando no povo , isso me faz bem, isso tira a preocupação de mim. Claro, eu tenho minhas áreas de egoísmo. Nas terças-feiras meu confessor vem, e cuido dessas coisas.

Eu penso nas minhas responsabilidades de agora e o que virá depois. O que será do meu serviço como bispo de Roma, como chefe da Igreja, depois disso? O depois já está começando a ser revelado como trágico e doloroso, é por isso que nós precisamos pensar sobre isso já. O Dicastério para o Serviço do Desenvolvimento Humano Integral vem trabalhando nisso, e está se reunindo comigo.

Minha maior preocupação – ao menos o que vem através da minha oração – é como acompanhar e estar próximo do povo de Deus. É devido a isso o streaming ao vivo da missa às 7h da manhã, celebrada todos os dias, que está sendo apreciado e seguido por muitas pessoas, assim como a benção do dia 27 de março na Praça São Pedro. Por isso, também, que as atividades de caridade da Esmolaria Apostólica atendem aos doentes e aos famintos.

Eu estou vivendo este como um tempo de grande incerteza. Este é o tempo para inventar, para a criatividade.

 

Na segunda questão, eu referenciei uma novela do século XIX, muito querida pelo papa Francisco, a qual ele recentemente mencionou: I Promessi Sposi (Os noivos), de Alessandro Manzoni. A novela centra-se sobre a praga de Milão em 1630. Aqui estão vários personagens clericais: o covarde dom Abbondio, o santo cardeal Borromeo e os frei capuchinhos que servem aos lazarentos, em uma espécie de hospital de campanha, no qual os infectados estão rigorosamente longe dos saudáveis. Sob a luz da novela, como o papa Francisco vê a missão da Igreja no contexto da covid-19?

O cardeal Federico Borromeo realmente é um herói da praga de Milão. Porém, em um dos capítulos, ele saúda a cidade, mas com a janela da carruagem fechada para proteger a si mesmo. Ele não se sai bem com o povo. O povo de Deus precisa do seu pastor próximo a eles, não superprotegendo a si mesmo. O povo de Deus necessita dos seus pastores fazendo autossacrifício, como os Capuchinhos, estando próximos.

criatividade dos cristãos precisa mostrar novos horizontes, abrindo as janelas, abrindo a transcendência em direção a Deus e ao povo e criando novas formas de estar em casa. Não é fácil estar confinado na sua casa. O que me vem à mente é um verso de Eneida em meio à derrota: o conselho é não desistir, mas salvar a si mesmo para os tempos melhores, por isso relembrar o que aconteceu naqueles tempos nos ajudará. Cuidem-se para um futuro que virá. E lembrar no futuro o que aconteceu fará bem a você.

Cuide do agora, pelo bem de amanhã. Sempre criativamente, com uma criatividade simples, capaz de inventar algo novo a cada dia. Dentro de casa, isso não é difícil de descobrir, mas não fuja, não se refugie no escapismo, que neste momento não é útil para você.

 

Minha terceira questão foi sobre políticas governamentais em resposta à crise. Embora a quarentena da população seja um sinal de que alguns governos estão dispostos a sacrificar o bem-estar econômico em benefício das pessoas vulneráveis, sugeri que também estivesse expondo níveis de exclusão considerados normais e aceitáveis até agora.

É verdade que vários governos adotaram medidas exemplares para defender a população com base em prioridades claras. Mas estamos percebendo que todo o nosso pensamento, goste ou não, foi moldado em torno da economia. No mundo das finanças, parecia normal sacrificar [pessoas], praticar uma política da cultura descartável, do começo ao fim da vida. Estou pensando, por exemplo, na seleção pré-natal. Hoje em dia, é muito incomum conhecer pessoas com Síndrome de Down nas ruas; quando o tomógrafo os detecta, eles são descartados. É uma cultura de eutanásia, legal ou secreta, na qual os idosos estão recebendo medicamentos, mas só até certo ponto.

O que vem à mente é a encíclica Humanae Vitae do papa Paulo VI. A grande controvérsia da época era sobre a pílula [contraceptiva], mas o que as pessoas não percebiam era a força profética da encíclica, que previa o neomalthusianismo que estava começando a acontecer em todo o mundo. Paulo VI soou o alarme sobre essa onda de neomalthusianismo. Vemos isso na maneira como as pessoas são selecionadas de acordo com sua utilidade ou produtividade: a cultura do descarte.

Agora mesmo, os sem-teto continuam sem-teto. Uma foto apareceu no outro dia de um estacionamento em Las Vegas, onde eles foram colocados em quarentena. E os hotéis estavam vazios. Mas os sem-teto não podem ir a um hotel. Essa é a cultura do descarte na prática.

 

Fiquei curioso para saber se o Papa viu a crise e a devastação econômica como uma chance de uma conversão ecológica, de reavaliar prioridades e estilos de vida. Perguntei-lhe concretamente se era possível ver no futuro uma economia que – para usar suas palavras – era mais “humana” e menos “líquida”.

Há uma expressão em espanhol: “Deus sempre perdoa, nós perdoamos às vezes, mas a natureza nunca perdoa”. Não respondemos às catástrofes parciais. Quem agora fala dos incêndios na Austrália, ou lembra que há 18 meses um barco poderia atravessar o Polo Norte porque todas as geleiras haviam derretido? Quem fala agora das inundações? Não sei se é a vingança da natureza, mas certamente são as respostas da natureza.

Temos uma memória seletiva. Eu quero me debruçar sobre este ponto. Fiquei impressionado com a comemoração do septuagésimo aniversário do desembarque na Normandia, com a presença de pessoas dos mais altos níveis de cultura e política. Foi uma grande festa. É verdade que marcou o início do fim da ditadura, mas ninguém parecia se lembrar dos 10 mil jovens que permaneceram naquela praia.

Quando fui a Redipuglia, pelo centenário da Primeira Guerra Mundial, vi um belo monumento e nomes em uma pedra, mas foi isso. Eu chorei, pensando na frase de Bento XVinutile strage (“massacre sem sentido”). O mesmo aconteceu comigo em Anzio no Dia de Finados, pensando em todos os soldados norte-americanos enterrados lá, cada um deles com uma família e como qualquer um deles poderia ter sido eu.

Neste momento na Europa, quando começamos a ouvir discursos populistas e testemunhar decisões políticas desse tipo seletivo, é muito fácil lembrar os discursos de Hitler em 1933, que não eram tão diferentes dos discursos de alguns políticos europeus atualmente.

O que vem à mente é outro versículo de Virgílio[forsan et haec olim] meminisse iubavit [“talvez um dia seja bom lembrar dessas coisas”]. Precisamos recuperar nossa memória porque a memória virá em nosso auxílio. Não é a primeira praga da humanidade, as outras tornaram-se meras anedotas. Nós precisamos lembrar de nossas raízes, de nossa tradição repleta de memórias. Nos exercícios espirituais de Santo Inácio, na Primeira Semana, bem como na “Contemplação para alcançar o Amor”, na quarta semana, são completamente lembrados. É uma conversão através da memória.

Essa crise está afetando a todos nós, ricos e pobres, e colocando em foco a hipocrisia. Estou preocupado com a hipocrisia de certas personalidades políticas que falam em enfrentar a crise, no problema da fome no mundo, mas que, entretanto, fabricam armas. Este é um momento para ser convertido a partir desse tipo de hipocrisia funcional. É hora de integridade. Ou somos coerentes com nossas crenças ou perdemos tudo.

Você me pergunta sobre conversão. Toda crise contém perigo e oportunidade: a oportunidade de sair do perigo. Hoje acredito que temos que diminuir nossa taxa de produção e consumo (Laudato Si’, 191) e aprender a entender e contemplar o mundo natural. Precisamos nos reconectar com nosso ambiente real. Esta é a oportunidade de conversão.

Sim, vejo sinais precoces de uma economia menos líquida, mais humana. Mas não vamos perder nossa memória depois que tudo isso tiver passado, não vamos arquivá-la e voltar para onde estávamos. Este é o momento de dar o passo decisivo, de passar do uso e mau uso da natureza para a contemplação. Perdemos a dimensão contemplativa; temos que recuperá-la neste momento.

E por falar em contemplação, gostaria de me debruçar sobre um ponto. Este é o momento de olhar para os pobresJesus diz que sempre teremos os pobres conosco, e é verdade. Eles são uma realidade que não podemos negar. Mas os pobres estão escondidos, porque a pobreza é tímida. Recentemente, em Roma, no meio da quarentena, um policial disse a um homem: “Você não pode estar na rua, vá para casa”. A resposta foi: “Não tenho casa. Eu moro na rua”. Descobrir o enorme número de pessoas que estão à margem... E não as vemos, porque a pobreza é tímida. Eles estão lá, mas nós não os vemos: eles se tornaram parte da paisagem; são coisas.

Santa Teresa de Calcutá os viu e teve a coragem de embarcar em uma jornada de conversão. “Ver os pobres” significa restaurar sua humanidade. Eles não são coisas, não são descartáveis; eles são pessoas. Não podemos nos contentar com uma política de bem-estar como a que temos para animais resgatados. Muitas vezes tratamos os pobres como animais resgatados. Não podemos nos contentar com uma política de bem-estar parcial.

Vou me atrever a oferecer alguns conselhos. Este é o momento de ir ao subterrâneo. Estou pensando no romance curto de Dostoiévski, Memórias do Subsolo. Os funcionários daquele hospital prisional ficaram tão acostumados que tratavam seus pobres presos como coisas. E, vendo a forma como era tratado alguém que acabara de morrer, o que estava na cama ao lado lhes diz: “Basta! Ele também teve uma mãe!”. Precisamos dizer isso a nós mesmos com frequência: aquela pobre pessoa teve uma mãe que o criou com amor. Ao decorrer da vida não sabemos o que acontece. Mas é bom pensar no amor que ele recebeu pela esperança de sua mãe.

Nós desempoderamos os pobres. Não lhes damos o direito de sonhar com suas mães. Eles não sabem o que é carinho; muitos vivem das drogas. E vê-los pode nos ajudar a descobrir a piedade, as "pietás", que apontam para Deus e para o próximo.

Desçamos ao subterrâneo e passemos do mundo hipervirtual e sem carne para o sofrimento da carne dos pobres. Esta é a conversão que temos que passar. E se não começarmos por aí, não haverá conversão.

Hoje estou pensando nos santos que moram ao lado. Eles são heróis: médicos, voluntários, irmãs religiosas, padres, lojistas – todos cumprindo seu dever para que a sociedade possa continuar funcionando. Quantos médicos e enfermeiros morreram! Quantas irmãs religiosas morreram! Todos servindo... O que me vem à mente é algo dito pelo alfaiate, na minha opinião, um dos personagens com maior integridade em Os noivos. Ele diz: “O Senhor não deixa seus milagres pela metade”. Se tomarmos consciência desse milagre dos santos da porta ao lado, se pudermos seguir seus rastros, o milagre terminará bem, para o bem de todos. Deus não deixa as coisas pela metade. Somos nós que fazemos isso.

O que estamos vivendo agora é um lugar de metanoia (conversão), e temos a chance de começar. Então, não vamos deixar escapar isso, e vamos seguir em frente.

 

Minha quinta questão é centrada nos efeitos da crise sobre a Igreja e a necessidade de repensar nossas formas de operar. Ele vê emergir uma Igreja mais missionária, mais criativa, menos preocupada com as instituições, a partir disso? Estamos vendo uma nova forma de “Igreja nas casas”?

Menos apegado às instituições? Eu diria menos apegado a certas maneiras de pensar. Porque a Igreja é instituição. A tentação é sonhar com uma igreja desinstitucionalizada, uma igreja gnóstica sem instituições ou sujeita a instituições fixas, que seria uma igreja pelagiana. Quem faz a Igreja é o Espírito Santo, que não é gnóstico, nem pelagiano. É o Espírito Santo que institucionaliza a Igreja, de uma maneira alternativa e complementar, porque o Espírito Santo provoca desordem através dos carismas, mas daí a desordem cria harmonia.

Uma igreja que é livre não é uma igreja anárquica, porque a liberdade é um presente de Deus. Uma igreja institucional significa uma igreja institucionalizada pelo Espírito Santo.

Uma tensão entre desordem e harmonia: esta é a Igreja que deve sair da crise. Temos que aprender a viver em uma igreja que existe na tensão entre harmonia e desordem provocada pelo Espírito Santo. Se você me perguntar qual livro de teologia pode melhor ajudá-lo a entender isso, seriam os Atos dos Apóstolos. Lá você verá como o Espírito Santo desinstitucionaliza o que não é mais útil e institucionaliza o futuro da Igreja. Essa é a Igreja que precisa sair da crise.

Cerca de uma semana atrás, um bispo italiano, um tanto perturbado, me ligou. Ele andava pelos hospitais querendo dar absolvição àqueles dentro das enfermarias do corredor do hospital. Mas ele conversou com advogados canônicos que lhe disseram que não, que a absolvição só poderia ser dada em contato direto. “O que você acha, padre?”, me perguntou. Eu disse a ele: “Bispo, cumpra seu dever sacerdotal”. E o bispo disse “Grazie, ho capito” (“Obrigado, eu entendi”). Descobri depois que ele estava dando absolvição por todo lugar.

Esta é a liberdade do Espírito no meio de uma crise, não uma Igreja fechada em instituições. Isso não significa que o direito canônico não seja importante: é, ajuda e, por favor, façamos bom uso dele, é para o nosso bem. Mas o cânone final diz que toda a lei canônica é para a salvação das almas, e é isso que abre a porta para sairmos em momentos de dificuldade para trazer o consolo de Deus.

Você me pergunta sobre uma “igreja local”. Temos que responder ao nosso confinamento com toda a nossa criatividade. Podemos ficar deprimidos e alienados – através da mídia que pode nos tirar da realidade – ou podemos ser criativos. Em casa, precisamos de uma criatividade apostólica, uma criatividade despida de tantas coisas inúteis, mas com um desejo de expressar nossa fé na comunidade, como povo de Deus. Então: estar preso, mas ansioso, com aquela memória que anseia e gera esperança – é isso que nos ajudará a escapar de nosso confinamento.

 

Por fim, pergunto ao papa Francisco como está sendo o chamado para viver essa Quaresma e Tempo Pascal extraordinários. Perguntei se ele tinha uma mensagem particular aos idosos que estão sofrendo com o autoisolamento, para os jovens confinados, e para aqueles que encaram a pobreza como resultado da crise.

 

Você fala dos idosos isolados: solidão e distância. Quantos idosos existem cujos filhos não vão visitá-los em tempos normais! Lembro-me de Buenos Aires, quando visitava as casas de idosos, e perguntava: como está sua família? Bem, bem! Eles vêm? Sim, sempre! Então a enfermeira me chamava de lado e dizia que os filhos não os viam há seis meses. Solidão e abandono... distância.

No entanto, os idosos continuam a ser nossas raízes. E eles devem falar com os jovens. Essa tensão entre jovens e idosos deve sempre ser resolvida no encontro entre si. Porque o jovem é broto e folhagem, mas sem raízes, não pode dar frutos. Os idosos são as raízes. Hoje eu diria a eles: sei que sentem que a morte está próxima e têm medo, mas procurem outro lugar, lembrem-se de seus filhos e não parem de sonhar. É isso que Deus pede de vocês: sonhar (Joel 3, 1).

O que eu diria aos jovens? Tenha a coragem de olhar para o futuro e ser profético. Que os sonhos dos velhos correspondam às suas profecias - também Joel 3, 1.

Aqueles que foram empobrecidos pela crise estão hoje desprovidos, são adicionados como mais um número de desprovidos de todos os tempos, homens e mulheres cujo status é “desprovido”. Eles perderam tudo ou vão perder tudo. Que significado a misériatem para mim, à luz do Evangelho? Significa entrar no mundo dos necessitados, entender que quem já teve, não o tem mais. O que eu peço às pessoas é que levem os idosos e os jovens sob suas asas, que levem a história sob suas asas, as pessoas carentes sob suas asas.

O que vem à mente agora é outro verso de Virgílio, no final do Livro 2 da Eneida, quando Eneias, após a derrota em Troia, perdeu tudo. Dois caminhos estão diante dele: permanecer ali para chorar e acabar com sua vida, ou seguir o que estava em seu coração, subir a montanha e deixar a guerra para trás. É um verso bonito: Cessi, et sublato montem genitore petivi (“Dei lugar ao destino e, carregando meu pai nos ombros, fui para a montanha”).

É isso que todos temos que fazer agora, hoje: levar conosco as raízes de nossas tradições e fazer o caminho, subir a montanha.

20
Ago19

População em situação de rua, estudos, dinheiro e amor

Talis Andrade

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Por Luís Henrique Linhares Zouein

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Algumas ideias permeiam a mente do povo brasileiro e ajudam a encher de esperança um recipiente atravessado de furos. O “sonho brasileiro” (quase sempre estadunidense) de trabalhar muito e ficar rico está presente em boa parte das pessoas, mas, estranhamente, só se concretiza para uma parcela mínima da população. Será que os pobres não investiram o suficiente na bolsa de valores? A classe média não se esforçou o bastante para conquistar seu primeiro milhão? Ou então não seguiram as dicas de ouro da visionária da visionária Bettina?[1]

Falar sobre meritocracia, e chance igual para todos os indivíduos de se tornarem ricos, em um país que tem uma das maiores taxas de desigualdade do mundo, se aproxima mais do campo folclórico do que do âmbito argumentativo. O Brasil até pode ser considerado um país “rico”, afinal, somos um dos maiores PIBs do mundo, mas a pergunta que resta é: como é distribuída essa riqueza que produzimos? Será que a riqueza produzida por muitos é expropriada por poucos?

Nesse contexto, insere-se a população em situação de rua. Grupo heterogêneo, mas que têm em comum a condição de pobreza absoluta e a falta de pertencimento à sociedade formal. Com o tempo, algum infortúnio atingiu suas vidas, fazendo com que aos poucos fossem perdendo a perspectiva de projeto de vida, passando a utilizar o espaço da rua como sobrevivência e moradia.

Rompimento de vínculos familiares, desemprego, uso abusivo de substâncias psicoativas, deficiência mental, subemprego, dentre outros tantos, são motivos que levam as pessoas a morarem nas ruas. Isso quando esses múltiplos fatores não se interseccionam.

Dia 19 de agosto, aliás, foi o Dia Nacional de Luta da População em Situação de Rua, uma homenagem às pessoas assassinadas enquanto dormiam na Praça da Sé, em São Paulo, em 2004, fato que ficou conhecido como "massacre da Sé".

Mas o que é, juridicamente, população em situação de rua? O Decreto Federal 7.053/09 nos traz o conceito: “considera-se população em situação de rua o grupo populacional heterogêneo que possui em comum a pobreza extrema, os vínculos familiares interrompidos ou fragilizados e a inexistência de moradia convencional regular, e que utiliza os logradouros públicos e as áreas degradadas como espaço de moradia e de sustento, de forma temporária ou permanente, bem como as unidades de acolhimento para pernoite temporário ou como moradia provisória.”

As razões que contribuem para a situação de rua, como se percebe, não estão apenas relacionadas à ausência de moradia. Portanto, a possibilidade efetiva de saída da rua não se restringe à oferta isolada de “um teto”.

Em que pese este seja o conceito jurídico, para boa parcela da população brasileira, estes indivíduos são ontologicamente “inservíveis”, “inválidos” e, por isso mesmo, “coisificados”, providos de menos dignidade humana (ou, quem sabe, dela desprovidos). O “mercado não mais precisa de sua força de trabalho, único valor de que dispõem para o processo de troca. Como não participam do processo de circulação de mercadorias, simplesmente sobram.”[2]

Assim, é perpetuado na cultura nacional o sentimento de repressão e segregação, ou mesmo de desvalia, das pessoas que vivem nas ruas. Situação essa que tem sido o pano de fundo das mais diversas ações violentas. Fatos viram notícia e, infelizmente, não são isolados: queima de pessoas que estão dormindo, execução sumária, sem falar da violência verbal e simbólica que é produzida e reproduzida diariamente.

O olhar atento sobre a realidade permite concluir que as pessoas que vivem em situação de rua sofrem todas as formas possíveis de violação de seus direitos humanos. O “rapa”, por exemplo, é prática sistemática. Delas são tomados seus itens básicos para sobrevivência, tais como papelões, colchões, cobertores, travesseiros e barracas desmontáveis, o que é ainda mais preocupante nesse período do ano, em que diversas cidades apresentam baixas temperaturas.

Tal ação, assim como outras similares que ocorrem por todo o país, só pode ser adjetivada como higienista. De Política Pública (com “P” maiúsculo) nada tem. Trata-se de uma resposta truculenta, autoritária e desqualificada às demandas por garantias de direitos para uma população que se encontra entre as mais vulneradas em nossa sociedade.

Escrevo aqui da total ausência de condições para a dignidade humana. Do chão duro, frio e úmido. Da fome, do medo e da solidão. Da doença, da sujeira e do fedor.[3]

O álcool e as drogas, que fazem parte da realidade das ruas, não são apenas causas que levam à condição de pessoa em situação de rua, mas também consequência, seja como fuga da realidade, seja como alternativa para minimizar a fome e o frio, numa relação que se retroalimenta em vulnerabilidade.

Assim, antes de avançarmos, calha recordar que toda e qualquer medida adotada e implementada pelo poder público (e mesmo por atores privados), há de observar o marco normativo constitucional, convencional e legal (inclusive e em especial, a “Lei da Reforma Psiquiátrica”) iluminado pelo dever de respeito e proteção da dignidade humana e dos direitos fundamentais.

O problema é que, não obstante a vigência de mais de 18 anos da Lei 10.216, ainda não conseguimos abandonar a cultura manicomial, ideia que é ainda mais difícil de superar quando o quadro clínico do indivíduo relaciona-se à dependência química. Nessa especial situação, há um verdadeiro “rolo compressor manicomial” que, cego para outras possibilidades, não vê alternativas à internação, sobretudo quando reforçado pela condição de pessoa em situação de rua.[4]

Como o populismo manicomial é a resposta fácil que traz rápidos dividendos eleitorais, não faltam autoridades a sustentar uma pretensa necessidade de promover a internação forçada desse grande contingente de seres humanos.

Aquelas autoridades escondem, atrás de seus aparentes gestos de boa vontade, a natureza higienista da internação, que não é utilizada em benefício da saúde dos indivíduos que sofrem dos transtornos mais diversos, pois o grande problema visto pelo populismo manicomial não é o direito à saúde que não chega, mas as ruas da cidade sujas por mulheres e homens indesejáveis que insistem em existir e que, assim, atrapalham o tráfego, praticam delitos e enfeiam a vista de quem anseia por uma cidade linda. Linda para quem?

No entanto, conforme já afirmado (e sim, a afirmativa merece repetição exaustiva), qualquer atendimento em saúde mental deve necessariamente obedecer à Lei 10.216/01, que dispõe sobre a proteção e os direitos da “pessoa com transtorno mental”.

O lugar do “louco”, acertadamente, deixou de ser o manicômio para ser a cidade. O tratamento visará, como finalidade permanente, a reinserção social do paciente em seu meio (art. 4o, §1o). A internação, em qualquer de suas modalidades, só será indicada quando os recursos extra-hospitalares se mostrarem insuficientes (art. 4ocaput). Ou seja, são direitos da pessoa portadora de transtorno mental (art. 2o, parágrafo único) ser tratada em ambiente terapêutico pelos meios menos invasivos possíveis (inciso VIII), preferencialmente, em serviços comunitários de saúde mental (inciso IX). É vedada a internação de pacientes portadores de transtornos mentais em instituições com características asilares (art. 4o, §3o).

Em todo caso, a internação psiquiátrica somente será realizada mediante laudo médico circunstanciado que caracterize os seus motivos (art. 6º). São considerados os seguintes tipos de internação psiquiátrica: I - internação voluntária: aquela que se dá com o consentimento do usuário; II - internação involuntária: aquela que se dá sem o consentimento do usuário e a pedido de terceiro; e III - internação compulsória: aquela determinada pela Justiça.

No ordenamento jurídico brasileiro, a internação compulsória só existe no âmbito penal, como medida de segurança. Diante da regra restritiva do art. 9º da Lei Antimanicomial, não há qualquer base jurídica para a internação compulsória das pessoas que circulam pelas “cracolândias”. Seria juridicamente possível, no máximo, a internação involuntária e, ainda assim, excepcionalmente.

Contudo, no lugar de promover simples formas de cuidado, como a criação de albergues (por óbvio, que devem ser próximos aos grandes centros urbanos ou comerciais), os gestores públicos escolhem dispersar com violência os grupos que se formam tanto como recurso espontâneo de proteção, quanto como encontro e senso de coletividade.

Contudo, o que se quer é transformar o centro da cidade em um local aprazível aos olhos e, quem sabe, comercialmente viável, simplesmente varrendo a questão social para baixo do tapete e, também, valendo-se do discurso medicamentoso-higienista da salvação dos desviados, impondo tratamento compulsório. Tudo isso em nome do “bem”.

O discurso manifesto, comumente, é o de ajuda humanitária, mas esconde os interesses econômicos silenciados, como no caso das “cracolândias”, em que o populismo, as campanhas eleitoreiras, o mercado imobiliário e o “bom-mocismo” é bem mais importante do que a pretensa implementação de qualidade de vida para pessoas que precisam de ajuda de saúde pública (e não de instituições totais). Esse movimento humanitário invoca a necessidade de salvação, suspendendo os limites democráticos. Serve de instrumento alienado da opressão de um modelo de cidade, de “cidadão de bem” que não quer engajar o sujeito, mas excluir mediante tratamento compulsório.[5]

A luta antimanicomial desinstitucionalizadora, com seus novos modelos de cuidado, geração criativa de inclusão social, destituição da figura imaginária do “louco perigoso” e desconstrução do conceito equivocado de doença mental fazem vislumbrar um novo caminho que provocará possibilidades de superação dos rígidos padrões de controle social, para além das camisas de força.[6]

É evidente, por outro lado, a configuração de um dilema de difícil solução jurídica e prática, mas cuja dificuldade e complexidade não pode (em hipótese alguma!)  ser objeto de solução simplista, autoritária, invasiva (para não dizer violenta) ou sequer reduzida às internações (acompanhadas da evicção forçada de grupos de pessoas).[7]

O desafio está em vislumbrar como, em uma sociedade com tantas contradições insuperáveis, criar referenciais positivos para a constituição da identidade valorativa da população que vive em situação de rua, às vezes invisível aos olhos da sociedade formal, às vezes expressão agressiva da contradição social. A Defensoria Pública, em um Estado Social e Democrático, passa a atuar em seu cerne, almejando os parâmetros ressaltados alhures, crismando sua importância e destaque na defesa dos direitos humanos, em especial àqueles relacionados à população à margem dos direitos mais básicos, em situação de extrema vulnerabilidade econômica e social.[8]

A figura do ombudsman, aliás, está relacionada a uma instituição independente, com escopo de proteger a população, principalmente aquela marginalizada, de forma individual ou coletiva, judicial ou extrajudicial, contra os abusos e atos arbitrários do Estado, buscando prevenir e remediar quaisquer atos que violarem seus direitos e garantias fundamentais. Amparada nessas premissas, a Defensoria Pública possui o dever constitucional de atuar na função de ombudsman, com o escopo de tutelar os direitos fundamentais dos hipossuficientes, evitando abusos e ações arbitrárias estatais, recebendo e investigando denúncias, e utilizando-se de todas as espécies de medidas capazes de garantir seus direitos.

A atuação deve ser estratégica, coletiva, social, multidisciplinar e (preferencialmente) extrajudicial. A atividade na função de ombudsman, hodiernamente, é uma das principais funções institucionais para a concretização de seus objetivos, notadamente no que tange à defesa e promoção dos direitos humanos.

A avassaladora onda de retrocessos que assola o país parece vitimar mais do que os direitos expressos nas leis. Denota ter aniquilado o pudor de quem defende a barbárie, tanto do Estado contra as pessoas, quanto de pessoas, os ditos “cidadãos de bem”, contra outras pessoas. Todo governo conservador mobiliza o discurso da “limpeza pública”, da “higienização social” e do “saneamento moral” para atacar populações vulneráveis e consideradas indesejáveis, como pessoas em situação de rua, prostitutas, comunidade LGBTIQ+, negros, favelados e outros.

Enquanto a desigualdade social permanece onipresente e segue se aprofundando, preferimos discutir o golden shower, a (inexistente) doutrinação marxista nas escolas e a cor da roupa para meninos e meninas.

Viver nas ruas quase sempre significa estar em risco. Risco que se transforma em medo cotidiano de ter os pertences roubados, de ser agredido, de ser vítima de violência sexual, de ser alvo de agressões inesperadas vindas de setores preconceituosos da sociedade para com esse público ou mesmo dos órgãos oficiais responsáveis pela segurança (de quem?). Componentes da luta por sobrevivência.

Esses seres humanos, historicamente invisíveis aos olhos da sociedade e do Estado, salvo quando alvos da repressão, precisam de efetivas Políticas Públicas e, para isso, são necessárias três coisas: estudos, dinheiro e amor.

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[1] DE SOUZA, Matheus Silveira. A meritocracia folclórica e a onipresença da desigualdade social. Disponível em: <http://www.justificando.com/2019/03/26/a-meritocracia-folclorica-e-a-onipresenca-da-desigualdade-social>. Acesso em: 19 de agosto de 2019.
[2] COSTA, Ana Paula Motta. População em situação de rua: contextualização e caracterização, p. 3. 
[3] BARBOSA, Nasser Haidar. Política Pública sem amor: fazendo sofrer as pessoas em situação de rua. Disponível em: <http://www.justificando.com/2017/11/21/politica-publica-sem-amor-fazendo-sofrer-as-pessoas-em-situacao-de-rua>. Acesso em: 19 de agosto de 2019.
[4] CAETANO, Haroldo.  A Lei Antimanicomial vale para todo Brasil, inclusive para a Cracolândia. Disponível em: <http://www.justificando.com/2017/05/29/lei-antimanicomial-vale-para-todo-brasil-inclusive-para-cracolandia>. Acesso em: 25 de julho de 2019.[5] DA ROSA, Alexandre Morais. Transformar a cracolândia em um comercial da Doriana funciona?. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2017-jul-01/diario-classe-transformar-cracolandia-comercial-doriana-funciona>. Acesso em: 19 de agosto de 2019.
[6] BRANCO, Thayara Castelo. A Luta Antimanicomial x Sistema de Justiça Criminal. Disponível em: <http://www.justificando.com/2017/05/31/luta-antimanicomial-x-sistema-de-justica-criminal>. Acesso em: 25 de julho de 2019. 
[7] SARLET, Ingo Wolfgang. O caso da cracolândia de São Paulo e a (in?)dignidade da pessoa humana. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2017-jun-16/cracolandia-indignidade-pessoa-humana>. Acesso em: 19 de agosto de 2019.
[8] GOMES, Marcos Vinicius Manso Lopes. A função ombudsman da Defensoria Pública na cracolândia. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2017-jun-06/tribuna-defensoria-funcao-ombudsman-defensoria-publica-cracolandia>. Acesso em: 19 de agosto de 2019.

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20
Mai19

Bolsonaro encheu-se do vazio

Talis Andrade

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por Fernando Brito

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Poucas vezes na história um presidente foi eleito com tantas possibilidades políticas como as que se abriram para Jair Bolsonaro.

A maioria eleitoral foi expressiva, os grandes partidos – em geral – aniquilados, o seu próprio partido, neófito, podendo ser moldado à sua imagem e semelhança e o país, arruinado pelos anos de crise, ansioso por medidas econômicas que, ainda que duras, pudessem restabelecer um mínimo de dinamismo para a vida brasileira.

O presidente tomou posse e, em menos de cinco meses, malbaratou este potencial político. Está reduzido a nada e vai, esta semana, submeter-se à vergonha de implorar para manter seu “enxugamento” do  Ministério, para que não se recriem cargos que, paradoxalmente, ninguém com importância política quer.

Reage com a ameaça de sublevação de suas falanges, na qual ninguém – nem os seus – acredita e todos fogem, apelando por pedidos de moderação impossíveis, dada a naturezsa de odio e fascismo em que estão mergulhados seus remanescentes bolsões.

Até seu “Posto Ipiranga” e seu “Lava Jato” se apavoram com o estado de “boneco de posto” a que chegou o presidente, como capta hoje, na Folha, num resumo impiedoso, o cartunista João Montanaro.

Jair Bolsonaro decaiu de esperança de mudança para a insignificância e, agora, vai atravessando a solitária estrada que leva à rejeiçao e à repulsa populares.

Com seu espalhafato oco, não conseguiu atrair ninguém, muito embora Congresso, Justiça, militares e sociedade estivessem num estado de excitação autoritária em que talvez jamais tenham estado nas últimas décadas.

Agita-se, empurrado pelo vento das redes sociais, mas só consegue afigurar-se patético, desesperado, inacreditável.

Deixaram-no só.

25
Mar18

UMA LADAINHA de Celso Marconi Lins

Talis Andrade

 

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Minha vontade é escrever uma poesia
Infelizmente não sei como ou então
Graças a Deus não sei fazer isso
Vou então tentar me penitenciar de
Ter tanta vontade de buscar alguma
Coisa que sempre não deveria
Os budistas já me ensinaram como
Desprezar os mais simples desejos
Pois sempre eles nos levam ao desespero
Se eu não tenho essa coisa imemorial
Que é desejar como posso dizer sim é isso
Que ainda estou vivo com o corpo morto
Dizem que o mundo está ocupado por 7 bilhões
E por que eu me pergunto por que estou só
Claro que não é o universo é só esse pequeno mundo
E a verdadeira razão de viver não é a multidão
Certamente que só um detalhe dessa vida toda
Você vai e de repente se fecha numa sala escurecida
Como são belas as mulheres não só as jovens e velhas
E assim se eu não fosse medroso eu seria radical
Pensaria com a profundidade de um Heráclito
E não ficaria me angustiando todo dia a dia
A salvação as vezes fico pensando será quando
Você poderá sumir e mais que de repente voltar
Para ser você mesmo e continuar seu triste caminho
Pois sim vivamos mesmo que o gozo seja diminuído
Glória à Nossa Senhora da Conceição
E tudo dito pela boca suja de um ateu marxista

 

Olinda 2018-03-24

21
Jan18

Reino Unido cria secretaria de Estado contra “epidemia” de solidão

Talis Andrade

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A solidão no Reino Unido é uma questão de Estado. Este mal, que afeta nove milhões de britânicos, segundo um estudo recente, terá sua própria Secretaria no Governo. E Tracey Crouch, deputada conservadora de 42 anos, será a secretária de Estado para a solidão. A primeira ministra,Theresa May, anunciou nesta quarta-feira, dia 17 de janeiro, a nomeação de Crouch, que estará à frente de um departamento com responsabilidade pelas políticas relacionadas à solidão.

“Para muita gente, a solidão é a triste realidade da vida moderna”, disse May. “Quero confrontar esse desafio de nossa sociedade e que todos nós comecemos a agir para abordar a solidão de que sofrem os mais velhos, os cuidadores, aqueles que perderam seus entes queridos, pessoas que não têm ninguém com quem conversar ou compartilhar seus pensamentos e experiências.”

 

O relatório conclui que a solidão costuma estar associada a doenças cardiovasculares, demência, depressão e ansiedade, e pode ser tão prejudicial para a saúde quanto fumar 15 cigarros por dia. Cerca 200.000 pessoas idosas no Reino Unido não tiveram uma conversa com um amigo ou familiar em mais de um mês. O Governo sozinho, adverte o relatório, não pode resolver um problema que exige uma “ação coordenada”. “Os empregadores, as empresas, as organizações da sociedade civil, as famílias, as comunidades e os indivíduos têm um papel a desempenhar”, acrescenta. Leia mais

 

 

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