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O CORRESPONDENTE

Os melhores textos dos jornalistas livres do Brasil. As melhores charges. Compartilhe

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O CORRESPONDENTE

10
Mar23

Canção para Soledad Barrett

Talis Andrade
Soledad Barret - lustração: Ral

 

Se remorso houver em relação a Soledad, e a todos os socialistas que a tortura destruiu, se remorso houvesse, ele deveria perseguir o Cabo Anselmo.

 

Para o Dia Internacional das Mulheres, recupero algumas páginas do romance “A mais longa duração da juventude”. Nele está uma tentativa musical para a guerreira Soledad Barrett Viedma. Mas bem sei que este compositor é precário, então lhe deem por favor o perdão de ter escolhido tão alta musa.

“Nestes dias, obedecendo a impulso incontrolável, tentei compor esta canção para Soledad Barrett:

‘Quando te vi pela primeira vez, Soledad
Me deu vontade de cantar.
Lá no Pátio de São Pedro
Correu um fogo em meu coração
Que me dizia
Haveria incêndio se eu tocasse as tuas mãos.

Mas em 1973, Sol, o amor era uma alienação.
E a canção que não vinha me torturava assim:
‘Como posso tocar a sua alma? Como posso tê-la junto a mim?’

Em 73, no calor dos teus olhos, Soledad,
havia um fogo irresistível para todos
Não sei se era uma alucinação
Pois sentia o perfume dos jasmins,
Como se as pétalas do teu corpo
batessem num feitiço em cima de mim

Os beija-flores, mais educados que os amantes,
sabem que podem tocar a intimidade da flor
e por isso são felizes.
Diferente de ti, Soledad, que eras flor vermelha
e não recebeste o carinho de acender a centelha.

Por isso minha lembrança evitou a dor da tua morte,
Por isso pude ouvir o canto da criança guarani:
‘Filha do paraíso azul / entra para mim’.

Ainda ontem, em um ato público, ao gritarem o teu nome, Soledad,
a minha voz ao responder ‘presente’ fraquejou,
como se fraqueja diante de quem se ama
pois o teu nome em meu coração não cessou

As santas do Paraguai carregam o filho nos braços
e a aos pés delas têm anjos,
até lua em quarto minguante.
Mas um feto nos pés e sangue na fogueira
Somente Soledad, a guerreira

Por isso estás presente hoje nas cordas do violão
E para a tua nova vida eu fiz esta canção’.

Perdoem o lugar-comum da rima e o quanto fui tosco. Talvez importe mais o não-dito, que desejou apenas dizer ‘a voz fraqueja porque a tua presença não terminou em meu coração’. Não é nem ‘continuou’, porque a pessoa agora é melhor compreendida, e nesse entendimento o nosso afeto cresce. É próprio do homem crescer com humanos. Por que ela acorda e nos acorda dessa maneira? Toda a gente, quando simplifica histórias de terror, pensa que um remorso persegue o criminoso. Mas não é assim que a realidade nos toca. Se remorso houver em relação a Soledad, e a todos os socialistas que a tortura destruiu, se remorso houvesse, ele deveria perseguir o Cabo Anselmo. Mas esse anda, gargalha, palita os dentes e chega a reclamar dinheiro da Anistia, porque afinal teria sido perseguido pela ditadura. Dizer o quê diante do cinismo endurecido? Não, a ele o remorso não fere.’“Você dorme bem?’, um repórter lhe perguntou. ‘Putz, tranquilamente’. E o repórter: ‘Você dorme tranquilo?! Nunca sentiu pesadelo durante a noite? Não tem remorso pelo que fez?’. E Anselmo: ‘Absolutamente. Não tenho’. E riu. Se o remorso persegue uma pessoa, talvez atinja as que nada fizeram, ou calaram depois do massacre de militantes contra a ditadura no Recife. Mas a esses mesmos, penso, o remorso ainda não fere. Loucas e tortuosas são as voltas da consciência. Ela é esperta e só quer a sobrevivência confortável. Não, a essa gente a verdade ainda é vedada.

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Cabo Anselmo 

 

Então, como volta a pessoa que foi separada de modo brutal da vida? É como se não a procurássemos, é como se delas até quiséssemos fugir, mas de repente, por caminhos imprevisíveis, ela retorna. Penso e creio que ela está conosco, sempre, e fazemos de conta que nem mais existia. Assim aconteceu comigo, no cemitério, ao acompanhar o enterro da tia de um amigo. Súbito, me apareceu uma senhora de cabelos branquinhos, que falou me conhecer desde menino. A idosa me conhecera desde o tempo em que eu possuía mãe viva. E se pôs a falar e despertou numa avalanche tudo que estava submerso em mim. De modo igual ocorre quando fingimos não estar com a pessoa querida, para assim ignorar o nosso próprio corpo. Andamos com ele, com ele vamos à feira, ao bar, à livraria, às festas, como se nos transportasse um fluido imaterial. Mas ele está conosco, e só lhe prestamos atenção quando no íntimo nos pula uma dor. ‘Ah, este meu corpo existe’, e não mais podemos correr, ver o mar, inspirar o azul, porque o seu peso e aflição nos prendem. Assim também com as pessoas fundamentais, elas são o nosso corpo, estão conosco, com elas vamos à cama, à mesa, enquanto a sua presença sussurra e segreda em nós. Discreta, fundamental e silenciosa. Mais forte e senhora do nosso corpo que um câncer, porque ela nos vence com a ternura daquilo que nos funda. Assim, de repente, quando penso que Soledad está morta e sepultada não se sabe onde, de repente me aparece à frente um senhor baixinho, cabelos prateados, olhos vivos como os possuem os militantes comunistas que muito viveram. Ele me considera de modo firme e fala

– Eu conheci Soledad.

Eu recebo o golpe e de imediato não o compreendo. Estou no Teatro Hermnilo Borba Filho, acabo de ver o monólogo sobre Soledad no palco. Então tudo é meio vivo, meio teatro, não sei, o momento em que estamos é o da suspensão da lógica mecânica.

– Eu conheci Soledad.

‘Será que ele se refere ao conhecimento que teve dela nesse espetáculo, ou ao livro que escrevi?’, penso, mas não consigo falar. Estou naquelas zonas de estupefação em que a gente pensa e perde a fala. Mas de tal modo ele repete a frase, que num esforço de gentileza articulo:

-Foi? – E ele responde:

 Ela foi à minha casa. – E se aproxima de nós uma senhora, que venho a saber depois ser a sua esposa. E fala: – Muitas vezes. – E volta o senhor: – Conheci os dois. Ela e Anselmo.

Enquanto ele fala, se acerca de nós a jovem senhora Ñasaindy, filha de Soledad. E num impulso o abraça, calorosa. Então o senhor lhe fala.

-Parece que estou abraçando a sua mãe.

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E saímos da sala de recepção do teatro. Eu estou tonto, porque saltam de repente os fenômenos adormecidos. Vamos para o pátio e conversamos como velhos amigos, aquela conversa em que estamos com toda a nossa pessoa. Só atenção, fraternidade e conhecimento antigo. Amigo será irmão de antigo? Aliás, as palavras que não saíam vêm num atropelo. O senhor com quem converso, que tem o nome de Marx, fala da sua prisão, de como caiu a máscara do infiltrado Anselmo. De um fusca verde que Anselmo usava sempre “com gasolina pela boca”, e de como um vizinho reconheceu o carro, propriedade de um coronel do Exército anticomunista. Mas para mim resulta mais a lembrança da esposa de Marx:

– A gente fazia sapatinhos de bebê com Soledad.

– Sapatinhos para quem? – pergunto.

– Para o bebê que ela estava esperando.

 Mas Anselmo fala que Soledad não estava grávida.

Marx sorri fino. A sua esposa o acompanha, negaceando com o queixo. E sinto que falam sem palavras: ‘Quanto cinismo. Que canalha’. Mas o movimento de condenação ao criminoso passa por ele e se dirige para a mãe que espera o filho, encostada ao muro do quintal da casa. Então a sua pessoa volta, desce e falamos sobre Soledad, como se ela estivesse presente e lhe prestássemos um reconhecimento. Na verdade, essa é uma sensação que temos presente. Quando eu falava para Hilda Torres, a atriz que a reencarna no palco, quando eu falava para Hilda lá na Ilha de Kos, eu lhe disse:

– Eu sinto Soledad como se ela entrasse agora por aquela porta. Eu sou ateu, mas sinto a sua presença viva.

Soledad Barret

 

É um vivo sem a matéria do corpo, eu poderia ter dito. Mas isso podia ser interpretado de um modo tão espírita, que cairíamos numa discussão de gênero Allan Kardec. Mas a pessoa de Soledad é real, a pessoa que nos acompanha é real, e se nela não tocamos com os dedos, podemos sentir o seu cheiro, as pernas, o rosto, o riso, sentir quase sem ver, se me entendem. Sabem a luz da estrela que vemos e não pegamos? A pessoa que amamos se toca, se pega, mas sem o tato, ou melhor, com um longo e total sentido, ainda que não o queiramos. É um imperativo do coração. É como se o sentimento se desprendesse da nossa vontade e autônomo nos desse uma ordem. Age, anda e voa. E o ser limitado que éramos ganha o espaço para abarcar o valor que não tínhamos sido. Mistura de empatia, solidariedade e sentimento oculto. É como se estivéssemos bêbados de amor, enfim. Então o beijo em Soledad voltou, lá do fundo daquela tarde de antes. Com mais precisão, voltou aos lábios que abraçam a sua pessoa”.

Trecho do romance “A mais longa duração da juventude”.

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13
Dez22

Cabo Anselmo em sua farsa

Trecho do livro “Soledad no Recife”

Talis Andrade

 

 

 

Ainda que as vestes, os cabelos, os bigodes, o porte, a maquiagem e caracterização em resumo, ocupem um lugar importante, indispensável para a composição e segurança do tipo, do personagem a que somos levados a chamar de Daniel, as palavras que o agente da peça nos diz é que detêm o maior fascínio. É como se, se nos perdoam a heresia e o insulto, é como se um ator recitasse João Cabral. Como se recitasse um poema de João Cabral apenas falando, conversando, anunciando. Bem sei a distorção e o tamanho da ofensa estética, ética, ao enunciar tal comparação. Mas serei compreendido se souberem que para os nossos ouvidos e ânimo de 1972, a revolução era pura música, as bandeiras e consignas da revolução eram realizada poesia. Como diríamos, se voltássemos a falar como à época, as nossas condições subjetivas não atingiam a feliz objetividade. O ser que nos fala agora as frases: “A situação no mundo todo é revolucionária. É um paiol, companheiros. Basta uma faísca. Um grupo de guerrilheiros decididos, com fogo, pode levar a explodir a casa de pólvora. Em Cuba foi assim. Fidel e Che mostraram que o pequeno-burguês é revolucionário”. Ora. A situação no mundo todo, para nosso próprio peito era uma montagem dos momentos de que precisávamos. Cuba, a pequena ilha de exemplo para a humanidade, o Vietnã, de guerrilheiros que derrotavam a maior força militar do planeta, as ações relâmpago de assalto e fuga com sucesso. Como bom vendedor, como bom vigarista, ele nos oferecia o que desejávamos. Bastava querer, abraçar as armas e o sonho. Com o fuzil cometeríamos nossos poemas, se não com o belo pensamento de “a cidade é passada pelo rio / como uma rua / é passada por um cachorro”, mas com o vigor imediato de “o terreiro lá de casa / não se varre com vassoura / varre com ponta de sabre / bala de metralhadora”. Ou mais precisamente com os versos “Um / dois / três vietnãs”, e mais “pão, guerra e liberdade”, onde a palavra guerra, ardilosa, substituía a palavra-mãe, terra. Esse demiurgo, vale dizer, esse poeta que nos fala na sala em 1972, longe está do Anselmo que afirma 36 anos depois: “Acho um suicídio aquelas pessoas terem lutado no Brasil, sabendo que os grupos armados estavam caindo e morrendo. E ainda querendo dar uma de galo”. E a distância entre o poético e o tétrico, entre o verso e o inverso, não se dá pela mudança e transformação do personagem no tempo. O mesmo que nos dizia em 1972, “somente a devoção a uma causa e a firmeza de luta, a coragem, o arriscar tudo pelo socialismo é que podem fazer uma revolução vitoriosa”, era o mesmo que fazia contatos com militantes, que eram seguidos até os outros contatos da rede clandestina, para que a repressão fizesse um mapeamento de pessoas, nomes, fotos, perfis, intimidades. Já então o poético e apoético, o verso e o reverso, a prosa e o prosaísmo, a palavra e o palavrão estavam na mesma pessoa.

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Não sabíamos, é claro. Aquele saber de experiência feito ainda não tínhamos. Faltava-nos o conhecimento de que entre o sublime e o terreno, entre alma e porco, se houver um embate, triunfará o mais terreno porco. Na hipótese de haver embate. Em Daniel, antes do conflito entre figuração e fato, tomávamos só a figuração, aquela aparência devotada como a própria realidade. Um poeta moribundo que recebe a visita de uma bela mulher, nela verá motivos nada Rilke, porque a carnalidade triunfa, até mesmo no espírito. Disso não sabíamos, ninguém jamais nos havia dito, ou mesmo se alguém nos dissesse, seria inútil, não assimilaríamos, em razão de tais palavras não terem passado pelo filtro da experiência. O corpo do poeta procura o corpo da piedosa dama e não vemos, porque até então acreditávamos que tudo era espírito. A revolução, o socialismo, as mil e uma flores desabrochariam. Um caminho reto e retilíneo para as alturas. Como ver o agente no belo homem a declamar Neruda? Como identificar a traição de quem se acompanhava por Soledad e a experiência de haver sido treinado em Cuba? Era um personagem caracterizado com todas as condições de sucesso. Passado de luta, presença de pessoas do mais alto crédito revolucionário, futuro por conclusão óbvia e certeira. É um dos nossos, e dos melhores. O jogador, desonesto por método e sistema, no entanto meio esconde, meio mostra essas cartas, por “questões de segurança”. E se estabelece então o vínculo, a fraternidade entre enganador e enganado. Víamos tais cartas, a beleza suave e valorosa de Soledad, o seu total despojamento, a importância de ser conhecido de Fidel, e fingíamos que nada disso era visto. O enganador sorria e se dava todo em uma aposta vantajosa para o enganado, com o acréscimo de nada pedir em troca.

– Tenho armas, muitas armas, e tenho que passá-las adiante.

Não ousávamos perguntar a que preço, a que preços, porque os desonestos mais desonestos são muito sensíveis à mais leve desconfiança. Ficam indignados. Poderíamos, como resposta, até receber um cuspe na cara, enquanto o ferido nos brios nos respondesse:

– Eu não sou um traficante!

A isso não poderíamos consertar com a ressalva de que o preço não era, não seria em moedas, mas em que termos políticos vinha o oferecimento. Mas tal conserto não caberia, porque já havia se estabelecido uma fraternidade entre enganador e enganado. Como em todo golpe de sucesso de um vigarista. Aceitar as armas sem questionamento era melhor. E se ele – o dono das armas – impusesse condições inaceitáveis aos princípios e programa da Organização? Então não cabiam reparos, ressalvas ou minudências. Ali estava um combatente, um aliado, com uma oferta irrecusável. Adiante. Eu, Júlio e Ivan olhávamos o jogador a sorrir diante de nós. Não, não era o jogador. Era Daniel. Era e é, nessa mistura onde procuro um elemento puro e homogêneo. Alcanço-lhe a máscara. Como se faz máscara, mestre Julião das máscaras de Olinda? Os desenhistas que não fazem máscaras buscam a pessoa pelos olhos. É uma busca estranha ao método, que recomenda começar a cabeça pelo formato do crânio, por um desenho que começa por círculos, vizinhos à semelhança geral dos crânios. Os desenhistas que retratam pessoas, na sua ânsia de atingir o específico nos traços comuns dos homens, buscam os olhos do modelo como uma identidade, ou como um calcanhar de Aquiles dentro da couraça dos retratados. “Se alcanço esse ponto, venço a batalha”, eles se dizem. Do outro lado do enfrentamento, a posar para uma foto ou uma tela, o natural das gentes quer se mostrar com o seu melhor e mais belo rosto, dentro das linhas das quais não pode fugir. Com Daniel, que também foi Jônatas, Jonas, Anselmo, e voltou na velhice a ser Anselmo, não. A evolução de suas raras fotografias mostra um jovem a fumar – pose do seu melhor e mais famoso, sem dúvida -, um jovem no alto em um discurso, cercado de marinheiros, a mais usada foto do seu currículo apresentável. Depois há uma lacuna de imagens por oito anos, até aparecer como Daniel, em uma foto de aniversário de Soledad. É um instante, um flagrante que ele não queria, em que tentara se furtar à câmera, desculpar-se, mas um padre insistira a tal ponto, que Daniel, o revolucionário, achou mais razoável e menos suspeito deixar-se fotografar.

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Urariano Mota
 
30
Jul22

Peter Lownds fala sobre como e por que traduziu romance de Urariano Mota

Talis Andrade

 

A International Publishers lançou recentemente “A Mais Longa Duração da Juventude”, um romance recente do escritor pernambucano Urariano Mota, com tradução de Peter Lownds. Em uma conversa com o site americano People’s World Peter falou sobre como e por que ele se envolveu nesse projeto

 

Eric Gordon: Vamos começar com uma pergunta direta. Como você se tornou um tradutor, Peter?

Peter Lownds: Eu cresci em uma família bilíngue. Meus pais falavam alemão quando eles não queriam que eu entendesse. Isso arrepiava meus ouvidos. Na escola, eu comecei francês na quinta série e latim na sexta, e mantive as duas línguas no ensino médio. Eu fui para Yale e gastei muito tempo no que então era chamado de “casas de arte” lá, e em Manhattan assistindo filmes estrangeiros com legenda. Quando eu tinha dezessete anos, eu vi o filme de Marcel Camus, Orfeu Negro, pela primeira vez. Ele veio a desempenhar um papel importante na minha vida e eu vou usá-lo para ilustrar um dos princípios da tradução: que tudo é uma questão de perspectiva.

 

Eric: Totalmente. Eu mesmo estou envolvido em mais de um projeto de tradução, então eu acho que sei o que você quer dizer. Mas a experiência de cada um é diferente. Vá em frente.

Peter: Para Sacha Gordine, o produtor do filme, Orfeu Negro era uma adaptação francesa de uma peça do poeta brasileiro Vinícius de Moraes: Orfeu da Conceição, “uma tragédia carioca em três atos,” que passou uma semana no Teatro Municipal do Rio de Janeiro, em 1956.

 

Eric: Carioca significa do Rio de Janeiro, certo?

Peter: Correto. Bem, Vinícius recrutou dois talentosos compatriotas para produzir a importantíssima música para a peça: o compositor Antônio Carlos Jobim e Luís Bonfá, um virtuoso guitarrista e compositor estabelecido, que sentava nas sombras do palco enquanto o ator interpretando Orfeu cantava. Vinícius tinha servido como vice-cônsul brasileiro em Paris, antes de pegar uma licença para voltar ao Brasil e trabalhar na peça. Ele detestava a versão simplificada do filme de seu mito transposto, que foi roteirizada pelo diretor Camus e Jacques Viot, pelo qual Gordine exigiu que o trio de brasileiros escrevesse uma nova partitura para que ele pudesse ter uma parte dos rendimentos, que eram substanciais.

Bonfá e Jobim estavam gratos pelo filme, que trouxe atenção para sua música de uma enorme audiência internacional. Mas para os diretores brasileiros do cinema novo, homens como Nelson Pereira dos Santos, Ruy Guerra e Carlos Diegues, que tinham que mendigar estoque de filme branco e preto para fazer suas versões neorrealistas da vida da favela, um romance tecnicolor filmado no histórico morro da Babilônia e nas ruas do Rio durante o carnaval era equivalente a uma intervenção colonial, um tapa na cara do Primeiro Mundo.

Da perspectiva de Abdias do Nascimento, que interpretou Aristeu, o amante ciumento de Eurídice, e que, em 1944, fundou o Teatro Experimental Negro, as bases de treinamento artístico para nove membros do elenco totalmente negro da peça, a execução truncada da peça de Vinícius foi uma decepção. Abdias tinha quebrado a linha de cor no Teatro Municipal, em 1945, dirigindo uma produção do Teatro Experimental Negro da peça de Eugene O’Neill, O Imperador Jones. Antes disso, as únicas pessoas negras a pôr os pés no palco estavam lá para limpa-lo. Vinícius financiou a produção de seu próprio bolso e os atores, cantores e dançarinos que Abdias cultivou no Teatro Experimental Negro não eram pagos em semanas. Eles se queixaram para seu mentor e ele escreveu uma carta de advertência ao dramaturgo. Isso terminou no que pode ter sido uma colaboração histórica.

 

Eric: E tudo isso tem algo a ver com a sua tradução de A Mais Longa Duração da Juventude?

Peter: Abdias foi meu mentor. No inverno de 1969, ele entrou em um café do campus com sua esposa. Eles estavam falando português brasileiro. Eu não tinha falado a língua desde que eu retornei de Recife seis meses antes, então eu me apresentei.

Você fala português, meu filho?

Falo, sim, senhor.

Você é uma dádiva de Deus!

Abdias explicou que ele tinha que se dirigir a Escola de Teatro de Yale no dia seguinte e falava apenas poucas palavras de inglês. Eu interpretaria? É claro! Na tarde seguinte, nós ficamos lado a lado na frente do corpo docente da Escola de Teatro reunido e estudantes. Abdias contou a maravilhosa história da fundação do Teatro Experimental Negro. Ele fez as circunstâncias tão vívidas, a história tão atraente, que eu senti que eu era uma das pessoas de pé em fila no calor tropical para fazer uma audição para o empreendimento teatral revolucionário, que ele lançou na idade de 30 com um anúncio de procura nos jornais do Rio, que de uma vez por todas chamaria a atenção para a invisibilidade artística da maioria étnica do País, os descendentes de milhões de africanos vendidos para a escravidão.

Abdias era feroz e persuasivo. Ele tinha passado um tempo na prisão por suas crenças e fugiu da ditadura que Urariano Mota escreve em “A Mais Longa Duração da Juventude”. Uma das coisas que me atraem ao romance é que o autor fala sobre suas raízes, a perda de sua mãe quando ele tinha cinco anos, sua bebedeira, sua ascendência mestiça, seu apego a um trabalho humilhante em consideração aos camaradas miseráveis que dependiam dele por comida e abrigo. Urariano, como muitas pessoas do Nordeste do Brasil, é uma fascinante mistura de dureza e ternura. Isso permeia sua prosa. A fome, os tempos difíceis, mas, acima de tudo, a aceitação das peculiaridades e paixões das outras pessoas como a expressão de sua humanidade, particularmente sob pressão. A camaradagem foi além das políticas de fidelidade partidária, em um Pernambuco dilacerado durante os anos de guerra civil não declarada, mas real, e luta clandestina sobre que Urariano escreve. Em nenhum lugar isso era mais evidente do que nos mocambos, as favelas ao redor de Recife e Olinda. Essa foi minha introdução a violência da vida cotidiana no Brasil.

 

Eric: Espere um segundo. Se eu entendo sua linha do tempo corretamente, eu mesmo estava no Brasil durante parte daquele tempo. Era o verão de 1967 – inverno no hemisfério sul, é claro. Eu passei a maior parte do meu tempo no Arquivo Nacional, no Rio, fazendo pesquisa para a minha tese de mestrado. Eu estava consciente da ditadura militar na época e segui o conselho do meu orientador ao pé da letra: mantive a minha cabeça baixa o tempo todo. Mas, o que o levou ao Brasil?

Peter: Isso é tão estranho. Nós não nos conhecemos em Yale, e nós não nos encontramos no Brasil, mas 50 anos depois nós nos achamos em Los Angeles!

De qualquer forma, eu estava no Corpo da Paz da Saúde e Voluntário de Desenvolvimento Comunitário, em Recife e Olinda, no estado de Pernambuco, de 1966 a 1968. Como você se lembra, o envolvimento dos EUA no Vietnã estava aumentando quando nós saímos da faculdade, e por um tempo o Corpo da Paz era um adiamento do serviço militar. Meu treinamento era nos Estados Unidos, em Chicago. A única coisa boa nisso era o programa de línguas. Nós tínhamos cinco falantes nativos, três homens e duas mulheres, todos de diferentes partes do País com dialetos regionais distintos, e dois Voluntários do Corpo da Paz Retornados, todos ótimos. Todo o resto era um encobrimento. Naquele tempo inimaginável antes da internet e dos celulares, a informação era mais difícil para passar por aqui e os graduados da faculdade mantinham o que hoje seria considerado sua virgindade na mídia.

O que arrancou as escamas dos meus olhos foi uma visita de três representantes, todos negros, da perto Fundação de Áreas Industriais, onde o organizador comunitário Saul Alinsky estava ajudando comunidades marginais a exigir que senhores de terra, políticos e líderes empresariais reconhecessem seu poder social, político e econômico. Eles queriam saber o que nós tínhamos aprendido sobre o Brasil. Como nós não tínhamos ideia de quem eles eram, ou porque eles estavam lá, nós sentamos lá, rígidos e mudos.

“Não muito, a parte de algumas frases úteis em português,” eu me voluntariei depois do que pareceu um longo minuto. Era o meu 22º aniversário e silêncios prolongados me deixavam nervoso. O líder, que me olhava como um Pantera Negra à paisana, franziu o cenho: “Nesse caso, você pode não saber que o Brasil contém mais pessoas de descendência africana do que qualquer país, exceto a Nigéria. Ou que João Goulart, o presidente eleito popularmente, foi derrubado em um golpe militar apoiado pela CIA, dois anos atrás, e que Castello Branco, um general do exército cujo nome se traduz por “castelo branco”, está agora no comando.

As pessoas que comprarem “A Mais Longa Duração da Juventude” vão ter uma noção do feliz acaso de nossa colaboração em seu ensaio preliminar, com sua capacidade como meu editor da People’s World, e como o editor de cópia para esse livro, e também do ensaio de José Carlos Ruy e o meu prefácio. O autor, Urariano Mota, me mandou um PDF de seu romance em um ponto quando o abrigo para COVID-19 entrou em vigor em todo o mundo e as vacinas ainda não estavam disponíveis. Ele tinha quase 300 páginas e eu pensei comigo , essa vai ser uma boa maneira de passar as horas.

Mas havia uma outra, ainda mais forte atração – o mundo que ele estava descrevendo era um que eu lembrava e com o qual me importava. Meu tour de dever pelo Corpo da Paz em Recife e Olinda terminou em 1968, e eu voltei para visitar em 1969, ano em que o romance começa, com o encontro de dois amigos em frente a um marco do Recife que eu tinha apadrinhado, o Cinema São Luís, especialmente às 8 da manhã nos sábados, quando eram mostrados filmes da Nova Onda francesa e italianos. Como se viu, Urariano também. Essa foi apenas uma de uma série de circunstâncias que me atraíram para “A Mais Longa Duração da Juventude”. Outras foram o fato de que o autor era um homem mais velho olhando para trás em sua vida, um poeta e fã de jazz, que tinha tido uma infância traumática. Todas essas coisas nós compartilhávamos, apesar do fato que nós nunca tínhamos nos conhecido, ou ouvido um do outro. Você vê o que eu quero dizer por feliz acaso.

 

Eric: Esse é o primeiro romance que você traduziu?

Peter: Não, o segundo. O primeiro, Animal Tropical (2002), era de um autor cubano, Pedro Juan Gutiérrez. Isso aconteceu através de um interessante conjunto de circunstâncias que eu não vou entrar aqui.

Mas havia mágica nisso. O que os dois livros tinham em comum era que eu tive que trabalhar com um escritor vivo, alguém com quem eu pudesse me relacionar e, no caso de Pedro Juan, encontrar. Eu ainda não me encontrei com Urariano. Nós nunca nos falamos pelo telefone, ou mesmo pelo Skype. Nós permanecemos em contato por e-mail. Eu envio para ele os capítulos do meu trabalho em progresso e ele pareceu geralmente satisfeito com eles. Um trabalho de um tradutor varia de livro para livro. Com “A Mais Longa Duração da Juventude”, eu realmente aprendi muito de você, Eric, como você editou várias provas do livro. O fato de que você tinha editado minhas traduções de despachos da Amazônia para a People’s World, e que nós ambos falamos, lemos e traduzimos do português para o inglês foi tudo uma grande vantagem. Eu estou feliz que essa não foi a minha primeira tradução literária. Embora eu seja mais fluente em português do que em espanhol, Animal Tropical foi um livro mais fácil de traduzir. Ambos eram narrativas em primeira pessoa, com uma quantia justa de diálogos. Pegar a “voz” e o ponto de vista do narrador é essencial em tais casos. Como é achar o jargão americano apropriado para o modo que os personagens brasileiros e/ou cubanos falam e pensam. Com “A Mais Longa Duração da Juventude”, eu anotei certas referências no texto para os leitores que não fossem familiarizados com a cultura e a história brasileiras sejam capazes de consulta-las quando eles leem.

 

Eric: Eu fiquei feliz de ajudar você e a International Publishers nesse livro. Aliás, para deixar claro, eu também peço por ajuda com o meu trabalho. É sempre bom obter outros pares de olhos em seu trabalho para fazê-lo mais forte.

Peter: Você sabe, o Nordeste do Brasil, como a América do Sul ainda era principalmente agrícola quando eu cheguei. Plantações de cana de açúcar e moinhos proliferavam, e, após a crise dos mísseis, a administração Kennedy temia que a região se tornasse uma outra Cuba. O presidente Goulart era um admirador de Fidel Castro, e tinha tido tentativas sustentadas de sindicalizar os cortadores de cana e os trabalhadores dos moinhos de açúcar em Pernambuco. De fato, o presidente Kennedy tinha marcado para voar para Recife uma semana depois que ele foi assassinado. No final dos anos de 1960, 70% das pessoas da região eram analfabetas. Se eles não podiam assinar seus nomes, eles não podiam votar. Goulart tinha pressionado Paulo Freire em serviço e estava lançando uma campanha nacional de alfabetização baseada nos experimentos linguísticos de Freire com camponeses, pescadores e trabalhadores da construção, nos estados nordestinos de Pernambuco e Rio Grande do Norte, quando o golpe de estado militar apoiado pela CIA ocorreu, no Dia da Mentira, em 1964. Em 1969, quando o livro começa, o regime militar tinha pegado as rédeas firmemente nas mãos e censurava quaisquer notícias que fossem consideradas desfavoráveis à sua causa. Aulas de faculdades eram infiltradas por informantes em roupas civis se colocando como estudantes.

Os personagens de Urariano são comunistas novatos. Eles são membros de grupos de estudantes que se encontram e formam células clandestinas, onde eles são doutrinados com resumos mimeografados das teorias de Marx, Lenin e Mao Tse-Tung. Alguns deles estiveram ou estão em perigo de serem “expostos” como terroristas urbanos. Esse é o caso com o novo amigo do narrador, Luiz do Carmo, e outro militante, Vargas, que tem uma esposa grávida e parece resignado ao martírio pela causa. Ele entra em conflito com um notório agente duplo e eventualmente sucumbe a caça às bruxas. O mesmo vale para Soledad Barrett, uma beleza paraguaia de uma longa linhagem de anarquistas, que treina com Fidel e Che na Sierra Maestra e vem para Recife encontrar seu horrível destino. O romance é cheio de alvoroço e incidentes. Jovens se apaixonam e desapaixonam, são obcecados por sexo, percebem que são sonhadores sem armas ou uma ideologia convincente e seguem suas vidas. Eles ficam deprimidos, famintos por comida e reconhecimento, vão a filmes, leem livros, discutem sobre música e escrevem poesia. Eu conheci pessoas assim em Recife.

 

Eric: Isso soa tão similar com minhas próprias experiências no movimento estudantil antiguerra e anteprojeto, nos EUA, na mesma época, sob Nixon. Acredite-me, eu reconheci a mim mesmo e ao meu círculo de camaradas e amigos na inexperiência e confusão, e deriva ideológica daqueles anos.

Peter: As mesmas coisas estavam acontecendo em muitos lugares ao redor do mundo então. Em 1969-70, eu ensinava na Escola Americana do Rio, e as coisas mudaram. Ninguém fora da comunidade americana falaria comigo, porque eu tinha toda a boa fé de um agente da CIA – “pálido, masculino e Yale!” Traduzir A Mais Longa Duração da Juventude me deu a chance de encontrar e me envolver com meus colegas revolucionários, todos esses anos depois. Eu apreciei a experiência, mais do que eu possa realmente expressar em palavras. Eu confio que os leitores do livro também vão, e muitos por suas próprias razões subjetivas.

 

Eric: Obrigado, Peter. Eu acredito que os leitores vão ter uma ideia muito melhor do que esperar quando eles envolverem suas mãos em torno desse novo lançamento da International Publishers.

 

Fonte: People´s World 

Tradução: Luciana Cristina Ruy

 
30
Jun22

Para governo militar, aborto em caso de estupro é crime, mas causado por tortura é legal

Talis Andrade

Conheça a charge da Folha favorita dos leitores em abril - 03/05/2022 -  Painel do Leitor - Folha

 

Para os hipócritas o aborto decorrente de torturas contra as mulheres nos porões da ditadura é perfeitamente legal e tolerável

 

por Jeferson Miola

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O manual do ministério bolsonarista da Saúde sobre a atenção às mulheres vítimas de violência sexual contraria o Código Penal brasileiro e decisão do STF e diz que “todo aborto é um crime”. Com linguagem policial, o documento defende que “quando comprovadas as situações de excludente de ilicitude após investigação policial, ele [o aborto] deixa de ser punido”.

A perversão e a violência contra as meninas e as mulheres – ou, dito de outra forma, a misoginia e o ódio profundo às mulheres – ganhou poderoso impulso nos últimos dias.

Nos EUA, a Suprema Corte ilegalizou o aborto e retrocedeu 50 anos em relação a esta conquista civilizatória das mulheres. Este retrocesso histórico anima e encoraja os movimentos ultraconservadores e reacionários mundo afora.

No Brasil, onde a cada 10 minutos uma mulher foi estuprada [2021], uma criança de 11 anos só conseguiu interromper a gravidez decorrente de estupro devido à repercussão midiática. Tudo devido à decisão monstruosa e cruel da juíza Joana Ribeiro Zimmer/SC, que pediu à criança de 11 anos “mais um pouquinho de paciência para o feto sobreviver mais”. Apesar disso, a juíza não só foi mantida no cargo, como ganhou promoção na carreira.

A monstruosidade da juíza foi endossada por Bolsonaro, que num dos seus fétidos jorros mentais via twitter [23/6] disse que “não se discute a forma que ele [o feto] foi gerado, se está amparada ou não pela lei. É inadmissível falar em tirar a vida desse ser indefeso” [sic].

Com esta declaração, Bolsonaro antecipou em alguns dias a divulgação da política oficial que o governo fascista-militar explicitou na nova versão do manual para mulheres vítimas de violência sexual [28/6].

Para esses hipócritas, no entanto, o aborto decorrente de torturas físicas e psicológicas e de outras violências perpetradas contra as mulheres nos porões da ditadura é perfeitamente legal e tolerável.

No artigo Discursos sobre a tortura de mulheres grávidas durante a ditadura militar, o professor José Veranildo Lopes da Costa Júnior/UERN sustenta que “as mulheres, além de terem sido torturadas por suas posições ideológicas contrárias ao regime militar, também sofreram uma perseguição política motivada por questões de gênero e sexualidade”.

O professor opina que “no caso das mulheres grávidas, a tortura não se deu, exclusivamente, de forma física, mas a tortura psicológica foi uma ferramenta utilizada pelos militares como mecanismo para ocasionar o aborto e a interrupção de suas gestações”.

Trata-se, portanto, da violência sexual e de gênero como instrumento de poder e dominação, conforme descreve o relatório da Comissão Nacional da Verdade [2014] no capítulo que disseca os métodos e práticas nas graves violações de direitos humanos e suas vítimas durante a ditadura.

Nos áudios sobre as sessões do Superior Tribunal Militar recentemente divulgados pelo pesquisador Carlos Fico/UFRJ, aparecem julgamentos de casos de terror psicológico e tortura de mulheres grávidas que acabaram sendo obrigadas a abortar.

Ao ser indagado a respeito daquelas atrocidades, o general vice-presidente Hamilton Mourão riu e, em tom de deboche, desafiou: “Apurar o quê? Os caras já morreram tudo, pô. Vai trazer os caras do túmulo de volta?”.

Para este “homem de poucas luzes”, como Carlos Fico elegantemente o definiu, todo tipo de violência praticada por militares contra as mulheres, inclusive grávidas – choques elétricos, pancadas, cobras, sevícias, abusos – “fazem parte da história do país e já são passado”.

“História, isso já passou, né?”, afirma o facínora que conserva enorme desapreço e indiferença pela vida humana, como demonstrou em relação aos bárbaros assassinatos de Bruno Pereira e Dom Philips.

Ao invés de acompanhar o caso pessoalmente, uma vez que tem atribuição legal e institucional, como presidente do Conselho da Amazônia, o general passou um feriadão degustando vinhos, jogando Padel, visitando feiras e fazendo campanha eleitoral no RS.

Para o governo fascista-militar, “todo aborto é um crime” – até mesmo em caso de estupro. Contudo, no regime dos generais, o aborto resultante de torturas e atrocidades cometidas nos porões da ditadura contra mulheres grávidas é legal e tolerável.

Conheça a charge da Folha favorita dos leitores em abril - 03/05/2022 -  Painel do Leitor - Folha

25
Abr22

Cabo Anselmo na série “Em busca de Anselmo”

Talis Andrade

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Cabo Anselmo ao centro da imagem com farda da Marinha | Foto: Reprodução

 

Quando Anselmo se refere aos codinomes que usava para se infiltrar e entregar militantes para a morte, ele gargalha. Isso é definitivo como apresentação do cinismo do traidor

 

por Urariano Mota

Para escrever este artigo, assisti hoje à série “Em busca de Anselmo”. No momento, só podem ser vistos na HBO Max os dois primeiros episódios, em um conjunto de cinco, um por semana. Portanto, o que escrevo agora tem um caráter de provisório.

Ressalto de imediato que o documentarista Carlos Alberto Jr. é um cineasta. Isso não é assim tão óbvio. Quero dizer: as tomadas que ele faz, os lugares para onde leva Anselmo, as cenas que filma, são de um homem de cinema. No começo do primeiro episódio, quando Anselmo se refere aos codinomes que usava para se infiltrar e entregar militantes para a morte, ele gargalha. Isso é definitivo como apresentação do cinismo do traidor. Magistral.

Carlos Alberto é um jornalista que fez o seu dever de casa, estudou, pesquisou, o que o jornalismo não havia feito até hoje com o Cabo Anselmo. São exemplos disso o livro terrível de mentiroso “Eu, Cabo Anselmo”, de Percival de Souza e todas anteriores entrevistas. Mas para a víbora que Carlos Alberto viu e entrevistou, para a serpente documentada cabem, ainda assim, restrições ao método do cineasta: se os entrevistadores antes de Carlos Alberto Jr. pecavam por desconhecimento do grande mentiroso do agente da repressão, em Carlos Alberto houve o que eu chamaria de excessivo respeito às mentiras do entrevistado. Quero dizer: Carlos Alberto não o interrompe, salvo raras vezes, pois deixa a mentira andar. Ainda que o documentarista contraponha às falas de Anselmo depoimentos que o desmentem em um corte com outros entrevistados, Carlos Alberto não o interrompe de viva voz, o que seria muito interessante para a mostra viva, na própria fala, das contradições de Anselmo. Isso é claro quando Anselmo visita a sede do antigo Deops em São Paulo, hoje Memória da Resistência. Ali, num infeliz acaso para o traidor, ele passa diante de uma parede onde se expõem com fotos os 6 assassinados na Granja de São Bento em Pernambuco. Ali, diante de dois planos, com imagens da imprensa que publicava o que a repressão mandava, como aqui

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Foto: Reprodução

 

E a reconstituição da história em outro plano, que narra a prisão de Soledad e Pauline numa butique no Recife, o criminoso fala:

– Eu não sei qual das duas versões é a verdadeira.

E o frio traidor não é cortado, no ato.

Depois, num podcast, Carlos Alberto declarou que não era possível inquirir Anselmo o tempo todo, desmentindo-o. Mas que no final da série, o traidor será levado contra a parede. Aguardemos então, que poderá vir um desmonte do bandido à altura da abertura do primeiro episódio.

Anselmo era cínico e ator. Ator como uma difamação da arte. Os modos com que por 2 vezes se levanta de uma cama, com fingimentos e fazer pela primeira vez, são reveladores. Cenas repetidas.

Nota-se que a memória dele é ótima, quando fala sobre o que não é sua atividade criminosa. As memórias da capela, da casa da sua adolescência, são reveladoras da sua agilidade mental. Mas o que não se perguntou, por exemplo: por que não atiraram em Anselmo quando ele foi preso em 1964, e estava com uma pistola apontada para a porta (segundo palavras dele). Como ele fugiu da prisão de modo tão fácil? Ele chega a falar que os carcereiros arranjaram prostitutas para ele!

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Foto: Cabo Anselmo 

 

Lembro que no programa Roda Viva, o Cabo Anselmo esteve muito à vontade ali, porque os entrevistadores não pesquisaram a história dos seus crimes, e se fizeram esse indispensável dever, não quiseram levá-lo às cordas, para confrontar as suas esquivas com os depoimentos de testemunhas de 1973, ano das execuções de 6 militantes socialistas no Recife.

O momento mais acintoso foi quando ele se referiu à sua mulher, Soledad Barrett, e dela retirou a gravidez, para se isentar de um hediondo crime, que cai como um acréscimo à traição de entregá-la para a morte. 

Transcrevo:

“Cabo Anselmo – A Soledad usava DIU, desde que fez um aborto aqui em São Paulo, antes da ida para o Recife.

Entrevistador – O senhor contesta a gravidez da Soledad?

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Jovem Soledad Barrett, morta pela Ditadura Militar de 1964 | Foto: Reprodução

 

Cabo Anselmo – Como?

Entrevistador – O senhor contesta que ela estivesse grávida, como a versão histórica …

Cabo Anselmo – Se eu acreditar, como dizem os médicos, que o DIU era o mais seguro dos preservativos, eu contesto, sim.

Entrevistador – Então o feto encontrado lá não era dela?

Cabo Anselmo – Eu imagino que seria da Pauline. A Pauline estava grávida, inclusive teve problema de gravidez, e Soledad a levou até o médico.”

Então voltemos ao documentário. Nele, assistimos ao depoimento do bravo Marx, um pernambucano verdadeiro e sincero. No geral, os documentaristas raro exibem todas as palavras de um entrevistado. Montam e cortam. Assim deve ter sido também com Marx sobre a gravidez de Soledad que ele viu. O que ficou de fora? Aqui eu o recupero fora das imagens do documentário:

Na noite em que acabamos de ver uma comovente recriação de Soledad Barrett no do teatro Hermilo Borba Filho, quando a atriz Hilda Torres entrou em transe da personagem Soledad levada à cena, transe naquele sentido dos aparelhos, dos médiuns em terreiros, depois da mágica hora em que Soledad ressurgiu, depois disso no café, no pátio do teatro Hermilo, eis que a filha única de Soledad, a sempre menina e jovem Ñasaindy, se aproximou e abraçou o ex-preso político Karl Marx. Naquele instante em que eu conversava com Marx, Ñasaindy veio e lhe deu um súbito abraço. Então Marx parou e com os olhos rasos lhe falou, com a voz embargada:

– Parece que estou abraçando a sua mãe. Ela era assim.

Se fosse um poema, talvez a frase acima encerrasse um verso. Mas esta é uma narração e o narrador não recebe a misericórdia de ser humano em uma linha apenas. Quero dizer, primeiro do que tudo. Quarenta e dois anos adiante, o abraço da filha, o rosto, o calor da filha reacendia em Marx a ternura da mulher que havia sido destruída no corpo, e depois passaria todo o futuro próximo a vagar como se fosse alma de mãe desnaturada e terrorista. Em segundo lugar, digo que na reconstrução da vida, difícil é dizer o que vem primeiro. Soledad está no quintal da casinha de Marx. Da cozinha ela fora até o quintal, e conversa com as companheiras de Marx e Lenin, os dois irmãos assim nomeados pelo pai, velho comunista. As mulheres sentadas fazem sapatinhos de croché para o bebê que Soledad espera. Dizem das mulheres grávidas que ficam mais belas. Mas ao viço natural das cores há na mulher que daria à luz, que engravida em angústia, uma sombra, um olhar que não vai ao futuro, que se furta e se dirige ao chão.

A propósito, a foto do documentário

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Foto: Divulgação

 

é a que Anselmo deu à mãe de Soledad, com as palavras dedicadas no verso:

“A la madre para que conozca un hijo más.

Jadiel

Abril/72”

A historiadora uruguaia Virginia Martínez divulgou essa foto pela primeira vez em seu livro “La vida es tempestad: historia de la família Barrett: literatura, resistência y revolución”.

No documentário, Anselmo sorriu à pergunta de se já matara alguém. Responde, com a galhofa típica dos militares de hoje, que já matou uma galinha.

Por último, por enquanto: a pergunta que ainda não está de modo claro: Anselmo era um agente da direita já na fase de liderança dos marinheiros em 1964?. O diretor Carlos Alberto me avisou que a série cresce a partir do 3º. episódio. Mas até aqui o documentário já é um tento da História.

Leia mais:

O amor e Soledad Barrett

Leia o livro:

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15
Abr22

Para não reescrever a história da ditadura

Talis Andrade

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Para melhor contextualizar a história, devo relacionar um acontecimento central de um dos crimes perversos da ditadura, aquela que deve ser contextualizada

 

por Urariano Mota /Vermelho 

Sobre o 31 de março de 1964, os comandantes das forças armadas mais o ministro da defesa de bolsonaro publicaram: “a história não pode ser reescrita, em mero ato de revisionismo, sem a devida contextualização”.

Muito bem. Mas em primeiro lugar, para não reescrever a história sem contextualizar o tempo, deve-se não reescrever os dias do calendário. Pois na propaganda do golpe, o primeiro de abril de 1964 sempre foi antecipado para o 31 de março. Procurando evitar a piada, o dia universal da mentira, mentiram por antecipação. Falaram que tudo se fez em de 31 de março. E foi decretada a revolução.

Em dúvida, para que não se caia no revisionismo histórico, olhem os jornais brasileiros de 2 de abril de 1964:

O Globo: “Ressurge a democracia!”. O Estado de São Paulo, “Vitorioso o movimento democrático”. Diário de Pernambuco: “Jango sai de Brasília rumo a Porto Alegre ou exterior”. Folha de S. Paulo: “Congresso declara Presidência vaga: Mazzilli assume”. E por que relaciono as notícias de 2 de abril? A razão é simples: em uma época sem edição on-line, se o golpe tivesse ocorrido em 31 de março, os jornais publicariam a notícia em primeiro de abril. Mas como em 31 todos os governos eleitos estavam no poder, os jornais somente puderam noticiar a “revolução” no dia 2 de abril. O curioso é que, a partir daí, houve uma desmemória rara. A imprensa amordaçada passou a se referir a um certo 31 de março que acontecera depois de 31 de março. Piada trágica.

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Marcio Vaccari (@VaccariMarcio) / Twitter

 

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E para melhor contextualizar a história, o ambiente de terror contra a resistência democrática no Brasil, os assassinatos ao fim de torturas de presos políticos, devo relacionar um acontecimento central de um dos crimes perversos da ditadura, aquela que deve ser contextualizada.

Eu retomo em “A mais longa duração da juventude” aos seis assassinatos no Recife em janeiro de 1973.

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Os seis “terroristas” mortos juntos em uma só notícia. “Terroristas”, porque todas as pessoas que lutavam contra a ditadura eram chamadas de terroristas. Aqui vai um trecho dos crimes contextualizados no romance:

“Assim era o velho Orlando. Com um jornal nas mãos, ele desfere o primeiro golpe:

– Pegaram uns terroristas hoje. Vocês viram?

Eu sei, ele fala a todos, mas se dirige a mim. Sou capaz de sentir que ele fala e me aponta com o queixo, pois me encontro na máquina de escrever com os olhos fitos em lugar nenhum. Não consigo me concentrar na guia de material, que devo copiar para o formulário. A minha voz está contra mim. Aliás, tudo em mim, tudo que é sobrevivência é o meu contrário. Eu não sou aquele que se encontra na sala, com o ar-condicionado rugindo alto feito motor de carro de praça em 1970. O velho, o feitor, se aproxima, eu sei pela repugnante mistura de perfume barato e cigarros.

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– A puta era até bonitinha – ele fala. – Carinha de anjo, mas terrorista. Você viu? – E toca o meu ombro tenso. Não o escuto, bato a esmo na máquina. Tenho que me concentrar para não escrever “Maldito. Maldição. Mal do mundo. Mal de porcos. Foda-se”. E vem um novo toque, mais firme, como uma intimidação:

– Viu ou não viu as carinhas de puta? Você.

Então levanto a custo o queixo e vejo um indivíduo de olhos verdes, cabelos brancos, boca murcha e sinais de animal velho na cara. Ele sorri, mas sei que o sorriso é ofensa, escárnio, gatilho apontado. E respondo, na altura da minha covardia:

– Eu? – “Darás a tua vida por mim?”, penso. – Não vi o jornal hoje.

– Não viu?! – O escarnecedor volta. – Olhe.

“Meu Deus, o que será de mim?”. Ele mostra a primeira página.

– Aqui. – Com o dedo seboso aponta Soledad. Com o dedo seboso aponta Pauline. Com o dedo seboso aponta Vargas. Com o dedo seboso aponta as fotos dos seis socialistas mortos. E volta para Soledad. – Está vendo?

Eu olho e mudo a vista. Eu vejo e baixo os olhos. Não sou um homem. Me sinto menos que um cachorro castrado. É doloroso fitar o rosto de Soledad, aquela a quem beijei na casa de Marx. Olho e baixo os olhos. O velho parece notar minha aflição.

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Jovem Soledad Barrett, morta pela Ditadura Militar de 1964 | Foto: Reprodução

– Moça tão bonitinha… – o velho fala. – Desencaminhando os filhos da gente para o terror. – E olha para mim: – Mata!

“Eu a quero como um homem sozinho quer o seu amor”, penso. E resmungo, no limite:

– Os jornais mentem muito. – E continuo na cabeça o poema que não escrevo: “Eu a quero como um homem sozinho. Eu a quero com a ternura e ódio de um covarde cujo amor é segredo”. O poema que não escrevo se inscreve em meus olhos. E dilato as órbitas para secar a minha condenação. O velho me pergunta:

– Hem? O que você disse?

Eu quis responder com voz alta, à meia altura do meu sentimento: “eu disse que os jornais mentem muito”. Falando assim, falaria menos do que deveria: “É tudo mentira. As notícias são uma farsa criminosa. Matam a melhor juventude do Brasil”. Mas fiquei a balbuciar palavras inverossímeis:

– A – sim… tende? Assim…

– Assim o quê, rapaz?

– Assim.. ah… o jornal de hoje tem o resultado do vestibular.

– Vestibular que nada. O vestibular de hoje é a morte dos bandidos. – No que foi acompanhado por um idiota de plantão:

– Isso mesmo. Se eles estudassem, se fossem gente direita, não estavam mortos. A polícia não mata um jovem de bem.

Era tão estúpido e esmagador, que sorri amargo três vezes, assim como Pedro negou três vezes a Jesus. Sorri de imbecil, sorri da minha desgraça, sorri como um adulador sorri. Os três sorrisos unificados em um só, o da infâmia de desejar sobreviver em paz, não importava como. Sorri. E para não sorrir indefinidamente da minha abjeção, tive a infelicidade de completar com o máximo de coragem:

– Jornal exagera um pouco. Algumas vezes temos que dar uns descontos.

Para quê disse isso? Recebi pelos peitos:

– Mas eles eram terroristas, não eram? Isso é mentira?

“Jesus respondeu-lhe: Darás a tua vida por mim? Em verdade, em verdade te digo: Não cantará o galo sem que tu me tenhas negado três vezes”. Então baixei a cabeça e procurei bater à máquina. As denunciantes lágrimas insistiam em voltar aos meus olhos.

– Eles eram ou não eram terroristas? – O velho tornou”.

O mais grave, hoje, é que esse tempo corre o risco de voltar. Os criminosos do “movimento” de 64 continuam impunes. O elogio que o fascista na presidência faz a esses criminosos é outra forma de crime. Isto é, se o próprio Bolsonaro não foi um torturador. Essa recente ordem do dia de 31 de março, para os escritores, assim se traduz: falem tudo o que sentem e sabem. Pois o Brasil não radicalizou a democracia. Nós saímos da ditadura sem radicalizar a democracia. O resultado é este fascismo no poder. Aquele velho sempre volta.

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28
Mar22

La muerte de un traidor: Obituario del Cabo Anselmo

Talis Andrade

Anselmo delató a sus compañeros

Anselmo delató a sus compañeros, incluso a su pareja de entonces, Soledad Barrett. El agente de la dictadura falleció a los 80 años.

 

 

A los 80 años murió José Anselmo dos Santos, conocido como Cabo Anselmo, este agente infiltrado en las filas de la Vanguardia Popular Revolucionaria (VPR), el movimiento guerrillero del legendario capitán Carlos Lamarca, del cual la paraguaya Soledad Barrett formaba parte, y cuya captura y asesinato el cabo organizó.

 

  • por Urariano Mota* /Ultima Hora /Paraguai

El Cabo Anselmo murió el 15/03/2022.

Por teléfono, el escritor y periodista André Cintra me comunicó la noticia hace cinco minutos. Estaba durmiendo la siesta, pero salté de la cama. Y hasta ahora no sé por dónde empezar la necrológica de José Anselmo dos Santos.

La noticia, con su natural objetividad, que en este caso significa con toda la natural ignorancia de la historia, dice que José Anselmo dos Santos murió el martes por la noche a los 80 años, en Jundiaí (SP). Y que fue un “agente doble durante el régimen militar”. ¿Ves? Llaman “régimen militar” a la dictadura y al terror de Estado en Brasil.

Pero a ver si Dios nos ayuda a intentar algo de justicia para este criminal.

Si quitamos la infamia de su piel, tarea difícil o imposible, la primera característica del Cabo Anselmo es que era un buen mentiroso. En primer lugar, mintió sobre su nombre: ¿era Daniel, como se presentó en Recife, o Jadiel o Jônata? Eso era lo mínimo. Donde sobresalió con las artes interpretativas, no solo en las palabras, fue en la frialdad y el cinismo con que se refirió a su mayor crimen: la entrega de su compañera embarazada, Soledad Barrett, a la represión. En más de una entrevista, ante periodistas comprometidos con la derecha o por ignorancia histórica, se refirió al gran guerrero con la delicadeza de una serpiente.

En su entrevista con Band, observé que Fernando Mitre, al mencionar a Soledad, el cabo Anselmo respondió, con ambas manos levantadas, como defendiéndose, como recordando un acuerdo, que amenazaba con romperse: “¡Opa!”. Y Mitre, de vuelta: ”Luego hablas de ella”. Y él, “ah, por supuesto”. Y lo que se vio después fue nada, o casi nada.

En Roda Viva, en uno de los momentos de calculado cinismo, Anselmo se refiere a Soledad Barrett.

El entrevistador dijo: “¿Discute usted que estuviera embarazada, como la versión histórica...?”.

Cabo Anselmo: “Si creo, como dicen los médicos, que el DIU era el más seguro de los preservativos, lo impugno, sí”.

Y el entrevistador le levantó la pelota a Anselmo: “¿Entonces el feto encontrado allí no era suyo?”.

El cabo Anselmo respondió: “Imagino que será de Pauline. Paulina estaba embarazada, incluso tenía un problema de embarazo, y Soledad la llevó al médico”.

La fría infamia no se discute.

Pero conoce las palabras de Nadejda Marques, única hija de Jarbas Marques, uno de los seis militantes socialistas asesinados en Recife, junto con Soledad. En la actualidad, Nadejda Marques es doctora en Derechos Humanos y Desarrollo:

“Mi abuela Rosália, la madre de Jarbas Marques, consiguió entrar en la morgue. Ella, entre los diversos trabajos que tenía, también era enfermera. Conocía a la persona de Soledad. Mi abuela siempre contó lo que vio en aquel fatídico enero de 1973. Mi padre, con marcas de tortura por todo el cuerpo, tenía marcas de estrangulamiento en el cuello y agua en los pulmones compatibles con el resultado de la tortura por ahogamiento. Los disparos en el pecho y la cabeza se dieron después de su muerte. El cuerpo de Soledad, aún ensangrentado, tenía los restos de una placenta y un feto en un cubo improvisado.

Y definitivas son las palabras de la denuncia de la abogada Mércia Albuquerque:

“Soledad estaba con los ojos muy abiertos, con una expresión de terror muy grande. Estaba horrorizado. Mientras Soledad estaba de pie con los brazos a los lados, me quité la enagua y se la puse al cuello. Lo que más me impresionó fue la sangre coagulada en grandes cantidades. Tengo la impresión de que la mataron y la acostaron, y la trajeron después, y la sangre, al coagularse, se le pegó a las piernas, porque era una gran cantidad. El feto estaba allí en sus pies. No puedo saber cómo acabó allí, o si fue allí mismo, en el tanatorio, donde cayó, donde nació, en ese horror”.

En la muerte del cabo Anselmo, finalmente, Soledad Barrett fue y sigue siendo el centro, la persona que grita, el punto de apoyo para Arquímedes por sus crímenes. Señala a José Anselmo dos Santos y lo sentencia, vaya donde vaya: “Hasta el final de tus días estás condenado, sinvergüenza”.

Que el infierno sea pesado para él, por fin. Para toda la eternidad.

- - -

*Escritor brasileño, autor del libro Soledad Barrett no recife y de la novela A mais longa duração da juventude.

Soledad Barrett

 

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Soledad Barrett Viedma nació el 6 de enero de 1945 en Paraguay. Su padre fue Alejandro Rafael Barrett López, único hijo del escritor y líder anarquista español Rafael Barrett, quien llegó al país en 1904 y se convirtió en un referente en las luchas sociales de toda una época.

Ante la inestabilidad política previa a la dictadura militar de Alfredo Stroessner (1954-1989), la familia Barrett se exilió en Uruguay, donde una adolescente Soledad comenzó a militar en los movimientos estudiantiles.

Cuando Soledad tenía 17 años, se convirtió en víctima de los movimientos de extrema derecha en los años previos a la instauración de la dictadura cívico-militar en Uruguay (1973-1985). Fue secuestrada y le dibujaron una esvástica en los muslos.

Tras el incidente, Soledad pasó de ser víctima a perseguida por la policía política, por lo que su familia decidió enviarla un año a Moscú, de donde viajó a Cuba.

Allí nació Ñasaindy en 1969, hija de Soledad y de un militante contra la dictadura brasileña (1964-1985), José María Ferreira, que se trasladó a Brasil un año más tarde, donde fue asesinado y desaparecido.

Soledad le siguió un año después, y solo al llegar a Brasil descubrió que habían matado a su compañero. En el país conoció al “cabo Anselmo”, destacado militante de la Vanguardia Popular Revolucionaria (VPR), grupo que ejercía la resistencia a la dictadura, con quien entabló una relación.

Pero el “cabo Anselmo” era en realidad un agente infiltrado de la policía, que organizó la captura y asesinato de Soledad y de otros cinco de sus compañeros en el norte de Brasil en 1973.

El cabo murió en la impunidad.

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12
Jan22

Último poema de Soledad Barrett

Talis Andrade
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Tradução de Fernando Coelho
 
 
Mãe, me entristece te ver assim
o olhar quebrado dos teus olhos azul céu
em silêncio implorando que eu não parta.
 
Mãe, não sofras se não volto
me encontrarás em cada moça do povo
deste povo, daquele, daquele outro
do mais próximo, do mais longínquo
talvez cruze os mares, as montanhas
os cárceres, os céus
mas, Mãe, eu te asseguro,
que, sim, me encontrarás!
no olhar de uma criança feliz
de um jovem que estuda
de um camponês em sua terra
de um operário em sua fábrica
do traidor na forca
do guerrilheiro em seu posto
sempre, sempre me encontrarás!
Mãe, não fiques triste,
tua filha te quer.
 
Madre, me apena verte así
el quebrado mirar de tus ojos azul cielo
en silencio implorando que no parta.
 
Madre, no te apenes si no vuelvo
me encontrarás en cada muchacha de pueblo
de este pueblo, de aquel, de aquel otro
del más acá, del más allá
talvez cruce los mares, las sierras
las cárceles, los cielos
pero, Madre, yo te aseguro,
que sí me encontrarás!
en la mirada de un niño feliz
de un joven que estudia
del campesino en su tierra
del obrero en su fábrica
del traidor en la horca
del guerrillero en su puesto
siempre, siempre me encontrarás!
Mamá, no te pongas triste,
Tu hija te quiere.
 
27
Nov21

Ditadura, ficção e memória

Talis Andrade

Os guerrilheiros assassinados na Granja São Bento, em Pernambuco, são o tema do livro da Cepe

Ressignificar o passado é também construir novas partilhas, outros mundos onde e quando outras subjetividades possam existir

por Urariano Mota

Na altura dos meus 70 anos, notei que a partir de certa idade a nossa memória é histórica. Mas para um escritor, o maior trabalho é narrar essa memória que se fez histórica. A seleção de acontecimentos, a sua organização em destinos e pessoas/personagens, é difícil. E mata de dor ou renova sobre a dor quem narra o lembrado. Outro fenômeno que observei nos penúltimos tempos foi a ligação indissolúvel entre o passado e o presente. Os anos findos, na aparência findos, renascem transformados. O passado não é morto. É vivo, hoje, passou por aqui agora. Disso eu não sabia. Essa descoberta me ocorreu ao escrever “A mais longa duração da juventude”. Para mim, foi uma iluminação, que eu nem imaginava antes desse livro.

E por que escrevo as linhas acima? – É que nesta semana pude ver a crítica do mestre Helder Santos Rocha a meu romance.  Na sua fala, vi confirmadas, de um ponto de vista erudito, as linhas da minha intuição. A crítica veio à luz na live da III Jornada de estudos sobre ficção histórica. Como um dos participantes, Helder Santos Rocha apresentou um trabalho sob o título de “Ficção e Memória em ‘A mais longa duração da juventude’”. Acompanhem por favor trechos da sua intervenção.  

“No romance de Urariano Mota há cenas de inúmeras reativações do tempo, nele existem propostas estéticas de coparticipação para o leitor do presente, muito mais que informes de acontecimentos do passado ditatorial.

Afinal de contas, como bem nos adverte Vladimir Safatle, precisamos encarar o neoliberalismo como a lógica da destruição máxima da solidariedade e dos laços comunitários. No que tange à memória sobre a ditadura pós-64, a comunidade pode ser uma resistência às perdas arquivísticas dos feitos de indivíduos invisibilizados e esquecidos por uma narrativa oficial em torno da repressão e da militância. A comunidade resiste ainda aos movimentos e gestos neoliberais que buscam só abafar as relações sociais calcadas na solidariedade e no convívio coletivo. 

Diante disso, o que significa coviver, conviver? Não apresentamos uma resposta objetiva, mas recorremos às reflexões do próprio romance. Vejamos em dois excertos: 

‘Quarenta e seis anos depois a pergunta ganha outro significado. No dia do enterro, com o cadáver saído do necrotério, quando a repórter perguntou ‘quem era Luiz do Carmo?’, eu respondi que para ele ainda não havia soado o momento da justiça. Se a vida passa e os jornais não a percebem, que dirá de uma pessoa fundamental que não é celebridade? Mas o impossível ali eu recupero. Era irônico que, perseguido na ditadura como um terrorista, ainda depois, no tempo dos anistiados, Luiz do Carmo não conhecesse a justiça. Se antes havia tido a negação absoluta de direitos e de leis democratas, agora nos anos de governo eleito pelas urnas, quando podia ir e vir, discursar e escrever, ele continuava sem justiça. Mudavam-se os tempos, mudamos nós, e continuávamos mudos para todos. Pois o reconhecimento público não chegava. Em seu favor, ela poderia dizer que seu hard de famosos merecia receber um upgrade. E o seu chefe, igualmente desconhecedor, a socorreria mais ferino com a frase ‘A memória dos jornais é bem seletiva’. A culpa – se usamos a palavra redutora – era do conjunto da sociedade que esmaga a todos, que pulveriza tudo como um pozinho à toa’.

Segundo trecho:

‘De muitos, que atravessaram na militância clandestina naqueles anos, poderíamos falar de uma Vida Curta e Triste sob o terror de Estado. E de todos podemos dizer que tínhamos vida dupla, uma oculta e outra legal. Sendo mais preciso, tínhamos uma existência legal e uma vida clandestina. Na primeira, mantínhamos uma dolorosa e sufocante aparência de ser, em si mesma uma farsa que representávamos sob ameaça de morte. Na segunda, éramos quase livres, pois mantínhamos um espaço de humanidade, de pessoas apesar da opressão. Uma vida, enfim, que sorria para nós como prometida amante. Era, portanto, na sua negação legal, um suplício de Tântalo. Quando queríamos pegar a flor vermelha, papoula, narcótica e doce, ela se afastava. E quando apressados íamos tomá-la nas mãos, a morte nos imobilizava. Isso conduzia também a uma dupla moral. Os que nos submetíamos à tortura da sobrevivência em trabalho alienante, onde amargávamos ser jovens bobos e calados, estranhos, contribuíamos para os clandestinos que levavam a vida gloriosa. Natural e necessária a contribuição. Natural a glória, porque estavam no front. Mas os da retaguarda estaríamos a salvo se os da frente caíssem? Quase nunca. Se não se vê uma ironia nesta frase, digo que o terror era democrático. A sociedade sem classes que sonhávamos, em uma versão macabra o terror fascista realizava. Onde antes a tortura e o assassinato de presos haviam sido exclusivos de negros e pobres, agora atingiam a todos. Em uma só fila, com faces idênticas, todos éramos terroristas. Assim nos chamavam em infame versão os terrorista de Estado. No entanto, de terror era a vida de animais caçados’.

Se a arte não é o real, tampouco ela se opõe a ele. Diversos textos literários têm tratado do período ditatorial e da sua herança traumática nos últimos anos com maior ênfase, acompanhando as discussões e os questionamentos levantados pelos usos do passado por parte das instituições da sociedade civil. 

Eunice Figueiredo propõe a escritura literária, sobre os arquivos da ditadura, que permite imaginar situações e experiências extremas vivenciadas por homens e mulheres durante o período. Na esteira da proposta da pesquisadora, indo um pouco além, os recursos narrativos da ficção também questionam os arquivos existentes, assim como a ausência de outros. Caso em que o romance de Mota parece intervir de forma contundente ao reivindicar a existência de uma comunidade invisibilizada no ontem por necessidade de sobrevivência e no hoje, por manutenção de uma injusta relação com os espectros. Assim, história e literatura não são opostas, mas também não produzem os mesmos efeitos, ainda que utilizem os mesmos materiais de linguagem e de referenciais sociopolíticos. Conforme Jacques Rancière nos induz a pensar, não se trata pois de dizer que a História, com H maiúsculo, é feita apenas das histórias que nós nos contamos, mas simplesmente que a razão das histórias e a capacidade de agir como agentes históricos andam juntas. A política e a arte, tanto quanto saberes constroem ficções, isto é, rearranjos materiais e símbolos das imagens das relações entre o que se vê e o que se diz, entre o que se faz e o que se pode fazer. Nesse sentido, a ficção que dialoga com o passado ditatorial é sintoma e resistência ao mesmo tempo, pois confirma a permanência dos fantasmas, mas combate enquanto arte ativa ou escritura do artivismo os apagamentos forçados do passado. 

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Portanto, em ‘A mais longa duração da juventude”, o passado é um tempo alargado por opção e confissão do narrador. Diz o narrador: 

‘Lembrar? Não, é tão vivo, que a voz me fala: vivemos hoje o que o calendário indica ter ocorrido há 44 anos. E diferente da luz mecânica, congelada, da estrela morta há séculos, as pessoas retornam vivas com significados que não podíamos ver antes. Melhor, não retornam. Elas não saíram de nós. Continuam, na compreensão sobre elas que amadurecemos. São elas, transformadas pelo que delas só agora entendemos’.

A convivência com as lembranças dos companheiros próximos ou não é a esperança que o autor e narrador cultiva, e a partir da forma romanesca, os vírus detentores dessa dívida com o passado, eu, você, nós, ao claro enfrentamento conjunto aos tempos árduos e solitários do presente e futuro.

O romance de Mota não opera a manutenção de uma imagem fixa e cristalizada da militância e resistência do passado. Mas antes, reivindica no presente da escritura e no sempre presente da leitura, espaços na história contemporânea para os pequenos feitos daqueles grandes indivíduos que ele presenciou como resistentes solitários e anônimos. Ressignificar o passado é também construir novas partilhas, outros mundos onde e quando outras subjetividades possam existir.

Uma das cenas marcantes nesse romance que toca na memória coletiva é a chacina da Chácara São Bento, em 1973, Pernambuco, onde seis militantes foram brutalmente assassinados por delação de um infiltrado, que reivindica hoje uma verdade alternativa: o famoso cabo Anselmo. Para quem ainda não o conhece, ele se infiltrou durante muito tempo nos grupos de militância, como a VPR, e entregou, escrúpulo ele não tem nenhum, teve a ação nefasta de entregar a sua própria companheira, que estava grávida, e morreu grávida, que foi a Soledad, que era uma militante paraguaia e viveu no Brasil seus últimos dias. Sobre ela, Urariano tem outro romance. 

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Eu queria deixar marcado aqui o quanto a gente precisa cada vez mais se conscientizar com essas reflexões e leituras, porque eu acredito que a literatura é muito mais que um passatempo, é muito mais que a mera imaginação do passado, mas uma imaginação do passado para a construção do presente e do futuro. É exatamente para combater essas ‘verdades’ alternativas que esses sujeitos vêm aí a campo dizer que são os donos”.                                                                             

O vídeo da fala do mestre Helder Santos Rocha aqui:

 

11
Set21

Um sonho que a repressão não destrói

Talis Andrade

 

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Sonho de abnegação, igualdade, de liberdade, de justiça para todos, de desapego perante os bens materiais

 

por José Carlos Ruy

Um dia desses, conversando com minha filha, uma moça de 21 anos que estuda Letras, ela me falava, contrariada, de tantas moças e rapazes (e movimentos e artistas ‘jovens’) que parecem envelhecidos pela recusa a correr riscos, e pela vontade de ter todas as garantias e segurança que a sociedade oferece. São jovens na idade, mas não no coração, dizia ela.

Esta lembrança me ocorre no momento em que escrevo a ‘apresentação’ a este livro extraordinário a que Urariano Mota deu um título preciso: A mais longa duração da juventude. Um relato ficcional amplamente ancorado na memória dos jovens que, por volta de 1970, resistiam à ditadura no Recife, como tantos outros Brasil afora. E traziam inscrito em sua bandeira, com letras de um vermelho flamejante: ‘revolução e sexo’. Nesta ordem, adverte Urariano.

Urariano autógrafo.jpg

 


Rapazes e moças que, por volta de seus vinte anos, viviam às voltas com as agruras da luta política e revolucionária, e os ardores do sexo que despertava. Agruras e ardores narrados com a precisão de acontecimentos ‘de ontem’, que continuam presentes, quase meio século depois, com a mesma e intensa realidade do brilho das estrelas de que conhecemos somente a luz que cruzou milhares de anos-luz, estrelas que talvez nem existam mais no momento em que sua imagem nos alcança.

A luz dessas estrelas é semelhante ao sonho que, hoje, meio século mais tarde, aqueles jovens ainda sonham mesmo que seus corpos já não tenham a força dos vinte anos. Mas o viço e o vigor do sonho permanecem. E fazem mais longa a duração da juventude.

Urariano Mota sabe como poucos mesclar memória e ficção. E de tal maneira as confunde na textura da escrita que, nela, o real vira imaginado, e o imaginado assume as formas do real. E o tempo funde as duas pontas do relato, entre o passado e o presente. Fundidos por uma reflexão fina, ligada – para dizer como se dizia há quase meio século – pela análise concreta de situações concretas. Não é filosofia, quer Urariano. Mas é reflexão fina, humanamente fina e que tem o dom de trazer à vida, com seus matizes, os debates com que aqueles jovens de esquerda, revolucionários, desenhavam seu futuro, o futuro de todos, do país e da humanidade.

Sonho que levou o garoto de 1969 a comprar um disco de Ella Fitzgerald onde poderia ouvir I wonderwhy, se tivesse vitrola (palavra antiga para toca-discos, também antiquada no tempo dos igualmente em superação cdplayers). Não importa que não tivesse! Teria, um dia, e ouviria a cantora cuja voz amava. Sonho semelhante ao que tantos anos depois, quando já não existia a ameaça da repressão ditatorial, queria uma bandeira do Partido Comunista do Brasil para envolver o caixão do amigo morto.

Sonho de abnegação, igualdade, de liberdade, de justiça para todos, de desapego perante os bens materiais e construção de um mundo novo, socialista.

Sonho embargado pela memória cruel da sordidez da delação do infame Cabo Anselmo, que levou Soledad e tantos outros à morte na tortura ou pelas balas da repressão da ditadura.

Nesta permanência da juventude não há, como há em Goethe, nenhum pacto com o demônio, como aquele pelo qual o poeta buscou a garantia da juventude permanente.

‘Eu não sou um velho. Aliás, nós não somos velhos’, diz um diálogo neste livro maravilhoso. ‘Eu sei. O tesão de mudar o mundo continua’.

Este é um livro que une, com a arte da memória, 1970 e 2017 – se fosse possível fixar parâmetros tão fixos... É um livro que olha o passado não pelo retrovisor que encara o acontecido faz tanto tempo. É um livro que faz do passado os faróis que iluminam o caminho do futuro. E reduz a distância no tempo revivendo, tanto tempo depois, a mesma luta que uniu, e une, tanta gente.

Um sonho contra o qual a barbárie e a estupidez dos cabos anselmos da repressão da ditadura foi impotente. E não o destruiu. E que é a senha para a mais longa duração da juventude.

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