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O CORRESPONDENTE

Os melhores textos dos jornalistas livres do Brasil. As melhores charges. Compartilhe

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O CORRESPONDENTE

29
Ago23

A origem da ideia de que prisão consegue 'corrigir' detentos

Talis Andrade
Hino à Deusa Nungal, em exposição no Instituto para Estudos das Culturas Antigas da Universidade de Chicago

Hino à Deusa Nungal, em exposição no Instituto para Estudos das Culturas Antigas da Universidade de Chicago

 
  • J. Nicholas Reid
  • The Conversation, BBC News
 

As prisões são locais de sofrimento. Mas, em teoria, elas almejam algo além da punição: a regeneração.

Nos Estados Unidos, o objetivo de reabilitação de prisioneiros remonta, em parte, à inauguração em 1876 do Reformatório Elmira, no norte do Estado de Nova York.

Supostamente uma instituição de "regeneração benevolente", o reformatório visava transformar os prisioneiros, não apenas privá-los [de liberdade] – embora o fundador Zebulon Brockway, conhecido como o "pai das correções americanas", fosse notoriamente severo.

Outros Estados americanos logo adotaram o modelo reformatório, e a noção de que as prisões são lugares para "corrigir" as pessoas se tornou um elemento básico do sistema judicial.

Mas a ideia de que a prisão e o sofrimento eram supostamente bons para o prisioneiro não surgiu no século 19. A evidência mais antiga remonta a cerca de 4.000 anos no passado: a um hino da Mesopotâmia, no atual Iraque, louvando uma deusa da prisão chamada Nungal.

Quase uma década atrás, como estudante de pós-graduação pesquisando a escravidão no início da Mesopotâmia, encontrei vários textos que tratavam do aprisionamento.

Alguns eram documentos administrativos que lidavam com informações contábeis cotidianas. Outros eram textos jurídicos, literatura ou cartas pessoais.

Fiquei fascinado com o aprisionamento nessas culturas: a maioria detinha suspeitos apenas brevemente, mas em textos literários e rituais, o aprisionamento era visto como uma experiência transformadora e purificadora.

A 'casa da vida'

Por volta de 1.800 a.C. (antes de Cristo), estudantes treinados como escribas em Nippur, uma antiga cidade suméria (mais antiga civilização conhecida da região do sul da Mesopotâmia), frequentemente copiavam de uma seleção de 10 obras literárias.

Usando a escrita cuneiforme, esses aspirantes a escriba copiavam textos que incluíam as façanhas do lendário herói Gilgamesh enquanto ele lutava contra a fera Huwawa, o temível guardião da floresta.

Eles escreveram sobre um grande rei da Mesopotâmia chamado Šulgi, que afirmava ser um deus.

E enquanto o mestre escriba ditava esses vários textos, os alunos também ouviam falar de uma deusa da prisão chamada Nungal.

Embora sua justiça fosse inevitável, Nungal também era celebrada por sua compaixão. Sua "casa" trouxe sofrimento aos prisioneiros, cuja tristeza deu origem ao lamento. Por meio desse lamento, porém, os prisioneiros podiam ser purificados de seus pecados e se acertar com seus deuses pessoais, que eram seus protetores e mediadores perante os deuses maiores.

O "Hino a Nungal", que data do segundo ou terceiro milênio a.C., detalha como um prisioneiro culpado condenado à morte não foi morto, mas arrebatado "das garras da destruição" e colocado na casa de Nungal, que ela chama de "casa da vida" – mas também um lugar de sofrimento, isolamento e dor.

Ainda assim, o hino descreve prisioneiros transformados por seu tempo na prisão.

A deusa diz que sua casa é "construída com compaixão, acalma o coração daquela pessoa e refresca seu espírito".

Eventualmente, ela continua, eles lamentarão e serão purificados aos olhos de sua divindade.

"Quando tiver apaziguado o coração de seu deus por ele; quando o tiver polido como prata de boa qualidade, quando o tiver feito brilhar através do pó; quando o limpar da sujeira, como prata da melhor qualidade... ele será confiado novamente nas mãos propícias de seu deus."

Fato ou ficção

Até que ponto os antigos acreditavam em tais histórias sobre os deuses permanece uma questão de debate. Textos como o "Hino a Nungal" eram assuntos de religião sincera ou apenas contos de fadas que ninguém levava a sério?

Por se tratar de um texto literário, também não é uma fonte confiável sobre o sistema de justiça.

Os reinos da Mesopotâmia durante esse tempo parecem ter usado prisões para deter suspeitos antes da punição, semelhantes às prisões que mantêm suspeitos antes do julgamento hoje.

Eles também detiveram pessoas para forçá-las a pagar uma multa ou dívida e para coagir ao trabalho – às vezes por mais de três anos. Mas a punição, que normalmente envolvia consequências físicas ou financeiras, não incluía tempo na prisão.

Ainda assim, a detenção implicava sofrimento, com um prisioneiro descrevendo a "prisão" como uma "casa de angústia ou fome" em uma carta escrita a seu superior.

Em outro texto, o remetente diz que foi solto, mas reclama de espancamentos sofridos por outro preso durante o processo investigativo – embora o remetente não mencione a natureza do suposto delito.

No entanto, os estudiosos Klaas Veenhof e Dominique Charpin encontraram evidências de Nungal desempenhando um papel no processo judicial.

Em alguns templos, os juramentos eram feitos na presença de uma rede de arremesso, semelhante à usada para lançar peixes, que simbolizava Nungal e a justiça inescapável.

A visão lançada no hino provavelmente foi dobrada em uma prática ritual posterior, onde a prisão foi usada para purificar o rei.

Durante o festival de Ano Novo, o rei foi despojado de suas insígnias e entrou em uma prisão improvisada feita de junco, onde ofereceu orações aos deuses por seus pecados. Por meio de orações e rituais, ele foi considerado purificado e apto a retomar seus deveres reais.

Ontem e hoje

Embora a maioria das pessoas não tenha passado longos períodos nas prisões da Mesopotâmia, elas sofreram nelas.

Talvez seja essa experiência que fez com que um texto como o "Hino a Nungal" fosse escrito, explorando como tal experiência poderia ser usada para reformar o prisioneiro por meio do lamento.

A noção de que a prisão pode ser boa é difundida, mas é correta?

A forma como os sistemas prisionais pensam sobre a regeneração é muito diferente hoje de como o "Hino a Nungal" a prevê.

No entanto, a poderosa ideia de que o sofrimento pode ser bom para os prisioneiros tem profundas raízes históricas – permitindo que os sistemas carcerários afirmem que o sofrimento dentro de suas paredes é compassivo [isto é, representa um ato de compaixão].

21
Ago23

Júri e prisão automática: STF versus STF – o que é um precedente?

Talis Andrade

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Por Lenio Luiz Streck

Consultor Jurídico

Prisão imediata no Júri: esse é ponto central do RE 1.235.340/SC (Tema decorrente: 1.068) que está agora no plenário físico do STF. Até agora tínhamos o seguinte resultado:

O ministro Barroso (aqui) deu provimento ao RE e fez tábula rasa, dizendo que nem mesmo a limitação de 15 anos deve ser levada em conta como teto, com o que qualquer condenação do júri se torna de aplicação automática (prisão do réu dos moldes da súmula declarada inconstitucional do TRF-4, nº 122).

Os ministros Dias Toffoli, Alexandre de Moraes, Carmen Lúcia e André Mendonça acompanharam tal entendimento.

Já os ministros Gilmar, Rosa e Lewandowski discordaram e votaram inclusive pela inconstitucionalidade do dispositivo da Lei Anticrime que dizia que prisões acima de 15 anos determinavam a prisão imediata.

Restou o ministro Fachin, com voto médio, discordando da maioria dos cinco, mas não concordando com a minoria dos três. Para ele, não pode haver prisão automática, salvo para penas acima de 15 anos.

Então tínhamos, até o pedido de destaque do ministro Gilmar, cinco votos plenos pela prisão automática, três pela inconstitucionalidade até mesmo dos 15 anos e um voto pela manutenção dos 15 anos sem automaticidade.

Escrevi aqui na ConJur sobre o voto do ministro Barroso, que foi condutor da maioria dos cinco votos. Barroso diz que presunção da inocência, formada nas ADCs 43, 44 e 54, é princípio e não regra, podendo ser "aplicada com maior ou menor intensidade, quando ponderada com outros princípios ou bens jurídicos constitucionais colidentes".

Assim, no item 16 do seu voto, Barroso diz que é necessário ponderar o princípio da presunção de inocência e, como tal, "pode ser aplicado com maior ou menor intensidade, quando ponderada com outros princípios ou bens jurídicos constitucionais colidentes" com a soberania dos veredictos, de modo a dar prevalência a este último fundado, inclusive, na função do Direito Penal de proteção de bens jurídicos, in casu, da vida humana. Aí já começa o problema: fosse correto o dizer do ministro, ficaria a pergunta: quem decide "a maior ou menor intensidade"? Com qual critério?

Sigo. Demonstrei o equívoco do voto do ministro Barroso e cheguei a colocar a fórmula peso de Alexy para demonstrar que a ponderação propalada pelo ministro se mostrou errada. Demonstro isso com detalhes (para quem não leu, ponho o link mais uma vez aqui).

Na sequência, lembrei do caráter vinculante das ADC 43, 44 e 54, que exigem a vinculação do julgador ao seu resultado como uma condição prima facie — o que se afirma inclusive com apoio na TAJ de Alexy. Isto é, não há nada na teoria de Alexy que dê algum conforto ao voto do ministro Barroso.

No meu artigo também falei do equívoco do voto do ministro ao fazer a interpretação conforme à Constituição (verfassungskonforme Auslegung) do dispositivo que diz que penas acima de 15 anos têm cumprimento imediato.

Nesse sentido, o voto contestado comete o pecado da jurisdição constitucional, que é o de mascarar uma legislação pelo Judiciário como controle de constitucionalidade incidental. Seu argumento é de que a lei não deveria limitar a execução da pena para casos de condenação igual ou maior a 15 anos. Na sua opinião, a regra deveria valer para qualquer condenação, e assim ele propõe essa discussão em seu voto.

Não é possível encontrar algum espaço para uma interpretação conforme a Constituição no caso. No caso, o voto estabelece uma nova lei. A dogmática constitucional mostra claramente que o instituto da Interpretação Conforme possui limites. O que muda na interpretação conforme é a norma (sentido do texto), mas o tribunal não está autorizado a colocar outra "letra no lugar".

Aí vem a grande questão, bem captada nos votos de Gilmar, Rosa e Lewandowski: se existe inconstitucionalidade, essa está em dizer que penas de 15 anos mandam prender automaticamente. A inconstitucionalidade reside no inverso do que disse o ministro Barroso.

Por quê? Porque o STF possui um precedente vinculante sobre presunção da inocência: as ADCs 43, 44 e 54. A holding do precedente é: não existe prisão automática no Brasil. Havendo condições pessoais favoráveis, é possível recorrer aos tribunais superiores em liberdade. Aliás, prisão automática existia no CPP original. No Estado Democrático, o STF baniu, ainda que por escassa maioria. Presume-se a inocência. E não a culpa.

Portanto, o voto de Barroso coloca o STF contra o próprio STF, ao não obedecer a seu próprio precedente. Trata-se de um easy case que o ministro transformou em um tragic case.

Há uma contradição na posição do ministro e dos que o seguiram. Se o STF decidir pela prisão automática no júri — para qualquer pena ou mesmo para aquelas acima de 15 anos — teremos que a Suprema Corte cai em uma contradição: uma afirmação e uma negação. Um precedente que assegura algo e outro que dessassegura o que assegurava. Com a tese dos cinco votos, cria-se duas categorias de réus: os do júri (sem presunção de inocência) e os do resto do "sistema" (que possuem esse direito).

Resta saber se, vencedora a tese da prisão automática, caberia reclamação no STF contra o próprio Supremo, por descumprimento de seu próprio precedente. Afinal, Reclamação constitucional cabe toda vez que um tribunal desobedece a um precedente vinculante da Suprema Corte.

Volta-se ao problema recorrente: o que é um precedente (ver qui a crítica à recém-lançada Revista de Precedentes). Como podemos falar de precedentes, se institucionalizamos algo que inexiste nos demais países: a divisão em "precedentes qualificados" e "precedentes meramente persuasivos"? O que é vinculante num precedente? O que vincula? Essa é a discussão que temos de fazer — e nisso a doutrina tem de se manifestar.

Como pode uma decisão em três ADCs que declara constitucional um artigo que espelha a Constituição não gerar um precedente a partir do qual está sacralizada como precedente a presunção da inocência até o trânsito em julgado, no sentido de que, tal como optou por fazer o legislador, ninguém será preso até que se encerre juridicamente a presunção da inocência com o trânsito em julgado?

Há mais uma questão que deveria ser levada em conta, mais pela doutrina do que pelo próprio STF: se o STF "superar" o precedente da presunção da inocência no caso da prisão no Júri, estará aberta a porta para voltar ao patamar anterior às ADCs 43, 44 e 54. Mais ainda, restará a institucionalização da Repercussão Geral como uma carta branca para que magistrados legislem. Observe-se: no RE não está em discussão a prisão automática. Era um caso concreto acerca da possibilidade de recorrer ou não em liberdade. O que está ocorrendo — com o Tema 1068 — é que o precedente a ser firmado é uma forma de legislar para o futuro.

Numa palavra: esse é o papel da doutrina em qualquer país do mundo, queiramos ou não. Sua função é iluminar e mostrar os acertos e os erros das decisões judiciais. Com todas as vênias — para usar um jargão do juridiquês — se esse não for o papel da doutrina, ela perde a sua serventia. A obra mais premiada na Alemanha nos últimos tempos se chama Uma Interpretação Ilimitada (ou Não Constrangida), de Bernd Rüthers (Die unbegrenzte Auslegung). Ali ele mostra como, ao ficar silente, a doutrina (e não só ela, é claro) assistiu, lenientemente, à ascensão do regime que levou ao nazismo.

Chamo a esse papel, com toda a lhaneza, de necessário constrangimento epistemológico [1].

- - -

[1] Cfe. Verbete Constrangimento Epistemológico – Streck, L. L. Dicionário De hermenêutica (Editora Casa do Direito, 2ª. Ed) e Verbete Fator Julia Roberts – Streck, L.L. Dicionário Senso Incomum (Editora Dialética).

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21
Ago23

TJ-SP extingue multa aplicada a condenada em situação de pobreza

Talis Andrade

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Consultor Jurídico

Embora seja justo cobrar as devidas respostas daqueles que cometem crimes, na maioria dos casos o não pagamento da pena de multa ocorre devido à total falta de condições financeiras de condenados que são paupérrimos e acabam presos por delitos contra o patrimônio ou tráfico de drogas.

Com base nessa premissa, a 13ª Câmara de Direito Criminal do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) deu provimento a um agravo de execução penal para extinguir a punibilidade de uma ex-detenta independentemente do pagamento de uma pena de multa imposta a ela.

De acordo com os autos, o juízo de primeira instância extinguiu a pena privativa de liberdade e a punibilidade criminal da mulher — que ficou presa por 15 anos com base na Lei de Drogas —, mas não anulou a multa de cerca de R$ 28 mil. A mulher, porém, é idosa e vive em condição de insuficiência econômica, já que possui renda mensal de apenas R$ 1,2 mil. Por isso, concluiu a defesa, ela não teria condições de arcar com aquele valor.

Ao analisar o caso, o desembargador relator Marcelo Semer discorreu sobre a ideia de função social da pena de multa adotada pelo Superior Tribunal de Justiça. Ele explicou que, embora seja justo exigir respostas daqueles que cometem crime, muitas vezes o não pagamento da multa se deve à absoluta hipossuficiência dos condenados, que possuem perfil "muito distinto dos autores de crimes do colarinho branco".

Assim, prosseguiu Semer, excetuados casos raríssimos, o apenado que chega em situação de pobreza ao presídio sai de lá com a situação idêntica ou piorada. "E, na hipótese, está suficientemente demonstrada a

hipossuficiência da parte agravante. Como dito, a situação de pobreza generalizada entre os apenados em nosso sistema carcerário não pode ser apenas um dado abstrato, mas deve ser parte integrante na análise dos pedidos de extinção da pena de multa", sustentou o relator.

Semer lembrou também que delitos dispostos na Lei de Drogas, a exemplo do caso relatado nos autos, geram multas desproporcionais, que excedem "em muito a capacidade financeira da média da população brasileira e, em especial, da população encarcerada".

"A manutenção de execuções da pena de multa sem

critérios desperdiça dinheiro público em contrariedade ao princípio da

eficiência (art. 37, caput, CF), mobilizando a máquina estatal em

cobranças com menos de 1% de sucesso por simples ausência de

recursos da população egressa", completou Semer.

Além disso, segundo o desembargador, se houver elementos mínimos

nos autos que comprovem a hipossuficiência do apenado, "não

há de se falar em ausência de provas para a extinção da pena de multa".

"Assim, qualquer análise realista da situação financeira da parte agravante não encontra indício de que ela possua condições de pagar o valor cobrado. Pelos elementos constantes nos autos, evidente que a parte executada não possui quaisquer bens ou valores, situação de mais pura e simples hipossuficiência", concluiu Semer ao acolher o pedido.

Também participaram do julgamento os desembargadores Xisto Albarelli Rangel Neto e Augusto de Siqueira.

Clique aqui para ler a decisão

"É um absurdo o traficante André do Rap estar, neste momento, curtindo uma guarânia do outro lado da fronteira. Mas também é um absurdo sem tamanho que uma lei criada para evitar que pobres permaneçam presos indefinidamente e sem julgamento seja atacada por conta do ocorrido", analisa Leonardo Sakamoto

10
Abr23

Defesa de Anderson Torres pede revogação de prisão e diz ex-ministro está 'em tristeza profunda' que seria de milhões de brasileiros se o golpe tivesse vencido

Talis Andrade

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Segue piedoso texto de Márcio Falcão e Bruna Yamaguti, TV Globo e g1 DF:

06
Abr23

Prisão especial não é privilégio. É a prova do fracasso do Sistema

Talis Andrade
 
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por Lenio Luiz Streck /ConJur

 

Esclarecendo o imbróglio

 

Recentemente o Supremo Tribunal Federal declarou, no âmbito da ADPF nº 334, proposta pela PGR ainda em 2015, a inconstitucionalidade da prisão especial prevista no artigo 295, inciso VII, do Código de Processo Penal. A decisão se deu por rara unanimidade do pleno, tendo o ministro Alexandre de Moraes como relator.

O fundamento central da decisão baseou-se na necessidade de se observar o princípio constitucional da isonomia, em que "[a] extensão da prisão especial a essas pessoas [diplomadas] caracteriza verdadeiro privilégio que, em última análise, materializa a desigualdade social e o viés seletivo do direito penal e malfere preceito fundamental da Constituição que assegura a igualdade entre todos na lei e perante a lei". (grifei)

A questão parece ser, em um primeiro olhar, pacífica. Um "easy case". E o consenso se fez presente, de fato, na unanimidade do pleno.

Mas exercitando meu resoluto senso incomum — sem deixar de lado meu local de fala como amicus da corte —, ouso discordar das razões de uma decisão como essa.

Vejamos.

 

Uma isonomia às avessas?

 

Todos sabemos que soa muito bem falar em "isonomia" quando o mérito é a "impunidade", o "combate" (sic) à criminalidade, etc. Combater privilégios é uma obrigação republicana.

A questão que se deixa de lado, contudo, quando se decide sobre qualquer tema relacionado ao sistema carcerário brasileiro, é... o próprio sistema carcerário!

Explico. Como sabemos, no mesmo ano em que a ação que discuto aqui foi proposta, 2015, o Supremo Tribunal declarou o sistema prisional em Estado de Coisas Inconstitucional (ADPF 347). Na época me manifestei contrariamente ao modelo de decisão aplicado, uma vez que de difícil — ou impossível — eficacialidade (sugiro a leitura do texto que escrevi — ver aqui).

Não parece desarrazoado pensar, hoje, que, se o sistema prisional é "inconstitucional", não faz muito sentido retirar a previsão de prisão especial para quem possua curso superior. Por isso é que se trata de uma isonomia às avessas, ou "nivelada por baixo". O jornalista Elio Gaspari, falando a sério ou por ironia, disse que, ao ser extinta essa prisão especial, os presídios melhorariam, porque gente do andar de cima faria com que as condições melhorassem em face da possibilidade desse segmento frequentar os ergástulos de Pindorama.

Não creio muito nesse tipo de "dialética". Seria mais ou menos como um marxista dizer que assalto acirra a luta de classes ou que não dar esmola acirra a revolução. Isto é: prender pessoas "do andar de cima" sem o "privilégio" da prisão especial antes da condenação definitiva poderá acarretar melhorias? Não creio. Porque o ponto não é esse.

Se o argumento é a isonomia, não funciona, porque advogados e autoridades continuarão a ter esse direito "especial". Logo, talvez a decisão do STF funcionasse se fosse, mesmo, para todos.

Eu não concordo. Sou a favor da prisão especial enquanto os presídios continuarem como estão (em Estado de Coisas Inconstitucional — afinal, foi o STF quem assim decidiu!).

No giro do raciocínio, penso que não deveria nem mesmo haver "prisão especial", pois esse raciocínio já parte do pressuposto de que há uma prisão "geral" — leia-se, um tipo de prisão que não seja condigna e humanitária.

Prisão deveria ser uma só, para qualquer prisioneiro, provisório ou definitivo, excetuando-se, evidentemente, pessoas que exigem algum cuidado especial do Estado, seja para assegurar a sua própria segurança ou a dos demais presos. Isso, sim, que poderíamos chamar de isonomia.

 

O contrassenso jurisdicional

 

Todo o resto é contrassenso jurisdicional, pois ao fim e ao cabo o Supremo Tribunal está, nas razões do acórdão da ADPF 334, decidindo contra o mérito da ADPF 347 (a do Estado de coisas Inconstitucional). Parece-me difícil não ligar uma decisão à outra.

Continuo a achar que aquela decisão (a do ECI) também teve caráter meramente retórico, pois declarar o sistema carcerário um estado de coisas inconstitucional não resolve(u) o problema. É como proibir o mosquito da febre amarela.

Garantir aos acusados que suas garantias processuais penais sejam cumpridas, por outro lado, resolve(ria). Mas a decisão veio e fez jurisprudência. Logo, o precedente do Estado de Coisas Inconstitucional tem de ser respeitado. Portanto, se há um "estado de coisas inconstitucional" nas/das prisões brasileiras, dever-se-ia diminuir o número de detentos, não aumentar. Pior: já tem muita gente querendo acabar com a presunção da inocência.

Quem ler a Lei de Execuções Penais perceberá que, fosse obedecida à risca, dispensaríamos prisão especial. O problema é a triste realidade. A triste realidade de um sistema já declarado inconstitucional e que, na prática, continua degradado e degradante. A decisão tomada na ADPF 334 mira na isonomia, mas a acerta na incoerência, pois o cumprimento da lei — para todos — é que gera a isonomia.

De todo modo, torçamos para que os órgãos competentes — incluindo neles o legislativo — impeçam que novos projetos encarceradores e punitivistas avancem; o executivo, a partir de políticas penitenciárias e de segurança pública efetivas; e o judiciário, cumprindo a LEP com rigor e efetivando garantias processuais a todos (vide o contraexemplo do Rio Grande do Norte, pois não?).  

Apenas com o tempo poderemos atestar o quão retórico ou efetivo foram decisões como a ADPF 347 e 334.

Numa palavra final, vale a ironia do jornalista e filósofo Hélio Schwartsman, da Folha de S.Paulo. Como ele é "apenas" (entendamos bem as aspas) alguém com curso superior (portanto, sem direito à prisão especial!), sugere: "... vou reativar minha igreja, a Igreja Heliocêntrica do Sagrado EvangÉlio, e passar a distribuir ordenações sacerdotais. Com a exclusão dos que tem formação universitária do rol de beneficiados, o preço do título de ministro religioso deve subir".

Nota: para quem não sabe, pastores continuam com direito a prisão especial. Isto é: resta um imenso rol de pessoas com direito à prisão especial.

 
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08
Fev23

Bolsonaro: “Vou acabar com as mordomias de presos”. Veja celas onde estão terroristas em Brasília um mês após invasão dos três poderes

Talis Andrade
 
 
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Disse Jair Bolsonaro que não “vai dar refresco para bandido”, e que pretende condecorar inclusive o policial que “matar” no exercício de sua função.

“Temos que mudar isso. Eu prefiro um cemitério cheio de bandido que de inocentes. Os Direitos Humanos têm que se colocar no seu devido lugar e cuidar das vítimas. Bandido é bandido, e comigo não vai ter vez”, disse Bolsonaro.

Perguntado sobre o sistema atual prisional do Brasil, que hoje consome bilhões dos recursos públicos da União, Bolsonaro disse que vai acabar com as mordomias de presos. Entrevista in 2/set/2018. 

O presidente Jair Bolsonaro mantém apoio ao projeto de lei que acaba com as mordomias para ex-presidentes, de autoria dele mesmo e do ex-deputado Delegado Francischini (PSL-PR), que tramita na Câmara. Mas um assessor do presidente sugeriu à relatora do projeto, deputada Caroline de Toni (PSL-SC), que sejam mantidos pelo menos dois seguranças, por tempo determinado, para ex-presidentes ameaçados de morte. Por Jenifer Ribeiro dos Santos, in Gazeta do Povo, 19/03/2020. 

O presidente Jair Bolsonaro criticou nesta segunda-feira a recomendação do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) de soltar presos que façam parte de grupos de risco do coronavírus. Bolsonaro disse que, se dependesse dele, ninguém seria solto, porque os presidiários "estão muito mais protegidos dentro da cadeia".

— A decisão não foi do governo federal, não foi do Ministério da Justiça. Veio do Conselho Nacional de Justiça. Eu, se depender de mim, não soltaria ninguém. Afinal de conta, estão muito mais protegidos dentro da cadeia, porque nós proibimos as visitas íntimas, proibimos as visitas também nos presídios, de modo que estão bem protegidos lá dentro — disse Bolsonaro, durante entrevista à RedeTV. In O Globo, por Daniel Gullino, 30/03/2020

 

Por Bruna Yamaguti, g1 DF

 


Sanitário da prisão onde estão terroristas que invadiram prédios dos Três Poderes, em Brasília — Foto: DPU/Reprodução

Sanitário da prisão onde estão terroristas que invadiram prédios dos Três Poderes, em Brasília — Foto: DPU/Reprodução

Um mês atrás, em 8 de janeiro de 2023, bolsonaristas radicais invadiram a Esplanada dos Ministérios e vandalizaram os prédios dos três poderes, em Brasília. Após os atos terroristas, mais de mil pessoas foram presas e transferidas para presídios do Distrito Federal.

A maioria dos homens foi para os blocos 4 e 6 do Centro de Detenção Provisória II, no Complexo Penitenciário da Papuda. Quando os presos chegaram ao local, no dia 10 de janeiro, representantes da Defensoria Pública do DF (DPDF) e da Defensoria Pública da União (DPU) fizeram uma inspeção para avaliar as condições do presídio, que está superlotado:

 

 

  • Os blocos 4 e 6 da Papuda têm capacidade para 196 presos
  • Já havia 287 presos no local
  • A lista de presos chegou a ter 1.138 nomes

 

 

Segundo a DPU, foram colocadas 12 pessoas em cada cela que tem capacidade para 8 presos.

 

 

Como são as celas?

 

Prisão onde estão terroristas que invadiram prédios dos Três Poderes, em Brasília — Foto: DPU/Reprodução

Prisão onde estão terroristas que invadiram prédios dos Três Poderes, em Brasília — Foto: DPU/Reprodução

 

Segundo o relatório da Defensoria Pública, as celas onde estão os bolsonaristas radicais têm:

  • Uma pia
  • Um chuveiro com água fria
  • Um vaso sanitário

O banheiro fica à vista de quem passa no corredor, sem privacidade para os presos realizarem suas necessidades.

As portas das celas são chapeadas e há algumas ventanas, que permitem iluminação e ventilação "mediana". Há camas de concreto e colchões, no entanto, o tamanho das celas não foi divulgado "por questões de segurança".

 

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Objetos e bagagens que estavam com terroristas que invadiram prédios dos Três Poderes, em Brasília — Foto: DPU/Reprodução

Objetos e bagagens que estavam com terroristas que invadiram prédios dos Três Poderes, em Brasília — Foto: DPU/Reprodução

 

Os bens pessoais dos manifestantes foram inicialmente alocados em um banheiro desativado pois, segundo a administração da penitenciária, "não havia outro local adequado para guardar o grande volume de objetos". Uma etiqueta identificava o dono das bagagens (veja imagem acima).

 

Quais são as acusações?

 

O último relatório da Procuradoria Geral da República, divulgado em em 4 de fevereiro, mostrava que 653 suspeitos já tinham sido denunciados à Justiça.

 

Eles são acusados de:

  • associação criminosa (um a três anos de prisão);
  • e de incitar a animosidade entre as Forças Armadas contra os Poderes Constitucionais (três a seis meses).

O Ministério Público pede que, além da punição criminal, os vândalos sejam condenados a indenizar o Estado pela destruição do patrimônio.

Prisão onde estão terroristas que invadiram prédios dos Três Poderes, em Brasília — Foto: DPU/Reprodução

Prisão onde estão terroristas que invadiram prédios dos Três Poderes, em Brasília — Foto: DPU/Reprodução

Veja passo a passo dos atos terroristas de bolsonaristas radicais contra Congresso, Planalto e STF — Foto: Guilherme Gomes/g1

Veja passo a passo dos atos terroristas de bolsonaristas radicais contra Congresso, Planalto e STF — Foto: Guilherme Gomes/g1

 
Veja passo a passo dos atos terroristas contra Congresso, Planalto e STF

 

Leia mais notícias sobre a região no g1 DF.

 
03
Jan23

Os redentores do Império e o sangue de Deus

Talis Andrade

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(Foto: Bernardo Jardim Ribeiro/Sul21.com.br)

 

É através da distorção do cenário bíblico do Antigo Testamento que pregadores punitivistas argumentam a favor da pena de morte no Brasil

 

Por André Kanasiro | Revista Opera

O governo que assola nosso país desde 2018 tem feito aflorar o que muitos chamam de viúvas da ditadura — pessoas que, por falta de conhecimento ou excesso de ódio, sentem falta dos gorilas que mataram seus irmãos e desafetos a partir de 1964. Mas ele faz aflorar, dos ralos da História, ainda outro grupo: as viúvas do Pentateuco, que sentem falta de sua própria versão distorcida do Antigo Testamento. Enxergando em Moisés a repressão e a impiedade que envenenam suas próprias almas, pregam aos quatro ventos que a receita para superar o que consideram “a decadência do Ocidente” é seguir princípios supostamente divinos que, através de um endurecimento radical de nosso sistema penal, seriam capazes de colocar ordem na casa brasileira. Os semeadores de ervas daninhas encontram aqui um terreno especialmente fértil para suas mentiras, nossas mentes já aradas pelo sensacionalismo criminal de apresentadores de televisão, e tornam cada vez mais hegemônica a imagem de um Deus sociopata, que se alegra com o sangue do pobre escorrido pelas ruas.

Para enfrentar essas mentiras não basta nos apegarmos ao Novo Testamento, alegando que Cristo anulou todo o resto, e ignorar os séculos de tradição semita que o precederam. Temos que compreender o raciocínio e os princípios subjacentes ao que realmente está escrito no texto mosaico, para só então nos perguntarmos: o que isso tem a ver com o Brasil do século XXI?

Go’el: compreendendo os papéis do redentor

Um dos principais versos utilizados por nossas viúvas do Pentateuco precede o nascimento de Israel e está em Gênesis 9:6, no que seria uma prescrição universal à humanidade: “Quem derramar o sangue do homem, pelo homem o seu sangue será derramado; porque Deus fez o homem conforme a sua imagem.”

Esse verso é um dos muitos que transmite um postulado teológico básico da Bíblia Hebraica: o sangue da violência e do homicídio poluem a terra, que clama a Deus e exige sua purificação para a aproximação da divindade. É a terra que engole o sangue de Abel derramado por Caim (Gn 4), o primeiro homicida, e é também a terra que a partir daí se nega a dar sua força ao assassino. É a violência que corrompe a terra até o ponto de não-retorno e motiva Deus a purificá-la com o Dilúvio (Gn 6). O homicídio não é só um crime contra o próximo, mas contra a própria natureza: o derramamento de sangue inocente introduz um desequilíbrio no cosmo, que só será restaurado à harmonia com o derramamento do sangue culpado.

Tal teologia não é exclusiva da religião de Israel; pelo contrário, variantes podem ser encontradas em várias de suas religiões contemporâneas no Antigo Oriente Médio (AOE). O mesmo se aplica à solução encontrada. A instituição da vingança de sangue, segundo a qual o parente mais próximo de uma vítima de assassinato tem o dever de matar o homicida e restaurar equilíbrio à terra em que habita, pode ser encontrada em todo o AOE. Mas é na Bíblia Hebraica que esta encontra um ápice em seu desenvolvimento teológico e, paradoxalmente, em sua adequação aos princípios divinos de misericórdia.

O vingador de sangue bíblico é uma das muitas faces do go’el, o redentor, que é responsável por restaurar o equilíbrio em diversas situações do dia-a-dia israelita: ele redime a descendência de seu parente que morreu sem deixar filhos ao casar-se com sua viúva, e redime seu irmão hebreu ao encontrá-lo escravizado  — comprando sua liberdade e até as propriedades que este perdeu. O próprio Deus de Israel é o go’el de seu povo, pois o redimiu da escravidão no Egito (Is. 41:14). O redentor restaura a descendência, liberdade e justiça à sociedade em que habita; e, apesar de por vezes trazer a morte, traz vida e liberdade ao seu povo.

Mas mesmo quando deve trazer a morte o redentor encontra um problema: o Deus bíblico é misericordioso demais. Caim, o primeiro homicida e alvo potencial de redentores, lamenta-se com Deus que “todo aquele que me achar, me matará” (Gn 4:14). Deus responde colocando-lhe uma marca, “para que o não ferisse qualquer que o achasse” (Gn 4:15). A regra radicaliza a exceção: em Números 35, ao tratar da legislação penal na futura Terra Prometida, Deus introduz cidades de refúgio para as quais podem fugir os homicidas. Uma vez nestas cidades, o assassino não poderia ser morto por seu redentor, que deveria esperar pelo julgamento a ser feito na assembleia dos líderes de Israel. Caso o homicídio fosse julgado doloso, o redentor atuaria como o carrasco do Estado israelita; mas caso o homicídio fosse julgado culposo, o redentor não poderia matá-lo. O homicida então viveria na cidade de refúgio até que o sangue que ele derramara fosse redimido pelo redentor e expiador de Israel por excelência — é o sumo-sacerdote que, ao morrer, redime a culpa do homicida e permite que este volte pra casa.

A legislação israelita parte de seus paralelos no AOE, mas não sem antes subvertê-los a favor da misericórdia: ao mesmo tempo em que valoriza a vida a ponto de não reconhecer o pagamento de indenizações pela família do homicida à família da vítima, institucionaliza a justiça de forma a conter a espiral de violência. Ao contrário de outras nações da sua época, o redentor não pode restaurar o equilíbrio matando outros membros na família do homicida, e seu testemunho não é o bastante para culpabilizar o réu em julgamento. A justiça penal israelita tem suas próprias contradições, mas possivelmente representou progresso histórico e humanizador ao mundo de sua época.

O Brasil contemporâneo e a redenção da barbárie

É através da distorção desse cenário bíblico que os pregadores punitivistas argumentam a favor da instituição da pena de morte no Brasil, assim como de um sistema penal mais duro que diminua a ocorrência de crimes através do medo. Ignoram, porém, que a falta de justiça em nosso sistema penal só tende a ser exacerbada por tais medidas: a despeito de nossas instituições policiais quebradas e ineficientes, que até 2013 arquivavam quase metade das ocorrências de homicídios sem sequer investigá-las, temos a terceira maior população carcerária do mundo, com pelo menos 812 mil pessoas vivendo em condições subumanas em nossas prisões. Destes presos, mais de 40% sequer foram julgados para estarem ali, e 63% se declaram pretos ou pardos. Entre 2009 e 2013, por exemplo, 65% dos presos não usavam armas, não faziam parte de organizações criminosas, e foram presos em flagrante pelo uso ou pela negociação de substâncias ilícitas. Passarão anos em seus campos de concentração, aguardando julgamento em celas superlotadas enquanto muitos outros crimes sequer são investigados.

Como a radicalização de um sistema ineficiente e racista como esse, herança colonial de uma nação escravista e antipobres, poderia restaurar equilíbrio e justiça às terras da América Latina? Os pregadores não dizem, pois não lhes importa o equilíbrio — multiplicar a violência e a injustiça, ver o sangue dos pobres correndo pelas ruas, e clamar por um novo Dilúvio que os mate com toda a humanidade é o que os importa. Não redimem o sangue de vítimas, e sim a barbárie, pregando a guerra de um Estado contra seu próprio povo. Pregam a solução final — e matam dia após dia nosso grande sumo-sacerdote, Jesus Cristo, que expiou a humanidade e purificou toda a Terra ao derramar seu próprio sangue. Morreu, ironicamente, pelas mãos de um Estado que matava seus súditos e odiava seus pobres. Nossos piedosos pregadores não defendem a Cristo. Defendem o Império e seu direito de matar nosso Deus.

16
Jan21

Omissões de Bolsonaro na pandemia configuram crime de responsabilidade, diz presidente do IBCCRIM

Talis Andrade

por Rogério Gentile

A advogada Marina Pinhão Coelho Araújo diz que o presidente tinha o dever de organizar uma campanha nacional para o enfrentamento da Covid-19

A advogada Marina Pinhão Coelho Araújo afirma que as ações e, sobretudo, as omissões do presidente Jair Bolsonaro na pandemia configuram crime de responsabilidade e são, portanto, passíveis de impeachment.

“Bolsonaro atrapalhou em vez de liderar.” Nova presidente do IBCCRIM (Instituto Brasileiro de Ciências Criminais), entidade que reúne mais de 2100 filiados, entre os quais alguns dos advogados mais respeitados do país, Marina diz que o presidente tinha o dever de organizar uma campanha nacional para o enfrentamento da pandemia, mas optou por deixar os estados à deriva.

“O que está acontecendo no Amazonas é consequência dessa omissão”, afirma.

Em entrevista à coluna, a advogada, que é professora do Insper e doutora em direito penal pela USP, afirma também que o presidente debocha dos direitos humanos e que a sociedade precisa ficar alerta e reagir.

“O IBCCRIM quer somar esforços nessa batalha pelo respeito ao direito de todos.”

 

O IBCCRIM foi fundado em 1992 após o Massacre do Carandiru. Como a senhora avalia a questão dos direitos humanos em tempos de Jair Bolsonaro? Vivemos um período delicado. O governo Bolsonaro tem um discurso de confronto e, muitas vezes, de deboche em relação aos direitos humanos. A sociedade já percebeu que é preciso estar alerta e tem reagido. O IBCCRIM quer somar esforços nessa batalha pelo respeito ao direito de todos.

 

O país é melhor ou pior do que aquele de 1992? Os desafios do instituto hoje são diferentes dos daquela época? Desde 1992, o Brasil avançou em muitos campos. Por exemplo, na educação e na redução da pobreza. Mas os nossos desafios continuam sendo tão grandes que é difícil dizer que melhoramos. O sistema penal tem ainda enormes problemas de racismo, de reprodução de desigualdade, de ampliação de conflitos.

 

Bolsonaro é alvo atualmente de dezenas de pedidos de impeachment. A atuação do presidente Bolsonaro na pandemia, por exemplo, na sua opinião configura crime de responsabilidade? De 1950, a lei que especifica os crimes de responsabilidade é bastante ampla, admitindo diversas interpretações. Na minha opinião, há ações e omissões do presidente Bolsonaro na pandemia que poderiam ser enquadradas como crime de responsabilidade.

 

Quais ações e omissões? Bolsonaro tinha a responsabilidade de agir, de organizar uma campanha nacional para o enfrentamento da pandemia. Foi omisso. Os estados ficaram à deriva. O que está acontecendo no Amazonas é consequência disso. Não estou dizendo que ele é responsável diretamente pelas mortes.

Mesmo nos países que executaram políticas mais centralizadas as pessoas continuam morrendo. Mas ele não organizou o sistema para minimizar o impacto da doença, para que as pessoas pudessem ser melhores atendidas.

O STF ocupou esse espaço da Presidência em algumas decisões, permitindo que os estados buscassem soluções regionais. O conjunto de omissões é grave e a situação do país é muito complicada. Além disso, ao incentivar o uso de medicamento que não tem eficácia técnica-científica, ele também viola as obrigações da Presidência, podendo ser configurado que cometeu crime de responsabilidade. Bolsonaro atrapalhou em vez de liderar.

 

O STF decidiu que o Estado pode determinar que a vacinação seja obrigatória. A senhora concorda? O STF não impôs a vacinação forçada. Disse que, em casos de evidente necessidade para a coletividade, como a saúde pública, é possível determinar a obrigatoriedade. Pareceu-me uma decisão razoável, especialmente por fixar critérios objetivos nessa avaliação por parte do Estado.

 

Passados quase sete anos do início da Lava Jato, qual a avaliação que a senhora faz da operação e da conduta do Judiciário? De um lado, muitos corruptos foram presos e condenados. De outro, reclama-se que direitos individuais foram atropelados. A Lava Jato mudou a percepção da população sobre a eficiência do sistema penal e a impunidade, o que foi positivo. Ao mesmo tempo, são cada vez mais numerosos os indícios de que ela mesma não respeitou os estritos limites da legalidade, como se os fins justificassem os meios, o que é muito ruim para o sistema penal. Além disso, a Lava Jato foi muito usada politicamente, por vários setores. Penso que precisaremos ainda de muito tempo e muita reflexão para uma avaliação isenta do que foi a Lava Jato e de seus inúmeros efeitos.

 

Questões como a prisão em segunda instância ainda estão em debate no país. A senhora é a favor ou contra?A Constituição Federal é muito clara. Ela exige o trânsito em julgado para o início da aplicação da pena. Na minha opinião, a prisão em segunda instância para cumprimento antecipado da pena não é compatível com o nosso sistema jurídico-penal.

 

Como responder ao anseio de punição da sociedade brasileira em que processos criminais são contaminados pela opinião pública? Os anseios de punição e vingança da população não devem determinar a resposta do Estado. É preciso formar e informar a população sobre a importância do Estado de Direito e o respeito aos direitos de todos. Ponto muito importante é mostrar como, ao longo da história, muitos abusos e erros judiciários foram cometidos quando os direitos de defesa são enfraquecidos. A presunção de inocência é um direito fundamental.

 

A senhora é a favor da imunidade parlamentar? Sim. A imunidade parlamentar, que protege a liberdade de palavras, voto e opinião, é uma importante garantia do regime democrático. As ditaduras e autoritarismos sempre tentam diminuir a proteção jurídica do livre exercício da política.

 

O país tem presenciado nos últimos meses uma série de casos de censura judicial. Como a senhora vê a questão do conflito de direitos? De um lado, a liberdade de expressão e o direito de imprensa. De outro, os direitos individuais e de personalidade. Qual deve prevalecer? A liberdade de expressão é um direito fundamental constitucional. Proibida, pois, a censura. Todo ato de censura fere o sistema jurídico. Isso é ponto pacífico. Por outro lado, muitas vidas foram destroçadas com base em delações que depois não foram confirmadas. Assim, acredito que devemos investir esforços em apurar o que se publica e aperfeiçoar a responsabilização sobre o que foi publicado.

 

Recentemente uma juíza foi morta, assassinada pelo marido. A lei brasileira é suficiente em relação ao feminicídio ou é necessário um endurecimento?A lei brasileira me parece adequada. O problema não é que a pena seja branda. É preciso mudar a cultura. Há uma normalização de condutas ofensivas e discriminatórias em relação às mulheres. A forma como a mulher é vista na sociedade brasileira. A sociedade precisa se mobilizar urgentemente. São inaceitáveis os índices de violência contra a mulher no Brasil.

 

A pandemia e a consequente crise econômica acentuaram a judicialização da sociedade, o que evidentemente acarreta mais morosidade para a solução dos conflitos. As práticas de conciliação em curso no país estão no caminho certo para amenizar esse problema? O que pode ser feito ainda? São muito recentes no Direito brasileiro as transações penais e a utilização dos acordos penais antes do início dos processos. É um tema complexo, com muitos aspectos.

Gostaria apenas de destacar que não devemos apenas pensar na rapidez dos procedimentos, mas também na estabilização dos conflitos sociais. O objetivo da Justiça não pode ser simplesmente “encerrar procedimentos”, e sim oferecer, dentro de um tempo razoável, uma solução justa e efetiva. E é precisamente aí que o IBCCRIM deseja contribuir.

- - -

Entrevista publicada originalmente na Folha de S.Paulo

 
 
 
 
 
22
Dez20

Reinaldo Azevedo: Moraes acerta. Fux terá de se explicar. E fake news com grife sobre presos

Talis Andrade

O pintura mais famosas de Hieronymus Bosch ganha interpretação  contemporânea e animada | IdeaFixa

Antevisão de Fux dos presos soltos

 

Luiz Fux terá de explicar a Alexandre de Moraes, relator do habeas corpus coletivo impetrado pelo Instituto de Garantias Penais, as razões que o fizeram suspender parte das disposições do pacote anticrime aprovado pelo Congresso e sancionado pelo presidente Jair Bolsonaro no dia 24 de dezembro do ano passado.

Atenção: há duas mentiras sendo reproduzidas em parte da imprensa profissional com a determinação com que os estafetas do bolsonarismo atuam nas redes:

MENTIRA UM: estaria consolidado no Supremo que não se acata habeas corpus contra liminar concedida monocraticamente — o que impediria, se verdade fosse, Moraes de atender à petição do IGP;

MENTIRA DOIS: caso Moraes venha a conceder o habeas corpus e casse a liminar de Fux, uma quantidade não sabida de presos seria solta.

VERDADE UM CONTRA A MENTIRA UM
O Supremo não tem uma posição consolidada a respeito. Ao solicitar as explicações de Fux, o ministro Alexandre de Moraes, pois, reconhece que ora houve a aceitação, ora não. Caso venha a negar o HC, negado está. Se conceder, certamente levará a questão a plenário. E este terá, então, a chance de debater tanto o mérito — a suspensão de parte do pacote anticrime — como o cabimento ou não do HC.

Meu entendimento: se o instrumento trata de agressão a direito fundamental, é descabido que se crie a limitação para examinar seu mérito. Até porque os magistrados sempre podem dizer “não”. Não faz sentido criar um procedimento que proíba, por princípio, o habeas corpus.

VERDADE DOIS CONTRA A MENTIRA DOIS
O lavajatismo de parte da imprensa espalha fake news com a sem-cerimônia dos bolsomínions mais descarados. Caso Moraes conceda o habeas corpus, cassando a decisão de Fux, não haverá uma só pessoa a deixar a cadeia em razão dessa decisão. Até porque, reitere-se, ela será ad referendum do pleno. E o tribunal terá a chance de julgar aquilo que Fux não permite que julgue.

ORIGEM DA CONFUSÃO, ALÉM DA MÁ-FÉ
Além da pura e simples má-fé, eventualmente da burrice, o que leva à afirmação mentirosa de que a cassação da liminar implicaria soltura de presos? O IGP recorreu a um habeas corpus coletivo e alega, de saída, que muitas pessoas estão presas ao arrepio do que decidiu o Congresso. Ora, isso é verdade! Daí a haver soltura automática há a distância que separa a verdade da mentira.

É bom lembrar que Fux não suspendeu apenas a implementação do juiz de garantias. Há outras disposições civilizatórias no pacote que o doutor também mandou para as cucuias, como o Artigo 310 do Código de Processo Penal, que estabelece um prazo de 24 horas para que o juiz, recebido o auto de prisão em flagrante, promova a audiência de custódia. Aí, então, ele decide se considera a prisão ilegal, se decreta a preventiva (Artigo 312 do CPP), se impõe cautelares diversas da prisão (319 do CPP) ou se concede liberdade provisória com ou sem fiança.

E se tem, então, o Parágrafo 4º desse mesmo Artigo 310, que estabelece — e também isso está no correto “pacote anticrime”:
“§ 4º Transcorridas 24 (vinte e quatro) horas após o decurso do prazo estabelecido no caput deste artigo, a não realização de audiência de custódia sem motivação idônea ensejará também a ilegalidade da prisão, a ser relaxada pela autoridade competente, sem prejuízo da possibilidade de imediata decretação de prisão preventiva.”

Observem que, ainda que a audiência de custódia não se dê, não se tem liberação automática porque:
a: pode haver um motivo idôneo para a não-realização;
b: há a possibilidade da decretação da preventiva, desde que estejam dados os motivos.

Sim, muita gente foi presa em flagrante e na cadeia está sem a realização da audiência de custódia, o que deveria envergonhar os puxa-sacos do lavajatismo que fazem trabalho de assessoria de imprensa para os punitivistas celerados. Mas, caso se envergonhassem por isso, não cumpririam o triste papel em que os vemos.

Não! Nem essas pessoas estarão automaticamente soltas. Se a Justiça decidisse pôr na rua todos os presos em situação irregular — e, a rigor, é o que a lei determina —, milhares deixariam a prisão. Mas isso nada tem a ver com o pacote anticrime. Sua implementação vai permitir, isto sim, que o país não continue a lotar as cadeias, fornecendo mão de obra barata para os partidos do crime, sem que ao menos se examinem os motivos. O Estado que prende deve fazê-lo dentro da lei. A menos que se defenda que um Estado criminoso se encarregue de combater o crime — como virou moda, não é mesmo?

O JUIZ DE GARANTIAS
Com todas as vênias ao ministro Luiz Fux, ou nem tantas assim, ele sabe muito bem que deu um golpe no Congresso e até em um de seus colegas de tribunal.

No dia 15 de janeiro deste ano, no plantão do recesso do Judiciário, Dias Toffoli, então presidente do STF, suspendeu por 180 dias a implementação do juiz de garantias — que é aquele que vai atuar na fase de investigação — para dar tempo de a Justiça se preparar para as mudanças. E estabeleceu regras de transição, especialmente estas duas:
1: no caso das ações penais já instauradas quando se implementar o juiz de garantias ou quando se esgotar o prazo de 180 dias, nada muda. Não haverá modificação do juízo competente. Mesmo que o juiz tenha atuado na fase da investigação, ele poderá julgar a causa;

2: quando houver a implementação do juiz de garantias, o juiz da investigação se torna o juiz de garantias dos processos que estiverem em curso. Havendo o recebimento da denúncia ou queixa, então tal processo segue para o que vai julgar a causa.

Toffoli teve de se afastar do plantão, e Fux, que era vice-presidente do tribunal, assumiu o seu lugar no plantão. Mandou para o lixo a decisão do colega no dia 22 de janeiro — onze meses hoje ! — e concedeu liminar a uma penca de Ações Diretas de Inconstitucionalidade, suspendendo o juiz de garantias e outras disposições do correto pacote anticrime.

Ocorre que sua liminar é ilegal. Segundo a Lei 9.868, no caso das ADIs, as liminares só podem ser concedidas pela maioria absoluta do pleno, estando presentes ao menos oito ministros. Descartam-se as decisões monocráticas.

CAMINHANDO PARA A CONCLUSÃO
1: As pessoas podem ser contra ou a favor a implementação do juiz de garantias. Mas só uma postura é decente: ser a favor dos fatos e contra a mentira;
2: o Supremo não tem uma posição firmada sobre dar curso ou não a HC contra liminar monocrática. Convém que tenha. Logo, por óbvio, Moraes não estava obrigado a rejeitar o HC;
3: se a liminar de Fux for cassada, ninguém deixará a cadeia por isso;
4: rejeitadas as ADIs contra o juiz de garantias e outros aspectos do correto pacote anticrime, parece-me que outro prazo terá de ser estabelecido para a sua implementação, uma vez que Fux fez o desfavor de congelar o avanço de uma conquista democrática;
5: escolha os fatos.

10
Dez20

MP não é apenas órgão acusatório e deve defender direitos de réus, diz Gilmar

Talis Andrade

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Por Sérgio Rodas /ConJur

O Ministério Público é uma instituição que deve proteger a ordem jurídica e os direitos fundamentais, e não um órgão exclusivamente voltado à acusação e obtenção da condenação do réu.

Com base nesse entendimento e na ausência de demonstração de controvérsia judicial relevante, o ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal, negou arguição de descumprimento de preceito fundamental movida pela Associação Nacional dos Membros do Ministério Público (Conamp) contra Habeas Corpus coletivos concedidos pelo Superior Tribunal de Justiça. A decisão é de 3 de dezembro.

Em um dos casos, a 6ª Turma do STJ, por causa da epidemia da Covid-19, permitiu a transferência para prisão domiciliar de presos que cumprem pena nos regimes aberto e semiaberto em presídios de Uberlândia (MG) (HC 575.495). No outro, o colegiado assegurou o cumprimento da pena em regime inicial aberto a todas as pessoas que cumprem pena por tráfico privilegiado no estado de São Paulo (596.603).

O Conamp argumentou que o HC coletivo não tem previsão legal ou constitucional. Assim, ao aceitá-lo, o STJ violou os princípios da reserva legal e da separação dos poderes. A entidade sustentou que as decisões afetam os membros do MP, que são “os efeitos titulares das ações penais”. Dessa maneira, o órgão pediu a declaração da inconstitucionalidade do HC coletivo ou, subsidiariamente, sua regulamentação pelo STF.

Gilmar Mendes apontou que a tese do Conamp é baseada na “controvertida e injuriosa premissa de que a defesa das prerrogativas dos membros do MP confunde-se com o interesse processual da acusação, como se a ordem concessiva dos Habeas Corpus pudesse de forma direta violar o interesse coletivo da categoria”.

De acordo com o ministro, o MP não tem apenas o papel de acusar, mas também de postular medidas que possam proteger a ordem jurídica e os direitos fundamentais dos réus e condenados em geral.

“A instituição [MP] foi arquitetada, portanto, para atuar desinteressadamente no arrimo dos valores mais encarecidos da ordem constitucional, razão pela qual o legislador conferiu inclusive a atribuição para impetrar habeas corpus em favor de pessoas submetidas a restrições indevidas em sua liberdade de locomoção (artigo 654 do CPP)”, ressaltou Gilmar.

Segundo o magistrado, não há, sob a perspectiva institucional, antagonismo entre o Ministério Público e a Defensoria Pública, como indicado pelo Conamp. “Com efeito, ambas são consideradas como funções essenciais à justiça, com atribuições de defesa da ordem jurídica, do regime democrático, dos interesses sociais e individuais indisponíveis e dos direitos humanos (artigos 127 e 133 da Constituição Federal).”

Para reforçar seu ponto, o ministro citou o Projeto de Lei do Senado 5.852/2019, de autoria do jurista Lenio Streck e do senador Antônio Anastasia (PSD-MG). O PLS pretende alterar o Código de Processo Penal para estabelecer a obrigatoriedade de o Ministério Público buscar a verdade dos fatos. O objetivo é fazer com que o Ministério Público alargue a investigação a todos os fatos pertinentes para a determinação da responsabilidade criminal, independentemente de interessarem à acusação ou à defesa.

Ao citar a justificativa do projeto, Gilmar apontou que os autores registraram que “a atribuição de garantias constitucionais equivalente aos dos juízes confere ao Ministério Público o dever de ser imparcial ou equidistante, de modo a buscar a equanimidade (fairnesse) do Direito”.

O ministro também mencionou que, ao defender o PLS, o procurador da República Vladimir Aras disse que o texto “identifica e enuncia o verdadeiro papel do Ministério Público no processo penal, a função de uma instituição promotora de Justiça, e não a de um órgão exclusivamente vocacionado à acusação, focado na obtenção da condenação do réu a qualquer preço”.

Dessa maneira, Gilmar avaliou que o Conamp não demonstrou a pertinência temática entre o objeto da ação e as suas finalidades institucionais, “tanto pela ausência de vinculação direta e imediata do tema com as prerrogativas funcionais dos membros do MP como pela compreensão das garantias institucionais do parquet sob a exclusiva perspectiva do órgão parcial do processo, com a desconsideração das suas atribuições de proteção da ordem jurídica e dos direitos fundamentais dos indivíduos”.

Lenio Streck disse à ConJur que a decisão de Gilmar Mendes reforça que o papel do MP não é apenas o de acusar.

“O voto do ministro Gilmar é paradigmático. Diria, ruptural. Vai no cerne do papel do Ministério Público. Ele é um órgão meramente acusador? Pode fazer agir estratégico? Não. Em várias passagens do voto isso fica claro. E trazer à lume o projeto Streck-Anastasia foi providencial”, afirma.

“O mundo pensa de um modo  Alemanha, Áustria e até mesmo os EUA  e por aqui o MP se comporta como se fosse um assistente de acusação. O ministro Gilmar mostra aquilo que venho defendendo há décadas: o Ministério Público deve agir de forma imparcial. Por isso tem as mesmas garantias dos juízes. Se agir como qualquer assistente de acusação, como um mero acusador, não precisa de garantias. Por tudo isso, o voto do ministro Gilmar deve funcionar como ‘para tudo é vamos ver qual é o papel do MP'”.

Sem controvérsia

Gilmar Mendes ainda entendeu que o Conamp não comprovou haver controvérsia judicial relevante envolvendo preceitos fundamentais a justificar a ADPF.

O ministro lembrou que, em 2018, a 2ª Turma do STF ordenou a libertação de todas as grávidas ou mães de crianças de até 12 anos que estavam presas preventivamente (HC 143.641). Nesse julgamento, a corte validou o Habeas Corpus coletivo. E esse precedente foi seguido por outras decisões do Supremo.

“Registre-se que não há proibição constitucional expressa à concessão de Habeas Corpus coletivo, conforme se observa da redação do artigo 5º, LXVIII, da Constituição Federal de 1988. Ao revés, a compreensão desta norma em conjunto com o parágrafo 1º do mesmo artigo demanda a interpretação que confira o maior grau de efetividade a essa garantia judicial”, opinou o magistrado.

Clique aqui para ler a decisão
ADPF 758

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