Há cinco anos, a execução do presidente da Portela, subtenente aposentado da PM e candidato a vereador Marcos Vieira de Souza, o Falcon, chocou o Rio. O policial foi assassinado a tiros dentro de seu comitê de campanha, em Oswaldo Cruz, na Zona Norte. Na tarde de 29 de setembro de 2016, dois homens desembarcaram de um carro, apontaram fuzis para dentro do imóvel, atiraram e fugiram. Foram cerca de 30 tiros, e sete acertaram Falcon, nas costas, rosto, braços e pernas.
O lugar estava cheio de funcionários, mas só o candidato foi atingido. Apesar de geralmente circular cercado de seguranças, naquele dia não havia nenhum no comitê. No dia seguinte, compareceram ao velório de Falcon, na quadra da Portela, baluartes do mundo do samba, oficiais da cúpula da PM do Rio, e personalidades da política carioca.
A comoção não teve efeito no inquérito que investigou o crime. O homicídio segue sem esclarecimento até hoje. No entanto, um depoimento prestado em setembro de 2018, durante a investigação de outro crime, o que vitimou a vereadora Marielle Franco e seu motorista Anderson Gomes, ajuda a jogar luz sobre o que está por trás da morte de Falcon. No Penitenciária federal de Mossoró, no Rio Grande do Norte, o miliciano Orlando Oliveira de Araújo, o Orlando Curicica, expôs a trilha que liga o Escritório do Crime, consórcio de matadores chefiado pelo ex-capitão do Bope Adriano da Nóbrega, ao assassinato em Oswaldo Cruz.
O terceiro episódio de Pistoleiros, um podcast original Globoplay produzido pelo GLOBO, revela detalhes inéditos sobre dois homicídios que chocaram o Rio em 2016 e causaram mudanças profundas na geopolítica do crime na cidade: os assassinatos à luz do dia de Falcon e o do sargento PM e bicheiro Geraldo Pereira, no Recreio. Ao longo de cinco capítulos diários, a série — resultado de um trabalho de um ano e meio de apuração — vai revelar histórias inéditas sobre o submundo da pistolagem carioca. O primeiro episódio conta a história de Ronnie Lessa, principal suspeito de assassinato de Marielle Franco. Já o segundo, fala sobre o capitão Adriano, chefe do Escritório do Crime.
No segundo semestre de 2018, Curicica achava que seria condenado por um crime que não cometeu. O miliciano havia sido apontado, por uma testemunha plantada para prejudicar a investigação, como um dos mentores do assassinato de Marielle Franco. Meses depois, uma investigação da Polícia Federal comprovaria que ele não havia participado do crime. Mas, no dia 29 de setembro daquele ano, quando as promotoras Simone Sibílio e Letícia Emile, então responsáveis pelo inquérito, foram ouvi-lo no Rio Grande do Norte, Curicica estava desesperado. E, para convencer o Ministério Público de que ele não havia cometido o crime, resolveu falar o que sabia sobre o submundo do crime no Rio.
O GLOBO teve acesso à íntegra da transcrição do depoimento de Curicica. Ao longo de 98 páginas, o miliciano conta que o Escritório do Crime, criado por Adriano da Nóbrega, é responsável por vários crimes de repercussão no Rio na última década. Segundo Curicica, o ex-capitão criou o grupo quando passou a trabalhar como segurança de bicheiros. Mas, depois que cresceu na hierarquia da contravenção, Adriano virou uma espécie de “agenciador”: era contratado, recebia as missões e passava para seus “funcionários”. O principal deles, segundo Curicica, era o ex-PM Antônio Eugênio de Souza Freitas, o Batoré: “O Capitão Adriano meio que se afasta dessas coisas de matar, ele até recebe as missões, mas passa pro Batoré. Quem desenrola, quem resolve, quem vê, quem vai é o Batoré”, disse o miliciano.
Batoré é um personagem central no relato de Curicica. Segundo ele, o ex-PM é um dos pistoleiros responsáveis pelos disparos que mataram o bicheiro Geraldo Pereira, em maio de 2016, e o presidente da Portela Marcos Falcon, quatro meses depois. O miliciano afirma que os dois crimes estão relacionados e que sabe detalhes sobre ambos porque era amigo íntimo da primeira vítima. Pereira é uma espécie de mentor de Curicica: o miliciano começou sua trajetória no crime como segurança do bicheiro. Com o tempo, eles viraram sócios e passaram a dividir o poder em Jacarepaguá, na Zona Oeste do Rio: Curicica era o chefe da milícia, explorava taxas de segurança e serviços como gás, gatonet e transporte alternativo; já Pereira controlava o jogo ilegal (bingos, máquinas caça-níquel e o bicho).
'Vão te matar na academia'
De acordo com o depoimento de Curicica, Pereira arrendava o jogo na região. Ou seja, ele explorava mediante o pagamento de um aluguel a um dos capos do jogo na cidade, Rogério Andrade, sobrinho de Castor de Andrade. No entanto, os dois racharam pouco antes do homicídio porque Pereira descumpriu o acordo depois de apreensões de máquinas pela PF que causaram prejuízos na quadrilha.
“O Rogério ficou insatisfeito porque a Polícia Federal deu uns baques muito grandes na área de Jacarepaguá e Recreio. Pegou máquinas e bingo. Então o Pereira descontou do valor arrendado da área, o prejuízo. E o Rogério Andrade não ficou satisfeito, devolveu o dinheiro e falou: ‘Ou vem o que tem que vir ou não manda nada!’. Aquilo revoltou o Pereira, virou um estresse, uma guerra verbal né, entre um e outro”, contou Curicica às promotoras.
Logo depois da briga, o miliciano começou a ouvir um comentário de que seu amigo seria morto e que o Escritório do Crime teria sido contratado para o homicídio. O local do crime até já tinha sido escolhido: a academia que Pereira mantinha no Recreio dos Bandeirantes. Ele afirma que alertou o bicheiro: “Eu tive com ele duas vezes pessoalmente e falei: 'Vão te matar na academia', mas ele não acreditava. Ele achava que não... E acabou acontecendo, ele acabou sendo morto na academia, mataram ele lá”.
Pereira de fato foi executado quando chegava à academia por homens que o aguardavam dentro de um carro estacionado em frente ao local. Os atiradores foram flagrados por câmeras de segurança da academia, e parentes do bicheiro mostraram as imagens a Curicica. Ele identificou um dos pistoleiros: “O Batoré, entendeu? Ele é o atirador, é ele que, que desce atirando no Pereira, entendeu?”, disse o miliciano no depoimento.
Ex-PMs
Em outro momento de seu relato, Curicica relaciona o homicídio de Pereira com o crime o sucedeu: “O homicídio do Pereira, eu reconheço o assassino, o cara que desembarca do carro com fuzil atirando, eu sei quem é. É o mesmo cara que matou o Falcon”. Segundo Curicica, Batoré também foi um dos homens que fez disparos para dentro do comitê de campanha do então presidente da Portela. E o miliciano ainda vai além. Quando questionado se o mandante dos dois crimes foi o mesmo, ele confirma: “Mesmo mandante, por motivos diferentes”. Em seguida, as promotoras perguntam quem ordenou as execuções. Curicica pergunta se está sendo gravado e, em seguida, a gravação é interrompida.
Pereira e Falcon eram dois personagens bem próximos do submundo do Rio. Os dois tiveram carreiras semelhantes na Polícia Militar: eram policiais operacionais que acabaram passando a maior parte de suas carreiras trabalhando em delegacias, cedidos para a Polícia Civil. Eles eram amigos e trabalharam juntos no início dos anos 2000 na Delegacia de Antissequestro (DAS). Após se aposentarem, ambos foram acusados de ligação com o crime. Falcon chegou a ser preso acusado de integrar uma milícia na Zona Norte, e Pereira acabou fazendo carreira na contravenção.
Além do depoimento de Curicica, o Ministério Público tem outra prova de que as duas execuções estão relacionadas. Testemunhas ligadas a Falcon contaram, em depoimento, que, após a morte de Pereira, o presidente da Portela teria dito a amigos próximos: “O próximo sou eu”. A polícia trabalha com a hipótese de que, antes do homicídio na academia, Falcon e Pereira estariam tramando, juntos, o homicídio do bicheiro Rogério Andrade. Os inquéritos que investigam os dois crimes seguem em aberto.
14 de março de 2018: Marielle Franco e Anderson Gomes são executados a tiros dentro de um carro na Rua Joaquim Palhares, no bairro do Estácio, na região central do Rio. O crime ocorreu por volta das 21h, quando Marielle tinha acabado de deixar um evento na “Casa das Pretas”, na Lapa, centro do Rio.
21 de março de 2018: A pedido da 23ª Promotoria de Justiça de Investigação Penal, é designado um grupo de promotores de Justiça para auxiliá-la na apuração do crime.
01 de setembro de 2018: O Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado (GAECO/MPRJ) passa a atuar no caso. E ocorre uma primeira troca de promotores do MRRJ responsáveis pela investigação. Homero Neves, que cuidava do caso, foi promovido a procurador e teve que deixar as investigações. Em seu lugar, assumiu Letícia Emily.
25 de setembro de 2018: Acusado de envolvimento com a milícia, Orlando Curicica, encarcerado no Presídio Federal de Mossoró por outros crimes ligados à milícia, é ouvido pelos investigadores. Curicica mencionou o ‘Escritório do Crime’, do qual fazia parte, e seu testemunho abriu caminho para outras investigações que avançaram sobre o crime organizado no Rio de Janeiro, em especial milícias. Em maio deste mesmo ano, além do nome de Orlando, o vereador Marcello Siciliano também foi mencionado por uma testemunha, por suposto envolvimento na morte de Marielle. Siciliano chegou a ser preso, mas pouco tempo depois seu envolvimento foi descartado.
11 de outubro de 2018: Investigações do MPRJ tiveram os primeiros avanços significativos. O biotipo do executor do crime foi identificado e também houve o rastreamento de novos locais onde o carro usado para o crime circulou. Esse rastreamento foi possível, segundo o MP, por meio da análise de centenas de imagens de câmeras de monitoramento.
2019
11 de março de 2019: A primeira fase de investigações é encerrada e Ronnie Lessa e Élcio Queiroz são denunciados por homicídio doloso junto ao 4º Tribunal do Júri da Capital. No dia seguinte, Élcio de Queiroz e Ronnie Lessa foram presos.
12 de março de 2019: Élcio de Queiroz e Ronnie Lessa são presos no Rio de Janeiro, durante a operação Lume. A prisão veio dois dias antes do crime completar 1 ano. Eles foram levados para a Divisão de Homicídios, na Barra da Tijuca, Zona Oeste da cidade. Hoje, ambos estão presos em presídios de segurança máxima fora do estado do Rio. As defesas de Ronnie e de Élcio alegaram que eles eram inocentes e que não havia provas suficientes que justificassem a prisão de ambos.
13 de março de 2019: Responsável pelo inquérito inicial do crime contra Marielle, o então titular da Delegacia de Homicídios (DH) da Capital Giniton Lages é afastado do caso. Giniton foi pego de surpresa com a decisão e disse ter ficado sabendo primeiro através da imprensa. Em seu lugar foi escalado o delegado Daniel Rosa.
26 de março de 2019: Em desdobramento da Operação Lume, operação realizada pelo MPRJ e pela Polícia Civil do Rio, que culminou na prisão de Ronnie e Élcio. Lessa é denunciado pelo MPRJ por posse e comércio ilegal de arma de fogo. Amigo de longa data de Lessa, Alexandre Motta guardava 117 fuzis em sua casa, a pedido de Ronnie. Esta foi a maior apreensão de fuzis da história do Rio. Em sua defesa, o advogado de Alexandre disse que seu cliente prestou um favor a seu amigo e armazenou as caixas que guardavam o arsenal em sua casa, sem saber do que se tratava. Poucos meses depois, Alexandre foi solto pela Justiça fluminense.
03 de outubro de 2019: Deflagrada pelo Ministério Público do Rio a Operação Submersus. O objetivo foi cumprir cinco mandados de prisão contra Ronnie Lessa, Elaine Pereira Figueiredo Lessa (esposa de Ronnie) e outras três pessoas acusadas de obstrução de justiça.
04 de outubro de 2019: Acontece o interrogatório de Ronnie Lessa e Élcio Queiroz no 4º Tribunal do Júri da Capital. A defesa de ambos voltou a alegar que as provas são insuficientes para incriminar seus clientes.
2020
09 de fevereiro de 2020: Após mais de um ano foragido, o miliciano Adriano da Nóbrega é morto pela polícia na Bahia. Ele foi um dos denunciados na Operação Intocáveis e era tido como chefe do Escritório do Crime, grupo de assassinos profissionais o qual Ronnie Lessa e Élcio Queiroz supostamente fazem parte. O nome do ex-capitão do Bope não consta no inquérito que apura a morte da vereadora e seu motorista. Ele até chegou a ser ouvido pelos investigadores, mas nunca indiciado.
10 de março de 2020: Justiça determina que Ronnie Lessa e Élcio Queiroz sejam julgados por júri popular. Além disso, foi decidido pela manutenção da prisão preventiva de ambos. Por solicitação do MPRJ, os dois foram mantidos em presídio de segurança máxima, mas separados um do outro, até o julgamento acontecer.
27 de maio de 2020: O MPRJ consegue junto ao Superior Tribunal de Justiça (STJ), decisão unânime concordando em manter as investigações no âmbito estadual. A federalização proposta por Raquel Dodge foi objeto de diversas críticas tanto por investigadores quanto pelos familiares das vítimas.
10 de junho de 2020: Um bombeiro é preso durante a Operação Submersus 2, acusado de ter atuado para ajudar a esconder as armas usadas na execução de Marielle. Ele teria cedido um carro para guardar o vasto arsenal bélico pertencente a Ronnie Lessa. Esse armamento posteriormente foi descartado em alto mar, na Barra da Tijuca. Outras quatro pessoas que teriam atuado com o bombeiro foram denunciadas pelo Ministério Público à Justiça.
28 de agosto de 2020: O STJ acata pedido do MPRJ, determinando que o Google Brasil e a Google LLC forneçam dados para auxiliar no aprofundamento das investigações. Tais dados seriam cruciais para ajudar a determinar os mandantes do crime e demais envolvidos.
17 de setembro de 2020: Ocorre a terceira troca da gestão responsável por investigar o caso. Após o então governador do Rio, Wilson Witzel, ter sido afastado, Cláudio Castro assumiu como governador interino e decidiu nomear Allan Turnowski como novo secretário da Polícia Civil. Em um de seus primeiros atos, Turnowski resolveu trocar o comando do Departamento Geral de Homicídios e Proteção à Pessoa (DGHPP). Saiu o delegado Ricardo Nunes, entrou o delegado Roberto Cardoso. O DGHPP comanda as delegacias de Homicídio da capital e, nessa mudança, Moysés Santana entrou no lugar do delegado Daniel Rosa.
06 de dezembro de 2020: Surgem novas pistas sobre o Chevrolet Cobalt clonado, carro usado no atentado contra Marielle e Anderson. Segundo as investigações, um morador da Muzema, comunidade do Rio dominada pelo ‘Escritório do Crime’, conhecida milícia de atiradores de elite que atua na zona oeste do Rio, teria sido o responsável por clonar o veículo no começo daquele ano.
2021
19 de janeiro de 2021: Mais uma mudança. O procurador-geral de Justiça do Rio, Luciano Mattos, trocou o comando da investigação do caso Marielle, feita pelo MP-RJ. A promotora Simone Sibilio, que chefiava a investigação e coordenava o Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado (Gaeco) saiu do caso depois de mais de um ano na investigação
02 de fevereiro de 2021: A ministra do Supremo Tribunal Federal (STF), Rosa Weber, foi sorteada como relatora do recurso que o Google move contra o compartilhamento de dados de usuários que ajudariam na solução do assassinato da vereadora. Entretanto, a data para o julgamento do recurso ainda não foi marcada. Segundo o Ministério Público do Rio, os dados de usuários da empresa seriam cruciais para solucionar onde estaria o carro utilizado para cometer o crime, e os supostos mandantes da ação. Em agosto de 2020, o STJ havia determinado que o Google compartilhasse a lista de pessoas que pesquisaram termos específicos envolvendo Marielle e sua agenda antes de sua execução. Em outubro deste mesmo ano, o Google entrou com recurso junto ao Supremo para derrubar a ordem judicial de compartilhamento de dados. A empresa alega que o fornecimento desses dados “representaria uma violação da privacidade de pessoas que não estão envolvidas no crime e não são sequer investigadas”. A briga segue até hoje e esta é uma das esperanças dos investigadores e da família da vereadora.
09 de fevereiro de 2021: Justiça nega recurso das defesas de Lessa e Élcio, presos desde o dia 12 de março de 2019, mantendo decisão de levá-los a júri popular. Porém, ainda cabe recurso, desta vez no Superior Tribunal de Justiça (STJ), em Brasília. Não há data, por enquanto, para o julgamento. Em nota, a defesa de Élcio disse haver falta de provas e evidências que liguem seu cliente à morte da parlamentar. O advogado de Lessa também disse que não havia provas de sua participação e alegou que não foi Lessa quem matou Marielle.
04 de março de 2021: Ministério Público do Rio anuncia a criação de uma força-tarefa específica para concluir as investigações que apuram quem mandou matar Marielle. A promotora Simone Sibilio retorna ao caso, após ser escolhida como coordenadora da força-tarefa, e terá o suporte da promotora Letícia Emile e outros membros que foram designados pelo procurador-geral de Justiça do Rio, Luciano Matos.
12 de março de 2021: Ministério Público do Rio de Janeiro anunciou acordo com o Facebook, para que a empresa compartilhe dados que possam ajudar nas investigações em andamento. Este é um dos caminhos que a Justiça percorre na tentativa de descobrir os mandantes do atentado.
14 de março de 2021: O atentado que tirou a vida de Marielle Franco e Anderson Gomes completa três anos. Desde então, foi iniciada uma verdadeira caçada para se chegar aos responsáveis pelo crime. Ronnie Lessa, acusado de ter efetuado os disparos contra o carro da vereadora e Élcio Queiroz, suspeito de dirigir o veículo em que estava Lessa, estão presos desde 12 de março de 2019. Porém, ainda não se chegou ao mandante do crime e nem a motivação para que fosse determinada a morte da parlamentar. Com a magnitude do assassinato, foram diversos desdobramentos ao longo das investigações. Desde então, foram pelo menos 8 operações e 70 prisões pelo MP e Polícia Civil do Rio.
CRÉDITO TOMAZ SILVA/AGÊNCIA BRASIL No dia em que o assassinato completou um ano, houve homenagem e protestos contra o fato do crime ainda não ter sido totalmente solucionado
O assassinato da vereadora Marielle Franco (PSOL) e seu motorista Anderson Gomes completa três anos neste domingo. A investigação do caso trouxe à tona diversas informações sobre o submundo do crime no Rio de Janeiro, mas não solucionou algumas das principais dúvidas sobre os homicídios.
Das três perguntas mais importantes — quem matou Marielle e Anderson, quem mandou matar Marielle e por que motivo —, apenas a primeira começou a ser respondida.
Depois de um ano de investigações, autoridades do Rio de Janeiro apontaram aqueles que teriam cometido os assassinatos. São eles o PM reformado Ronnie Lessa e o ex-PM Elcio Queiroz, que havia sido expulso da corporação. Lessa e Queiroz ainda não foram julgados, mas foram denunciados pelo Ministério Público do Rio. As defesas negam que eles sejam os autores do crime.
Desde então, os responsáveis pela investigação não divulgaram avanços. Jurema Werneck, diretora-executiva da Anistia Internacional Brasil, critica a falta de transparência sobre os obstáculos para a solução do crime. "Autoridades dizem que é um caso complexo, mas por quê? (...) Tem muita gente preocupada com essa aparente ineficiência", diz ela.
O Rio de Janeiro é um dos Estados onde menos homicídios são solucionados — apenas 11% deles, segundo estudo do Instituto Sou da Paz. Mas, por ser crime político, a complexidade de sua investigação vai além dos problemas típicos de solução de mortes no Rio.
A Polícia Civil, por sua vez, respondeu à reportagem afirmando que não comenta possíveis erros de gestões passadas e que seu foco é a busca de novas provas e linhas de investigação.
"Inclusive, a Polícia Civil destacou um delegado da Delegacia de Homicídios da Capital (DHC) e uma equipe, que estão exclusivos no caso. Só este ano essa equipe, que trabalha alinhada com o Ministério Público (MP), já realizou mais de 100 diligências", declarou, em nota, a instituição.
Relembre os percalços do caso até aqui e saiba como, na visão de especialistas em segurança pública, eles dificultam a descoberta da motivação e dos possíveis mandantes do crime — e o que poderia ser feito para o caso avançar.
CRÉDITO GETTY IMAGES Assassinato de Marielle gerou revolta no país todo
Fragilidades da investigação
Especialistas apontam que as autoridades cometeram erros básicos na investigação em seu primeiro ano, o que prejudicou o trabalho.
Dispensaram testemunhas, por exemplo. Segundo o jornal O Globo, duas pessoas que estavam no local do crime foram orientadas a se afastar e não foram convocadas naquele momento para prestar depoimento. Foram convocadas pela polícia após a publicação da reportagem.
Também houve problemas relativos à coleta e processamento de imagens de câmeras de segurança, como o próprio delegado que foi o primeiro responsável pelo caso, Giniton Lages, disse em depoimento à Justiça revelado pela Folha de S.Paulo.
Segundo seu relato, sua equipe tinha imagens que mostravam o percurso do carro em que estavam os executores do crime — mas apenas a partir de um certo ponto, o bairro do Itanhangá, próximo à Barra da Tijuca.
As imagens não permitiam acompanhar o veículo desse local até o início da orla da Barra da Tijuca.
Meses depois, a polícia recebeu a informação sobre de onde o carro teria partido, uma região conhecida como Quebra-Mar, que fica justamente no início da orla da Barra da Tijuca. Ao revisitar o material coletado pelas câmeras, os agentes perceberam que havia um empecilho técnico que os impedia de avançar na leitura das imagens.
"Revisitaram o banco de imagens, reprocessaram a imagem, descobriram que tinha um problema, colocaram numa ferramenta que era capaz de ler aquela tecnologia, que era ultrapassada, ela leu e o carro se revelou", disse Lages.
Quando os agentes se deram conta disso, voltaram ao Quebra-Mar e à avenida da orla, onde fica o condomínio de Ronnie Lessa, mas as câmeras não tinham mais as imagens do dia do assassinato.
"Muito provavelmente nós íamos pegar o momento em que entraram no carro (...) Isso é um fato, não há como negar isso", afirmou.
Na opinião de Carolina Ricardo, diretora-executiva do Instituto Sou da Paz, que produz relatórios sobre a apuração de homicídios no Brasil, "existe de fato um padrão de baixa qualidade de investigação. Mas esses são erros básicos, graves e, pela seriedade e importância do caso, não poderiam acontecer".
CRÉDITO TOMAZ SILVA/AGÊNCIA BRASIL Lessa e Queiroz foram denunciados à Justiça como autores do crime pelo Ministério Público do Rio de Janeiro
Desvios e contradições
Até chegar aos acusados, a investigação sofreu um grande desvio de rota e suspeita de fraude. Por muitos meses, a principal linha de apuração buscava verificar se o assassinato teria sido cometido pelo ex-policial Orlando Oliveira de Araújo, conhecido como Orlando de Curicica, a mando do vereador Marcello Siciliano (PHS).
Essa linha começou a ser perseguida quando o policial militar Rodrigo Jorge Ferreira prestou depoimento à Polícia Civil dizendo que teria visto os dois conversando sobre o assassinato e que Orlando teria matado Marielle a mando de Siciliano.
Ferreirinha, como é conhecido, dizia que o motivo seria que Marielle estaria atrapalhando negócios ilegais de Siciliano na zona oeste do Rio, reduto da milícia.
Essa linha não prosperou. Mais tarde, ele admitiu à Polícia Federal que o testemunho era falso, segundo o portal UOL. Ferreira e sua advogada foram denunciados pelo Ministério Público por obstrução de justiça.
Orlando foi ouvido pelo Ministério Público Federal. Ele negou ter cometido o crime e disse que teria sido pressionado a confessá-lo pela Polícia Civil. Disse também que haveria na corporação um esquema de corrupção para impedir que investigações de homicídios ligadas ao jogo do bicho e à milícia fossem adiante. Foi em parte com base nisso que a então Procuradora Geral da República, Raquel Dodge, pediu que a investigação dos mandantes ficasse a cargo da Polícia Federal, algo que foi posteriormente negado pelo Supremo Tribunal de Justiça, que entendeu que as autoridades estaduais apuraram o caso devidamente.
É consenso entre aqueles que estudam homicídios no Brasil que as investigações costumam se basear muito em testemunhos. Ludmila Ribeiro, socióloga da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais) que coordena pesquisas sobre homicídios, avalia que, mesmo que os investigadores estejam empenhados em solucionar o caso, o envolvimento de pessoas ligadas à polícia no caso torna a corporação vítima dos seus próprios métodos.
"Os autores do crime sabem os métodos investigativos da polícia, portanto parece haver um uso racional de testemunhas para confundir e fazer os investigadores baterem cabeça", diz ela.
Dúvidas sobre depoimento de porteiro
No final de outubro de 2019, o Jornal Nacional divulgou uma informação que gerou mais tumulto na investigação.
Segundo a TV Globo, um porteiro do condomínio Vivendas da Barra, onde morava Ronnie Lessa e onde o presidente Jair Bolsonaro tem casa, teria dito em depoimento que, no dia do crime, Élcio Queiroz esteve ali e disse, ao chegar, que iria à casa de número 58, que pertence ao presidente.
Ao receber Élcio na guarita, o porteiro ligou para a casa 58 para confirmar se o visitante poderia entrar, e alguém na residência autorizou a entrada do veículo. Em dois depoimentos à Polícia Civil do Rio, o porteiro disse ter reconhecido a voz de quem atendeu como sendo a do "Seu Jair", segundo o Jornal Nacional. Jair Bolsonaro estava em Brasília naquele dia.
O porteiro disse, segundo a reportagem, que acompanhou Élcio pelas câmeras de segurança e viu que seu carro tinha ido para a casa 66, onde morava Lessa. Diante disso, ligou de novo para a casa 58, e ouviu da pessoa que atendeu que ela sabia para onde Élcio estava indo. Além desse depoimento, o caderno de registro da portaria mostra o número da casa de Jair Bolsonaro ao lado da placa do carro do visitante.
Segundo o Ministério Público, provas periciais do áudio da chamada da portaria, que mostra, segundo o órgão, que Élcio teria ido para a casa de Lessa e teria sido o próprio a autorizar sua entrada. No entanto, entidades de perícia questionaram a qualidade técnica desse laudo. O inquérito sobre o depoimento segue sob sigilo.
CRÉDITO EPA A mãe de Marielle, Marinete Silva (à dir.), ainda clama por Justiça
Mudanças nas equipes
Na Polícia Civil, a investigação já foi chefiada por três delegados diferentes, o que pode também ter atrasado o andamento do caso.
Giniton Lages ficou à frente por cerca de um ano e foi responsável, junto com o Ministério Público, pela prisão dos suspeitos de cometer o crime. Logo após a denúncia contra os suspeitos, Lages foi substituído por Daniel Rosa, que ficou no cargo por mais de um ano. À época, o então governador Wilson Witzel disse que ele "encerrou uma fase" e que seria enviado para a Itália para participar de um programa de intercâmbio sobre a máfia. Em setembro de 2020, Moisés Santana assumiu a investigação.
Para especialistas, essas mudanças devem ocorrer apenas se ficar claro que a pessoa responsável não dá conta de fazer o caso avançar. Do contrário, são desvantajosas, pois a cada troca é preciso que a pessoa responsável se familiarize com os detalhes da investigação para então buscar possíveis caminhos de apuração.
Segundo Ludmila Ribeiro, da UFMG, que pesquisa homicídios, estudos internacionais dão conta de que a estabilidade da equipe é fator essencial para a solução de homicídios.
As trocas também preocupam os parentes de Marielle. No entanto, Marinete Silva, mãe de Marielle, diz que tem conversado com o atual delegado à frente do caso e que sente que ele está comprometido e fazendo um bom trabalho.
No Ministério Público, o caso também trocou de mãos. No início, estava sob a responsabilidade de Homero das Neves Freitas Filho. Meses depois, foi posto a cargo das promotoras Simone Sibilo e Letícia Emile, que estão ainda à frente do caso.
Ainda no MP, em novembro de 2019, uma promotora que estava envolvida no caso — Carmen Eliza Bastos de Carvalho — se afastou depois que a imprensa veiculou postagens em suas redes sociais em apoio ao presidente Jair Bolsonaro, além de uma foto com Rodrigo Amorim, deputado estadual pelo PSL do Rio que quebrou placa em homenagem à vereadora.
Carmen não participou da investigação, segundo o MP, mas passou a atuar na ação penal em que Ronnie Lessa e Élcio Queiroz são réus.
A Lei Orgânica Nacional do Ministério Público diz que é vedado aos membros do MP "exercer atividade político-partidária". Ao se afastar, a promotora disse que tinha feito isso voluntariamente por respeito aos pais das vítimas.
CRÉDITO VALTER CAMPANATO/AGÊNCIA BRASIL Marielle foi assessora do deputado Marcelo Feixo até ser eleita em 2016
Problemas de controle de armas e munição
A perícia da Polícia Civil do Rio concluiu que a arma usada no crime foi a submetralhadora HK MP5. Essa arma é usada por algumas forças especiais de polícia e pela Polícia Federal. A investigação não apontou até o momento a origem da arma.
A munição usada no crime foi desviada da Polícia Federal, mas ainda não se sabe como isso aconteceu. O lote UZZ18 havia sido vendido à corporação em 2006. O lote tinha 1,8 milhão de balas, muito além do permitido por lei, que é 10 mil. A fiscalização é de responsabilidade das Forças Armadas.
Na avaliação das especialistas do Instituto Sou da Paz, um lote do tamanho do que foi usado torna impossível seu rastreamento. Portanto, além de expor o problema de desvio de dentro da corporação, o caso mostra também como a falta de monitoramento traz consequências graves, dizem.
A PF anunciou no mês dos assassinatos que abriria um inquérito para investigar a origem das munições, mas até o momento não divulgou seu resultado.
O que falta?
A afirmação mais forte que uma autoridade fez até o momento sobre suspeitos da encomenda do crime veio da então procuradora-geral da República Raquel Dodge. Em seus últimos dias no cargo, em setembro de 2019, Dodge denunciou o político do MDB e conselheiro afastado do Tribunal de Contas do Estado do Rio de Janeiro (TCE/RJ) Domingos Inácio Brazão e outras quatro pessoas por suspeita de envolvimento nos homicídios, entre eles, um policial federal aposentado, um policial militar e um delegado federal.
Ela dizia que Brazão teria atuado para plantar a versão do assassinato que dava conta de que o crime teria sido encomendado por Siciliano. Para Dodge, Brazão teria feito isso porque, desde que fora afastado do TCE e preso na Operação Quinto do Ouro, que prendeu integrantes do tribunal sob suspeita de corrupção, Brazão "vinha perdendo terreno em importantes redutos eleitorais para o vereador (Siciliano)".
A denúncia diz que Brazão tem ligação com as milícias do Rio e seria o verdadeiro mentor do crime. É, diz o texto, "de conhecimento público que sua ascensão política se desenvolveu nas últimas décadas em franca sinergia com o crescimento das milícias e sua projeção nesses territórios do crime".
Brazão teria conexão com o grupo de milicianos conhecido como Escritório do Crime, matadores de aluguel, e possivelmente envolvidos nos assassinatos.
No entanto, não está claro qual seria a relação entre Brazão e os acusados de executar o crime, tampouco se sabe qual seria a motivação dele para desejar a morte da vereadora. Uma hipótese é que fosse uma retaliação contra o PSOL, partido de Marielle, pelo fato de o deputado federal Marcelo Freixo (PSOL-RJ) ter agido, quando era deputado estadual, para impedir a posse de Edson Albertassi, seu correligionário no MDB, como conselheiro do TCE. Brazão nega qualquer envolvimento com o crime.
Freixo presidiu a CPI das Milícias instaurada em 2008 na Assembleia Legislativa do Rio e, desde então, passou a receber diversas ameaças de morte. O relatório final da investigação pediu o indiciamento de mais de 200 políticos, policiais, agentes penitenciários, bombeiros e civis. Antes de ser eleita, em 2016, Marielle foi assessora do deputado.
Segundo a professora Ludmila Ribeiro, da UFGM, que pesquisa homicídios no Brasil, o que falta para o crime ser solucionado é uma maior coordenação entre investigadores e mudanças que indiquem que o caso é prioritário, como, por exemplo, a criação de forças-tarefa.
Três anos após o crime, o Ministério Público do Rio anunciou, no último dia 4 de março, que criaria uma.
"Para mim, foi tempo demais", diz Agatha Arnaus, que era casada com Anderson Gomes. Anielle Franco, irmã de Marielle, vê a criação do grupo com bons olhos e diz que confia no trabalho das promotoras à frente do caso.
Natália Pollachi, coordenadora de projetos do Sou da Paz, diz que um caminho a ser perseguido pelos investigadores seria o financeiro. Um relatório do Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) apontou que foi feito um depósito de R$ 100 mil na conta de Ronnie Lessa alguns meses após o crime.
Freixo (PSOL), que acompanha as investigações, não dá detalhes do caso, mas se diz otimista sobre a perspectiva de identificação de mandantes.
"Minha opinião mudou para melhor. O Rio de Janeiro tem uma complexidade grande. O caso mexeu numa estrutura criminosa muito profunda. Foi um tampão que, quando aberto, revelou um esgoto. O crime dela não foi resolvido, mas muita coisa foi atingida. Revelou-se o Rio de Janeiro profundo", diz o deputado.
"Desse Rio, contradições podem gerar informações importantes que façam chegar aos mandantes. Não posso dar detalhes, mas tenho confiança de que a atual delegacia tem vontade de chegar lá e no trabalho que vem sendo feito."
O assassinato da vereadora Marielle Franco completa três anos neste domingo (14/03), ainda sem que investigadores tenham apontado os mandantes do crime e a motivação. Marcado por reviravoltas e perguntas sem resposta, o caso se tornou um símbolo da violência política no Brasil e escancarou os tentáculos do crime organizado no Rio de Janeiro. "Três anos são muito tempo [...] Está mais do que na hora de ter uma resposta", disse Marinete Silva, mãe de Marielle, em entrevista à DW Brasil nesta semana.
Até 2018, Marielle, então com 38 anos, ainda não era muito conhecida fora do Rio de Janeiro. Vereadora de primeiro mandato e atuante em causas sociais, especialmente na luta antirracista e na promoção de pautas feministas e LGBTQ, Marielle logo se transformaria tragicamente num símbolo da violência no Brasil.
Marielle Franco em fevereiro de 2018
Na noite de 14 de março daquele ano, Marielle deixou um debate na ONG Casa das Pretas, no centro do Rio. Pouco tempo depois, o veículo foi emboscado e alvo de tiros no bairro do Estácio, quando seguia para a casa da vereadora. Marielle e o motorista Anderson Gomes morreram na hora. Uma assessora da parlamentar, que também estava no automóvel, sobreviveu - ela deixaria o país posteriormente. O ataque, cuidadosamente planejado, tinha a marca de profissionais – e logo seria revelada a participação de ex-agentes do Estado.
Suspeitos presos, mas nada de um mandante
Desde então, uma das perguntas do caso parece já ter sido respondida: "Quem matou Marielle?" Dois suspeitos foram presos: o policial reformado Ronnie Lessa e o ex-PM Élcio de Queiroz, acusados de envolvimento com milícia. A investigação apontou que Lessa teria efetuado os disparos, enquanto Queiroz teria conduzido o veículo que seguiu Marielle.
Armas apreendidas em endereço de Ronnie Lessa no Rio
Em julho de 2019, Lessa foi preso no mesmo condomínio da Barra da Tijuca em que o presidente Jair Bolsonaro e seu filho Carlos possuem imóveis. Em outro endereço do policial, investigadores encontraram 117 fuzis de assalto incompletos. Além do homicídio, Lessa foi indiciado por tráfico internacional de armas. Os dois suspeitos ainda não foram julgados, três anos após o crime.
Em junho de 2020, veio uma nova rodada de prisões: desta vez um suspeito de ter atirado as armas de Lessa ao mar. Assim com outros envolvidos no caso, ele também usava uniforme: um sargento do Corpo de Bombeiros, que vivia numa mansão de luxo na Zona Oeste do Rio. Em outubro de 2019, outros quatro suspeitos, entre eles parentes de Lessa, já haviam sido presos. O carro e a arma usados pelos assassinos nunca foram encontrados.
Quem mandou mantar Marielle?
Uma série de políticos do Rio de Janeiro figuraram como suspeitos de terem ordenado o crime. A lista chegou a incluir o vereador Marcelo Siciliano (PHS), o ex-vereador Cristiano Girão e o ex-deputado Domingos Brazão, conselheiro afastado do Tribunal de Contas do Estado (TCE). Todos negam qualquer envolvimento.
O caso de Siciliano também revelou tentativas de obstrução. Em 2019, a Procuradoria-Geral da República denunciou dois policiais federais, uma advogada e Domingos Brazão por tentativa de atrapalhar as investigações. Eles teriam plantado uma testemunha para implicar Siciliano e desviar o foco dos verdadeiros mandantes.
Uma das linhas de investigação da Polícia Civil e do Ministério Público aponta que o assassinato de Marielle foi encomendado como uma forma de vingança contra o atual deputado federal Marcelo Freixo (Psol-RJ), colega de partido de Marielle e que se notabilizou por sua atuação contra as milícias da cidade. Marielle trabalhou durante uma década no gabinete de Freixo antes de ser eleita vereadora.
Em dezembro, uma reportagem da revista Veja apontou que milicianos ligados ao Escritório do Crime, uma organização de matadores do Rio, se filiaram ao Psol logo depois das eleições de 2016, provavelmente para monitorar as atividades de membros do partido.
À época do crime, a segurança pública Rio de Janeiro também estava sob intervenção federal há apenas um mês. Num primeiro momento, houve especulações de que o assassinato poderia ter sido uma reação de grupos criminosos.
Em três anos, as investigações foram lideradas por três diferentes delegados. O primeiro, Giniton Lages, deixou o caso logo após a prisão dos dois executores. O segundo, Daniel Rosa, foi substituído por Moysés Santana em setembro de 2020, depois de mudanças no comando do governo do Rio. As investigações ainda foram objeto de uma disputa em 2019 envolvendo a discussão sobre uma possível federalização, com a mudança de alcançada da Polícia Civil para a Polícia Federal, mas a família da vereadora se opôs.
No início de março, o Ministério Público do Rio anunciou a criação de uma força-tarefa para investigar o caso. O grupo será chefiado pela promotora Simone Sibílio, que esteve à frente do caso no MP-RJ durante a maior parte do tempo. A promotora Letícia Emile, que atuava ao lado de Sibílio, integra a equipe. Anielle Franco, irmã da vereadora e diretora-executiva do Instituto Marielle Franco, avaliou positivamente a iniciativa.
Já a viúva do motorista Anderson Gomes, Ágatha Reis, reconheceu a importância da criação força-tarefa, mas criticou a demora para que houvesse esse avanço nas investigações. "Levou tempo demais. Marielle era uma parlamentar em exercício. Portanto, uma força-tarefa deveria ter sido criada já no início", disse Reis na sexta-feira, durante um lançamento de um dossiê com uma linha do tempo do caso e 14 questões consideradas essenciais para a investigação.
Sombra sobre o clã Bolsonaro
Os assassinatos de Marielle e Anderson ainda criaram constrangimento para o presidente Jair Bolsonaro. Além de um de seus vizinhos ter sido apontado como executor da vereadora, a família presidencial tinha ligações com outro nome que figurou entre suspeitos de envolvimento no crime, o ex-PM Adriano Magalhães da Nóbrega, um notório miliciano do Rio.
Segundo o Ministério Público, a família de Adriano participava do esquema de desvio de dinheiro público do filho mais velho de Bolsonaro, o senador Flávio. Adriano foi morto num cerco policial na Bahia em fevereiro de 2020, quando estava foragido. O caso Marielle e a investigação das "rachadinhas" se entrelaçaram diversas vezes nos últimos dois anos.
Apontado como executor do crime, Lessa vivia no mesmo condomínio em que Bolsonaro e seu filho Carlos têm casas
Em 2019, um desdobramento das investigações da morte de Marielle que mirou a atuação de milícias na Zona Oeste do Rio resultou na apreensão do celular da ex-mulher de Adriano, Danielle Mendonça, que atuou como assessora de Flávio Bolsonaro. Mensagens de Danielle com Fabrício Queiroz, apontado como "operador" das rachadinhas, jogaram luz sobre detalhes do esquema.
Em outro lance estranho do caso, o porteiro do condomínio de Bolsonaro (e Lessa) apontou que na noite do crime, o então deputado e atual presidente autorizou a entrada Élcio de Queiroz, o motorista que dirigiu o carro usado na emboscada.
A versão foi logo apontada como falsa, já que Bolsonaro estava em Brasília naquela noite. O porteiro logo voltou atrás, mas o caso provocou a queda de uma das promotoras do caso, que desmentiu o porteiro e teve sua imparcialidade questionada após imagens das suas redes sociais mostrarem que ela fez campanha para Bolsonaro em 2018.
Além dessas ligações, a própria postura do clã Bolsonaro diante do crime e os elogios do presidente a milicianos em seus tempos de deputado também ficaram em evidência ao longo da investigação. Desde o assassinato de Marielle, os membros da família presidencial se dividiram entre silêncio, desprezo e em minimizar a importância do crime ao longo de três anos de investigações.
Bolsonaro até se viu na posição de ter que negar em 2019 qualquer relação com os homicídios em entrevista a uma rede de TV dos EUA, numa situação inédita para um chefe de Estado brasileiro. "Que motivo eu teria para encomendar um assassinato desses?", disse.
A memória da vereadora também costuma ser um alvo constante da extrema direita bolsonarista, que costuma espalhar mentiras sobre sua atuação e piadas macabras sobre sua morte nas redes sociais.
Legado
A forma como o crime escancarou a ousadia dos milicianos do Rio de Janeiro e as dificuldades nas investigações não têm demovido figuras que pretendem manter o legado de Marielle vivo. Nas eleições municipais de 2020, a viúva da vereadora, Mônica Benício, foi eleita para uma vaga na Câmara do Rio de Janeiro. À época, ela afirmou à DW Brasil que pretende reapresentar projetos da sua antiga companheira.
Mural em homenagem a Marielle em Berlim
A família de Marielle também lançou um instituto que leva o nome da ex-vereadora. Em setembro de 2020, o Instituto Marielle Franco inaugurou o site da Agenda Marielle, que contém um agenda de compromissos e práticas elaborados a partir de discursos e projetos de lei da ex-parlamentar.
Ao todo, 81 candidatos que se comprometeram com a agenda foram eleitos em 54 cidades do Brasil nas eleições municipais de 2020. "Nós devolvemos nas urnas o que eles tentaram nos tirar na bala", disse a vereadora Benício em entrevista à DW Brasil.
A memória de Marielle também tem sido preservada e promovida no exterior. Em 2019, a prefeitura de Paris inaugurou um jardim em homenagem à ex-vereadora. Nesta semana, um enorme mural dedicado a Marielle foi inaugurado em Berlim.
Carmen Eliza chamou a imprensa para afirmar que o porteiro mentiu. Sergio Moro, a mando de Bolsonaro, mandou a Polícia Federal abrir inquérito para investigar... o porteiro
Carmen Eliza fez campanha para Bolsonaro: "O Brasil venceu!!! 57,7 milhões! Libertos do cativeiro esquerdopata. Família, moral, honestidade, vitória do bem!", comemorou
ConJur - Apesar de a Constituição Federal proibir a atividade político-partidária por membros do Ministério Público, a promotora Carmen Eliza Bastos de Carvalho, que participou da coletiva sobre o caso Marielle Franco, fez campanha em favor de Jair Bolsonaro durante as eleições de 2018.
Imagens de seu perfil no Instagram a mostram vestindo camiseta com a imagem do então candidato e o escrito "Bolsonaro presidente". Em outras publicações ela comemora a vitória de seu candidato: "O Brasil venceu!!! 57,7 milhões! Libertos do cativeiro esquerdopata", publicou.
As publicações podem render uma punição à promotora. De acordo com o artigo 128 da Constituição Federal, é vedado aos membros do MP exercer atividade político-partidária.
Em recomendação de 2016, o Conselho Nacional do Ministério Público afirmou que a vedação não se limita à filiação partidária, "abrangendo, também, a participação de membro do Ministério Público em situações que possam ensejar claramente a demonstração de apoio público a candidato ou que deixe evidenciado, mesmo que de maneira informal, a vinculação a determinado partido político".
O órgão, inclusive, tem punido aqueles que violam a regra. Em 2018, um promotor da Paraíba foi multado por exaltar, em um vídeo gravado dirigido ao povo de Bayeux (PB), a candidatura de Leonardo Micena a prefeito daquele município.
Em decisão mais recente, o CNMP puniu com suspensão não remunerada um procurador da Bahia que publicou um texto criticando Jair Bolsonaro e atacando membros do Poder Judiciário. Na decisão, o CNMP entendeu que o procurador não respeitou a impessoalidade e a isenção em relação à atividade político-partidária, deveres constitucionais dos membros do Ministério Público.
A LAVA JATO CONTRA O PORTEIRO
A promotora Carmen Eliza participou de entrevista coletiva nesta quarta-feira (30/10) sobre o caso Marielle Franco. Na entrevista, o MP-RJ disse que o porteiro do Condomínio Vivendas da Barra mentiu sobre ter ligado, a pedido de Élcio Queiroz, suspeito da morte da vereadora Marielle, para a casa da família do presidente Jair Bolsonaro. A versão do porteiro foi apresentada pelo Jornal Nacional, da TV Globo.
Atendendo a um pedido do ministro da Justiça, Sergio Moro, o procurador-geral da República, Augusto Aras, pediu que o MPF no Rio instaure inquérito para investigar as declarações do porteiro.
A PRIMEIRA VEZ DE CARMEN ELIZA
Com a medalha do delegado Carlos Augusto, promotora publicou foto ao lado de Daniel Silveira, deputado que quebrou placa de Marielle
Veja - O Ministério Público revelou ontem que era falso o depoimento do porteiro que associou o nome do presidente Jair Bolsonaro ao de um suspeito de ter participado da morte de Marielle. A suspeita de que o MP desconfiava da versão foi antecipada por VEJA. No Instagram de Carmem também há imagens dela com uma camisa com o rosto de Bolsonaro, e uma foto ao lado do deputado estadual Rodrigo Amorim (PSL). Ao lado do deputado federal Daniel Silveira (PSL), ele quebrou uma placa com o nome da vereadora Marielle Franco durante a campanha eleitoral de 2018. Em setembro deste ano, a promotora recebeu a Medalha Tiradentes, mais alta comenda do estado do Rio, por indicação do deputado estadual Delegado Carlos Augusto (PSD).
Essa foi a primeira vez que Carmen Eliza Bastos participa de uma coletiva de imprensa sobre o caso Marielle Franco. Nos outros posicionamentos do MP do Rio, a responsabilidade de dar explicações aos jornalistas sobre o rumo das investigações foi das promotoras Simone Sibilio, coordenadora do Grupo de Atuação Especial no Combate ao Crime Organizado (Gaeco), e Letícia Petriz.
Antes do raiar do sol desta terça-feira (12), às 5h37, Chico Otávio e Vera Araújo assinaram a reportagem com o furo da prisão do sargento Ronnie Lessa no condomínio de Jair Bolsonaro, efetuada por agentes da Delegacia de Homicídios (DH) e do Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado do Ministério Público menos de duas horas antes
Por Renato Rovai e Plínio Teodoro
“Ela é filha de Chico Otávio, profissional do O Globo.” A frase de Jair Bolsonaro (PSL) no tuíte do áudio fake contra a jornalista Constança Rezende, d’O Estado de S.Paulo, foi divulgada menos de 48 horas antes da prisão, no condomínio onde o presidente mora, do sargento da PM Ronnie Lessa, sob acusação de disparar os tiros que assassinaram a vereadora Marielle Franco (PSol) e o motorista Anderson Gomes.
Lida isolada, a frase parece apenas mais uma bravata lançada pelo presidente para atiçar a matilha bolsonarista nas redes contra um profissional de imprensa. Mas, qual seria o real motivo de Bolsonaro ter citado o jornalista d’O Globo em uma publicação que não dizia nada a seu respeito – exceto o fato de ser pai de Constança?
Chico Otávio é um dos poucos jornalistas que restaram na grande imprensa que dedicam a carreira – e a vida – aos bastidores do poder. Co-autor do livro “Os Porões da Contravenção”, que mostra a ligação da ditadura militar com o jogo do bicho na raiz do crime organizado no Rio de Janeiro, o jornalista, vencedor de 6 prêmios Esso, é um dos maiores conhecedores do submundo das milícias cariocas e da ligação delas com os bastidores do universo político.
Foi o jornalista quem deu furo (publicou primeiro, no jargão jornalístico) da real ligação das milícias com o clã Bolsonaro, revelando o elo do ex-capitão do Bope Adriano Magalhães da Nóbrega e do major da PM Ronald Paulo Alves Pereira, principais alvos da Operação deflagrada contra a milícia Rio das Pedras, com Flávio Bolsonaro.
Na reportagem, o jornalista diz ainda que “os dois são suspeitos de integrar o Escritório do Crime, um grupo de extermínio que estaria envolvido no assassinato da vereadora Marielle Franco (PSOL)”.
Furo na prisão dos assassinos
Antes do raiar do sol desta terça-feira (12), às 5h37, Chico Otávio e Vera Araújo assinaram a reportagem com o furo da prisão do sargento Ronnie Lessa no condomínio de Jair Bolsonaro, efetuada por agentes da Delegacia de Homicídios (DH) e do Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado do Ministério Público menos de duas horas antes.
Ainda na reportagem, um infográfico, feito pelo departamento de arte do jornal – que, geralmente não trabalha durante a madrugada -, mostra como foi realizada a investigação, além de uma linha do tempo com as “reviravoltas” do caso.
O jornalista também descreve todo o histórico do assassino de Marielle, dizendo que ele tinha “ficha-limpa”, e assina uma matéria, publicada às 6h44, com Mônica Benício, viúva de Marielle, sobre a repercussão da prisão, além de outras reportagens sobre o caso.
Todos os detalhes mostram que Chico Otávio acompanha de perto as apurações sobre a morte de Marielle Franco, “incontestemente” política, como dizem as procuradoras do caso, e claramente relacionada à ligação das milícias com a classe política do Rio de Janeiro que abomina os políticos de esquerda, especialmente os ligados ao PSol.
Quase um ano depois do assassinato de Marielle, as milícias do Rio continuam mandando recado e fazendo ameaças – que levaram ao exílio Jean Wyllys e, mais recentemente, de Márcia Tiburi. E, como indaga Mônica Benício, é “urgente e necessário” que se revele quem mandou matar a vereadora. Antes que a perseguição a políticos oposicionistas, jornalistas ou contra qualquer pessoa com opiniões divergentes se torne uma política de Estado do governo Bolsonaro. Leia mais na revista Forum
Desde que vieram à luz novas informações sobre as organizações criminosas chamadas de milícias, como o fato de que Flávio Bolsonaro (PSL-RJ) empregou parentes e homenageou um miliciano do Complexo Rio das Pedras, essa favela da zona oeste do Rio de Janeiro tornou-se epicentro de um dos mais recentes escândalos políticos do país. Para desvendar o jogo político local, a Pública fez um levantamento inédito sobre os candidatos mais votados naquelas seções eleitorais, com foco especial nos cargos de vereador e deputado estadual.
A Pública constatou que, em 2018, Flávio Bolsonaro foi o senador mais votado em Rio das Pedras, com 8.729 votos, o equivalente a 17% do total.
Historicamente, porém, a performance eleitoral da família do presidente não foi expressiva naquela região. Na disputa para cargos do Parlamento, a melhor votação foi em 2016, quando seu irmão Carlos Bolsonaro (PSL) foi o sétimo vereador mais bem colocado por aquelas urnas, com 399 votos (1,5%).
O patriarca, Jair Bolsonaro (PSL), teve sua melhor performance na disputa pelo cargo de deputado federal na eleição de 2014. Na ocasião, foi o quarto mais votado em Rio das Pedras. O atual presidente obteve então 623 votos (2%). Tanto em 2010 como em 2014 o ex-deputado Eduardo Cunha (MDB) liderou essa disputa.
Desde 2010, o jogo eleitoral foi liderado principalmente pela família Brazão, tradicional grupo político da zona oeste. Conselheiro afastado do Tribunal de Contas do Rio de Janeiro, Domingos Brazão foi alvo de uma operação da Polícia Federal na última quinta-feira, que apura tentativas de atrapalhar a elucidação do homicídio de Marielle Franco (PSOL) e Anderson Gomes.
O levantamento revela também candidatos ligados à milícia e outras práticas criminosas, como assassinatos.
Em janeiro, por meio da Operação Intocáveis, a Polícia Civil e o Ministério Público do Rio de Janeiro (MPRJ) prenderam milicianos de Rio das Pedras, acusados de extorsão, homicídios e fraudes imobiliárias utilizando a Associação de Moradores do local. Um dos principais líderes identificados é o ex-policial Adriano Magalhães da Nóbrega, cuja mãe e cuja esposa trabalharam no gabinete de Flávio Bolsonaro na Assembleia Legislativa Estadual do Rio de Janeiro (Alerj).
Em 2018, Flávio Bolsonaro (PSL) foi o senador mais votado em Rio das Pedras | Foto: LG Soares/ Arquivo Alerj
Coordenadora do Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado (Gaeco), órgão do MPRJ que liderou a Operação Intocáveis, Simone Sibilio diz que as prisões de janeiro não significaram o fim das investigações. Pelo contrário. “A investigação prossegue com farto material, inclusive para aprofundar a possível relação com agentes públicos, por conta do material apreendido e das novas denúncias recebidas desde então. Demos um duro golpe naquela organização, mas temos preocupação que novas lideranças possam surgir ou que o tráfico da Cidade de Deus vá para lá”, comenta a promotora.
Flávio também concedeu a Medalha Tiradentes – mais alta honraria da casa – a Adriano e a outro miliciano denunciado pelo MPRJ. Hoje, Adriano está foragido da Justiça e é suspeito de envolvimento na morte da vereadora Marielle Franco (Psol).
Adriano Magalhães da Nóbrega, capo do Escritório do Crime
Miliciano chegou a obter 75% dos votos da região
Em levantamento municipal, a partir do Censo de 2010, Rio das Pedras já aparecia como a terceira maior favela da cidade, com mais de 63 mil de habitantes. Já a Associação de Moradores sustenta que o número está em torno de 140 mil.
Em 2018, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) registrou 35.006 eleitores nas seções eleitorais atribuídas a Rio das Pedras. Entretanto, os números podem ser ainda maiores, considerando a expansão imobiliária na região e a ausência de delimitações oficiais do local enquanto bairro. Oficialmente, a favela horizontal de Rio das Pedras se espalha entre Itanhangá, Jacarepaguá e Anil.
Rio das Pedras é tido como berço de uma das mais antigas milícias do Rio de Janeiro, que atua desde os anos 1970.
Há mais de 26 anos, o sociólogo José Cláudio Souza estuda as milícias. Ele explica que o domínio mais direto sobre os votos da região onde atuam é uma das inovações dessas organizações em relação a outros grupos criminosos. “Eles fazem um controle dos títulos eleitorais das áreas, quantidade de votos de cada região e passam a vender estes votos”, comenta.
No ano passado, autoridades fizeram um mapeamento oficial que identificou 300 currais eleitorais – entre eles Rio das Pedras – controlados pelo tráfico ou pelas milícias na cidade. O problema é antigo. Dez anos antes, nos idos de 2008, a Alerj criou uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) para investigar as milícias, após jornalistas que cobriam o tema terem sido sequestrados e torturados. As conclusões já apontavam para a influência das milícias no poder público, inclusive por meio de candidaturas próprias.
Segundo o relatório final da CPI, a concentração de votos por local em eleições proporcionais, como a de deputados estaduais e vereadores, chega normalmente a cerca de 10% quando não há currais eleitorais. Assim, foi adotado o índice de 15% como “marco definidor de um padrão muito elevado” de concentração de votos, o que poderia ser um indício de currais eleitorais ou, no caso, de controle pelas milícias.
Sob esse aspecto, a concentração de votos em Rio das Pedras impressiona. Impulsionado por sua atuação na comunidade via Associação de Moradores e pela transferência dos títulos de eleitor dos moradores imigrantes nordestinos, Josinaldo Francisco da Cruz – o Nadinho de Rio das Pedras – se lançou candidato a vereador em 2004.
Na ocasião, Nadinho conseguiu 75% dos votos de Rio das Pedras e foi eleito, mas sua ascensão política teve um final trágico.
Em uma investigação em 2006 sobre outros criminosos, o MPRJ apontou que Nadinho e outros moradores passaram a integrar um “grupo paramilitar armado”, uma milícia, em Rio das Pedras ainda no final dos anos 1990. À CPI das Milícias, em 2008, Nadinho confirmou a existência de milícia na sua comunidade, mas à época negou fazer parte dela.
Dois candidatos com maior votação em Rio das Pedras
Infográfico: Bruno Fonseca/ Agência Pública
O xadrez das milícias de Rio das Pedras
Em fevereiro de 2007, outro líder local e antigo parceiro de Nadinho foi assassinado. O inspetor policial Félix Tostes foi executado dentro de seu carro, alvejado com mais de 40 disparos. No final do ano, Nadinho foi indiciado como mandante do crime – e, posteriormente, a CPI o apontou como ex-líder da milícia de Rio das Pedras.
Antes disso, porém, em maio de 2007, como vereador, Nadinho recebeu a Medalha Tiradentes na Alerj. O autor da homenagem foi o deputado Natalino, ex-policial preso no ano seguinte sob acusação de liderar a milícia Liga da Justiça, que também atua na zona oeste. Por sua vez, Nadinho também homenageou Natalino com a Medalha Pedro Ernesto, a comenda dos vereadores da cidade.
Em 2008, um delegado da Polícia Civil afirmou à CPI que ambos, Nadinho e Natalino, fizeram uma parceria para eliminar Félix Tostes e ampliar domínio sobre Rio das Pedras. Porém, de acordo com o delegado, outros criminosos fiéis a Félix assumiram o comando e isolaram Nadinho. Entre eles, estaria Beto Bomba, que mais recentemente comandava a Associação de Moradores de Rio das Pedras e foi um dos milicianos denunciados na Operação Intocáveis.
No relatório da CPI, Nadinho aparece como “ex-líder” da milícia de Rio das Pedras, enquanto Beto Bomba e outros figuram como mandantes à época. Além de seis nomes de “prováveis lideranças da milícia” em Rio das Pedras, a CPI incluiu oito nomes de “laranjas”, em especial familiares dos envolvidos.
Nadinho apoiou Rodrigo Maia
À CPI na Alerj, Nadinho confirmou a existência de milícia em Rio das Pedras, mas negou fazer parte dela. Tanto Nadinho como Natalino eram filiados ao PFL, posteriormente renomeado DEM. Era o partido de Cesar Maia, que durante seu terceiro mandato como prefeito do Rio, entre 2005 e 2008, chegou a dizer que preferia as milícias ao tráfico.
Durante o segundo mandato de Cesar Maia, foi assinado – sem licitação – um contrato de R$ 225 mil com a Associação de Moradores e Amigos de Rio das Pedras (Amarp) cobrindo a prestação de serviços de assistência educacional e nutricional para a manutenção de creches no local entre 2003 e 2004. Na época, de acordo com apuração da Pública, Nadinho presidia a associação.
O DEM é o partido de seu filho, Rodrigo Maia, que comanda hoje a Câmara dos Deputados em Brasília. À CPI, Nadinho declarou ter apoiado a candidatura de Rodrigo Maia a deputado federal. Em 2006, ele foi o segundo deputado federal mais votado em Rio das Pedras, com 5% dos votos.
Nadinho declarou ter apoiado a candidatura de Rodrigo Maia (DEM) a deputado federal | Foto: Luis Macedo/ Câmara dos Deputados
O domínio da família Brazão
Durante o depoimento à CPI, Nadinho citou nomes de policiais envolvidos com a milícia na sua comunidade e disse que, a partir de então, sua vida estava em risco. Dito e feito: em 2009, cerca de seis meses depois, ele foi executado, na zona oeste do Rio de Janeiro, com mais de dez tiros.
Após a morte de Nadinho, o sobrenome Brazão passa a se destacar entre os campeões de votos em Rio das Pedras. Antes disso, entre 2004 e 2010, os resultados das urnas mostram uma performance tímida da família. O melhor resultado havia sido em 2006, quando Domingos Brazão (MDB) conseguiu 2% dos votos e foi eleito deputado estadual.
Depois, porém, o jogo mudou. Nas disputas para deputado estadual, em 2010 e 2014, Domingos foi de longe o candidato com melhor performance eleitoral por aquelas urnas, recebendo quase 30% do total de votos da região para o cargo. Já em 2012 e 2016, seu irmão Chiquinho Brazão (MDB) venceu ali todos os vereadores concorrentes, mas concentrou menos votos que Domingos, angariando aproximadamente 15% do total.
Na última eleição, Pedro Brazão (PR) se candidatou pela primeira vez e se elegeu deputado estadual, com a segunda melhor votação em Rio das Pedras. Dessa vez, foram 1.547 eleitores, ou 6% do total. Pedro é cunhado de Domingos Brazão e, em 2018, perdeu a liderança para a candidata Cleusa Preta Loira (PR), do mesmo partido, moradora do local que obteve 7% dos votos.
A atuação eleitoral da família Brazão em Rio das Pedras foi citada por Nadinho e aparece brevemente no relatório da CPI, quando ele trata das relações políticas nos redutos controlados por milicianos. Além de Domingos Brazão, ele nomeou outros candidatos, como Álvaro Lins (PMDB), ex-deputado estadual e ex-chefe da Polícia Civil.
Em entrevista à Pública, Cleusa Preta Loira, que apoiou Nadinho e acompanhou as campanhas políticas em Rio das Pedras desde os anos 2000, afirmou que nunca houve uma relação efetiva entre Brazão e Nadinho. “Pelo contrário, ele [Brazão] nem entrava lá”, afirma. Confirmando os dados levantados, segundo ela, foi a partir de 2010, já após a morte de Nadinho, que a família Brazão passou a ter maior protagonismo eleitoral na comunidade.
Segundo o documento final da CPI, a milícia do bairro de Oswaldo Cruz, na zona norte, também teria influência política sobre a família Brazão. À época deputado, Domingos Brazão não prestou depoimento, mas solicitou a gravação de todas audiências feitas pela comissão.
Domingos Brazão é filho de portugueses, mas nasceu em Jacarepaguá, na zona oeste do Rio de Janeiro. Ele mantinha um centro social com seu nome na região, que foi fechado em 2010 pelo Tribunal Regional Eleitoral por ser usado para fins eleitorais. Entre outras coisas, os fiscais encontraram ali cadeiras de rodas com a marca do Sistema Único de Saúde (SUS) e registros de dados eleitorais de moradores. Por causa desse evento, ele chegou a ter seu mandato cassado em 2011, mas a decisão foi revertida no TSE.
Domingos não só permaneceu no cargo como foi reeleito. Em 2015, foi escolhido pelos deputados da Alerj como um dos conselheiros do Tribunal de Contas do Estado, tendo seu nome ratificado pelo ex-governador Pezão. Enquanto ocupava o cargo, em abril de 2017, Domingos Brazão foi preso com outros conselheiros em um dos desdobramentos da Lava Jato, sob acusação de receber propina de empresas.
Domingos Brazão foi preso em um dos desdobramentos da Lava Jato | Foto: Arquivo Alerj
Não foi a sua primeira vez atrás das grades. Com 22 anos, Domingos Brazão foi preso por assassinato, mas foi solto após a Justiça ter decidido que ele agiu em legítima defesa. Em 2017, ele ficou pouco mais de uma semana preso. Atualmente, Brazão aguarda em liberdade julgamento dos processos por corrupção. Procurados pela Pública, os membros da família Brazão não responderam às tentativas de contato.
Mesmo com Domingos afastado da vida pública, a família Brazão continua se expandindo politicamente. E, em 2018, garantiu uma cadeira na Alerj e outra na Câmara dos Deputados, em Brasília.
Na última eleição, Chiquinho Brazão foi eleito deputado federal pelo partido Avante. Em apenas dois anos, desde sua eleição anterior, em 2016, quando se tornou vereador pelo Rio de Janeiro, sua declaração de bens aumentou de R$ 2,3 milhões para R$ 3,4 milhões, mais de R$ 1 milhão. Já o cunhado Pedro Brazão declarou R$ 1,9 milhão em bens durante a candidatura que o tornou deputado estadual em 2018.
Apesar da migração recente de Chiquinho para o Avante, a família Brazão é tradicionalmente ligada ao MDB, partido que, ao lado do PFL/DEM, concentrou quase metade dos votos de Rio das Pedras para vereador e deputado estadual na última década. O MDB também esteve à frente da prefeitura e do governo do estado do Rio de Janeiro, além de comandar a Alerj.
Outro candidato do MDB bem colocado em Rio das Pedras foi o vereador eleito Thiago K. Ribeiro, sexto mais votado em 2016, com 1,6% dos votos totais. Ele é filho e sócio do economista Jorge Luiz Ribeiro, preso em 2018 e acusado de ser o operador financeiro do esquema de propina de Jorge Picciani, ex-presidente da Assembleia Estadual e conhecido cacique do MDB no Rio.
Da CPI das Milícias ao caso Marielle Franco
A CPI das Milícias reuniu também informações sobre grupos milicianos de regiões próximas a Rio das Pedras, como a favela Gardênia Azul. Ex-presidente da Associação de Moradores do local, o sargento bombeiro Cristiano Girão foi apontado como suposto líder da milícia ali.
Segundo o relatório da CPI, documentos oficiais mostrariam que Girão chegou a assassinar um morador da comunidade em 2004. O motivo seria o fato de ele ter se recusado a colocar em sua casa propaganda política do então candidato a vereador.
Em 2008, pouco depois de eleito vereador – o segundo mais votado em Rio das Pedras, com 5% dos votos –, Girão foi indiciado pela Polícia Federal por extorsão e lavagem de dinheiro. Na denúncia feita pelo MPRJ, ligações interceptadas na Operação Intocáveis mostram animosidade entre a milícia de Rio das Pedras e a de Gardênia Azul.
Depois de preso em 2009 por acusação de envolvimento com a milícia, só há notícias de Girão ter retornado à sede do Legislativo carioca em março do ano passado, uma semana antes do assassinato de Marielle Franco, conforme revelou o site The Intercept. Segundo o site, o miliciano passou pelo sétimo andar do prédio, onde fica o gabinete de Chiquinho Brazão (MDB).
No ano passado, seu irmão Domingos Brazão foi convocado a prestar explicações nas investigações do caso Marielle. Isso porque uma das testemunhas do caso teria relações com Gilberto Ribeiro da Costa, ex-assessor parlamentar de Domingos na Alerj.
Na zona oeste, Siciliano e a família Brazão são tidos como adversários políticos, por disputarem votos. Na eleição passada, por exemplo, enquanto Chiquinho Brazão pedia para si os votos para deputado federal, Marcelo Siciliano apoiou outro candidato, Tio Carlos, que acabou não conquistando o cargo.
O vereador Marcello Siciliano (PHS) seria o possível mandante da execução que resultou na morte de Marielle Franco e seu motorista Anderson Gomes | Foto: Agência Brasil
Depois da morte de Nadinho, o único político a acompanhar seu enterro foi o então vereador Carlos Alberto Lavrado Cupello, o Tio Carlos, que mantinha com ele um projeto social para crianças, conforme relatou a imprensa à época. Ele se elegeu vereador em 2008 pelo DEM.
Em 2012, Tio Carlos foi reconduzido à Câmara dos Vereadores. No cargo, votou a favor da cassação de Deco (PR), vereador acusado de comandar a milícia da Praça Seca, também na zona oeste da cidade.
Dois anos depois, na eleição seguinte, Tio Carlos subiu um degrau e conquistou uma vaga na Alerj pelo Solidariedade (SD), o mesmo partido do ex-policial Geiso Pereira Turques, que em 2016 foi citado em depoimentos à CPI das Milícias como “participante regular do encontro semanal da cúpula da milícia de Rio das Pedras”. Geiso foi um dos políticos indiciados por extorsão e lavagem de dinheiro pela Polícia Federal em 2008, junto com Girão.
Entre 2012 e 2016, Tio Carlos e Geiso tiveram boa performance em Rio das Pedras, ficando atrás apenas da família Brazão nas disputas eleitorais. Na corrida para a Alerj, Tio Carlos conseguiu 6% dos votos de Rio das Pedras em 2012 e 5% em 2014. Já Geiso levou 9% dos votos dali em 2016, mas teve a candidatura indeferida com base na Lei da Ficha Limpa.
Quando concorreu, Geiso declarou ter mais de R$ 1 milhão em bens, sendo R$ 425 mil em dinheiro vivo. Ele era proprietário do Castelo das Pedras, uma tradicional casa de shows da região e já fora eleito vereador em São Gonçalo pelo PDT.
Mais conhecido como Geiso do Castelo, ele foi um dos indiciados pela CPI das Milícias e, em 2015, foi expulso da Polícia Militar. A Pública solicitou à PMERJ esclarecimentos sobre o desligamento do ex-policial, mas não obteve resposta.
Milicianos interferem nas campanhas eleitorais, segundo pesquisadores
O impacto eleitoral das milícias foi analisado em um artigo de 2015 dos cientistas políticos Daniel Hidalgo e Benjamin Lessing. Eles estudaram a influência política das milícias entre 2002 e 2006, em especial nas candidaturas de membros das forças policiais, e concluíram que os milicianos usaram o controle territorial para se elegerem ou puxarem votos para aliados.
Hidalgo é professor de ciência política no Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT) e Lessing leciona a mesma disciplina na Universidade de Chicago, ambos nos Estados Unidos. No estudo, disponível online, eles mostram um aumento de quase 50% dos votos em candidatos de forças de segurança nas comunidades dominadas por milícias.
Nas eleições analisadas pela Pública em Rio das Pedras, 2018 foi a única em que a concentração de votos do candidato mais popular ficou significativamente abaixo da margem de 15%, apontada como possível indício de “curral eleitoral” pela CPI das Milícias. Pela primeira vez, em Rio das Pedras os votos nulos ou em branco superaram as candidaturas para o Parlamento estadual ou municipal. Na eleição de 2018, 25% dos eleitores dali optaram por anular ou votar em branco.
No levantamento histórico dos mais votados, aparecem também partidos identificados à esquerda, mas com menos força. O PT teve as candidaturas de Robson Leite, que ficou entre os cinco melhores em 2008, 2010 e 2018.
Relator da CPI das Milícias, que investigou os grupos criminosos da região, Marcelo Freixo (Psol) foi o terceiro deputado mais votado em Rio das Pedras em 2014. Naquela eleição para a Alerj, ele conseguiu 847 votos nominais na região – ou 3% do total.
Marcelo Freixo (PSOL), foi relator da CPI das Milícias | Foto: Luis Macedo/ Câmara dos Deputados
Já a votação de Marielle Franco não se destacou em Rio das Pedras. Dos mais de 46 mil votos que tornaram Marielle vereadora, apenas 101 foram registrados nas urnas de Rio das Pedras. O equivalente a apenas 0,4% do total daquela área.
Linha do tempo da ascensão dos Brazão em Rio das Pedras, veja gráfico
Adriano Belisário adrianobf@gmail.com Leia mais do autor