Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

O CORRESPONDENTE

Os melhores textos dos jornalistas livres do Brasil. As melhores charges. Compartilhe

Os melhores textos dos jornalistas livres do Brasil. As melhores charges. Compartilhe

O CORRESPONDENTE

03
Jan21

Mito, logo minto. Ouvir o canto da sereia é morrer

Talis Andrade

Em torno do mito, a morte se revela como face banal e ordinária de uma sedução mortífera. Os que estão a aclamá-lo são cúmplices inevitáveis com o afogamento social que está em curso

 

por Alexandre Filordi /GGN 

Bolsonaro se jogando no mar e nadando na direção dos acólitos, que também não estão nem aí, fez-me lembrar de um mito: o das sereias.

Na mitologia, as sereias possuem cantos lindíssimos, mas fatais. Quem os ouvisse seria hipnotizado e se lançaria mar adentro para encontrar tamanha sedução, porém, morrendo afogado.

Na Odisséia, Homero relata a astúcia de Ulisses para atravessar o mar habitado por sereias. Para proteger seus marujos, Ulisses os orienta a entupir os ouvidos com cera. Impedidos de ouvir o canto fatal, continuariam são e salvos. Por sua vez, Ulisses se amarra no mastro do navio. Impedido de se soltar, embora ouvindo a sedução mortífera, conseguirá seguir a sua viagem.

Há muito tempo Bolsonaro lançou seu canto e seduziu muita gente. Há os que ainda correm ou nadam em sua direção. Ignoram, contudo, os aspectos mortíferos que estão em curso nesse ato. Em torno do mito, a morte se revela como face banal e ordinária de uma sedução mortífera. Os que estão a aclamá-lo são cúmplices inevitáveis com o afogamento social que está em curso. Ignorar a ronda da morte faz parte de uma mentalidade que não sabe distinguir realidade de mitologia, fato de fake news, consequências político-econômicas de médio e longo prazo com prazer imediato.

Mas há um detalhe perverso para esses navegantes desprotegidos e fascinados pelo canto do mito, e que persistem a dar ouvidos a ele: quando a morte cobrar o preço da sedução, não serão atendidos nos melhores hospitais do país; quando o desemprego bater à porta, não terão cheques polpudos depositados milagrosamente na conta de seus familiares; quando precisarem de amparo social, ouvirão que receber auxílios são coisas de comunista ou de vagabundo; quando virem o próximo tocado pela pandemia ou a si mesmo, sentirão o peso da realidade que não se dribla com likesself ou pulando sete ondas.

Esses não são como os Ulisses seduzidos, os astutos com poder e mando, que puderam se amarrar no mastro a fim de sobreviver ao canto sedutor da morte. Aqui, os Ulisses são a oligarquia, a plutocracia, a elite, o empresariado, a política de ligeireza proverbial seduzida pela esperança mitológica, mas que desde sempre não abrem mão de estar do lado de seu papel social: locupletarem-se com o poder vigente. Esses precisam continuar a explorar os incautos; eles fazem da morte uma redução de custos do sistema público de garantias sociais; eles estão do lado do fascínio, pois trata-se do poder de ordenar, de explorar, de comandar e de monopolizar as informações. Os Ulisses podem ouvir o canto da sereia pois, independentemente de suas apostas no mito, estão, há mais de 500 anos, dominando a epopeia chamada desigualdade brasileira.

Mais do que isso. Esses Ulisses não se atiram em águas rasas e povoadas como o populacho o faz; eles os veem de longe, de seus iates, depois de chegarem na marina de helicópteros  – sem pagar IPVA por eles, é claro; eles estão em suas ilhas ou em condomínios que funcionam como ilhas; eles também ganham com a morte – como sempre – pois fizeram os seduzidos acreditar que o melhor é obedecer e servi-los sob quaisquer condições; afinal, eles também são a voz de Deus acima de tudo. Seja como for, não são eles que vão até o mito, mas é o mito que precisa deles para fazer justificar o canto que mata. Enquanto isso, os pobres seduzidos, nem donos do mar ou das nobres embarcações, nos termos de Adorno e Horkheimer, “reproduzem a vida do opressor juntamente com a própria vida”, fascinados que estão pelo canto da morte.

Em Estudos sobre a personalidade autoritária, Adorno aponta a anti-intracepção como um dos índices que caracterizam a personalidade autoritária. Anti-intracepção é a incapacidade de ser compassivo, aflorando atitudes e comportamentos de impaciência e de desrespeito. Tanto a impaciência e a falta de compaixão com a preservação da vida têm evidenciado o quão de autoritário existe quando um presidente da República se mostra incapaz de manifestar sobriedade sobre as águas agitadas pelas quais estamos a atravessar, sem respeito algum pelas mortes ocorridas.

Isso importa, contudo? Claro que não, porque estamos diante do próprio mito, com tudo que ele porta e anuncia. Ademais, é próprio de todo mito o direito de mentir, pois o mito é história inventada: mito, logo minto. Quantos mortos a mais contaremos em 2021? Veremos, em breve, o peso da verdade no lugar do mito.

 

Mais sobre mim

foto do autor

Subscrever por e-mail

A subscrição é anónima e gera, no máximo, um e-mail por dia.

Arquivo

  1. 2023
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D
  14. 2022
  15. J
  16. F
  17. M
  18. A
  19. M
  20. J
  21. J
  22. A
  23. S
  24. O
  25. N
  26. D
  27. 2021
  28. J
  29. F
  30. M
  31. A
  32. M
  33. J
  34. J
  35. A
  36. S
  37. O
  38. N
  39. D
  40. 2020
  41. J
  42. F
  43. M
  44. A
  45. M
  46. J
  47. J
  48. A
  49. S
  50. O
  51. N
  52. D
  53. 2019
  54. J
  55. F
  56. M
  57. A
  58. M
  59. J
  60. J
  61. A
  62. S
  63. O
  64. N
  65. D
  66. 2018
  67. J
  68. F
  69. M
  70. A
  71. M
  72. J
  73. J
  74. A
  75. S
  76. O
  77. N
  78. D
  79. 2017
  80. J
  81. F
  82. M
  83. A
  84. M
  85. J
  86. J
  87. A
  88. S
  89. O
  90. N
  91. D
Em destaque no SAPO Blogs
pub