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O CORRESPONDENTE

Os melhores textos dos jornalistas livres do Brasil. As melhores charges. Compartilhe

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O CORRESPONDENTE

08
Abr23

A Torre de Babel da política brasileira: o que queremos dizer por combate à corrupção?

Talis Andrade
 

 

 

 

por Ana Carolina Albuquerque de Barros, André Antiquera Pereira Lima & Miguel Kupermann /Cult

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Recentemente, por motivo que nada tem a ver com a atuação parlamentar, alguns senadores e deputados da chamada bancada da Lava Jato voltaram a ter um protagonismo que há algum tempo tinham perdido.

Surfando na onda da trágica descoberta de ameaças à vida de autoridades públicas, aproveitaram o repentino palco para amplificar seus gritos contra o processo penal democrático e contra os direitos e garantias que não são apenas do réu, mas sim de todo cidadão.

Esse apelo exacerbado, cego e idiota ao punitivismo não é novidade, nem em nossa sociedade e muito menos para estes parlamentares novatos. Afinal, suas carreiras políticas decolaram muito antes de suas candidaturas, quando ainda se apresentavam apenas como paladinos da justiça, preocupados em combater a corrupção.

Mas qual seria o problema no desejo de combater a corrupção?

Nenhum, não fossem os meios empregados – desenfreados e muitas vezes ilegais – e a elevação deste desejo à categoria de uma ideologia política que, ao fim e ao cabo, suprime a própria política.

Isso porque se criou uma ideologia que apresenta um projeto político próprio – no aspecto econômico e de governança administrativa, por exemplo – que é mascarado por um discurso ancorado em um conceito abstrato.

Afinal, o que querem dizer quando falam em “combate à corrupção”? Será que eles ou seus interlocutores sabem qual o sentido que estão atribuindo à palavra corrupção? Será que nós sabemos?

Para alguns, talvez,  combater a corrupção significa combater o crime chamado “corrupção”; para outros, combater todo e qualquer crime que envolva a administração pública. Há os que entenderão se tratar do combate à forma de fazer política, ao “toma lá dá cá”: troca de cargos por base no Congresso ou a distribuição de emendas. Há, também, quem imagine uma cruzada contra a suposta “corrupção de todo dia”: dirigir no acostamento, furar fila ou parar na vaga de idoso.

São diversos os significados que se atribuem corriqueiramente ao termo corrupção, quase todos de essência moral, o que acarreta grandes problemas.

Desde 2013 – com mais ênfase após a Operação Lava Jato ganhar protagonismo nos noticiários –, o tema da corrupção vem se fortalecendo ainda mais como elemento central da disputa política. Há quem vote “contra a corrupção”, independentemente de todo e qualquer outro critério ou linha política, o que pode, justamente, alçar ao poder pessoas que fogem ao critério absoluto de moralidade imposto pela narrativa majoritária.

Isso aconteceu em 2018, quando se elegeu, por exemplo, alguém que inegavelmente possui vínculos com a milícia (destaque-se, crime organizado) ou mesmo com escândalos que envolvem peculato.

A bem da verdade, nos últimos anos a palavra corrupção passou a significar mais do que, de fato, significa. Essa reflexão pode ajudar a entender como historicamente chegamos até aqui, mas também a identificar um importante entrave para a superação dos problemas que a política enfrenta na atualidade, como a própria ascensão e consolidação do neofascismo como força política relevante.

Quando uma palavra passa a significar qualquer coisa que quem a disse quer, estamos com um grave problema. Hoje, parece que uma grande parcela da população entende que corrupção é qualquer tipo de imoralidade relacionada à coisa pública, independentemente de um regramento. Ou seja, qualquer coisa que a pessoa entenda como imoral, em seu âmbito subjetivo, ou até mesmo da qual discorde por alguma razão, passa a ser considerada corrupção.

Um bom exemplo é o do ex-juiz Sergio Moro. Atualmente, pode-se afirmar, sem medo de errar, que sempre foi um personagem da vida pública absolutamente avesso à política democrática.

Apenas para que não se cometa uma injustiça, cabe uma breve recapitulação: rasgou todos os direitos individuais e fundamentais enquanto era juiz, desprezou a constituição, se valeu de todos os estratagemas mais vis na tentativa de aniquilar aquele que tinha por inimigo pessoal e para se projetar politicamente.

Ainda, aliou-se umbilicalmente ao neofascismo, que insuflou e com o qual colaborou para que vencesse as eleições de 2018, impedindo um candidato que (provavelmente) iria vencer as eleições de concorrê-las e, mesmo depois de afirmar que seus aliados autoritários e antidemocráticos eram, eles também, corruptos (no sentido amplo da palavra), voltou aos seus braços, escancarando a sua completa ausência de valores e a busca incessante pela autopromoção às custas do discurso do inimigo.

Sim, inimigo, pois em sua linha de combate à corrupção não há interesse na verdade, na preocupação legítima de fortalecimento das instituições e na proteção da coisa pública. Há, sim, o combate a um inimigo escolhido muito tempo atrás e revelado ao longo da Operação Lava Jato.

Quando se coloca o outro na posição de inimigo, ele é descaracterizado como indivíduo, o que permite que se tolere tudo para combatê-lo, como se os fins justificassem os meios. Parece familiar?

Essa figura nefasta da história política usou a toga de fantasia e o tribunal como palco, com a Operação Lava Jato, para propagar ainda mais o discurso de que a corrupção pode ser tudo o que queremos que ela seja. Isso, talvez, tenha facilitado que muitos passassem a achar normal a tentativa de criminalizar a própria política.

Junto com seus parceiros de empreitada, por desprezarem a própria política democrática, passaram a imputar como crime o exercício regular da política, como ocorreu em tantos processos da Operação.

Que fique claro: o problema não está em imputar crime a quem de fato o cometeu. O que fizeram, contudo, foi criar, contra a lei, uma interpretação de que corrupção é tudo aquilo de que subjetivamente discordavam, o que é grave quando se discorda da própria política democrática.

Afinal, na democracia a maioria não sufoca a minoria sem debate, mas  disputa com ela, negocia, forma alianças, cede espaço em troca de apoio. Isso, por si só, não é crime como tantas vezes foi imputado na Lava Jato.

Então, concluímos que não. Corrupção não é qualquer coisa. Corrupção é coisa séria, é um crime. E não venham com o discurso que caiu como uma luva nos novos tempos, segundo o qual todos os problemas da nação advêm exclusivamente da corrupção: “Ah, é que o brasileiro é corrupto, começa em casa, quando se fura uma fila. Como esperamos que os políticos não sejam corruptos se nós, enquanto sociedade, não respeitamos as regras?”.

Não podemos tratar com a mesma palavra condutas absolutamente distintas: furar fila não é o mesmo que pagar propina. Pagar propina não se confunde, em todos os casos, com negociação parlamentar. Imoralidade com a coisa pública não será sempre corrupção, sem qualquer delimitação legal do que ela significa.

Enquanto sociedade precisamos garantir um mínimo comunicacional em comum. Quando se atribui um sentido distinto à palavra proferida, perdemos a capacidade de dialogar. Vale dizer: não temos como nos entender se, quando um diz corrupção, o outro entende imoralidade. Essa falha comunicacional talvez explique um pouco as dificuldades de diálogo que o país enfrenta.

Mais que isso, a histeria coletiva em torno do termo corrupção, no sentido amplo que se refere ao que cada um discorda ou entende como fora de seus parâmetros de moralidade, esconde a verdadeira disputa política que está sendo travada.

Não sejamos ingênuos. A confusão interessa, e muito, para muita gente. Há uma bancada inteira da Lava Jato sobrevivendo politicamente, requentando carreiras decadentes, com base nesse sentimento. Há uma oposição inteira que esconde seus ímpetos autoritários e fascistas com base nesse discurso, com muito voto de gente que não pensa efetivamente assim, mas que é contra a temida corrupção e ignora todo e qualquer outro critério de escolha, até mesmo o histórico corrupto de determinados candidatos.

A esse eleitor, interessa somente o combate ao inimigo que lhe apresentaram. A quem constrói o discurso, realmente, interessa a manutenção da “fábrica” de inimigos, alargando o conceito para que se possa carimbar a pecha de inimigo público em qualquer um que lhe interesse.

No fim, esse combate não passa de uma fumaça que esconde os reais interesses políticos e, caso queiram, pode servir a qualquer grupo.

É evidente que a corrupção é algo grave. E mais, qualquer forma de enriquecimento pessoal ou partidário às custas de qualquer conduta ilícita é grave.

Entretanto, os problemas que advêm da política são políticos. A desigualdade social, a fome, a falta de saneamento não são consequências da falta de dinheiro em razão da suposta corrupção, como muito se fala por aí. Pelo contrário, advêm de escolhas políticas, de disputas de interesses de classe e, enfim, de tantos outros motivos.

Quando a sociedade como um todo – a imprensa incluída – mascara as disputas políticas, fazendo-as parecer sempre disputas morais, a sociedade perde a capacidade de articulação e de superação dos obstáculos apresentados pela própria política. Perde a referência, não sabe o que verdadeiramente quer ou do que discorda.

Não vale tudo para combater a corrupção, ainda mais se nem sabemos, como sociedade, o que queremos dizer com isso. O crime de corrupção deve ser combatido com instituições fortes, controle, fiscalização e investigação. Disso não há dúvidas.

Agora, não vale vilipendiar a Constituição e os direitos caros a todos. Não vale realizar disputa política, dizendo-se contra uma corrupção que só é supostamente praticada pelo seu inimigo, com o exclusivo objetivo de mascarar as reais intenções das medidas e políticas em discussão.

Corrupção é corrupção. Improbidade é improbidade, divergência política é divergência política e luta de classes é luta de classes.

Sem resolver esse problema, continuaremos convivendo com grupos políticos abestalhados, que gritam por violação de direitos e supressão de garantias constitucionais conquistadas a duras penas pelas gerações passadas, o que recentemente vimos Deltan Dallagnol fazer no Congresso Nacional: bradar contra o Habeas Corpus e dizer que o Ministério Público é injustiçado no processo penal, demonstrando que, realmente, vale falar qualquer coisa para ganhar um palco, mesmo que seja mentira.

Sem isso, não enfrentaremos os reais problemas com seriedade. Não seremos capazes de combater, com medidas que efetivamente surtam resultados, por exemplo, o crime organizado que ameaça essas mesmas autoridades e toda a sociedade. Não será com supressão de direitos que nossos problemas serão resolvidos.

Precisamos retomar a capacidade de falar e sermos entendidos, de debater, de disputar democrática e politicamente e compreender, de verdade, quais são as discordâncias e interesses de cada grupo. Sem isso, colocando tudo na conta da corrupção, inimigo imaginário que vale para um e para outro lado, não entenderemos qual a política que esperamos para o nosso país.

23
Jan23

Da lava jato à Presunção de Inocência: a minha procuração invisível!

Talis Andrade
 
 
O Livro das Suspeições: o que Fazer Quando Sabemos que Moro era Parcial e  Suspeito? | Amazon.com.br
 
 

 

Por Lenio Luiz Streck

 

1. Acepipes epistêmicos sobre os anos ius plúmbeos recentes

Evandro Lins e Silva falava de um "mandato popular invisível" — como uma "procuração invisível" para defender ideias. Fernando Fernandes me lembrou disso há alguns dias.

Aqui me permito fazer o mesmo — em 2.589 palavras. Reserve 12 minutos para a leitura. Passados os anos ius plúmbeos do império da lava jato e dos anos de suspensão da presunção de inocência, penso que devemos fazer um rescaldo, uma espécie de memória do que ocorreu. E verificar se fazemos (ou fizemos), com H.G. Gadamer, uma boa wirkungsgechichtliches Bewußtsein — isto é, uma análise acerca da força dos efeitos que a história tem sobre nós.

A história ensina. Ou não. Ensina mostrando, mais do que dizendo, wittgensteinianamente. O dia 8 de janeiro é um cutuco da história.

 

2. O ovo da serpente e o feitiço do autoritarismo: ele sempre está à socapa

Será que aprendemos com a história? Sentimos a força dos seus efeitos? Talvez. O ovo da serpente nunca é percebido suficientemente.

Contar a história faz parte da própria historicidade, corretamente compreendida. Conto, logo existo. É o que estou fazendo aqui. Com a "procuração" (invisível) a la Evandro Lins e Silva. E com a responsabilidade epistêmica de um jurista comprometido com o debate público, com a democracia, e com respostas corretas (que podem ser demonstradas).

Antes da lava jato houve o mensalão. Foi quando escrevi que "o direito, a partir de então, seria AM-DM (Antes e Depois do Mensalão). O texto é de 2012 (ver aqui). Uma pena que não errei. Avisei de há muito.

O fato é que o projeto de poder da lava jato encantou (até no sentido de "enfeitiçou") a comunidade jurídica, midiática e política. O ovo da serpente foi também um encantador de serpentes. Como na Itália com a Mãos Limpas. O velho e atávico udenismo (às vezes veste toga) sempre está no cio. Fórmula agora aperfeiçoada: amaldiçoar os políticos e no seu lugar colocar outsiders. Bem se viu (e se vê) o que fazem outsiders. Basta olhar pela janela. Eis aí o 8J.

O pesquisador Fábio de Sá e Silva sublinha, em bela entrevista à Folha: "Existe uma linha de continuidade entre Lava Jato e ataques golpistas". E eu digo: bingo, Fábio.

 

3. Destruíram a política. Com isso, de baciada, quase destruíram o país (eis o 8 J como prova).

Explico e demonstro. Com a criminalização da política, a fragilização das instituições é (i)mediata. A sede insana de autocratismo. Não é por nada que, dia sim e outro também, o artigo 142 era invocado para justificar intervenção militar e quejandices mil. O direito contra o direito. Uma hermenêutica às raias da delinquência de Hermes. O então presidente da República, militares, gentes do direito, ex-frequentadores de bingos, radialistas, pastores (tem um monte deles presos) — todos transformados em vivandeiras. Gozavam, ao bulir com os granadeiros...!

Poucos se deram conta do(s) ovo(s) da(s) serpente(s). De 2014 em diante (tudo já estava se desenhando em 2013).

Pergunto: quantos integrantes da comunidade jurídica perceberam que o lavajatismo incubava o autoritarismo e o próprio bolsonarismo que, paradoxalmente, já existia (dormitava) mesmo sem Bolsonaro? Muito poucos. Um pouco de poucos.

Muita gente progressista achou que a lava jato era a redenção... Mal sabiam que ali estava o ovo da crotalus terificus (cascavel). Por falar em nomes científicos, parabéns à OAB da Bahia. Lá propõem — e isso vai para ser apreciado na OAB nacional — que advogado que apoia golpe e golpismo "ganha" o certificado de inidôneo. Muito bom. Advogado que quer extinguir a democracia é um caracidio da espécie hoplas malabaricus (mais conhecido como traíra).

 

4. Do Fusca à Kombi, da Kombi ao ônibus e do ônibus à frota

No princípio eram os resistentes. Que só possuíam o verbo. No princípio mal enchiam uma Kombi (há poucos dias ainda conversava sobre isso com o nosso capitão do time do Prerrô, o querido Marcelo Nobre; ele tem isso muito claro!). E sofremos muito. Lembro de meu debate com Moro em 2015. Tempos difíceis. Recordo de um texto que escrevi, em 2015, mostrando o panorama: diagnosticava então, que o direito seria, inexoravelmente, ALV-DLV (Antes da Lava Jato e Depois da Lava Jato). Avisei de novo.

Em linguagem bélica, digamos que o lavajatismo foi uma blitzkrieg ou a guerra dos seis dias. À sorrelfa. Demorou para que os resistentes nos reorganizássemos. Juntar os cacos. Os tiros vinham de todos os lados.

Mas não bastava combater os desmandos (hoje plenamente demonstrados) da lava jato, a ponto de até o juiz Bretas, hoje, se autodeclarar incompetente.

A luta era desigual. Tudo era possível — e com o auxílio da grande mídia. Mas a lava jato tinha seu super trunfo. E qual era?

Respondo: algo que o próprio governo petista ajudou a construir: a delação premiada, premiadíssima. Uma autêntica pedra filosofal para obter condenações, pela qual os próprios acusadores escolhiam os advogados dos delatores (isso ainda está pendente de um encontro com a história; a ave de Minerva ainda há de levantar voo).

 

5. O fim da presunção da inocência como vitamina para a lava jato

Em 2016 a tempestade ficou mais que perfeita. Falo do turning point do STF na presunção da inocência (HC 126.292). Naquela tarde, sem aviso, o ministro Teori tirou da manga esse HC. E o STF, por maioria, disse ser inconstitucional aquilo que ele mesmo havia decidido (2009) e que, por isso mesmo, havia sido transformado em lei em 2011.

O canto das sereias da "voz das ruas" fez com que se dissesse que a CF diz o que ela nunca disse. Fez com que se contrariasse dispositivo legal que repete exatamente o que diz a CF. Contrariando todo o espírito, toda a lógica estruturante da Carta, em sua densidade principiológica. Como o mundo é esférico e não quadrado, ele dá voltas, muita gente — agora enrolada — que antes esbravejava contra, ainda agradecerá a todos os que lutaram pela presunção da inocência.

Sigo. Hoje é possível afirmar que o giro jurisprudencial do STF em 2016 foi o combustível que faltava à lava jato. Além de ser o triunfo do que pregavam Moro e o MPF, facilitava prisões. A imprensa vibrava. O gozo indizível de ver o moralismo triunfar.

Repórteres, jornalistas e jornaleiros sabiam antes que os acusados das operações madrugadoras. Era a nova era da comunicação direta juiz-procuradores-imprensa. Rejeitaram a mediação até nisso.

E o interessante é que quase 70% da comunidade jurídica (os números são sujeitos a uma auditoria, mas que não seja a das Lojas Americanas — mas é por esse entorno) era contra a presunção da inocência... e coincidentemente a favor da lava jato. Um espelhava o outro.

 

6. Para além da lava jato, surge uma nova frente de batalha: as ADCs 43, 44 e 54

Então, ao lado do enfrentamento do lavajatismo alimentado por um lawfare sem precedentes, tínhamos que enfrentar o novo posicionamento do STF que, naquele momento, parecia render-se aos encantos da lava jato.

E entramos também de cabeça nessa nova frente. Fui um dos subscritores da ADC 44 (Kakay fizera minutos antes o protocolo da ADC 43 — os argumentos não eram exatamente iguais, frise-se, embora buscássemos a mesma coisa; a diferença era que a ADC 44, da OAB, não aceitava a "hipótese STJ", espécie de "terceira via").

Perdemos a liminar e aí começou a luta. Três longos anos. Longos, mesmo. De um lado, a poderosa lava jato e a mídia; de outro, a busca por pautar as ADCs. Até pautar era difícil. Pouca gente sabe, mas chegamos a ingressar com uma ADPF para demonstrar que a falta de pautamento das ADCs já era, em si, uma violação de preceito fundamental. O STF, porém, a fulminou. Para ver como foi difícil esse conjunto de batalhas.

 

7. A condução coercitiva, os processos e a condenação: o fator Lula

A luta foi crescendo. Com o passar do tempo já enchíamos um ônibus, por assim dizer. Aí entra o "fator Lula". Explico: quando ingressamos com as ADCs, Lula não era nem indiciado. E, no meio do caminho, Lula foi indiciado, conduzido à força ilegalmente [1], denunciado e julgado. E preso. Por quase dois anos.

Foram muitas frentes de lutas. Ainda por cima surgiu a guerra contra as Dez Medidas propostas por Moro e o MPF, que queriam introduzir — pasmem e se apavorem — prova ilícita de "boa-fé" e quase-acabar com o HC, entre outras barbaridades. Isso não é ficção. Existiu. Para verem que tempos vivenciamos.

Sim, veja-se a ousadia do lavajatismo. A sorte nossa é que o projeto das Dez Medidas funcionou como o dilema do trapezista morto: ao se achar tão bom e tão magnifico, pensou que poderia voar.

Sigo. Se de um lado fazíamos a peregrinação cotidiana pela presunção da inocência, de outro, sem procuração de Lula (porque ele tinha seus competentes advogados), lutávamos republicanamente por apontar aquilo que representava o começo do fim do devido processo legal em um Estado Democrático de Direito: um ministério público não-isento em conjuminação com o juiz pan(in)competente. Para piorar, no meio disso, até mesmo uma juíza tentou retirar as prerrogativas de ex-presidente de Lula, para cujos advogados fiz parecer pro bono mostrando os equívocos da decisão.

Decisões injustas. Porque na democracia o critério público, publicamente verificável, de "justiça" é o direito. Não a opinião pessoal do juiz, da juíza, sua ou minha. Juiz decidindo por convicção, mesmo sem provas. Inventaram novos métodos. Faltou só usar o pintinho envenenado da Tribo dos Azende.

O corolário de tudo foi a decisão do TRF-4, que explicitou a parcialidade e falta de isenção do MP. Disse a decisão (aqui): "Não é razoável exigir-se isenção dos procuradores da República, que promovem a ação penal".

O que mais precisa(va) ser dito?

 

8. O Grupo Prerrogativas e a busca dos fundamentos dos fundamentos: o dever de fazer constrangimentos epistêmicos

E aqui tenho de falar do Grupo Prerrogativas que se jogou de cabeça nessa "Operação Devido Processo Legal" (chamemo-la assim). Capitaneados por Marco Aurelio de Carvalho, não imaginávamos o nosso papel. Nem seu alcance, tamanho e dimensão política.

Tentando explicar a complexidade desse nosso modus operandi: fizemos aquilo que venho chamando de há muito de "constrangimento epistemológico", uma derivação daquilo que o grande Bernd Rüthers denunciou da doutrina alemã quando da ascensão do nazismo. Por isso ele escreveu o premiadíssimo livro Die unbegrenzte Auslegung (Uma Interpretação Ilimitada ou, assim prefiro, uma Interpretação Não Constrangida).

Sendo mais claro, fizemos por aqui, em terrae brasilis, o que a doutrina e a comunidade jurídica alemã não haviam feito naqueles anos plúmbeos da ascensão nazista. Denunciamos, nos processos da lava jato, o que Meier-Hayoz, endossado por Rüthers, chamou de — tenho adoração por esse conceito — "carência fundamental de fundamentos" (grundsätzliche Grundsatzlosigkeit). Isto é: o fundamento era o não fundamento — a simples vontade de poder.

No caso das ADCs, fomos vencedores por atuação direta, três anos depois de perdermos a liminar. A luta terminou no segundo semestre de 2019, culminando com a libertação de Lula. Isso gerou o livro O Dia em que a Constituição foi Julgada, coordenado por mim e Juliano Breda em edição da RT. Nesse livro aparecem todos os protagonistas, como Defensoria e tantas entidades valorosas. Está tudo ali, tim tim por tim tim.

Quanto à lava jato, tudo acabou com apertada maioria do STF julgando Moro incompetente e parcial. Nesse trabalho de convencimento, já aos poucos foi crescendo o número de juristas que se deram conta daquilo que o ovo da crotalus terrificus havia gestado, auxiliado que fomos nessa tarefa com o surgimento da Vaza Jato – cujos dados escabrosos nem foram necessários para a declaração da parcialidade de Moro, embora em termos de opinião pública tais revelações tenham sido de extrema importância. Inegável esse fato.

Escrevemos, o Grupo Prerrô — dois livros sobre a parcialidade de Moro: O Livro das Suspeições abriu a trilogia, com o subtítulo O que fazer quando sabemos que sabemos que Moro era parcial e suspeito?, organizado por Carol Proner, Lenio Streck, Marco Aurelio de Carvalho e Fabiano da Silva Santos. O segundo foi O Livro das Parcialidades. Completando a trilogia, em breve lançaremos O Livro dos Julgamentos. E falta talvez um quarto livro: que deveria ser escrito por Rochinha e Manoel Caetano. Seria ótimo!

Em termos de artigos, contabilizei incontáveis textos solo (são incontáveis mesmo) e mais outros tantos em coautoria com Marco Aurelio e Fabiano. Incluo aqui artigos publicados nesta ConJur, nos grandes jornais do país, mais periódicos e capítulos de livro. Foram mais de 200 escritos.

E também centenas de entrevistas em rádio, TV e sites como DCM, 247, TVT, Fórum, My News, Pannunzio (TV Democracia) e ICL que fizeram uma muralha de resistência contra as investidas neo-udeno-lavajatistas como a de um famoso jornalista que, dia sim e outro também, tocava terror na população, dizendo que, vencêssemos a batalha da presunção da inocência, 170 mil corruptos, estupradores, proxenetas e quejandos seriam imediatamente liberados (e isso me deu muito trabalho respondendo a esse jornalista). Tudo sempre devidamente respondido nos grandes veículos (Folha, O Globo e Estadão). Era bateu, levou. Cumprindo assim um dever republicano de participação no debate público, na esfera pública, desmistificando lendas urbanas e mentiras — informações falsas.

 
O Livro das Parcialidades - Editora Telha
 

9. De como nós, advogados, fôssemos médicos... haveria passeatas contra antibióticos ou "como garantias passaram a ser 'filigranas'"

E as garantias processuais-constitucionais passaram a ser chamadas de "filigranas". Assim começa essa nova fase (filigrana foi a palavra usada por Dallagnol quando um colega seu perguntou sobre se o que estavam fazendo não feria a CF; ao que respondeu: isso é filigrana). Agora o termo "filigrana" passou a ser usado contra a anulação dos processos de Lula.

Isto é, para quem pensou que a nossa "Operação Devido Processo Legal" havia terminado e os guerreiros pudessem descansar, iniciou a campanha política pela qual se desqualificava, cotidianamente, a decisão do STF que anulara as sentenças de Lula e considerara Moro suspeito-parcial.

Muita gente da mídia (coincidentemente os mesmos que amaldiçoaram a presunção da inocência) chamou as decisões do STF de "filigraneiras". Isto é: anularam por anular. STF "usou de formulismo", diziam.

E lá fomos nós novamente. Só nessa nova fase foram mais 60 artigos e mais de uma centena de lives e entrevistas em grandes e pequenos veículos. Somados com os 200 dos quais falei acima, calculemos tudo o que foi feito (falei disso também no Programa WW, CNN, dia 5/1/2023acesse aqui a entrevista).

Somando tudo — rádio, TV, mídia alternativa, textos escritos — foram mais de 700 inserções. Isso de minha parte, na modalidade solo e em coautoria (Marco e Fabiano). Agora imaginem se adicionarmos o que fizeram os demais membros do Prerrô (Pedro Serrano, Carol Proner, Kakay, Mauro Menezes, Fernando Fernandes, Cattoni e tantos outros — impossível citar a todos; a listagem aqui é exemplificativa).

Numa palavra final: como Evandro Lins e Silva, de posse de "procuração invisível", achei que "meus constituintes" mereciam uma accountabillity, a devida prestação de contas deste incomensurável "mandato sem papel e sem assinatura" que nos foi conferido — a mim e aos meus parceiros que primeiro enchiam uma kombi e que, ao final, enchemos muitos e muitos ônibus.

E, é claro, sempre haverá quem queira, mesmo chegando atrasado, sentar-se à janela e pegar ar fresco. Mas isso faz parte da própria democracia. É do jogo. Até porque não se deve ter compromisso com os erros do passado — por omissão ou comissão.

Pensamos que terminara? Chegou o dia 8 de janeiro.

E lá vamos nós de novo! Cá estamos!

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[1] Sugiro a leitura de dois textos: Lenio critica condução coercitiva e Crítica aos HC 126.292, de Marcelo Cattoni, Diogo Bacha, Alexandre Bahia e Flávio Pedro

22
Jun21

Liberdade de imprensa vira refém do jornalismo populista

Talis Andrade

Zumbis da imprensa saem às ruas
para pedir condenações

 

por Márcio Chaer /ConJur

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Está em cartaz a maior campanha contra a liberdade de expressão já vista no país. Ela foi articulada por pretensos justiceiros que adotam a mentira como técnica jornalística. O velho truque de fazer o mal em nome do bem — papel de embrulho para açular as arquibancadas.

A pantomima, no seu último influxo ganhou o estranho apelido de "lava jato". Os alicerces dessa construção foram "notícias" fabricadas e que agora vê-se, pelo espelho retrovisor, que metade delas foram lorotas. A parte verdadeira foi romanceada.

Como se estruturou essa novela? Vejamos:

O mercado do conteúdo tem um público enorme para o entretenimento, empreendimentos religiosos, mas um público muito reduzido para a informação política, econômica e científica.

Para aproveitar o sucesso da emoção sobre a razão, a mídia passou a embalar a informação jurídica e judicial — em geral árida e enfadonha —  com sentimentos morais e maniqueísmo.

Essa metamorfose deu à luz o fetiche da corrupção. Criou-se a fantasia de que todo homem público ou empresário é corrupto. A campanha contra a liberdade de expressão começou por abolir a checagem das "informações" vendidas pelo lavajatismo. Qualquer rumor soprado pelos justiceiros passou a ter mais peso que documentos, provas e evidências que desmontasse. A começar pela falsa dimensão dada à prática da corrupção no país.

Na vida real, o maior problema dos brasileiros está nas relações de consumo. Isso representa cerca de 34% dos conflitos que chegam ao Judiciário. Em seguida, relações de trabalho: algo como 24% dos litígios. A criminalidade responde por pouco mais de 10%. Os crimes relacionados ao bloco da corrupção representam cerca de 0,03%.

Mas o charme de se derrubar um presidente, prender um deputado ou um empresário ricaço é insuperável, claro. Abusos de operadoras de telefonia, concessionárias, bancos ou planos de saúde não têm espaço nem interesse.

Até porque, pautas como a ineficiência do setor público (saúde, educação, segurança) ou do setor privado dão muito trabalho. É preciso pesquisar, estudar, fazer contas. É muito mais fácil sair gritando "pega ladrão". Não por outro motivo, os jornalistas mais famosos do momento (com exceções, claro) são verdadeiros linchadores.

O que isso tem a ver com liberdade de expressão? Tudo. Porque se essa deformação não for corrigida, as garantias e prerrogativas do jornalismo perderão o sentido. Não se fortalece as salvaguardas da imprensa fazendo vistas grossas para o fato de que há no meio vigaristas usando o manto do jornalismo para fraudar notícias — seja por dinheiro, seja por sensacionalismo.

O que tem caracterizado o noticiário sobre a Justiça? Existem os setoristas, os repórteres que acompanham julgamentos, leem as decisões, entrevistam as partes e os juízes. E existem aqueles que brilham na primeira página ou no espaço nobre das emissoras. São os animadores de auditório da escola do Ratinho, do Datena e outros artistas populares.

Sem tirar deles a importância que têm na história contemporânea, claro. Foram eles que construíram a fantasia da lava jato, elegeram Bolsonaro, Witzel, Doria e um lote de capitães, majores e coronéis no Congresso e Assembleias Legislativas. O Brasil deve a eles não só o avanço político como a gestão da crise sanitária da epidemia.

Isso foi construído com manchetes terroristas (e mentirosas) como a de que a prisão depois do trânsito em julgado colocaria nas ruas 180 mil "bandidos". Que o reconhecimento da suspeição de Sergio Moro anularia centenas de processos ou a velha ladainha de que anular ilegalidades de Curitiba seria trabalhar para corruptos.

A Academia está devendo ao país estudos menos conservadores a respeito do fenômeno do lavajatismo. O que pode explicar que procuradores e juízes de primeira instância tenham se tornado mais poderosos que seus órgãos de cúpula? Fenômeno igual ao que se viu com delegados da Polícia Federal e auditores da Receita. Quem acreditará em dez anos que um dia um grupo que se apelidou "força tarefa" governou o país, acima da Presidência da República e do Congresso?

Para voltar ao poder, movimentam-se "poetas", "escritores", "filósofos" e jornalistas em fim de carreira e sem perspectivas, que fugiram do ostracismo com a onda populista. Depois de verem suas balelas desmentidas, tentam desfibrilar o cadáver da fantasiosa "lava jato". A manobra de ressuscitação da "operação" consiste em insuflar ataques ao STF para emparedar seus ministros. Querem fazer crer que um acusado não é absolvido por falta de culpa, mas porque o juiz está do lado da corrupção.

É o encontro do voluntarismo desinformado com a perversidade. Um gênero de idealismo que confunde ingenuidade com esperteza. Ou com interesses financeiros e comerciais mesmo, como bem mostram falsos constitucionalistas e professores como Joaquim Falcão e Modesto Carvalhosa.

Um exemplo da farra: o comercialista Carvalhosa — que se apresenta como "professor aposentado" da USP, sem ser — dá aula nesta segunda-feira (3/5) para um comitê bolsonarista da Câmara dos Deputados. O tema é uma pretensa "PEC da 2ª instância". Quem sabe o professor ensine, como qualquer estudante sabe, que é inadmissível proposta de emenda constitucional para alterar cláusulas pétreas. Quem sabe.

Parafraseando o poeta Pablo Neruda, "você é livre para fazer suas escolhas, mas é prisioneiro das consequências". Ou então, Eça, na frase do Conselheiro Acácio: "As consequências vêm sempre depois". Mas em pelo menos um aspecto não é preciso esperar o futuro. A imprensa tradicional só tem encolhido. Isso pode estar relacionado com suas escolhas. Ou ao seu controle de qualidade.

 

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