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O CORRESPONDENTE

Os melhores textos dos jornalistas livres do Brasil. As melhores charges. Compartilhe

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O CORRESPONDENTE

02
Jul22

NÃO VOTE EM DEPUTADO HOMICIDA. NÃO VOTE EM SERIAL KILLER

Talis Andrade

Serial killers: entenda os termos modus operandi e assinatura · Alto Astral

 

Lula, ameaçado de morte

 

Não continue votando em deputados estadual e federal homicidas. Não reeleja um serial killer, quem matou mais de três pessoas. Quando existe parlamentar que confessa, com orgulho e propaganda política e amedrontamento, ter assassinado (pasmem!) cem, duzentas pessoas, usando a desculpa de que bandido bom é bandido morto, acontecendo do morto ser sempre um negro ou mulato.

As assembléias legislativas estaduais e o Congresso Nacional estão repletos de racistas, genocidas, criminosos cruéis, que matam por prazer, para ser temidos, para continuarem comandando quadrilhas de matadores de aluguel, de pistoleiros que eliminam adversários políticos, lideranças comunitárias,  ambientalistas, líderes sindicais, defensores de direitos humanos.

São deputados chefes de milícias. Temos no Rio de Janeiro, o Escritório do Crime, sediado no Rio das Pedras, que metralhou Marielle Franco. Um mando criminoso que se estende pela turística Barra da Tijuca, pelo Condomínio Vivendas da Barra, de onde saiu o mando da morte de Moïse Kabagambe. 

Um policial, para um exemplo, não precisa ser um monstro. Aline Mendes Favarim, em sua tese "Psicopatia e assassinos em série: o perfil do criminoso e sua relação com a vítima", cita Friedrich Nietzsche: “Quem combate monstruosidades deve cuidar para que não se torne um monstro. E se você olhar longamente para um abismo, o abismo também olha para dentro de você.”

Monstros policiais, nesta campanha eleitoral de 2022, já ameaçaram de morte o candidato a presidente Lula da Silva. 

 

Não vote em deputado homicida. Em serial killer

 

Precisamos alertar: Nestas eleições de 2 de outubro próximo não vote em deputado homicida. Não vote em serial killer.

Aline Mendes Favarim escreveu tese com "o propósito de trazer para a realidade acadêmica a discussão acerca de temas de grande interesse social, quais sejam, a psicopatia e os assassinos em série, abordando a técnica do perfil criminal e a perspectiva da vítima através da introdução de aspectos sobre a Vitimologia".

Escreve Aline Favarim: "Inicialmente, explica- se a origem do conceito de psicopatia e os fatores que contribuem para o seu surgimento. Em seguida, apresenta-se o PCL-R, instrumento de maior confiabilidade para a identificação de traços de psicopatia, os principais traços presentes em um psicopata e a sua relação com a violência. O debate acadêmico prossegue com a abordagem da confusão existente entre os conceitos de psicopatia e transtorno de personalidade antissocial, a qual gera divergências inclusive entre os profissionais da área da saúde mental. Sobre os assassinos em série são expostos o conceito de crime em série, as classificações de seus agentes e a equivocada concepção de que o sexo feminino não se engaja no cometimento de tal tipo de delito. Procura-se demonstrar que não somente a psicopatia pode integrar a personalidade dos serial killers, mas também diversos transtornos parafílicos, sendo os responsáveis pelas suas preferências (fazer a vítima sofrer, vitimar apenas crianças, etc.). Possuindo como objetivo identificar tais criminosos surgiu a técnica do perfil criminal, criticada devido à subjetividade que demanda, fato sobre o qual se discorre juntamente com a contribuição que à elaboração do perfil prestam outras áreas do conhecimento. Por fim, é analisado o papel da vítima no crime cometido, bem como a necessidade da adoção de políticas que visem a auxiliá-la a superar o trauma sofrido, contrariando a perspectiva atual, na qual os esforços se concentram no criminoso.

 

Psicopatia e assassinos em série: o perfil do criminoso e sua relação com a vítima

 

Para Aline Mendes Favarim: A psicopatia está situada entre os aspectos mais intrigantes que envolvem a mente humana. Especialistas mantêm a busca por instrumentos que definam com precisão as características do indivíduo psicopata - em que pese o PCL-R ser mundialmente reconhecido como a melhor ferramenta para tal - e por maior grau de certeza quanto aos fatores que levam uma pessoa a se tornar psicopata, o que talvez permitisse prevenir de alguma forma o surgimento desta condição da personalidade. Ademais, a incessante procura por alternativas que surtam efeito enquanto tratamento faz com que a psicopatia permaneça em constante estudo.

Neste contexto, temos o transtorno de personalidade antissocial (TPAS), não muito conhecido pelo senso comum, eis que os meios de comunicação costumam utilizar a denominação “psicopatia” indiscriminadamente, apesar das diferenças existentes entre ambos. A menos que se faça a leitura de um artigo científico sobre o tema ou de alguma notícia que tenha como fonte especialistas da área da Psicologia ou da Psiquiatria, é muito provável que se encontre a definição de “psicopatia” como transtorno mental, ignorando a existência do TPAS.

Considerando a grande exposição que a psicopatia possui atualmente e a utilização de seu nome, por vezes, de forma equivocada, se faz importante diferenciá-la do transtorno de personalidade antissocial, mostrando que nem sempre uma pessoa com atitudes aparentemente características de um psicopata pode ser diagnosticada como tal. De igual forma, não se pode presumir que, por ser psicopata, um indivíduo seja, obrigatoriamente, violento e vá, futuramente, cometer um crime, tendo em vista que são pouco numerosos os casos em que psicopatas praticam delitos, convivendo a maioria em sociedade normalmente, apresentando apenas determinados traços de personalidade que podem ser considerados inadequados ou incorretos, mas que não chegam a ser sinal de alerta, já que podem ser encontrados em qualquer outra pessoa.

No Brasil, a psicopatia tornou-se conhecida popularmente há não muito tempo, mas nos Estados Unidos, por exemplo, o interesse do cinema e da televisão pelo tema já é antigo, sendo representado pelas produções que envolvem criminosos seriais. Contudo, não é possível afirmar que todos os assassinos em série são psicopatas, porquanto podem sofrer de diversos transtornos mentais.

Outrossim, cada série de crimes possui características e motivações diferentes, o que é suficiente para demonstrar que devemos analisá-las cautelosamente.

Da mesma forma que ocorre com a psicopatia, o destaque conferido aos serial killers nos dias de hoje tem origem principalmente na abordagem de casos reais e fictícios pelos meios de comunicação (telejornais, seriados, filmes, novelas, internet). Sendo assim, é necessário cuidado com os estereótipos e conceitos pré- estabelecidos acerca desses sujeitos, pois nem sempre correspondem à verdade.

Devido à complexidade dos homicídios em série, foi desenvolvida a técnica do perfil criminal, cujo objetivo é compreender a personalidade do agente que comete esse tipo de delito. Surgida nos Estados Unidos, hoje a ferramenta é mundialmente utilizada e reconhecida como a mais confiável para auxiliar na identificação e prisão dos suspeitos, fato que, porém, não a exime de críticas e não faz dela um método infalível. Conhecer a mente do criminoso é um ponto considerado essencial para a sua identificação, além de possibilitar a previsão de seus próximos passos, evitando o surgimento de novas vítimas e, consequentemente, colaborando para a prevenção de futuros delitos.

No entanto, apesar de comumente esquecida, a perspectiva da vítima é tão importante quanto a do criminoso. Partindo do estudo das características da(s) vítima(s), é possível estabelecer o padrão seguido pelo agressor, o qual serve de alerta para outras pessoas que possuem os mesmos traços, além de auxiliar o trabalho policial.

Tal é o panorama que envolve a presente dissertação. Pretende-se, primeiramente, analisar o conceito de psicopatia, apresentando, para isso, o PCL-R, elaborado por Robert Hare – instrumento que almeja identificar psicopatas através do preenchimento de certos itens característicos desse tipo de personalidade, os quais são valorados de acordo com critérios que aqui serão expostos. Não apenas por meio da Escala Hare, a psicopatia será abordada pelo viés dos fatores que levam ao seu surgimento, discutindo-se a influência de aspectos biológicos, psicológicos e sociais para verificar se é possível afirmar que uma pessoa será psicopata futuramente. Busca-se, ainda, avaliar a relação da psicopatia com a violência, bem como as características geralmente encontradas na personalidade psicopata.

A partir da pesquisa da psicopatia, parte-se para o estudo do transtorno de personalidade antissocial, trazendo as definições encontradas na CID (Classificação Internacional das Doenças) e no DSM (Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais). Com isso, tem-se a base para a diferenciação entre a psicopatia e o TPAS, de importante realização em razão dos equívocos já mencionados, mas que, adianta-se, carece de um consenso. Logo, não é o objetivo deste trabalho encerrar a discussão sobre o tema, e sim demonstrar que os conceitos são diversos e que muitos equívocos são cometidos quando da utilização das denominações em questão.

Na sua tese, Aline Mendes Favarim trata dos assassinos em série. Iniciando pela discussão acerca do conceito – quantos homicídios são necessários para configurar uma série? Exige-se determinado intervalo de tempo entre os crimes? – que envolve definições correlatas que podem ser confundidas com a caracterização de uma série de crimes, chegaremos às classificações dos assassinos em série, enfatizando a tipologia proposta pelo FBI, haja vista ser o órgão de referência no estudo de suas personalidades.

Quanto ao aspecto psicológico dos serial killers, tendo por base o DSM-V, serão abordados os transtornos parafílicos, indissociáveis da figura do assassino em série – especialmente o sadismo sexual – com o escopo de mostrar que não é apenas a psicopatia que se faz presente nos agentes que cometem tais crimes. Outrossim, encerrando a discussão deste ponto, a psicopatia será abordada na sua ligação com os serial killers, sendo esta exemplificada pela história de Ted Bundy, um dos principais assassinos em série que já estiveram em atividade nos Estados Unidos.

Para a abordagem do criminoso no terceiro capítulo, serão trazidos conceitos e ferramentas utilizadas pelo FBI, pois impossível tratar do perfil criminal sem mencionar como surgiu e foi sendo aperfeiçoado ao longo do tempo. Por ser um tema extenso e complexo - e não ser este o escopo desta dissertação - não é possível aprofundá-lo, porém, é importante trazer críticas pontuais a determinados aspectos do perfil, bem como demonstrar que não é uma técnica mágica, mas que trabalha com o raciocínio dedutivo e indutivo, além de possuir auxílio do perfil geográfico e das ciências forenses, entre outras áreas do conhecimento, para garantir maior confiabilidade e precisão nas suas conclusões. Brevemente, ao final, avalia-se a admissibilidade da técnica no sistema jurídico brasileiro, mencionando-se a sua relevância no julgamento de Francisco de Assis Pereira, que ficou conhecido como “O Maníaco do Parque”.

Por fim, será apresentado o panorama da Vitimologia. Para a discussão, fundamental trazer-se as concepções dos primeiros autores que trataram do tema, pontuando algumas críticas das visões mais modernas a respeito do mesmo. Discorrendo sobre a relação entre o criminoso e a vítima, chega-se à importância que o Código Penal Brasileiro confere ao seu papel na ocorrência do crime que sofreu, bem como na ideia da Vitimologia Positiva, que busca soluções que, efetivamente, auxiliem a vítima na superação do fato e não promovam outro processo de vitimização, como o sistema jurídico-penal costuma fazer, ainda que não intencionalmente.

 

A  preocupação de proteger a vítima dos nocivos efeitos do crime

 

Acrescenta Aline Favarim: A violência não é um fenômeno recente. De alguma forma, sempre esteve presente ao longo da História, por mais que, atualmente, a impressão seja a de que nunca se observou tanta violência na sociedade. De fato, diversos fatores levaram ao aumento dos índices que apontam sua incidência, porém, o que mais impressiona, aparentemente, é que a violência aumenta cada vez mais e em todas as suas formas – violência contra a mulher, idosos, negros, homossexuais, crimes com motivação fútil, torpe, ou mesmo sem qualquer motivo, entre outros. Ainda que a população se sensibilize com relação, principalmente, aos delitos que envolvem algum tipo de preconceito, bem como aqueles praticados contra familiares (pais, avós, filhos, etc.) é notório que os crimes considerados “bárbaros” são os que mais espantam as pessoas.

Há dois anos, o diretor executivo da Yoki, Marcos Matsunaga, foi morto pela mulher, Elize Matsunaga, no apartamento onde moravam, na cidade de São Paulo. Entretanto, o que chamou a atenção neste caso não foi o fato de Marcos ter sido assassinado pela esposa, mas sim a revelação desta, de que havia esquartejado o corpo do marido. Tal caso é um exemplo daquilo que realmente choca a sociedade: os requintes de crueldade utilizados em certos crimes. Claro, a questão da crueldade é subjetiva, pois as formas de execução consideradas cruéis para uns, não o são para outros, mas, em geral, estamos acostumados a relatos de violência envolvendo armas de fogo e armas brancas, assim, qualquer caso que saia de tal padrão é suficiente para ganhar destaque.

A barbárie de determinados comportamentos criminosos leva à busca de explicações para tamanha violência, e, neste contexto, é inserida a psicopatia. Quando parece não haver explicação plausível para um crime ou a compreensão dos motivos torna-se impossível, a reação instantânea é afirmar que o agressor só pode se tratar de um psicopata. Há de se salientar que os meios de comunicação contribuem para essa concepção equivocada, conferindo grande destaque a tal tipo de delito e, por vezes, adiantando-se a conclusões precipitadas.

A psicopatia não permite definições baseadas no senso comum, pois se trata de um tema complexo, que não apresenta consenso quanto aos fatores que a originam – uma conjunção de fatores, uns em maior e outros em menor grau – ou quanto à sua definição. Pode-se dizer que a psicopatia é uma condição definida através dos critérios do PCL-R que identificam um indivíduo psicopata, contudo, o que determina se a pessoa que está se submetendo ao instrumento pertence a esse grupo é a pontuação que ela obtém. O ponto de corte do PCL-R varia de acordo com o objetivo e o contexto de sua utilização, sendo de 23 pontos na versão brasileira, conforme definido por Hilda Morana. Tais informações são suficientes para demonstrar o porquê da preocupação com as ideias difundidas pelo senso comum, no que se refere à psicopatia. No entanto, temos, ainda, a confusão entre a sua definição e o transtorno de personalidade antissocial, que é ainda mais nebulosa. É imperioso destacar que existem diferenças entre ambos, sendo este o ponto mais importante; todavia, existe grande dificuldade em desvinculá-los como diagnósticos distintos.

Os delitos praticados por indivíduos que apresentam comportamento antissocial não superam, entretanto, em termos de destaque na mídia, os crimes cometidos por assassinos em série. Talvez pelo fascínio que esses criminosos exercem na cultura americana, principal exportadora dos filmes e seriados assistidos no Brasil, tenhamos adquirido o mesmo interesse, tanto pelas obras fictícias quanto pelos acontecimentos reais. Impossível discorrer sobre o tema sem utilizar como norte as diretrizes elaboradas pelo FBI, pois foi através de seu ex-agente Robert Ressler que foram dados os primeiros passos em direção à conceituação do homicídio em série. Ademais, procedeu-se ao desenvolvimento dos estudos sobre a personalidade criminosa na instituição, através de unidades como a BRIU (Behavioral Research and Instruction Unit) - a Unidade de Pesquisa e Instrução Comportamental - a qual integra o NCAVC (National Center for the Analysis of Violent Crime) - o Centro Nacional para a Análise de Crimes Violentos.

As especificidades dos crimes em série são vistas desde a sua definição, que não deve ser confundida com o assassinato em massa (mass murder) e com a onda de assassinatos (spree murder). Outrossim, as classificações dos sujeitos que praticam esses delitos variam de acordo com o autor pesquisado e não podem ser aplicadas às assassinas seriais, pois são consideradas um caso à parte, eis que existem diferenças entre os crimes em série cometidos por homens e mulheres. Ainda, a psicopatologia dos serial killers pode envolver mais de um transtorno mental, fato que se reflete diretamente nos motivos para os delitos.

Considerando que os homicídios em série geralmente possuem componentes sexuais que levam ao estupro, além da grande violência demonstrada pelas cenas dos crimes e a tendência do serial killer de continuar matando até que seja preso ou morto, tem-se a urgência de que esses crimes sejam desvendados o mais rápido possível. Assim, a fim de auxiliar a investigação dos casos mais complicados surgiu a técnica do perfil criminal, conquanto o interesse pelo estudo da personalidade humana exista há séculos. Apesar de ser apresentada em filmes e seriados como uma técnica mágica, que identifica um assassino em série precisamente, em pouco tempo, com base apenas em alguns dados obtidos na cena do crime e por meio da experiência dos chamados profilers – cuja habilidade parece, de igual forma, mágica – trata-se de uma ferramenta em constante aperfeiçoamento, que direciona a investigação com base nas prováveis características do suspeito que cometeu o crime. Destaca-se, por fim, que os dados fornecidos pelo perfil criminal devem ser analisados com cautela, pois este ainda depende muito dos conhecimentos e da experiência do profissional que o utiliza, e aqui reside uma das críticas à ferramenta: a carga de subjetividade que ela exige.

Quase sempre esquecida, a vítima sobrevivente passa pelo trauma de ter sofrido uma violência e, enquanto tenta se recuperar para continuar vivendo normalmente, é obrigada a vivenciar novamente a experiência que gostaria de esquecer - seja para ajudar a polícia a encontrar seu algoz ou para tentar ajudar na condenação deste, no seu julgamento. O papel da pessoa que sofre o processo de vitimização é de grande relevância para a investigação, pois permite o reconhecimento de um padrão por parte do suspeito (Ted Bundy, por exemplo, atacava mulheres com as mesmas características), e a partir dos dados obtidos na investigação, é possível saber se as suas escolhas são baseadas em algum fato ocorrido em sua vida pregressa, tal como um trauma ou um acontecimento que o tenha marcado por alguma razão. Por outro lado, a descoberta do tipo de vítima a que o agressor costuma visar já possibilita a prevenção de novas vítimas, como nos casos de homicídios de prostitutas, que serão alertadas para redobrar o cuidado na sua rotina de trabalho.

Em contrapartida, a vitimologia nos traz outro aspecto, este normalmente deixado de lado, qual seja, o da humanização da vítima. O foco sempre reside no criminoso, esquecendo-se de quem sofreu a violência e precisará conviver com o fato para o resto de sua vida, sendo visto, inclusive, somente como um instrumento para a identificação, prisão e posterior condenação de seu agressor. Nos homicídios em série, não é sempre que uma vítima consegue sobreviver (porque fugiu ou porque obteve socorro a tempo), mas quando isso ocorre, além de conviver diariamente com o trauma, esta ainda precisará se submeter a depoimentos que farão com que reviva o fato, além de um desfecho que deve demorar, no mínimo, meses, período durante o qual será mais difícil a ela superar o trauma sofrido.

Propositalmente, as discussões propostas na presente dissertação são atuais e envolvem tópicos sobre os quais existem inúmeras controvérsias, pois apenas através do debate é possível ampliar e aperfeiçoar os conhecimentos acerca de qualquer tema. Quanto maior a discussão acadêmica sobre determinado assunto, maior a divulgação e o interesse despertado pelo tema; assim, consequentemente, maior é a gama de subsídios angariados para que, futuramente, se possa chegar a um consenso.

Trazendo as bases do debate a respeito dos conceitos de psicopatia e TPAS, se procura comprovar que a questão abrange mais elementos que aparenta e é foco de controvérsia entre os profissionais de saúde mental até hoje. Os crimes cometidos por assassinos em série ganham importante destaque nos meios de comunicação, mas exigem um estudo mais detalhado acerca das condições sociais e psicopatológicas que levaram à sua prática. O perfil criminal é uma ferramenta que, se utilizada da forma correta, pode ser de grande auxílio para a investigação policial, indo muito além de uma suposta mágica ou mera intuição do agente que dela se vale. A vitimologia é um campo de estudo explorado ainda de maneira rasa, e que merece um profundo debate acadêmico, tendo em vista que as concepções mais modernas visam a proteger a vítima dos nocivos efeitos do crime.

Assim sendo, é relevante desvincular os tópicos aqui tratados do senso comum, logo, objetiva-se esclarecer os pontos que mais conduzem a conclusões equivocadas pelo imaginário popular, bem como apresentar a visão acadêmica sobre os mesmos. Entre as intenções deste trabalho está demonstrar que temas aparentemente exauridos e repetitivos são, na verdade, muito explorados fora da realidade acadêmica, o que faz surgir a percepção de que não possuem complexidade ou espaço para aprofundamento de seu estudo.

Longe de pretender exaurir as discussões, este trabalho pretende ser uma contribuição para a discussão científica de cada área, discorrendo sobre temas de grande interesse popular, aprofundando seu estudo e realizando um link entre os mesmos. Com isso, espera-se instigar o leitor a buscar informações de credibilidade a respeito dos tópicos que lhe são curiosos, afastando-se daquilo que reproduz o senso comum. Finalmente, busca-se incentivar o debate acadêmico no que concerne aos assuntos abordados, eis que lidam com problemas e soluções para uma das situações que mais preocupam a sociedade: a violência.

 

 

12
Dez21

Vozes Negras: O avesso do avesso

Talis Andrade

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por Eduardo Pereira da Silva

“É necessário preservar o avesso, você me disse. Preservar aquilo que ninguém vê. Porque não demora muito e a cor da pele atravessa nosso corpo e determina nosso modo de estar no mundo. E por mais que sua vida seja medida pela cor, por mais que suas atitudes e modos de viver estejam sob esse domínio, você, de alguma forma, tem de preservar algo que não se encaixa nisso, entende? Pois entre músculos, órgãos e veias existe um lugar só seu, isolado e único. E é nesse lugar que estão os afetos. E são esses afetos que nos mantêm vivos.”

O avesso da pele. Jeferson Tenório. Companhia das Letras

 

Nos últimos dois anos, o Prêmio Jabuti na categoria romance literário foi atribuído a duas obras escritas por negros e cujas histórias têm a negritude como eixo central.Resenha Torto Arado de Itamar Vieira Junior - Deviante

Torto Arado, de Itamar Vieira Júnior (Editora Todavia), premiado pelo Jabuti em 2020, nos revela a trajetória de duas irmãs, no interior da Bahia, provavelmente na década de 50. Bibiana e Belonísia tiveram suas vidas marcadas por um acidente de infância, numa comunidade rural formada por trabalhadores negros de uma fazenda pertencente a brancos. A relação dos trabalhadores com os proprietários da fazenda revela um prolongamento da escravidão existente ali cerca de 60 anos antes.O avesso da pele – Vencedor Jabuti 2021 | Amazon.com.br

Em O avesso da pele, de Jeferson Tenório (Companhia das Letras), premiado em 2021, somos levados ao sul e ao sudeste do Brasil contemporâneo, onde Pedro, estudante de arquitetura, busca reconstruir os passos de seu pai, Henrique, um professor negro morto em uma terrível abordagem policial. 

 

É possível traçar um diálogo entre as duas obras que denunciam o racismo e mostram como em diferentes contextos sociais e regiões do país ele ainda atravessa a vida dos negros, afetando suas relações familiares, sua forma de ser e de se apresentar no mundo.

 

Mas enquanto Torto Arado constrói sua história sem deixar de lado uma certa poesia, trazida pela narrativa de uma das irmãs, O avesso da pele faz uma denúncia brutal do racismo na atuação de nossas forças de segurança pública, particularmente ao tratar das abordagens policiais como fato central de sua história.

 

O perfilamento racial (termo adaptado da expressão racial profiling, utilizada nos Estados Unidos da América) é a prática utilizada por forças de segurança pública consistente em abordagens preferenciais sobre determinados grupos raciais ou étnicos.

 

No Brasil, são bastante comuns as denúncias de que abordagens policiais são feitas preferencialmente em pessoas “de cor”, frequentemente com o uso de agressão injustificada.

 

Diversos são os casos de erros na execução de abordagens policiais de pessoas negras que terminam em tragédia, como o de Rodrigo Alexandre da Silva Serrano, morto aos 26 anos, em 2018, no Rio de Janeiro, por um policial militar que acreditava que o guarda-chuva que ele portava era um fuzil. Ou o caso de Roberto, Carlos Eduardo, Cleiton, Wilton e Wesley, mortos por policiais com 111 tiros também no Rio de Janeiro em 2015.

 

Em 2013, a imprensa brasileira noticiava que o comando da Polícia Militar em Campinas (SP) deixou vazar uma mensagem enviada à equipe policial de um bairro da cidade, determinando a abordagem focada em “indivíduos da cor parda e negra“, num perfeito exemplo de perfilamento racial.

 

Flagrantes feitos por policiais militares em abordagens, sem prévia investigação, acabam sendo a porta de entrada de parte da população no sistema carcerário.

 

Assim, a preferência da abordagem policial a pessoas negras está relacionada, certamente, à sobrerrepresentação da população negra em nosso sistema carcerário, ajudando a manter o estereótipo do “negro bandido” com reflexos direto na vida e relações sociais das pessoas negras.

 

Além da prática do perfilamento racial, a população brasileira ainda convive com a prática de ilegalidades diversas nas abordagens policiais. A corrupção e abuso de membros das forças de segurança são fatos conhecidos e registrados no Brasil e no exterior. As execuções extrajudiciais são um fato notório da história do país.

 

Chacinas internacionalmente conhecidas como a Chacina da Candelária (Rio de Janeiro, 1993, 8 mortos), a Chacina de Vigário Geral (Rio de Janeiro, 1993, 21 vítimas), o Massacre do Carandiru (São Paulo, 1991, 111 mortos), e o Massacre de Eldorado dos Carajás (Pará, 1996, 19 mortos) tiveram a participação de membros ou ex-membros das forças de segurança do país. Muitas delas não resultaram em punição adequada de seus autores.

 

Das 10 atuais condenações do Brasil perante a Corte Interamericana de Direitos Humanos, metade diz respeito à atuação de forças de segurança do país (Caso Escher, Caso Garibaldi, Caso Gomes Lund, Caso Favela Nova Brasília, Caso Herzog).

 

É importante, portanto, trazermos à tona os dados colhidos pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública em seu Anuário 2021. O número de mortes decorrentes de intervenção policial atingiu seu ápice em 2020: 6.416 mortes (a série de dados começa em 2013), dos quais 78,3% são negros e 20,9% são brancos, uma proporção de negros mortos em confrontos com a polícia maior do que a proporção de negros na população em geral.

 

O Anuário 2021 revela, também, que 62,7% dos policiais mortos em confronto são negros, embora eles componham apenas 42% do efetivo das forças policiais. 34,5% dos policiais mortos em confronto são brancos, sendo branco 56,8% do efetivo policial.

 

E a fiscalização do Ministério Público e do Judiciário sobre a atividade policial parece ser pouco efetiva. Raros são os casos de policiais processados por abusos, e mais raras, ainda, as condenações. Por outro lado, são bastante numerosas as condenações decorrentes de flagrantes feitos por policiais em abordagens e em buscas domiciliares sem mandado, sem que haja qualquer prova além do depoimento dos agentes de segurança.

 

Os familiares das vítimas desses abusos ainda precisam lutar contra a associação de sua imagem ao crime, ou contra a desumanização que faz com que não as reconheçamos como portadoras de nenhum direito, nem mesmo o de ser julgado nos termos da Lei (devido processo legal).

 

Mesmo diante do histórico de ilegalidades amplamente documentadas na atuação de nossas forças policiais, ainda impera, em parte da sociedade e do sistema judicial, a crença de que a ação policial se presume legítima, sendo suas vítimas “bandidos”, a priori, despidos de direitos já garantidos pela Lei. Aqueles que assim pensam não percebem que tais pessoas são geralmente negras, usam vestimentas típicas de estratos mais pobres da sociedade e preenchem determinados estereótipos.

 

O avesso da pele honra e humaniza as vítimas negras de abusos policiais. Ao lado de Torto Arado, a obra de Jeferson Tenório nos mostra que a luta contra o racismo nasce no instante em que nascemos.

 

Importantes membros da sociedade civil organizada têm tentado levar às cortes superiores de nosso país a preocupação com os abusos policiais que têm a população negra como alvo preferencial.

 

Quase 30 anos após a entrada em vigor de nossa atual Constituição Federal, o Supremo Tribunal Federal fixou a tese de que “a entrada forçada em domicílio sem mandado judicial só é lícita, mesmo em período noturno, quando amparada em fundadas razões, devidamente justificadas a posteriori, que indiquem que dentro da casa ocorre situação de flagrante delito, sob pena de responsabilidade disciplinar, civil e penal do agente ou da autoridade, e de nulidade dos atos praticados” (RE 603616/RO).

 

A decisão representa uma clara tentativa de reprimir práticas constantemente denunciadas de policiais que, no curso de buscas domiciliares, “plantam” drogas, armas ou mesmo cédulas falsas, forjando flagrantes.

 

Ainda em decisão inédita, o Supremo Tribunal Federal concedeu liminar na ADPF 635 para restringir as operações policiais em favelas do Rio de Janeiro a hipóteses excepcionais, devidamente justificadas por escrito, limitando, ainda, o uso de helicópteros em tais operações, de forma a preservar a vida e segurança dos moradores destas localidades. A decisão parece ter sido uma resposta a diversas operações policiais em áreas pobres que resultam em mortes e lesões evitáveis, inclusive de crianças.

 

O Superior Tribunal de Justiça, por sua vez, reconheceu em decisões recentes a ilegalidade do reconhecimento fotográfico sem as cautelas previstas na legislação processual, ante a demonstração de inúmeros equívocos de identificação, sobretudo de pessoas negras, nos inquéritos policiais (RHC 598.886 e HC 598.886).

 

O mesmo Superior Tribunal de Justiça passou a exigir, ainda, filmagem e autorização escrita nas buscas domiciliares feitas sem mandado judicial (HC 598.051). Tal decisão, porém, foi reformada por decisão monocrática no Supremo Tribunal Federal, no RE 1.342.077/SP.

 

As recentes decisões de nossos tribunais superiores analisando as condutas policiais decorrem de insistente esforço da sociedade civil em colocar freios aos abusos das forças de segurança, pouco combatidos pelas instâncias inferiores do Judiciário, pelo Ministério Público e pelas próprias polícias. 

 

No século XXI, três décadas após a promulgação da Constituição Federal de 1988, reconhecer o direito básico de toda pessoa ao devido processo legal e a não ser sumariamente executado, ainda, é um desafio para a sociedade e o sistema de Justiça.

 

Qualquer avanço civilizatório pretendido no país deverá passar pelo enfrentamento das execuções judiciais e do racismo nas forças de segurança pública.

 

Torto Arado e O avesso da pele descortinam essa face sombria do país, que muitos ainda relutam em enxergar. 

26
Out21

Quanto mais homicídios, mais frágil a democracia

Talis Andrade
A violência letal, intencional e armada tem sido um dos grandes desafios políticos para as instituições democráticas no contexto atual do Brasil urbano. Mais do que meramente um problema de segurança pública, a concentração de homicídios em alguns territórios metropolitanos ajuda a localizar, no mapa brasileiro, a ação de grupos armados e o domínio que exercem sobre bairros ou conjuntos de favelas, submetendo a população local aos seus próprios interesses. Seja pela constante ameaça ou mesmo pelo uso concreto da violência, tais grupos controlam diversos tipos de negócios legais e ilegais nesses territórios, garantindo lucros elevados para a sustentação e expansão de suas atividades, corroendo a institucionalidade democrática em nível local e apelando para a flexibilização do monopólio legítimo da força pelo Estado.
 
Essas disputas violentas pelo poder nos territórios possuem características em comum nos diversos estados do Brasil, assim como especificidades locais. Os próprios grupos podem ser mais ou menos estruturados, com ou sem comandos ou hierarquias; podem se financiar pela venda de drogas e outros tipos de atividades criminosas, bem como ter maior ou menor interface com negócios legais; podem ter participação de policiais ou funcionar como grupos paramilitares, bem como ter maior ou menor ligação com dinâmicas próprias do sistema penitenciário.
 
Nos territórios onde exercem ou disputam o poder com os rivais, porém, o resultado é parecido: esses grupos acabam impondo o silêncio forçado aos moradores, que precisam se conformar a viver rotinas de tiroteios e de corpos amanhecidos nas ruas, como se seus bairros estivessem fadados a seguir sob uma sombra eterna, inalcançados pelo Estado de direito e pela Justiça.
 
Quando esses grupos são mais bem estruturados, como ocorre no Rio de Janeiro, tendem a funcionar como uma espécie de governo territorial ilegal, assumindo o monopólio do uso da força em seus territórios e desenvolvendo com a população uma relação ao mesmo tempo tirânica, paternalista e clientelista.
 
Na capital fluminense, nas centenas de bairros controlados pelas facções criminosas – Comando Vermelho, Terceiro Comando Puro, Amigo dos Amigos e os grupos paramilitares – o poder político tende a ser medido pela quantidade de fuzis que tais grupos têm para se defender.
 
A rotina da cidade e do estado acaba dependendo das estratégias de ação desses grupos, com cotidianos de tiroteio ou calmaria dependendo da disputa do dia. Dossiê Segurança Pública de Bruno Paes Manso e Luís Felipe Zilli. Leia mais
 
 
 
 
20
Ago21

A íntima relação entre cocaína e madeira ilegal na Amazônia

Talis Andrade

Deflagrada em julho de 2020, Operação Schelde apreendeu cerca de 250 kg de cocaína em vigas de madeira enviadas à Bélgica

 

AMAZÔNIA SEM LEI

Pesquisadores e policiais apontam uso crescente de cargas de origem florestal na exportação de drogas — madeira de crime ambiental é hoje uma das principais “maquiagens”

 

 

por Ciro Barros /Agência Pública

 

  • Pesquisador vê sobreposição entre as rotas do crime ambiental e o narcotráfico
  • Facções veem crimes ambientais como oportunidade de acumular capital
  • Região de conflitos, Barcarena (PA) se consolidou na rota do narcotráfico

Os produtos florestais, frequentemente oriundos de crimes ambientais, vêm servindo cada vez mais de maquiagem para o envio de drogas ao exterior. O destaque vai para as cargas de madeira, campeãs de apreensões nos contêineres enviados do Brasil à Europa.

Pesquisas recentes já apontam o volume significativo de exploração ilegal no mercado madeireiro nacional e sua relação com o desmatamento na Amazônia. Segundo um estudo da ONG Imazon publicado em 2020, cerca de 70% da madeira explorada no Pará entre agosto de 2017 e julho de 2018 tinha origem ilícita — a exploração ocorreu em áreas onde não havia autorização do Estado. 

Além de apontar a grilagem e a extração ilegal de madeira como duas das principais causas do desmatamento, o relatório “Máfias do Ipê”, produzido pela ONG Human Rights Watch em 2019, mostrou a relação dessa atividade com a violência. A pesquisa analisou 28 casos de assassinatos, 4 tentativas de assassinato e outros 40 casos de ameaças relacionadas à extração ilegal de madeira entre 2015 e 2019.

A novidade apontada pelos entrevistados é a sobreposição cada vez maior das rotas entre as facções criminosas do narcotráfico e os grupos ligados aos crimes ambientais. Pesquisadores dizem que o crime ambiental pode estar servindo como uma nova forma de capitalização para os narcotraficantes, com indícios do uso de cargas de origem florestal para maquiar o envio de drogas ao exterior.

A situação é apontada por fontes ligadas à Polícia Federal (PF) e por pesquisadores da área de segurança pública ouvidos pela Pública. “O principal produto florestal usado para a exportação de drogas para a Europa é a madeira”, afirma Aiala Couto, geógrafo da Universidade do Estado do Pará (Uepa) e pesquisador associado ao Fórum Brasileiro de Segurança Pública e ao Instituto Clima e Sociedade. Couto desenvolve uma pesquisa a ser publicada neste ano que trata da territorialização do crime organizado na Amazônia e a relação deste com os crimes ambientais. Segundo ele, os produtos minerais, com destaque para o manganês, ocupam o segundo lugar na lista de apreensões.

Um levantamento da Pública feito com base em notícias das apreensões nos sites oficiais do governo e na imprensa identificou ao menos 16 grandes apreensões de cocaína em cargas de madeira destinadas à exportação por via marítima entre 2017 e 2021.  Ao todo, as apreensões somaram cerca de 9 toneladas da droga e tinham como destino países europeus como Espanha, Bélgica, França, Alemanha, Portugal, Itália e Eslovênia. Elas ocorreram com mais frequência em portos do Sul e Sudeste do Brasil em cargas de madeira em toras, vigas, pallets e laminados.

Ascom/Receita Federal/Polícia Federal. Foto de apreensão de cocaína acondicionada em carga de madeira. Aconteceu nos portos de Itaguaí (RJ), Itapoá (SC) e Paranaguá (PR) entre 2019 e 2021

 

A pesquisa de Couto mostra que cerca de 9 toneladas de drogas foram apreendidas na Amazônia Legal — principalmente cocaína e maconha —, vindas do Suriname, Colômbia, Bolívia, Venezuela e Peru entre 2017 e 2020. As drogas vieram principalmente por via fluvial e terrestre. Os dados foram compilados também em notícias a respeito das apreensões. A informação colhida pelo pesquisador aponta para uma sobreposição entre áreas onde há apreensão de madeira ilegal e contrabando de minério e áreas de apreensão de drogas.

De acordo com informações da Receita Federal repassadas à Pública, mais de 2 toneladas de narcóticos acondicionados em produtos de origem extrativista foram apreendidas somente no porto de Santos (SP) entre 2019 e 2021. As drogas foram encontradas em pallets de madeira, fibras de amianto, cargas de grafite, microssílica e corindo (mineral à base de óxido de alumínio).

Segundo o delegado titular da Delegacia de Repressão a Entorpecentes (DRE) da PF no Amazonas, Victor Mota, já se constatou que a madeira é a carga mais usada pelo narcotráfico na exportação de drogas. “A gente já fez um levantamento das exportações do tráfico de drogas para a Europa e a primeira carga disparada [onde as drogas são escondidas] é a madeira. Seja na forma de móveis, seja na forma de vigas, seja em outras formas. A principal forma que eles escondem a droga para o envio para a Europa é a madeira”, diz o delegado, em entrevista à Pública. Segundo Mota, essa informação consta em um levantamento interno já produzido pela PF, mas a instituição negou o acesso ao documento após um pedido da reportagem.

 

Facções veem crimes ambientais como oportunidade de acumular capital


“As rotas que são utilizadas para o tráfico de drogas também são utilizadas para o contrabando de madeira, e algumas estão próximas em áreas de contrabando de minério, sobretudo na exploração ilegal de ouro”, afirma o pesquisador Aiala Couto. “Há uma mistura nessas relações [entre o narcotráfico e os crimes ambientais]. E isso faz com que a gente consiga associar o discurso do governo em relação à questão ambiental com esse fortalecimento das ações dessas atividades criminosas que dizem respeito ao meio ambiente. Isso possibilitou que grupos criminosos organizados enxergassem esses crimes como uma possibilidade dentro do seu campo de ação para acumulação de capital”, argumenta.

Couto aponta que já há registros de facções criminosas comprando ilegalmente áreas de floresta para lucrar com a exploração ilegal de madeira e até mesmo para montar áreas de produção de maconha, como tem ocorrido no chamado “polígono da maconha” ou “polígono do capim”, situado no nordeste do Pará, nos municípios de São Domingos do Capim, Concórdia do Pará, Bujaru, Tomé-Açu, Cachoeira do Piriá, Nova Esperança do Piriá, Garrafão do Norte, Moju e Tailândia.

A pesquisa de Couto registra a apreensão de mais de 2 milhões de pés de maconha na Amazônia Legal entre 2015 e 2020, 55% do total apreendido no estado do Pará, com grande destaque para os municípios do polígono. Em agosto de 2020, a Operação Colheita Maldita, deflagrada em conjunto pela PF e pela Polícia Civil do Pará, apreendeu cerca de 200 toneladas de maconha no nordeste paraense (mais de 400 mil pés). Segundo a Comissão Pastoral da Terra (CPT), já há registros de conflito entre traficantes e comunidades tradicionais, como um caso de ataque de piratas à comunidade ribeirinha de Itamimbuca, no município de Igarapé-Miri, ocorrido em janeiro deste ano. 

“Há relatos de pessoas envolvidas em conflitos agrários com essa questão [das organizações criminosas]”, afirma a coordenadora do Núcleo de Questões Agrárias e Fundiárias do Ministério Público do Estado do Pará (MP-PA), Ione Nakamura. A promotora, porém, diz que o tema ainda é incipiente no MP e que nunca foi alvo de investigação da promotoria agrária.

Há associação de grupos criminosos com grupos econômicos que já exploram ativamente o garimpo ilegal na Amazônia, como revelado pela Amazônia Real no caso dos garimpos clandestinos situados em áreas Yanomami, em Roraima. 

Mais do que o mero compartilhamento de rotas, Couto vê um entrelaçamento crescente entre o narcotráfico e o crime ambiental que acelerou acompanhando a disputa dos grupos criminosos pelas principais rotas da Amazônia, que frequentemente coincidem com as dos crimes ambientais. Apesar disso, o combate ao crime na Amazônia por vezes desconsidera essa ligação e isso acaba por fortalecer as facções. “Há várias áreas da Amazônia onde existe esta sobreposição entre estas atividades criminosas como o garimpo ilegal, a exploração ilegal de madeira, o narcotráfico”, argumenta Aiala.

Nós temos um governo que se elegeu com a bandeira da segurança pública, mas que não consegue enxergar que existe essa relação entre segurança pública e o meio ambiente. E toda a narrativa, o discurso e a ação [do governo] potencializou o crescimento do crime organizado na Amazônia hoje. Os números se intensificaram do governo Bolsonaro para cá. O crime organizado tem que ser entendido para além da sigla PCC e Comando Vermelho, por exemplo, há grupos que se envolvem no garimpo ilegal, na grilagem de terras, na extração ilegal de madeira, no contrabando de ouro, na invasão de terras indígenas. Esses grupos criam empresas, lavam dinheiro, participam do contrabando, do tráfico de drogas e armas. A relação é ampla e complexa”, alerta.

Para o ex-superintendente da PF no Amazonas, o delegado Alexandre Saraiva, as punições leves para os crimes ambientais na legislação e a possibilidade de lucros atraem cada vez mais as organizações criminosas para o crime ambiental. “Há uma simples análise de risco por parte do criminoso. Ele olha lá na legislação ambiental e vê que, se for aplicada apenas a legislação ambiental, ela é extremamente limitada. Ele não precisa pensar muito. É possível ver pessoas ligadas às organizações criminosas atuando no comércio ilegal de madeira”, diz Saraiva, que comandou uma das maiores operações de combate à madeira ilegal da história do país, a Operação Arquimedes. 

 

Barcarena ganha importância na saída de drogas da Amazônia ao exterior


O porto de Vila do Conde, em Barcarena, vem se consolidando como uma das principais rotas de saída de entorpecentes da Amazônia para a Europa. É comum que cargas de entorpecentes saiam de lá e passem por portos do Sul e Sudeste do país, como os de Santos e Paranaguá (PR), antes de ir ao exterior, mas é cada vez mais frequente o envio direto. “Quanto à remessa da cocaína para outros países, o que se tem notado é a utilização de outros portos para despachar a droga, na espécie, pode-se citar o porto de Vila do Conde no estado do Pará”, afirmou em entrevista ao Valor Econômico, o delegado Elvis Secco, ex-coordenador-geral de Polícia de Repressão a Drogas e Facções Criminosas (CGPRE) da PF.

Barcarena já é uma região fértil em conflitos agrários, segundo os dados da CPT. A organização registra mais de 12 mil famílias envolvidas em conflitos de água e terra no município entre 2011 e 2021 e mais de 22 casos de violência contra pessoas no campo no mesmo período (incluindo dois assassinatos). A crescente importância do local como rota do narcotráfico pode agravar o quadro de violência geral nas áreas urbanas e rurais da cidade.

Operações recentes da PF e da Polícia Civil do Pará vêm focando as exportações por Barcarena e a violência em municípios próximos nos últimos anos. É o caso, por exemplo, da Operação Flashback, que, deflagrada pela PF em 2017, desarticulou uma organização criminosa que tinha dois portos como polos principais de suas operações. O porto de Paranaguá e o porto de Vila do Conde, em Barcarena. Este era comandado, segundo as investigações, por Antônio Salazar Nuez, chamado de “Tony Filipino”. Nascido nas Filipinas e baseado em Belém (PA), Tony foi descrito pelo Ministério Público Federal (MPF) como “idealizador do esquema de tráfico de drogas para a Europa, a partir do Porto de Vila do Conde no Pará”. 

Segundo o MPF, Tony aliciava tripulantes, normalmente conterrâneos filipinos, de embarcações que iam a países do exterior. Ainda em 2015, diálogos interceptados pela PF mostraram que ele articulou o envio de cocaína em uma carga de madeira destinada à Turquia. Tony foi condenado a 24 anos de prisão por enviar outros  22 kg de cocaína para a Bélgica e atualmente cumpre pena em regime fechado.

Operações mais recentes vêm confirmando a importância da região portuária de Barcarena na rota do narcotráfico na Amazônia. Em março deste ano, a Polícia Civil do Pará apreendeu 120 kg de cocaína, que, distribuídos em 117 tabletes, seriam exportadas à Europa em vigas de madeira. Quatro pessoas foram presas e uma quantia de aproximadamente R$ 200 mil em espécie foi apreendida pelos policiais. A polícia informou, segundo decisões judiciais, que a operação é resultado de mais de um ano de investigações sobre um suposto esquema de envio de drogas ao exterior que já movimentou “milhões de dólares, euros e reais em um complexo sistema de remessa de cocaína para destinos variados”.

Reprodução/Polícia Civil do Pará. Operação Mandarim, deflagrada pela Polícia Civil do Pará em março deste ano, apreendeu 120 kg de cocaína de um grupo criminoso voltado ao tráfico internacional em Barcarena


Um dos suspeitos apontados como líder do esquema possui uma empresa regularizada na Secretaria de Estado da Fazenda (Sefa) do Pará para exportação de madeira pelo porto de Vila dos Cabanos, outro distrito de Barcarena. Segundo a polícia, a droga era acondicionada nas toras de madeira e posteriormente vendida a clientes no exterior. O processo segue em sigilo de justiça. Nem a Polícia Civil nem o MP-PA quiseram dar entrevista à Pública. 

Para o delegado Victor Mota, uma legislação ambiental frágil pode acabar colaborando para que outros crimes, como a exportação de drogas, cresçam. Um exemplo é o despacho 7036900, de fevereiro de 2020, publicado pelo ex-presidente do Ibama Eduardo Bim, que foi afastado do cargo por determinação judicial. O despacho motivou as investigações que culminaram na Operação Akuanduba, que tem o ex-ministro do Meio Ambiente Ricardo Salles e Bim como investigados. 

O documento dispensava a autorização do Ibama para as exportações de madeira, mas foi suspenso por decisão do ministro Alexandre de Moraes em maio deste ano.

Isso facilita [o envio de drogas ao exterior]. É uma coisa que acaba puxando a outra. Se você não tem uma fiscalização de que tipo de madeira está ali, o quanto de madeira está sendo transportado, se essa madeira pode ser exportada, de onde ela foi retirada. Se você não tem essa primeira desconfiança quanto ao material, como a gente vai desconfiar que lá dentro tem ou não entorpecente? Se você começa a criar uma vista grossa com esse material, os caras vão cada vez mais usar aquilo como esconderijo”, avalia.

O delegado Victor Mota foi responsável por uma das operações mais recentes a relacionar crimes ambientais e pessoas ligadas ao narcotráfico. Deflagrada em julho de 2020, a Operação Schelde investigou quem estava por trás do envio de 250 kg de cocaína para a Bélgica em uma carga de vigas de madeira de origem ilícita em 2019. A investigação foi recém-concluída pela PF e mostra a participação de pessoas com passado vinculado a facções criminosas no esquema.


Do Brasil à Bélgica: a cocaína escondida num contêiner de madeira


Em seis de junho de 2019, uma carga de madeira oriunda do Brasil foi interceptada no porto de Antuérpia, na Bélgica. Os policiais belgas se surpreenderam quando fiscalizavam um contêiner de madeira em vigas enviado pela empresa brasileira J. S. Comércio Varejista de Ferragens e Ferramentas, sediada em Manaus (AM). O motivo da surpresa: as autoridades belgas encontraram 250 kg de cocaína refinada na carga de madeira, que tinha como destino a Holanda.

A polícia belga imediatamente alertou a PF no Brasil. Foi ali o início de uma investigação de dois anos, conduzida pela PF no Amazonas e recentemente encaminhada para análise do MPF. Para a PF, a J. S. era uma empresa de fachada usada por pessoas com passado ligado ao tráfico de drogas e a facções criminosas para maquiar o envio de drogas ao exterior. A madeira tinha origem ilegal segundo o inquérito policial.

A J. S. tem como único sócio Gil Vicente Valle Miraval. No decorrer das investigações, os policiais o classificaram como o protagonista da empreitada que levou os 250 kg de Manaus à Bélgica. Com a quebra de seus sigilos bancário e telemático, a PF descobriu que ele se encontrava na Europa no período em que estava prevista a chegada da carga de cocaína, transitando entre a Holanda e a Bélgica. “As investigações apontam que ele faria o recebimento da droga na Europa, receberia o valor do comprador e voltaria ao Brasil com esse valor em espécie, coisa que ele já tentou fazer em uma outra ocasião”, afirma em entrevista à Pública o delegado Victor Mota, responsável pela investigação. 

Descobriu-se também, em conversas obtidas com as quebras de sigilo, que Gil Vicente estava negociando carregamentos de maconha com outros contatos.

 

Dívida com suposto fornecedor da Família do Norte


Na quebra de sigilo telemático de Gil Vicente, apareceram comunicações com Osmerino Muca de Souza. Osmerino é um velho conhecido da PF amazonense. Em 2015, ele foi preso na Operação La Muralla, a primeira grande operação da PF que atingiu em cheio a facção criminosa Família do Norte (FDN).

Ascom/Polícia Civil do Pará. Principal suspeito do envio de 250 kg de cocaína para o exterior, Gil Vicente Valle Miraval já havia sido preso em 2017 por uso de documento falso


No relatório final da Operação La Muralla, Osmerino é descrito como um dos principais comparsas do colombiano Juan Angel Ocampo Cruz, vulgo “Chinês”, apontado com um dos grandes fornecedores de drogas do líder da FDN, José Roberto Fernandes Barbosa, o “Zé Roberto da Compensa”,  que cumpre pena de 130 anos de prisão na Penitenciária Federal de Segurança Máxima de Campo Grande (MS).

Em setembro de 2015, Osmerino foi preso junto com Chinês em um sítio de sua propriedade, no município de Manacapuru (AM), na região metropolitana de Manaus. Na ocasião, a PF apreendeu 27 kg de cocaína e outros 217 kg de maconha, além de armas de grosso calibre. 

Na investigação contra Gil Vicente, a PF encontrou registros de contatos telefônicos entre ele e Osmerino. “Essas ligações por vezes falavam de dívidas e de uma antecipação de uma certa quantidade de dinheiro. Se a gente analisar os antecedentes do Osmerino, ele já foi preso e nós temos informações que ele, depois de solto, continuava praticando o crime de tráfico de drogas”, explica o delegado Victor Mota. “Para mim ficou claro que ele [Osmerino] servia como um fornecedor de entorpecentes”, explica, referindo-se ao envio de drogas para a Bélgica. 

Em julho do ano passado, houve a fase ostensiva das investigações. Batizada de Operação Schelde, em referência ao rio que banha o porto de Antuérpia, a PF cumpriu sete mandados de busca e apreensão e dois de prisão contra Gil Vicente e Osmerino.

Concluído pela PF, o caso está em análise pelo MPF no Amazonas. O procurador responsável, Filipe Pessoa de Lucena, do 11o Ofício da Procuradoria da República no Amazonas, não quis dar entrevista à Pública. Gil Vicente foi solto e está em liberdade condicional desde dezembro de 2020, aguardando a manifestação do MPF. Osmerino não teve o pedido de liberdade condicional aceito pela Justiça e segue em prisão temporária.

A Pública buscou contato com o advogado de Gil Vicente, Euthiciano Mendes Muniz, em um número de telefone informado em um pedido de liberdade provisória, e enviou a ele quatro perguntas sobre os fatos imputados pela PF, mas não houve resposta até o fechamento. A reportagem não conseguiu contato com a defesa de Osmerino.

19
Jun21

PMs são servidores dos estados e organizados sob hierarquia e disciplina

Talis Andrade

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Por Ricardo Lewandowski /ConJur

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Artigo originalmente publicado na edição desta sexta-feira (18/6) do jornal Folha de S.Paulo.

Saber quem comanda as Polícias Militares é uma pergunta que não se restringe apenas à questão da responsabilidade última pela formulação das políticas de segurança pública, mas diz respeito ao próprio cerne da forma federativa de Estado, adotada por nós desde a proclamação da República, em 1889, e que figura como cláusula pétrea da atual Constituição.

Em interessante estudo denominado “Pequeno Exército Paulista”, Dalmo de Abreu Dallari, a propósito, relata que, quando a economia paulista começa a desenvolver-se nas últimas décadas do século 19, “ocorre a modernização e o crescimento da Força Pública do estado de São Paulo, elemento que se tornou decisivo para impedir intervenções federais que foram muito frequentes em outros estados da Federação”.

De fato, a corporação teve um papel decisivo na Revolução Constitucionalista de 1932, impedindo, ao menos temporariamente, que o governo central tivesse êxito em esmagar a autonomia estadual. No entanto, tal acabou ocorrendo em 1937, com o advento da ditadura getulista, e depois novamente a partir de 1964, com a implantação do regime militar.

Em 2 de julho de 1969, conforme lembra Dallari, por meio do decreto-lei 667, assinado pelo general Costa e Silva e ainda hoje vigente, “o governo federal colocou todas as Polícias Militares sob o controle do Ministério do Exército”. Na sequência, o governador paulista, Abreu Sodré, extinguiu a Força Pública mediante o decreto-lei 217/1970, transformando-a em Polícia Militar.

A Constituição de 1988, todavia, recolocou as Polícias Militares sob o comando das autoridades civis, estabelecendo com minúcias, nos artigos 42, 142 e 144, a sua disciplina jurídica. Neles consta que os integrantes dessas corporações são servidores militares dos entes federativos, organizados com base na hierarquia e disciplina, cabendo-lhes a polícia ostensiva e a preservação da ordem pública.

Como militares que são, não podem filiar-se a partidos políticos e sindicatos, sendo-lhes proibido fazer greve. E, muito embora constituam forças auxiliares e reserva do Exército, subordinam-se, assim como os bombeiros militares, aos governadores — os quais, inclusive, conferem aos seus oficiais as respectivas patentes.

Apesar de classificadas como forças auxiliares e reserva do Exército, o recrutamento dessas milícias locais pela União só pode ocorrer em situações extraordinárias, como estabelece o próprio decreto-lei 667/1969, em seu artigo 3º, quais sejam, “em caso de guerra externa ou para prevenir ou reprimir grave perturbação da ordem ou ameaça de sua irrupção”. Tais situações coincidem com aquelas que autorizam o estabelecimento do estado de defesa e do estado de sítio, cuja decretação, contudo, sujeita-se à anuência do Congresso Nacional, nos termos dos artigos 136 e 137 da Lei Maior.

A competência privativa da União, prevista no artigo 22 para legislar sobre normas gerais de convocação e mobilização das polícias e bombeiros militares, não tem o condão de elidir o princípio basilar da democracia, segundo o qual todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos.

Por isso, qualquer ato do governo federal que retire ou atenue o controle dos governadores sobre essas corporações, salvo nas hipóteses excepcionais acima indicadas, e respeitadas as salvaguardas pertinentes, não só contrariaria disposição constitucional expressa como também vulneraria o próprio princípio federativo, concebido justamente para impedir a concentração do poder — no caso, do poder armado.

13
Jun21

Passeio inútil de Bolsonaro custou R$ 1,2 milhão ao governo de Doria

Talis Andrade

Bolsonaro leva milhares de motociclistas para as ruas em São Paulo e é  multado por não usar máscara - Meon

 

A "motociata" de Jair Bolsonaro e apoiadores neste sábado (12), que marca mais um ato de campanha antecipada para 2022,  custou aos cofres públicos de São Paulo R$ 1,2 milhão, governado por João Doria, de acordo com dados da Secretaria de Segurança Pública do estado divulgados pela Folha de S. Paulo.

A bolada que Bolsonaro gastou com cartão corporativo da Casa Civil e outros ministérios só o capeta sabe. Inclusive outros ministros faziam parte da farra com dinheiro público. Lá estava o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Sales, contemplando a poluíção da passagem da boiada, o fumacê, a zoadeira. 

O "passeio" inútil de Bolsonaro mobilizou 1.433 policiais, com a participação de batalhões territoriais e especializados, como Baep, Choque e Canil, além de equipes do Corpo de Bombeiros e do Regaste. Para complementar a segurança da manifestação ainda foram utilizadas cinco aeronaves, dez drones e aproximadamente 600 viaturas.

Para fazer sua campanha pessoal, Bolsonaro utilizou avião da Força Aérea Brasileira (FAB) e cometeu crimes ao usar modelo de capacete proibido pelas normas de trânsito, e pilotar sua moto com a placa coberta. No final do evento, o chefe do Executivo Nacional voltou a espalhar mentiras sobre a Covid-19 e falou novamente em desobrigar o uso de máscara.

25
Nov20

Vidas matáveis expostas ao vírus e ao genocídio cotidiano

Talis Andrade

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Por Lucas da Silva Santos

 

A violência policial é fartamente direcionada contra as populações pobres e periféricas, as incursões mortíferas não são práticas de exceção, pelo contrário, a regra é o extermínio dos corpos pobres e negros sob as patas do Estado Brasileiro. Evidentemente, essa política fundada em táticas de guerra, truculência, violência(s) e letalidade sobre os corpos indesejáveis ou definidos como inimigos, são resquícios históricos desde o Brasil colonial e suas heranças escravocratas. 

Salienta-se que os policiais também são vítimas dessa política de Estado, nessa guerra contra a “criminalidade” e às drogas, as vítimas e os vitimizados são os mesmos, em outras palavras: gente pobre matando gente pobre para  assegurar-se os interesses do Estado e do Mercado.

A (in)segurança pública é um projeto de poder, no qual o Estado atua fortemente nas regiões precarizadas, neste jogo permanente de se “fazer guerra” contra a população pobre e negra, vende-se o discurso da pacificação. As operações mortíferas da polícia na sociedade pós-abolição (formal) da escravidão, se atualizam nos dias atuais na definição da população negra, pobre e periférica, sobretudo masculino, enquanto “inimigo da ordem”, ademais, o esquecimento dos períodos autoritários e violentos do Estado brasileiro, resultam-se na naturalização e normalização do extermínio dessas populações.[1]

Esses legados históricos: escravidão, Brasil colonial, ditaduras militares, retratam o atual contexto da sociedade brasileira, no qual verifica-se o imobilismo social frente ao cenário de intensificação da violência estatal desigual. O ano de 2020, a partir da pandemia do Covid-19, as favelas, comunidades e periferias no Brasil, para além dos inúmeros problemas sociais: desemprego, falta de saneamento básico, educação, acesso à saúde, e o “novo” problema mortal o Covid-19.

No entanto, os moradores/as das favelas também tiveram que enfrentar o desafio de sobreviver ao aumento das incursões letais da polícia brasileira. Esse crescimento da letalidade policial em tempos de pandemia e de isolamento social, reverberam que essa atuação não se trata apenas de um erro de procedimento, ou ainda de efeitos colaterais em razão do aumento da criminalidade.

A sociedade brasileira é indiferente a violência desigual operacionalizada diariamente pelo Estado, talvez, um ideário mais ingênuo pudesse crer que durante o período da pandemia do Covid-19, a política de morte do Estado seria atenuada e não surgissem novos casos emblemáticos de extermínio policial. 

Pelo contrário, o fato é que surgiram novos casos e novos nomes ganharam destaque pela mídia hegemônica, a brutalidade visível (aparente) da polícia brasileira, e ao mesmo tempo invisibilizada historicamente aos olhos da população, fez novas vítimas, talvez, pelo momento atual de crise sanitária, os casos de João Pedro, Ágatha Félix, Kaué Ribeiro dos Santos e Kauan Rosário, receberam maior atenção e geraram o mínimo de indignação social.

Não se pode olvidar que essas crianças foram mortas a partir de operações policiais (criminosas) no Rio de Janeiro, ocorridas recentemente, corroborando o “pé na porta”, inclusive em tempos de quarentena. O caso de João Pedro, representa o atual estágio da violência policial nas favelas, o adolescente foi morto pela polícia dentro de sua própria casa no complexo de favelas do Salgueiro, no Rio de Janeiro[2], sob a justificativa de combate ao narcotráfico. 

Importante ressaltar que os moradores das favelas do Rio de Janeiro, assemelham-se a uma espécie de “campo de concentração a céu aberto”[3], no ano de 2020, são expostos ao vírus e a(s) violência(s) permanentes que recaem prioritariamente sobre seus corpos, afirma-se isso, em virtude da desigualdade racial no Brasil. Segundo, o Fórum Brasileiro de Segurança Pública 2020, no ano de 2019, 79,1% das vítimas de intervenções policiais eram negros.[4]

O Estado do Rio de Janeiro, serve como exemplo emblemático desse “desafio” dos moradores da favela em resistirem ao vírus e a polícia, visto que mesmo frente a diminuição de crimes, em especial,  roubo e homicídio, as operações mortíferas cresceram durante o período da pandemia. Destaca-se que somente no mês de abril de 2020, foram 177 mortes decorrentes de atuações policiais, um aumento de 43% em relação ao mesmo período do ano de 2019, sendo assim, a cada quatro horas, ocorreu uma morte a partir de intervenção da polícia. Considerando os primeiros quatro meses de 2020, foram 606 mortes, um crescimento de 8%.[5]

Em complemento, a escalada abrupta de mortes decorrentes de operações policiais em meio a pandemia, também se operacionalizou na Polícia Militar do Estado de São Paulo, os agentes policiais somente no mês de abril de 2020, executaram 116 pessoas, apesar de período de quarentena, tais números representam recorde dos últimos 14 anos[6], todavia, a pergunta que merece ser levantada: quem assina essa violência? 

A responsabilidade dessas mortes não é exclusiva dos policiais que apertaram o gatilho, mas também do Estado que ratifica a institucionalização da violência como forma de “combate” ao crime e ao criminoso. As operações violentas e letais somente foram reduzidas em virtude de decisão liminar do Supremo Tribunal Federal, proibindo as incursões durante a quarentena, isto é, evidenciando como o controle interno e externo das polícias são protocolares.

A realidade que insiste em bater em nossa porta, revela como é cruel e massacradora essa política de Estado, basta, para tanto, analisar os números de assassinatos da população negra e pobre no Brasil,  sem contar a cifra oculta, em 2019: foram 6.357 mortes por intervenções policiais (79,1% negros), igualmente, 172 policiais foram assassinados. [7]

O massacre direcionado contra essa população não pode ser considerada como “uso excessivo da força”, essas práticas policiais militarizadas nas favelas e territórios periféricos representam a realidade e não a exceção, visto que a polícia brasileira é conhecida internacionalmente como a mais letal do mundo[8], bem como a polícia que mais vitimiza seus agentes. 

Em síntese, para além das inúmeras violações direcionadas contra essas pessoas, trata-se de tarefa urgente “enxergar aquilo que se vê”, destarte, que o Estado brasileiro através dessa política de morte vitimiza sua população. Portanto, o mundo idealizado do “dever ser” no qual a polícia segue os parâmetros normativos e democráticos, ou de uma polícia cidadã e civilizatória, não chega nos espaços e regiões periféricas como as favelas[9], a população pobre e negra é perversamente inserida nessas violências cotidianas e naturalizadas no Brasil, vamos insistir em negar essa realidade cruel até quando?  

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Notas:

[1] WERMUTH, Maiquel ngelo Dezordi. Biopolítica e polícia soberana: a sociedade escravocrata como chave de compreensão da violência e da seletividade punitiva no Brasil. Revista Direitos Fundamentais & Democracia, 2018, 23.3: 284-309. p. 295.

[2] BBC NEWS. Caso João Pedro: quatro crianças foram mortas em operações policiais no Rio no último ano. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/geral-52731882. Acesso em: 10 nov. 2020.

[3] Expressão utilizada por Edson Passetti. 

[4] FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA. Anuário Brasileiro de Segurança Pública. 2020. Disponível em: https://forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2020/10/anuario-14-2020-v1-interativo.pdf. Acesso em: 10 nov. 2020. 

[5] RIO DE JANEIRO. Instituto de Segurança Pública. 2020. Disponível em: http://www.isp.rj.gov.br/. Acesso em: 10 de nov. 2020.  

[6] BRASIL DE FATO. Na quarentena, PM de SP mata 102 em abril e bate recorde dos últimos 14 anos. Disponível: https://www.brasildefato.com.br/2020/07/11/na-quarentena-pm-de-sp-mata-102-em-abril-e-bate-recorde-dos-ultimos-14-anos. Acesso em: 10 nov. 2020. 

[7] FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA. Anuário Brasileiro de Segurança Pública. 2020. Disponível em: https://forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2020/10/anuario-14-2020-v1-interativo.pdf. Acesso em: 10 nov. 2020. 

[8] ANISTIA INTERNACIONAL. Anistia Internacional informe 2017/18: O estado dos direitos humanos no mundo. 2018. Disponível em: https://anistia.org.br/wp-content/uploads/2018/02/informe2017-18-online1.pdf. Acesso em: 10 nov. 2020. 

[9] FRANCO, Marielle. UPP a redução da favela a três letras: uma análise da política de segurança pública do estado do Rio de Janeiro. São Paulo; N-1 edições, 2018. 

Referências:

– ANISTIA INTERNACIONAL. Anistia Internacional informe 2017/18: O estado dos direitos humanos no mundo. 2018. Disponível em: https://anistia.org.br/wp-content/uploads/2018/02/informe2017-18-online1.pdf. Acesso em: 10 nov. 2020. 

– BBC NEWS. Caso João Pedro: quatro crianças foram mortas em operações policiais no Rio no último ano. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/geral-52731882. Acesso em: 10 nov. 2020.

– BRASIL DE FATO. Na quarentena, PM de SP mata 102 em abril e bate recorde dos últimos 14 anos. Disponível: https://www.brasildefato.com.br/2020/07/11/na-quarentena-pm-de-sp-mata-102-em-abril-e-bate-recorde-dos-ultimos-14-anos. Acesso em: 10 nov. 2020.

– FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA. Anuário Brasileiro de Segurança Pública. 2020. Disponível em: https://forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2020/10/anuario-14-2020-v1-interativo.pdf. Acesso em: 10 nov. 2020. 

– FRANCO, Marielle. UPP a redução da favela a três letras: uma análise da política de segurança pública do estado do Rio de Janeiro. São Paulo; N-1 edições, 2018. 

– RIO DE JANEIRO. Instituto de Segurança Pública. 2020. Disponível em:http://www.isp.rj.gov.br/. Acesso em: 10 de nov. 2020.  

– WERMUTH, Maiquel Ângelo Dezordi. Biopolítica e polícia soberana: a sociedade escravocrata como chave de compreensão da violência e da seletividade punitiva no Brasil. Revista Direitos Fundamentais & Democracia, 2018, 23.3: 284-309.

 
14
Nov20

Na véspera das eleições no Brasil, Le Monde propõe uma viagem ao “pequeno paraíso bolsonarista”

Talis Andrade

partiurs, nova pádua

 

Texto por RFI
 

O correspondente do jornal francês no Brasil, Bruno Meyerfeld, foi até Nova Pádua, “pequeno enclave branco e de classe média do sul do Brésil”, onde o presidente brasileiro de extrema direita teve uma votação esmagadora em 2018. A reportagem de várias páginas é publicada neste sábado (14) na revista "M" do Le Monde, véspera do primeiro turno das eleições municipais no país. “As teses de segurança e reacionárias de Jair Bolsonaro continuam a florescer” na cidade, afirma o texto.

O correspondente escreve que existem vários bons motivos para ir à Nova Pádua: “experimentar os famosos vinhos do estado do Rio Grande do Sul, os melhores do Brasil; refazer os caminhos dos imigrantes italianos na América Latina; fazer um selfie em frente a uma curiosa escultura de panela gigante de polenta; et, enfim, descobrir a cidade brasileira que registrou o maior porcentagem de votos a favor de Jair Bolsonaro”, enumera a reportagem.

Ao escolher em massa (92,96% dos votos) a extrema direita, a pequena cidade perdida da Serra Gaúcha passou rapidamente do anonimato à celebridade. Uma multidão de jornalistas desembarcou em Nova Pádua, “impacientes para entender as raízes do voto na ‘Cidade Bolsonaro’”.

Dois anos depois e apesar das eleições municipais, a cidade recuperou a tranquilidade, constata Bruno Meyerfeld. A apenas três horas da trepidante Porto Alegre, o vasto município rural, de apenas 2.500 habitantes, revela um outro Brasil. “Uma terra pudica, trabalhadora, com frequência desconfiada e silenciosa”.

Cidade próspera

Ao contrário da aparência rústica, Nova Pádua é uma cidade rica, uma das mais prósperas do país, com um salário médio equivalente a três salários mínimos. “Tudo na cidade respira a transparência, a boa gestão e a eficiência” e Nova Pádua representa um dos paradoxos do voto Bolsonaro. Segundo a matéria, “se, a exemplo de Donald Trump, o líder da extrema direita brasileira seduziu o eleitorado popular, ele também ganhou a adesão das classes privilegiadas e dos municípios mais ricos do país”.

O correspondente entrevistou o prefeito da cidade Ronaldo Boniatti que garante que Nova Pádua consagra um quito do orçamento à saúde, subsidia boa parte dos projetos agrícolas, concede bolsas de estudos e não tem dívida pública, nem criminalidade. “Um luxo em um país que enfrenta uma grave crise econômica e sanitária, violência e corrupção”, diz a reportagem.

O atual prefeito, do PSDB, mas que não hesitou em votar Bolsonaro em 2018, não é candidato a reeleição. Mas a cidade deve se manter fiel a Bolsonaro. Todos os candidatos se declaram, de uma maneira ou de outro, bolsonaristas, informa Le Monde.

Outras regiões do Brasil

Nova Pádua deve, então, se manter fiel ao presidente, mas o mesmo não deve acontecer no resto do país onde a situação é mais contrastada, indica o diário. Essas eleições municipais deveriam ser o primeiro grande teste do bolsonarismo, mas o presidente “se envolveu muito pouco na campanha e não se ocupou da implantação local de seu movimento”. Oficialmente, ele apoiou “pouquíssimos candidatos e mesmo assim timidamente”, como Celso Russomano, em São Paulo, e Marcelo Crivella, no Rio. Os dois, aliás, estão em dificuldade nas pesquisas,revela o texto.

A explicação para essa estratégia, segundo Le Monde, é que Bolsonaro “não quis nacionalizar essas eleições municipais e perder a popularidade conquistada com a crise da Covid”.

Nota deste Correspondente: Justificável medo de Bolsonaro. Os prefeitos serão a base das eleições do governadores e presidente do Brasil em 2022. Nas eleições de amanhã você decide o futuro do Brasil. 

18
Jul20

Violência no Brasil: quantos mais vão precisar morrer?

Talis Andrade

violencia agatha.jpg

 

Ano após ano, o Brasil acumula dezenas de milhares de homicídios. A violência tem seus alvos preferenciais e locais de maior incidência. A Sputnik Brasil ouviu especialistas para entender o que sustenta o atual modelo de segurança pública.

Publicação conjunta do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) e do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, o Atlas da Violência aponta que 65.602 homicídios aconteceram no Brasil em 2017 e 75,5% das vítimas eram negras. Para cada indivíduo não negro vítima de homicídio, houve 2,7 negros mortos. Além disso, a maior parte dos mortos têm ensino fundamental incompleto e 72,4% dos homicídios em 2017 foram cometidos com armas de fogo.

As vítimas da violência policial também se contam aos milhares. Foram 6.220 cidadãos mortos pelas polícias do Brasil em 2018, segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2019, e 75,4% destas vítimas eram negras. No mesmo ano, as polícias dos Estados Unidos, um país com população de 328,2 milhões, assassinaram 999 pessoas, de acordo com levantamento do jornal The Washington Post.

Para o ex-chefe do Estado Maior Geral da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro Robson Rodrigues, o atual sistema de segurança pública "reflete muito o período de exceção que foi construído na ditadura militar" e tem marcas violentas também por influência do Judiciário e da própria sociedade brasileira.

Rodrigues, que também é mestre em antropologia pela Universidade Federal Fluminense (UFF), acredita que as políticas públicas do setor não são baseadas em evidências, mas sim no "populismo penal" e em campanhas políticas baseadas no "discurso de ódio".

O atual governador do Rio de Janeiro, Wilson Witzel (PSC), afirmou após ser eleito em 2018 que a polícia deveria "mirar na cabecinha". Também em 2018, o governador de São Paulo, João Doria (PSDB), disse que a polícia deveria atirar para matar. O presidente Jair Bolsonaro (sem partido) já defendeu grupos de extermínio e milícias enquanto era deputado federal e fez do "excludente de ilicitude" uma das bandeiras de sua eleição.

Tem um discurso que empurra as polícias para esse abismo, estimula a polícia a matar mesmo sem ter nenhum sustentáculo na legislação, porque a legislação não fala em legítimo ataque, fala em legítima defesa. Então você empurra com uma falácia mentirosa, que não tem sustentáculo nenhum na legislação, que não tem proteção nenhuma, nenhuma garantia", diz Rodrigues à Sputnik Brasil. "Enquanto falamos de todas essas dificuldades que evidenciamos, a bancada da bala ri de orelha a orelha, a empresa de armas sorri e agradece com todos os problemas que a falta de controle nesse mercado tem gerado para a população."

A letalidade também atinge os próprios policiais: 343 agentes da Polícia Civil e da Polícia Militar de todo o país foram assassinados em 2018, de acordo com o Anuário Brasileiro de Segurança Pública. Mais uma vez, a maior parte dos mortos é formada por negros: 51,7%.

Polícia, política e milicía

Estudioso dos grupos paramilitares há mais de duas décadas e autor do livro "Dos Barões Ao Extermínio Uma História Da Violência Na Baixada Fluminense" (Editora Consequência), o sociólogo e professor da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) José Cláudio Souza Alves ressalta as raízes da violência do Brasil no período da colonização.

"Existe um período que eu poderia chamar de pré-história dessas relações entre poder político e polícia, você pode avançar muito no tempo com isso, a própria história do processo colonizador no Brasil, esse modelo colonial sempre estabeleceu esses vínculos, você tinha ali inicialmente os senhores de engenho, você tinha associada a eles não uma polícia estatal como temos hoje, mas as suas própria polícias, seus capitães do mato que caçavam escravos, os bandeirantes que caçavam índios", diz Alves à Sputnik Brasil.

Essa estrutura, diz o professor da UFRRJ, nunca foi "desmontada", apenas reconfigurada. Com a ditadura militar, ganharam força grupos de extermínio com chancela estatal. Estes matadores ganharam novos aliados com a retomada das eleições diretas para presidente na década de 1980: a imprensa e as urnas.

Determinante para a criação desse projeto é a criação de uma concepção do que é segurança pública, nessa construção política do que é segurança pública, a construção vitoriosa é a versão que você tem que produzir guerra ao inimigo. Na época da ditadura militar, os inimigos eram os comunistas, os grupos de esquerda clandestina, os subversivos, na época democrática, assim dita democrática, o inimigo é o bandido, o traficante, o ladrão. Você tem que construir essa imagem, ter esse inimigo."

Alves afirma que pessoas e entidades interagem com milicianos para "proteger seus bens, negócios, lucros e a si mesmo". "Quem mata é a polícia, quem financia são empresários e comerciantes e quem dá respaldo político são aqueles eleitos com essa intenção", diz o especialista.

Procurada pela Sputnik Brasil na segunda-feira (6), a Polícia Militar do Rio de Janeiro afirmou não ser possível conceder entrevista à reportagem.

22
Mai20

Ives Gandra está errado: o artigo 142 não permite intervenção militar!

Talis Andrade

 

Por Lenio Luiz Streck

Prefiro pecar pelo excesso. Até porque circula nas redes (sempre elas) matéria de O Globo de 2018 (aqui) na qual o General Mourão, nosso vice-presidente, falava do malsinado artigo 142 da Constituição. E ele dá ao artigo 142 da CF a interpretação que o estimado professor Ives Gandra vem dando.

Por isso, exercendo minha chatice epistêmica e o meu zelo democrático, volto ao assunto. Pela quarta vez. Retomo o tema também porque jornalistas, jornaleiros, juristas e militares parecem não saber o que é interpretação do Direito.

Há limites na interpretação. Não podemos, no Direito, agir como o personagem Humpty Dumpty (imagem acima da capa do livro Alice Através do Espelho) e dizer: “— eu dou ao artigo 142 da CF o sentido que quero”.

Lembra o jurista Michael Stolleis que, quando da edição das leis de Nuremberg, em 1935, os nazistas utilizaram-se exatamente do sistema jurídico como ferramenta de poder, fazendo com que ele fosse nada mais que um instrumento do Führer e seus objetivos. Instrumentalizam as leis e a Constituição. Aplicação da lei aos objetivos do regime. Qual é o ponto? Exatamente a expressão utilizada por Michael Stolleis1, que o faz recorrendo à obra de Bernd Rüthers, para definir o que ocorreu naquele período: a interpretação do Direito não fora constrangida (limitada). E cita o livro de Rüthers, denominado justamente Die unbegrenzte Auslegung — uma interpretação não-constrangida.2 No Brasil isso pode se encaixar perigosamente como uma luva.

Por isso, insisto: a interpretação dada por Ives Gandra ao artigo 142 da CF aqui no Conjur (há também um vídeo que circula nas redes) é, sendo um pouco eufemista e generoso com o estimado Professor paulista, muitíssimo perigosa. Para ele, as forças armadas poderiam intervir para restaurar a ordem democrática. Todavia, o que diz o artigo 142?

As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem.

Não encontrei aquilo que Gandra quis mostrar. Aliás, o artigo cheirou a uma ameaça ao STF, do tipo “cuidado com as decisões, porque isso pode dar problema”. Permito-me, com toda lhaneza, dizer: isso não é adequado em termos acadêmicos.

O pior de tudo é termos que insistir no fato de que a interpretação do Direito não comporta relativismos. Ora, se o artigo 142 pudesse ser lido desse modo, a democracia estaria em risco a cada decisão do STF e bastaria uma desobediência de um dos demais Poderes. A democracia dependeria dos militares e não do poder civil. Seria um haraquiri institucional.

Ou seja, as interpretações simplificadoras-distorcidas do artigo 142 devem ser abortadas ab ovo. O artigo 142 não permite intervenção militar. Qualquer manual de direito constitucional ensina o que é o princípio da unidade da Constituição. Por qual razão o constituinte diria que todo poder emana de povo, com todas as garantias de sufrágio etc. e, de repente, dissesse: ah, mas as forças armadas podem intervir a qualquer momento, como uma espécie de “poder moderador”.

Como funciona essa Unidade da CF? Simples. O artigo 142 diz que As Forças Armadas, sob a autoridade suprema do Presidente da República, destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem.

Pois bem. O dispositivo trata simplesmente da exceção na missão das FA, isto é, elas — as forças armadas — podem ser usadas também na segurança pública. Nada mais do que isso!

E tem mais uma coisa: para que as FA possam ser usadas na segurança pública, têm vários requisitos. Isso se depreende dos artigos 34, III, 136 e 137 da CF. Na verdade, essa “intervenção das FA” está já regulamentada pela GLO, que tem justamente o nome de Garantia da Lei e da Ordem, bem assim como diz o artigo 142 (basta ver a LC 97/99 e o Decreto 3.897). Simples assim. Ademais, há sempre possibilidade de rigoroso e amplo controle legislativo e jurisdicional. Basta ler, com boa vontade, os dispositivos. Portanto, não basta “chamar as FA” para intervirem, como querem fazer notar Ives Gandra, Mourão e alguns outros políticos e pessoas da área jurídica.

Portanto, muita calma na interpretação da Constituição. Quando o personagem Humpty Dumpty disse à Alice que ela poderia ter “364 desaniversários” em vez de um aniversário e, assim, receber 364 presentes em vez de apenas um, Alice respondeu: não pode ser assim. E deve ter brandido a Constituição do reino nas barbas de Humpty Dumpty. Na “Constituição” do reino de Alice estava escrito que cada habitante tem só um aniversário por ano.

Recuperando o sentido original do diálogo de Alice com Humpty Dumpty:

“— Quando eu uso uma palavra — disse Humpty Dumpty num tom escarninho — ela significa exatamente aquilo que eu quero que signifique ... nem mais nem menos.
— A questão — ponderou Alice — é saber se o senhor pode fazer as palavras dizerem coisas diferentes”.

Por aqui, no reino brasileiro, temos de repetir que x é x. Por quê? Porque parte da comunidade jurídica pensa que se pode dar às palavras o sentido que bem pretender.


1 STOLLEIS, Michael. The Law Under the Swastika: Studies on Legal History in Nazi Germany. Chicago: University of Chicago Press, 1998, p. 8.

2 Ver meu Dicionário de Hermenêutica, verbete Constrangimento Epistemológico.

 

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