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O CORRESPONDENTE

Os melhores textos dos jornalistas livres do Brasil. As melhores charges. Compartilhe

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O CORRESPONDENTE

25
Out22

Bolsonaro contra as crianças

Talis Andrade

Bolsonaro contra as crianças. Por Ilana Katz* | Combate Racismo Ambiental

CRIANÇA EMBAIXO DO VIADUTO: NINGUÉM VIVE BEM EM UM PAÍS QUE NEGLIGENCIA SUA POPULAÇÃO. FOTO: ISABELLA FINHOLDT/SUMAÚMA

 

A análise de fatos, vetos e políticas de governo mostra que o atual presidente determinou quem são as meninas e meninos “matáveis” do Brasil

 

por ILANA KATZ

As notícias sobre violências contra crianças costumam nos interromper. A gente para, pensa nos filhos, engole seco, lembra das crianças que vimos crescer e procura formas de lidar com a crueldade de um ato contra alguém com pouca ou nenhuma chance de se defender do ataque. Diante do horror que a humanidade pode produzir contra aqueles que deveria ser capaz de proteger, nos indignamos e fazemos a já clássica série de perguntas: como assim?, como pode?, com que coragem?. São interrogações que não têm fim e que não sossegam, porque a resposta que encontramos é contraintuitiva: sim, a humanidade é capaz de negligenciar, machucar, violar e matar crianças. A política da morte, no conceito de Achille Mbembe, a chamada necropolítica, não deixa as crianças de fora e escolhe entre aquelas a quem dá o direito à vida e à proteção social, e aquelas que considera “matáveis”. É preciso, porém, ir além da consternação. É preciso encarar por quais caminhos, hoje, o Brasil negligencia, desprotege e vulnerabiliza suas crianças. Análises dos quase 4 anos de Bolsonaro mostram que a lógica que guiou seu governo negligenciou a vida de determinadas crianças. É urgente agir para impedir que parte das infâncias brasileiras sigam na categoria de “matáveis” por mais 4 anos.

As crianças estão inscritas no artigo 227 da Constituição Brasileira como prioridade absoluta. Isso quer dizer que, de acordo com a Carta Magna, “é dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão”.

Em 2022, ao examinarmos as condições de vida das crianças brasileiras, fica evidente que, diante do que está proposto, o fracasso é imenso. E, assim, torna-se monstruoso.

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11 em cada 100 brasileiros de 11 a 19 anos estão fora da escola e quase 50% saíram trabalhar e ajudar a família; entre os que ficaram, 21% já pensaram em desistir

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Crianças entre 4 a 10 anos que estão na escola sem conseguir aprender apresentam risco real de terem a vida escolar interrompida

Atos praticados de forma direta contra as crianças são estarrecedores. Os assassinatos hediondos, a violência sexual, ou coerções abusivas e violadoras, muitas vezes praticadas por representantes das instituições da República, como naquela oportunidade em que uma juíza ousou perguntar para uma menina de 11 anos, estuprada e grávida, se ela não podia aguentar mais um pouquinho para a criança nascer e evitar um aborto, chocam e indignam. A pergunta que não deveria dar descanso, porém, é sobre o que está sendo feito em termos de políticas efetivas contra a violência sexual que, de acordo com o Instituto Liberta, vitimiza 4 meninas por hora no Brasil.

Quando nos damos conta de que 76,5% dos crimes sexuais acontecem na família da vítima, não escapamos de considerar o papel fundamental que as escolas assumem nesse processo. A educação sexual, que ali pode e deve ter lugar, não é o único, mas é, certamente, um meio poderoso de agir contra a exploração sexual de meninas e meninos. Nublar esse debate com o argumento vazio e contracientífico que ficou conhecido como “ideologia de gênero”, dizendo que falar sobre sexo com crianças é o que as vitimiza, não faz nada mais do que perpetuar a violência contra as crianças. Negando informação, nega-se acolhimento e a possibilidade de emancipação dos jovens, que, sem isso, seguirão submetidos aos que os violentam. Os dados são muito claros: apenas 10% dos casos de violência sexual contra crianças e adolescentes são notificados.

O que vemos é que está em curso um outro nível de violência contra crianças: a que se institui por negligência deliberada e que impede o acesso a direitos básicos, como aconteceu no caso das crianças Yanomami, em áreas invadidas por garimpeiros ilegais, que morreram por excesso de vermes, que morreram “do que um comprimido poderia evitar”. Havia vermes – e não havia medicamentos. Crianças indígenas foram então condenadas a vomitar vermes – e, das 9 crianças que morreram por doenças básicas entre julho e o início de setembro, 2 delas morreram nessa condição.

A denúncia, mostrada na primeira edição de SUMAÚMA, explica muito bem como atos deliberados de negligência, praticados pelo governo que escolheu proteger apenas algumas crianças e vulnerabilizar outras, afeta populações determinadas. Essas negligências, porém, atingem a todas as crianças brasileiras – e não só as que estão marcadas pela desigualdade decidida por marcadores sociais de raça, classe, gênero e deficiência. Atinge mesmo as que poderiam se pensar protegidas pelo privilégio que é acessar direitos no Brasil. Ninguém vive bem em um país que negligencia o cuidado de sua população.

Nos últimos anos, o Brasil assistiu às mais diversas formas de desmantelamento de políticas de proteção e cuidado que vinham sendo construídas por disputas de ideias, e avançando pela pactuação democrática. As notícias recentes são estarrecedoras e, embora não deem conta de descrever tudo o que perdemos, revelam os efeitos diretos do desinvestimento público sobre a vida das crianças.

No campo da saúde, um levantamento sobre a queda da imunização no Brasil, realizado pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), mostra o impacto da desproteção de alguns sobre a vida de todos. Neste ano, 3 em cada 5 crianças brasileiras menores de 5 anos estão desprotegidas contra a poliomielite, a doença que causa a paralisia infantil. Segundo Bernardo Yoneshigue, repórter da Folha de S.Paulo, “os dados preocupam especialistas, que avaliam uma possibilidade real da volta do vírus ao país, porque, para manter o vírus sob controle, 95% do público-alvo deve estar imunizado, e, no ano de 2021, apenas 69,9% da população foi protegida”. O Sistema de Informação do Programa Nacional de Imunizações mostra que a última vez que o Brasil alcançou a meta foi em 2015, ano anterior ao impeachment de Dilma Rousseff (PT). Vale lembrar também que, em 2019, o Brasil perdeu o certificado de erradicação do sarampo.

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Em 2019, o Brasil perdeu o certificado de erradicação do Sarampo

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Em 2022, 3 em cada 5 crianças brasileiras menores de 5 anos não estão protegidas contra poliomielite e há risco real de o vírus voltar

Na educação, o relatório da Unicef Educação Brasileira em 2022 — A Voz dos Adolescentes denuncia que 11 em cada 100 brasileiros com idades de 11 a 19 anos estão fora da escola em 2022. Quase metade deles deixaram a escola para trabalhar e ajudar a sustentar suas famílias. O Brasil que colocava cada vez mais gente na sala de aula não existe mais, tornou-se uma imagem do passado. Mais grave ainda é constatar que acessar a escola não quer dizer a mesma coisa que acessar o direito fundamental à educação. Este mesmo relatório mostra que, entre os que permanecem na escola, 21% pensaram em desistir nos últimos 3 meses, e, entre esses, o motivo principal de metade deles é a dificuldade de acompanhar as explicações ou atividades propostas. Para calcular o crescimento da evasão escolar, será ainda necessário somar as crianças de 4 a 10 anos que estão na escola sem conseguir aprender e que, portanto, apresentam risco real de terem a vida escolar interrompida.

Na segurança pública, a lógica segregacionista está explícita. Segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), em 2021, o assassinato de crianças e adolescentes que vivem na Amazônia Legal foi 34,3% superior à média nacional. E a média nacional é alarmante: 8,7 mortes violentas de crianças e adolescentes a cada 100 mil pessoas de 0 a 19 anos. A desigualdade racial é mais do que evidente: 66,3% das vítimas são negras e 31,3%, brancas. Entre os adolescentes, a proporção de vítimas negras salta para espantosos 83,6%.

A violência contra crianças produzida por negligência deliberada fica muito clara quando constatamos que a verba federal para a compra de merenda escolar não sofre reajuste desde 2017, enquanto nos últimos 5 anos a inflação acumulada (de setembro de 2017 a setembro de 2022) foi de 31,26%. Não é novidade que parte significativa da população de crianças brasileiras tem, na merenda escolar, a garantia de alimentação diária. Em agosto deste ano, porém, o reajuste para 2023 foi novamente vetado pelo governo Bolsonaro.

Como fica explícito na análise das escolhas do governo Bolsonaro, no campo das infâncias não é preciso fazer muita coisa para desproteger: a escolha pode ser, apenas, não fazer. É o que aprendi com Eliana Sousa Silva, diretora da Redes da Maré: como a negligência de Estado vulnerabiliza determinadas populações. Um governo que protege suas crianças não as deixa morrer de fome. Segundo dados dados da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede Penssan), porém, mais de 65 milhões de brasileiros passam fome. Outra pesquisa, esta feita pela Fundação Getúlio Vargas (FGV), mostra que, entre os anos de 2019 e 2021, o Brasil ultrapassou, pela primeira vez, a média mundial de pessoas sem condição de se alimentar. O jornal Nexo, ao esmiuçar as políticas públicas, mostrou que “o percentual de residências com crianças abaixo de 10 anos com insegurança alimentar grave praticamente dobrou de 2020 para 2022, passando de 9,4% para 18,1 %. Quando nessas casas há 3 ou mais pessoas com até 18 anos, o número sobe para 25,7%”.

Sequer mencionamos lazer, acesso à cultura, promoção de saúde mental e o cenário já é mortífero. Muita gente no campo social e, principalmente, no campo da política partidária, acredita — ou, pelo menos, tenta nos fazer acreditar que acredita — que se dedica à proteção das infâncias. Mas para levar as infâncias a sério e sustentar compromissos de cuidado com cada uma das crianças brasileiras é necessário muito mais do que discursos em tom caridoso de dedicação às criancinhas. É como diz aquele provérbio africano que repetimos à exaustão, no curso da crise sociossanitária resultante da pandemia de covid-19: “É preciso uma aldeia inteira para cuidar de uma criança”. A questão é que esse provérbio precisa ser lido, também, pelo seu avesso: é preciso cuidar da aldeia para cuidar de crianças.

A precisão dessa constatação pode ser vista no caso da mãe e do filho encontrados mortos, dentro de casa, em Uberlândia, em 13 de outubro de 2021. Segundo a imprensa, ela era cardíaca e provavelmente passou mal. O filho, tetraplégico, dependia dela e não pôde nem socorrê-la e nem sobreviver sem o cuidado da mãe. Morreram ambos, em dor e solidão, porque não havia uma aldeia, o que significa que não havia uma rede de proteção social para nenhum dos dois. É por fatos brutais como este que, se as violências contra crianças nos fazem parar, é imperativo que realmente paremos com a ladainha e passemos à ação. Não existe a possibilidade de cuidar de uma criança sem lhe oferecer um contexto que promova a vida — a sua, a dos seus, a dos outros.

O que temos como a mais dura e violenta realidade, porém, é que no país em que quase metade das famílias é chefiada por mulheres, a crise agravada pela pandemia produziu a feminização da fome. Os dados da já mencionada pesquisa da Fundação Getúlio Vargas apontam que, ao produzir 4,6 milhões de novos pobres, o contexto da pandemia produziu também um aumento de 14 pontos percentuais entre as mulheres que estão em situação de insegurança alimentar. “Como resultado, a diferença entre gêneros da insegurança alimentar em 2021 é 6 vezes maior no Brasil do que na média global.” Como o próprio relatório da pesquisa aponta, as mulheres estão mais próximas das crianças, e isso gera consequências para o futuro do país: a subnutrição infantil deixa marcas físicas e mentais permanentes.

A negligência comprovadamente deliberada do governo Bolsonaro na gestão da pandemia de covid-19 deixou, até agora, mais de 680 mil mortos no Brasil. Isso significa muitas filhas e filhos, milhares de netas e netos sem suas figuras de referência e proteção, lançadas precocemente na perda e no luto. Segundo a renomada revista de medicina Lancet, entre março de 2020 e abril de 2021, ao menos 130.363 crianças e adolescentes brasileiros, com até 17 anos, ficaram órfãos. Entre março de 2020 e setembro de 2021, os cartórios do Brasil registraram mais de 12 mil crianças de até 6 anos de idade na orfandade. Entre essas, 25,6% ainda não tinham completado 1 ano de idade quando perderam pai e/ou mãe. Esses números nos obrigam a questionar a ideia, que circula entre muitos, de que as crianças seriam a população menos afetada pela covid-19. As crianças órfãs são vítimas da covid porque são vítimas da chamada “pandemia oculta”, que, na verdade, está escancarada na nossa cara.

É ainda mais brutal. Em 7 de junho de 2021, o Brasil conquistou o título macabro de segundo país com mais mortes de crianças por covid-19 no mundo. Bolsonaro, porém, no dia 14 de outubro, em sua campanha à reeleição, disse que “a molecada” não morreu de covid, desmentindo os dados oficiais de seu próprio governo, que apontam 2.500 crianças e adolescentes de zero a 17 anos mortos pelo vírus. O extremista de direita diz que esses dados, dispostos pelo Ministério da Saúde de seu governo, foram fraudados. Como de hábito, não apresenta provas. Aqui na terra redonda, porém, cuidar das famílias enlutadas e proteger as crianças órfãs, necessariamente, demandam política pública e funcionamento efetivo da rede de proteção social. É por essa razão que Maria Thereza Marcílio, presidente da instituição Avante – Educação e Mobilização Social, sintetiza muito bem quando diz que “lugar de criança é no orçamento”.

A pauta racial é incontornável quando se discute a orfandade no Brasil. Pesquisas realizadas pela Rede de Pesquisa Solidária e pelo Instituto Pólis informam que pessoas negras morreram mais de covid-19 do que pessoas brancas. Portanto, a pandemia não foi democrática, como tentaram nos fazer acreditar no início. Ao contrário, a negligência deliberada do governo na gestão da crise reproduziu e ampliou as desigualdades sociais e raciais. Na base do mercado de trabalho, no qual se incluem os serviços domésticos, os números revelam o que já sabemos: “Não apenas as mulheres negras têm maiores chances de mortalidade pela covid-19 em comparação aos homens brancos em praticamente todas as ocupações de menor instrução, como também são maiores as chances em relação às mulheres brancas”.

A violência desses dados indica quais são as crianças que o Estado escolheu não proteger: na sua maioria, são as crianças filhas das mulheres negras. A hipótese de que muitas mulheres morreram como Cleonice Gonçalves, a empregada doméstica que foi uma das primeiras vítimas de covid no Brasil, faz sentido. Ela morreu porque não lhe foi concedida a possibilidade de isolamento social, morreu porque continuou servindo sua patroa, morreu porque não foi informada de que a patroa tinha covid-19. Quantas outras não cuidaram das crianças e da casa para os patrões se dedicarem ao home-office, que, já na expressão importada, revela a que classe social e a que raça serviu? Com as escolas fechadas, as filhas e filhos destas mulheres ficaram ou desamparadas ou protegidas por práticas de cuidado inventadas nos territórios considerados periféricos, que, diante da negligência do governo, buscam criar soluções para sobreviver.

Quem entrar no site da Câmera dos Deputados pode verificar que há um projeto de lei, de autoria do deputado Alexandre Padilha (PT), que desenha uma política de atenção integral às vítimas e familiares de vítimas da pandemia de covid-19, articulando toda a rede de proteção social (saúde, educação e assistência social). Mesmo aprovado pela Comissão de Educação da Câmara dos Deputados em junho de 2022, o projeto tramita lentamente: ainda precisa ser aprovado em mais duas comissões e só depois vai para o Senado. A pergunta indignada insiste: por que esse projeto de lei não está em ação, cuidando de crianças e adolescentes órfãos que o Brasil deveria ser capaz de proteger?

Talvez as razões sejam muito próximas dos motivos que levaram o atual governo a cortar 90% do orçamento da verba destinada ao combate à violência contra mulher, 80% do investimento destinado à construção de creches e pré-escolas (de 2018 até hoje) e 45% da verba destinada ao tratamento do câncer, a segunda doença que mais mata no país. Mata as crianças, mata suas mães, seus pais, suas pessoas de referência.

A criança é um medidor das políticas de cuidado do Estado para promover justiça social. Nesta operação, o Brasil no qual vivemos nos últimos anos está reprovado. Como pesquisadora no campo das infâncias, há quatro anos me apoio na luta de Bruna Silva para situar os efeitos da necropolítica, a política que escolhe as crianças dignas de proteção e as que serão deixadas para morrer. Bruna é a mãe de Marcos Vinícius, o menino que, em 2018, aos 14 anos, levou um tiro e morreu com a roupa da escola, numa operação policial na favela da Maré. A última fala do filho impede a mãe de dormir: “Mãe, eles não viram que eu estava com a roupa da escola?”. Nem as marcas mais óbvias e universais da infância, como o uniforme da escola, foi capaz de protegê-lo.

Segundo o instituto Fogo Cruzado, de 2016 a 2022, ações e operações policiais mataram 47 crianças na Grande Rio e outras 87 foram vitimadas pelas chamadas “balas perdidas”, que parecem sempre achar os mesmos corpos negros. Em 26 de setembro, há poucos dias do primeiro turno das eleições no Brasil, José Henrique da Silva, o Careca, foi uma das 7 pessoas mortas em outra operação policial realizada nas favelas da Maré. Careca, 53 anos, era testemunha da morte de Marcos Vinícius. Com seu assassinato, parte importante da história de Marcos Vinícius desapareceu. Esta morte interrompeu a vida de um brasileiro que deixou muita saudade e também revitimizou Marcos Vinícius e sua família, ao ferir seu direito à memória e à justiça. A articulação destas duas mortes vitimiza o Brasil, ao reproduzir injustiça para as crianças e para os adultos, fragilizando qualquer experiência de cidadania.

Quando recebi a notícia da morte de Careca, era noite de Rosh Hashaná, ano-novo judaico. Nessa oportunidade, nós, judeus, nos desejamos um ano bom e doce. Porém, para brasileiras e brasileiros que sonhamos e lutamos por justiça social, é impossível dormir sem fazer a pergunta: em quais famílias o ano começa bom e doce?

Marcos Vinícius, Careca e a fome que se tornou feminina expõem dimensões diversas do horror a que estamos todas e todos submetidos. Difícil mesmo, sob essa condição, é justificar o discurso que diz defender a família quando parte das crianças foram convertidas pelo atual governo em “matáveis”, desprotegendo assim todas as infâncias. Suas mães, já condenadas à tristeza e à injustiça, voltaram a sentir fome, muita fome.

O primeiro turno mostrou que 51 milhões de brasileiras e brasileiros, ao escolher Bolsonaro nas urnas, elegeram também, conscientes ou não, tudo isso que aqui está descrito. Outros 5,4 milhões, ao votar nulo ou branco, se omitiram diante da vida de crianças. O mesmo se poderia dizer das quase 33 milhões de pessoas que não compareceram às urnas. Neste caso, porém, precisamos lembrar de Ana Mirtes, que não pode votar porque precisou escolher entre pagar o ônibus que a levaria à sua zona eleitoral em São Paulo ou dar comida ao filho de 10 anos. Ana Mirtes escolheu a vida imediata do filho e, assim, teve roubado seu direito de escolher quem ela acredita que cuidará melhor das infâncias nos próximos anos. Ana Mirtes votaria em Lula, mas preferiu adiar a fome do filho para o dia seguinte, retrato eloquente do que aconteceu com a população dos considerados “matáveis” nos últimos anos. O resultado das urnas, em 30 de outubro, no segundo turno das eleições, definirá o destino das crianças brasileiras. Definirá também quem somos nós, os adultos que escolhemos que tipo de governo vai cuidar delas.

*Ilana Katz. Psicanalista, doutora em educação pela Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo, pós-doutora em psicologia clínica pelo Instituto de Psicologia da USP; assessora do projeto Primeira Infância na Maré: Acesso a Direitos e Práticas de Cuidado” (Redes da Maré), no Rio de Janeiro; conselheira do Projeto Aldeias, no Médio Xingu, na Amazônia brasileira; integrante do conselho consultivo do Instituto Cáue — Redes de Inclusão; supervisora do Núcleo de Estudos e Trabalhos Terapêuticos (NETT) e integrante da Rede de Pesquisa Saúde Mental Criança e Adolescente

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Entre 2019 e 2021, o país ultrapassou pela primeira vez a média mundial de pessoas sem condição de se alimentar

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O percentual de residências com crianças abaixo de 10 anos em insegurança alimentar grave foi de 9,4% (2020) para 18,1 % (2022)

31
Dez21

Necropolítica: Bolsonaro veta passaporte de vacina em escolas e universidades

Talis Andrade

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O governo espera à Herodes, um massacre de inocentes para iniciar a vacinação de crianças. 

Leia nota da OAB sobre vacinação obrigatória de crianças.

A consulta pública sobre vacina da Covid 19, mais uma palhaçada mortal do ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, para agradar o negacionismo, o obscurantismo de Bolsonaro, o governo das Quatro Bestas do Apocalipse, a fome que mata, a morte pelas doenças do Terceiro Mundo - tuberculose, hanseníase, verminoses como a ancilostomíase e esquistossomose, malária, doença de Chagas, leishmaniose e tracoma são algumas das doenças da pobreza e estão associadas às más condições de higiene e saneamento-, o genocídio da pandemia da covid-19, a ameaça da epidemia da gripe H3N2, as chacinas nas favelas, zonas de guerra das milícias, do tráfico, da polícia que mata - a prática nazista de um militar morto vale a vida de dez civis. 

Outra puxa -saco é o ministro da Educação Milton Ribeiro, que decidiu proibir as Instituições Federais de Ensino de exigir a vacinação contra covid-19 como condicionante ao retorno das atividades educacionais presenciais.

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Nota pública sobre vacinação obrigatória de crianças (OAB/SP)

 

Diante das notícias largamente veiculadas na imprensa sobre a queda no índice de imunizações de crianças, do surto de doenças e da detecção do aparecimento de enfermidades que estavam erradicadas no Brasil como sarampo, poliomielite, dentre outras e ainda, considerando o teor das dúvidas apresentadas por pais, guardiães e educadores à Comissão Especial de Direitos Infantojuvenis da Seção Bandeirante da Ordem dos Advogados do Brasil vem a público prestar os seguintes esclarecimentos:

    • É dever de todos os pais (e/ou eventualmente guardiães) submeter os filhos menores ao calendário de imunização visando preservar a sua integridade física, a qual é indisponível, ou seja, não se trata de uma faculdade, mas sim de uma obrigação legal;
    • A Constituição Federal de 1.988 em seu Artigo 227 assevera de forma clara a fundamental importância do papel da família juntamente com a Sociedade e o Estado na preservação dos direitos dos infantes, sendo que em 1989, com a promulgação da Lei nº 8.069 (ECA) foi o legislador categórico ao acrescentar dentre os deveres inerentes ao poder familiar a obrigatoriedade de vacinação de crianças nos casos determinados pelas autoridades sanitárias, conforme o calendário de vacinação definido pelo Ministério da Saúde (art. 14, §1º);
    • A institucionalização de políticas públicas voltadas a imunização contra enfermidades ocorreu com o advento da Lei nº 6259/75 e tem por escopo, dentre outras nuances, disponibilizar gratuitamente à população brasileira acesso a vacinação preventiva de enfermidades, em sua grande maioria recomendadas pela Organização Mundial da Saúde;
    • A não submissão a determinação legal além de deixar a criança vulnerável a enfermidade, torna-a vetor de risco para proliferação de moléstias junto a sociedade;
      • Em caso de inobservância da norma existe a possibilidade de aplicação de multa aos pais (de 03 a 20 salários mínimos) que pode ser dobrada em caso de reincidência (Art. 249 ECA), não obstante podemos ter a decretação de reflexos restritivos no exercício do poder familiar, decretação de medidas de proteção e até mesmo a configuração de crimes previstos no código penal como abandono, tentativa de homicídio, homicídio, além de delitos contra a saúde pública;
      • O Poder Público tem o dever de manter campanhas de vacinação e manter todas as vacinas obrigatórias em postos de saúde. Na falta de atendimento na sua cidade, avise imediatamente ao Conselho Tutelar, ao Ministério Público ou a Subsecção mais próxima da Ordem dos Advogados do Brasil;
      • É dever de todos informar as autoridades públicas sobre a ocorrência de tais casos, em especial, o Conselho Tutelar de sua localidade para adoção das medidas cabíveis; e
      • Caso os pais desejem submeter o filho a um processo de imunização distinto da forma tradicional, tal pedido deverá ser submetido ao Poder Judiciário e, somente após a obtenção de uma manifestação favorável do Juízo competente, devidamente embasada em perícia e argumentos científicos, poderemos ter uma exceção à regra que assegure a manutenção de uma vida saudável ao infante.
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      Ricardo de Moraes Cabezón
      Presidente da Comissão Especial de Direitos Infantojuvenis

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18
Jul20

Tráfico de ouro no território Yanomami

Talis Andrade

 

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II - Beatriz Jucá entrevista Dário Kopenawa

Pergunta. Nos últimos meses, você tem ficado muito em evidência ao fazer denúncias e tentar fazer valer os direitos do povo Yanomami. O que te fez abraçar essa luta e intensificá-la neste momento?

Resposta. Em 1970, chegaram invasores na terra Yanomami, que mataram muita gente. Aquele projeto perimetral Norte da ditadura militar trouxe a primeira epidemia, que se chama sarampo. Matou meus bisavôs, minhas bisavós. Depois, na década de 1980, 40.000 garimpeiros invadiram novamente e mataram 22% dos yanomami pelo garimpo ilegal, pela epidemia, por assassinato. Muitos parentes meus morreram. Foi a época em que nasci e cresci. Então eu estudei pra falar uma língua que não é minha e pra poder me defender e defender meu povo. Meu pai lutou sozinho muito tempo, andou o mundo inteiro reclamando que o Governo brasileiro não atendia nossos direitos. Lutou tanto que conseguiu demarcar a terra, tirar garimpeiros. Eu tenho muito orgulho. Estou substituindo porque meu pai já lutou muito e está cansado. Eu tô lutando porque meu povo morre há muitos anos por causa de problema de garimpo ilegal e epidemia.

 

P. Como a covid-19 tem impactado o povo yanomami? O que as aldeias estão fazendo para se proteger?

R. Neste momento, os yanomami estão em isolamento social nas aldeias. Alguns foram pro mato se esconder. Mas isso é natural pra nós. Nossa cultura funciona assim. Quando outras doenças chegam, nossos parentes fogem pro mato. Estão esperando passar esse coronavírus no ar. Não podem visitar parentes nem sair do seu território. Não podem se aproximar muito dos profissionais de saúde que trabalham na nossa comunidade. Isso a gente está monitorando pela Associação Yanomami [Dário é vice-presidente da instituição desde 2004]. Continua o avanço nessa doença nas aldeias. Cinco parentes morreram por conta desse coronavírus, outros foram vitimados e há casos suspeitos. Temos levado isso para as denúncias, porque a covid-19 está nas nossas aldeias. A gente está monitorando também os avanços do garimpo ilegal, que está levando o coronavírus para as nossas comunidades. A gente está muito preocupado e muito triste. Onde tem garimpo tem sintomas de coronavírus.

 

P. O sistema de saúde indígena está preparado para atender os Yanomami durante a pandemia?

R. sistema de saúde público está precário. Eu nunca vi aqui saúde de qualidade, sem morrer as pessoas. Pro território Yanomami temos o mesmo modelo de saúde das outras terras indígenas. No Brasil, temos 34 distritos sanitários para cuidar dos indígenas. Nós lutamos para melhorar. Sonhamos com isso, mas até agora a gente não conseguiu melhorar o sistema específico Yanomami. Isso não aconteceu. Nossos postos de saúde não têm estrutura boa nem equipamentos suficientes. É pouco o que chega lá. E nas comunidades mais isoladas no mato, longe dos pelotões onde o Exército fica, as estruturas são muito ruins. Isso é uma preocupação muito grande. Os Yanomami sempre reclamam disso, do problema da assistência na nossa comunidade que está piorando. Sempre tivemos o problema da malária, da gripe, da diarreia. Agora, pior com essa doença que se chama coronavírus que chegou. Com essas estruturas ruins, como vai ser o combate a isso daí? Estamos muito preocupados. Os profissionais estão lá, mas não têm estrutura suficiente pra eles trabalharem. Os medicamentos não chegam o suficiente. Não tem isso. Os profissionais estão sempre pedindo remédios extra porque tem muita malária e muita gripe. Com o coronavírus, a gente está com medo disso piorar. Na terra Yanomami não tem hospitais. Quando o Yanomami está passando mal, se tiver um acidente grave ou uma doença como uma pneumonia grave ou picada de cobra, precisa ir pra Boa Vista. Aí tem que ser removido de avião.

 

P. Com esse sistema de saúde frágil e o receio de que o garimpo aumente a contaminação do coronavírus entre seu povo, você conseguiu uma reunião com o vice-presidente Mourão. O que você levou pra ele?

R. A gente conseguiu uma audiência. Estamos falando repetidamente, denunciando o garimpo ilegal há muito tempo. Várias lideranças yanomami se reuniram e decidiram que não querem mais a presença dos garimpeiros ilegais na terra. Isso a gente decidiu. E depois a gente organizou a campanha “Fora Garimpo, Fora Covid!” pra mostrar ao Governo e ao mundo inteiro, para eles reconhecerem os problemas que enfrentamos há anos no nosso território. Isso teve uma repercussão muito grande. Significa que não tem resultado de ação do Governo brasileiro para nos proteger. O Governo Federal tem um papel muito importante para proteger os povos indígenas. Levamos a denúncia a vários órgãos públicos, mas acabou. Com quem mais podemos falar agora? Quem vai nos ouvir?

Conseguimos, através da nossa parlamentar indígena Joenia Wapichana, a audiência com o vice-presidente. O general Mourão recebeu essa denúncia. Eu fui como porta-voz do povo yanomami, e ele recebeu me com o respeito de uma autoridade. Abriu a porta pra ouvir a voz do povo yanomami. Primeiro ponto que eu falei foi sobre o garimpo ilegal, que está aumentando no nosso território durante a pandemia. Precisamos retirar o mais rápido possível os garimpeiros. Estamos denunciando há muito tempo. As lideranças sempre estão correndo risco, ameaçadas de morte. Nossos rios estão todos contaminados. Não temos como tomar água limpa. Fui contar o que está acontecendo. Falei também dos nossos parentes que foram assassinados por garimpeiros ilegais, num local onde eles moram. Não queremos mais isso se repetindo. Em 1993, tivemos o Massacre de Haximu [em que 16 indígenas yanomami foram mortos por garimpeiros]. Não queremos mais repetir, mas voltou a acontecer [no início de junho, dois indígenas foram assassinados em um ataque por garimpeiros]. E o terceiro ponto foi sobre o coronavírus, que chegou nas nossas aldeias, matou cinco yanomami. Essa doença foi trazida pelos garimpeiros. Não queremos essa doença que mata as pessoas. O Governo tem que reconhecer o que está acontecendo.

 

P. O Governo se comprometeu em fazer algo para solucionar esse problema?

R. O vice-presidente Mourão diz que reconhece que tem problemas e prometeu que vai fazer algo para retirar os garimpeiros. Garantiu que vai fortalecer e melhorar a estrutura de proteção e vigilância que é feita pela Funai. Ele prometeu que ia resolver esse problema. Mas ele falou: “Olha, eu sou cidadão brasileiro, tenho essa responsabilidade. Se eu não resolver, vocês têm o direito de me cobrar”. Ele não falou como acontecerá, mas prometeu que faria algo. Eu entreguei pra ele nossos mapas com a indicação dos garimpos.

 

P. Quantos garimpeiros ilegais vocês estimam que existam hoje no território?

R. A gente monitora essa matemática pelas balsas. Denunciamos mais de 20.000 garimpeiros, contando que uma balsa tem cerca de 10 pessoas trabalhando. Eles chegam de balsa e de avião. E temos visto um aumento do avanço deles pelo nosso território, o tempo todo entrando e saindo com aviões, helicópteros, tudo. O vice-presidente respondeu que não tem mais de 20.000 garimpeiros. Falou que, pelo que conhece, tem 3.500 garimpeiros ilegais.

 

P. Nos últimos dias, a Polícia Federal prendeu um suspeito de operar vôos para o garimpo ilegal no território yanomami, e ele já havia sido condenado por genocídio. O que você acha que esse episódio, com uma pessoa que supostamente pratica o mesmo crime há tantos anos, mostra sobre o problema histórico do garimpo ilegal para os yanomami?

R. Para nós, parece que no Brasil não existe a lei brasileira. A terra é da União, e é proibido entrar qualquer pessoa no território que está homologado [como Terra Indígena]. Então isso é uma dúvida. Nós temos legislação, Justiça, tudo. E as pessoas entram ilegalmente para extrair ouro. Então esta é a pergunta que eu faço para a sociedade brasileira e pros órgãos públicos. O nosso território está sendo estragado, sofrendo danos ambientais. A lei brasileira fala que não pode degradar nem destruir o território demarcado e reservado. Que quem está no garimpo ilegal deveria ser preso. Onde está essa Justiça? O cara depois sai livremente andando e bancando logística pro garimpo ilegal. Pra nós, yanomami, a Justiça não está sendo cumprida. Se não retirar os garimpeiros e impedir que eles voltem, o crime continua acontecendo. A gente está falando com as autoridades, entregando papéis, demonstrando o que está acontecendo, e as pessoas continuam ali atrás do ouro. Os nossos parentes estão morrendo por isso. Então, onde está o nosso direito yanomami? A nossa parte, nós fazemos. Agora as autoridades e a Justiça têm que agir ou o garimpo ilegal não vai acabar.

 

P. No meio de uma pandemia grave como esta e com esse problema histórico do garimpo ilegal no território yanomami, quais as ações que seriam necessárias pelo Governo? O que é mais urgente neste momento?

R. Atender à nossa campanha “Fora covid e fora garimpo”. Primeiro, retirar todos os garimpeiros ilegais da Terra Indígena Yanomami. Tem que fazer isso pra eliminar o que está espalhando coronavírus nas nossas aldeias pra diminuir a epidemia. O povo Yanomami precisa urgentemente disso. (...) Vocês, brancos, precisam reconhecer o direito do povo da floresta. É isso que vocês têm que aprender e entender. Eu não tô negociando o território nem o ouro da terra, eu tô lutando por direito. Tô lutando pela paz ao povo da floresta. Chega de genocídio. Agora estamos lutando contra o genocídio do coronavírus, mas houve outros. Eu não tenho medo de lutar porque meus antepassados já morreram pela mesma coisa que eu tô enfrentando agora. Que o mundo inteiro saiba pelo que eu estou lutando. Que fique claro pros brancos: eu tô lutando porque venho dos meus antepassados. Eu respeito o povo da floresta e respeito o povo da cidade, mas a gente precisa ter os nossos direitos garantidos.

17
Jul20

“Meus antepassados morreram pelo mesmo que eu tô enfrentando: o garimpo ilegal e a epidemia”

Talis Andrade

Dário Kopenawa, liderança do povo Yanomami.

O líder indígena Dário Kopenawa pede ação urgente do Governo e da Justiça para retirar garimpeiros ilegais do território Yanomami, em Roraima, enquanto a covid-19 avança pelas aldeias

O líder indígena Dário Kopenawa, de 36 anos, cresceu vendo homens brancos avançarem pelo território Yanomami, no norte do Brasil, para arrancar ouro e construir estrada. Cavavam para retirar pedras preciosas das profundezas da terra e acabaram libertando as xawara ― doenças enterradas ali pelo criador Omama, segundo a cultura desse povo. Há décadas, os Yanomami ―um dos povos indígenas mais isolados do país― lutam para sobreviver às epidemias levadas por não indígenas a seu território. Foi assim quando o sarampo chegou, durante a construção da rodovia Perimetral Norte (BR-210) pela ditadura militar, e deixou um lastro de morte, com dezenas de comunidades dizimadas. E tem sido assim com a recente epidemia do novo coronavírus, que veio justo num momento em que o garimpo ilegal na região voltou a crescer. Segundo dados do Governo, pelo menos 167 indígenas Yanomami já foram confirmados com a doença. “Os Yanomami estão sendo infectados pelos garimpeiros. As pessoas estão adoecendo. A gente está muito preocupado e muito triste. Onde tem garimpo tem sintomas de covid-19″, conta ele.

Dário também cresceu vendo o pai, Davi Kopenawa, andar por vários países para reclamar os direitos do seu povo: de proteger a floresta e de sobreviver. E aos poucos vem assumindo simbolicamente um espaço antes ocupado pelo pai. Agora mesmo, Dário está em luta. Distante da aldeia, monitora o xawara do coronavírus que se espalha ali de fora, enquanto tenta proteger seu povo do histórico problema do garimpo ilegal, que segundo ele vem crescendo durante a pandemia e propagando a doença nas aldeias. No início do mês, criou a campanha “Fora Garimpo, Fora Covid!” nas redes sociais. Sua voz tem ecoado tanto no Brasil quanto no exterior. Está tão ocupado com reuniões que demorou dias para que o EL PAÍS conseguisse agendar esta entrevista. No início do mês, a Justiça acatou um pedido do Ministério Público e determinou que o Governo retire os garimpeiros da área em até 15 dias.

A repercussão das denúncias de Dário elevou a pressão para que o vice-presidente Hamilton Mourão o recebesse em Brasília no início do mês. Durante 20 minutos, ele tentou resumir o problema histórico de seu povo e saiu com uma promessa de que algo seria feito para expulsar os garimpeiros. “Eu tô lutando pelo direito de viver em paz, sem perturbação. Pelo direito de morar, tomar água limpa, pela vida do povo Yanomami”, explica ele em entrevista ao EL PAÍS ocorrida após o encontro com o vice-presidente. (Continua)
31
Mar20

Advertência de Jeca Tatu ao presidente da República

Talis Andrade

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A essa altura da carreata da ignorância, só resta ao Jeca Tatu emancipado ― representante da gente na sala de televisão da quarentena - chamar na chincha o bocó lá de Brasília. Direto da Refazenda gilbertiana, cabe ao nosso Jeca Total mostrar que até o amarelão (ancilostomose) ainda faz estrago no Vale do Ribeira e em outras freguesias desprotegidas. Só o Jeca Tatu, o guru do Almanaque Biotônico Fontoura, para contar ao espertalhão do Planalto que o brasileiro, ao contrário do que ele folcloriza, não resiste meia hora ao esgoto e à falta de saneamento. 

A febre do rato (leptospirose) segue castigando nos mocambos e palafitas, adverte o Jeca, sorumbático e macambúzio, saindo de pés-descalços do “Urupês” (livro de 1918) de Monteiro Lobato. Quem tem que ser estudado, o capiau segue na prosa, é Vossa Excelência, com todo respeito deste caipira. O brasileiro pega de tudo, não me venha com seus arroubos de vilão Vaca-Brava, pois até a lepra (hanseníase), daquela mais primitiva, campeia solta no mato e nos arrabaldes.

A criatura corre do mosquito e não escapa do caramujo, foge da dengue e vem a zika, na mesma terra onde ainda persistem sarampo, caxumba e rubéola. O sujeito acha que é apenas mais uma ressaca existencialista e lá vem o diagnóstico: chikungunya na caveira. Na roça, para a tristeza do Jeca, resistem a doença de Chagas, a peste bubônica, a curuba... Agora dá licença que vou tomar meu elixir de salsa, caroba e cabacinha, ave!, tesconjuro. (Continua)

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