Por lutarem por um Brasil democrático, milhares foram encarceradas pela ditadura militar. Em livro da Fundação Rosa Luxemburgo, ex-ALN rememora vida na ala feminina do Presídio Tiradentes
A partir do fatídico 1º de abril de 1964, o arbítrio se tornou regra no Brasil. A ditadura imposta pelos generais não se furtou de torturar, matar e desaparecer com corpos para garantir os privilégios do andar de cima da sociedade. A corajosa decisão de resistir ao regime militar levou milhares às cadeias oficiais e clandestinas da repressão. A professora de Serviço Social da UnifespAna Maria Ramos Estevão, ex-militante da Ação Libertadora Nacional (ALN), rememorou sua experiência no cárcere em livro recentemente lançado.
Torre das guerreiras e outras memórias foi publicado no ano passado, com apoio de nossos parceiros daFundação Rosa Luxemburgo. Seu título remete a uma renomeação da ala feminina do Presídio Tiradentes feita por Estevão na obra: conhecida como “torre das donzelas” pelos carcereiros, a ala abrigou dezenas de presas políticas até sua desativação em 1973. Ali se encontraram mulheres de diversas origens e convicções, que praticaram a solidariedade coletiva apoiando-se naquela situação de poucas perspectivas.
Não foram poucas as mulheres que se envolveram com a luta revolucionária no Brasil dos anos 60 e 70, a exemplo daRússia de 1917e muitos outros movimentos históricos. E no rol de encarceradas do Tiradentes há várias figuras que fizeram seu nome na democracia brasileira. Entre elas, a presidenta Dilma Rousseff, cujo prefácio para a obra foipublicado com exclusividade emOutras Palavras. Na época, a jovem Dilma, estudante de economia, participava da Vanguarda Armada Revolucionária – Palmares (VAR-PALMARES), organização guerrilheira que combatia a ditadura.
Ramos Estevão esteve no Presídio Tiradentes durante longos nove meses. Antes disso, havia sido torturada pela Operação Bandeirantes – ação das forças de segurança organizada com recursos do empresariado paulista para combater a esquerda – e, depois de libertada, ainda seria presa mais duas vezes e levada ao exílio.
Seu relato deixa explícito o contraste entre captores e capturadas. Os primeiros têm como principal característica o sadismo. Torturavam nem sempre para captar informações, mas também por divertimento. Em especial os civis, chamados pela autora de “fascistas voluntários”, que colaboravam com a repressão não por disciplina do quartel, mas por convicção política (ou crueldade). As últimas, a despeito das dificuldades, das condições sub-humanas de sobrevivência, da pressão psicológica causada pelo medo de dizer algo sob tortura, buscavam de alguma maneira trazer acalento umas às outras. Estevão relembra um episódio em que tentou aliviar o sofrimento de uma companheira de cela massageando apenas seus pés, já que todo o resto do corpo estava em carne viva devido às agressões.
Como livro de memórias,Torre das guerreirasé mais amplo que um diário de prisão. Engloba um período mais longo da vida da autora (em síntese, a ditadura), e ela registra ali seus pensamentos da época mas também as reflexões que faz hoje em dia sobre aquele tempo, que reencontra hoje ao rever companheiros e lugares para escrever o livro. Também liga sua biografia militante iniciada naALN de Marighellacom sua vida pregressa de imigrante nordestina em São Paulo, participante fiel das atividades sociais de sua Igreja Metodista e jovem estudiosa na Faculdade Paulista de Serviço Social.
Íntimo e sensível, o livro da professora da Unifesp nos permite acessar uma perspectiva pessoal sobre o que aconteceu na ditadura, algo que muitas vezes a narrativa historiográfica não consegue transmitir com a força necessária. Ao mesmo tempo, a obra mantém aceso nas consciências o alerta sobre as desumanidades praticadas naquele período obscuro da história do país, que precisamos evitar a todo custo que retorne, como querem alguns militares.
Amanhã será o primeiro 1º de abril após a saída da presidência do principal representante das viúvas da ditadura na política nacional. Ocorrerão manifestações em todo o país pela punição dos golpistas de ontem e hoje – os pontos de encontro estão nas imagens abaixo –, e será uma importante oportunidade de mostrar a força do grito “ditadura nunca mais!”.
Ana Maria Ramos Estevão - Sobrevivente dos porões da ditadura militar, ex militante da ALN (ação libertadora nacional), professora aposentada da Unesp e atualmente professora da Unifesp. Maria Cláudia Badan Ribeiro - Mestre em Sociologia pela Unicamp, doutora em História Social pela USP, Pós-Doutora pelo Instituto de Altos Estudos da América Latina (IHEAL/Sorbonne) e pela Unicamp (IFCH). Na USP realizou sua pesquisa de doutorado sobre as Mulheres da ALN (Ação Libertadora Nacional), e foi Pesquisadora Colaboradora da UNICAMP junto ao Departamento de Sociologia.
Entre os destaques do dia e entrevistas, Luis Nassif recebeu o também jornalista Ricardo Antunes para falar sobre o Caso Serrambi, que completa 20 anos sem solução.
Em 2003, duas adolescentes de 16 anos, Maria Eduarda Dourado e Tarsila Gusmão, foram assassinadas depois de participarem de uma festa em uma casa na Praia de Serrambi, em Ipojuca, no litoral sul de Pernambuco.
O empresário Thiago Vieira Brennand, preso por denúncias de agressão, assédio sexual, estupros, lesão corporal, cárcere privado, ameaça a crianças e violência contra o próprio filho, é suspeito de, no mínimo, participar da festa e saber detalhes sobre o crime.
“Se a gente for parar para refazer os crimes e as confusões que Thiago Brennand se meteu aqui no Recife, você diz que é impossível que ele não esteja, pelo menos, sabendo de alguma coisa dessa história”, cravou Antunes.
Assista a entrevista com Ricardo Antunes na íntegra:
O jornalista Luis Nassif comenta com exclusividade o Caso Serrambi e os 20 anos de impunidade ao lado de Ricardo Antunes, jornalista e autor do blog responsável por uma investigação minuciosa sobre os fatos chocantes. Ricardo trará algumas novidades sobre o tema e falará da possibilidade de reabertura do caso, após a prisão de Thiago Brennand. Teria Brennand ligações com o crime esquecido pela grande mídia? Também no programa de hoje, o jornalista e escritor Cesar Calejon fala sobre o seu novo livro “Esfarrapados”, uma análise das desigualdades sociais no Brasil sob o conceito do “elitismo histórico-cultural”.
Quem é Thiago Brennand?
Filho do cofundador de uma rede médica no Recife, Thiago tem 42 anos e recebeu uma fortuna de R$ 300 milhões de herança antecipada do pai, que chegou até a registrar em cartório que “se algo acontecesse com ele, a culpa seria do Thiago”.
O herdeiro ganhou notoriedade depois de agredir uma modelo em uma academia em São Paulo, onde vive há anos. Após a repercussão do caso, outras vítimas tomaram coragem para denunciar Brennand, que soma pelo menos oito processos criminais, cinco deles com pedido de prisão preventiva.
Para evitar a prisão, o agressor fugiu para os Emirados Árabes, de onde foi extraditado na última semana. A notoriedade do caso reacendeu a suspeita de participação de Brennand no assassinato das adolescentes.
Misoginia
Agressões, chantagens, ameaças públicas, violência física e outra série de crimes cometidos por Thiago Brennand deixam claro o desprezo que sente pelas mulheres.
Antunes conta que as vítimas de Serrambi apresentavam marcas de tiros no hímen, além de uma delas ter sido efetivamente estuprada, característica e agressividade que não batem como perfil dos kombeiros Marcelo José de Lira e Valfrido Lira da Silva, que responderam pelo crime, mas foram inocentados pelo júri popular.
Já o álibi criado por Brennand é dizer que estava em um intercâmbio na época do crime. “Mas não há nenhuma prova, foto, documento de que ele estava fora, ainda que a família tivesse uma casa em Londres”, continua o jornalista.
Antunes afirma ainda que 90% de Pernambuco acredita no envolvimento de Brennand no Caso Serrambi e 80% creem que os kombeiros foram vítimas de uma armação.
Caso que envolve o nome do empresário Thiago Antonio Brennand Fernandes Vieira, de 42 anos, que agrediu uma mulher dentro de uma academia, em São Paulo (SP), ganha novos capítulos. As denúncias contra ele continuam. Jornalista especialista do caso, Ricardo Antunes desnuda o lado obscuro de Brennand, com áudios e revelações bombásticas.
Por lutarem por um Brasil democrático, milhares foram encarceradas pela ditadura militar. Em livro da Fundação Rosa Luxemburgo, ex-ALN rememora vida na ala feminina do Presídio Tiradentes. Sortearemos 1 exemplar
A partir do fatídico 1º de abril de 1964, o arbítrio se tornou regra no Brasil. A ditadura imposta pelos generais não se furtou de torturar, matar e desaparecer com corpos para garantir os privilégios do andar de cima da sociedade. A corajosa decisão de resistir ao regime militar levou milhares às cadeias oficiais e clandestinas da repressão. A professora de Serviço Social da UnifespAna Maria Ramos Estevão, ex-militante da Ação Libertadora Nacional (ALN), rememorou sua experiência no cárcere em livro recentemente lançado.
Torre das guerreiras e outras memórias foi publicado no ano passado, com apoio de nossos parceiros daFundação Rosa Luxemburgo. Seu título remete a uma renomeação da ala feminina do Presídio Tiradentes feita por Estevão na obra: conhecida como “torre das donzelas” pelos carcereiros, a ala abrigou dezenas de presas políticas até sua desativação em 1973. Ali se encontraram mulheres de diversas origens e convicções, que praticaram a solidariedade coletiva apoiando-se naquela situação de poucas perspectivas.
Não foram poucas as mulheres que se envolveram com a luta revolucionária no Brasil dos anos 60 e 70, a exemplo daRússia de 1917e muitos outros movimentos históricos. E no rol de encarceradas do Tiradentes há várias figuras que fizeram seu nome na democracia brasileira. Entre elas, a presidenta Dilma Rousseff, cujo prefácio para a obra foipublicado com exclusividade emOutras Palavras. Na época, a jovem Dilma, estudante de economia, participava da Vanguarda Armada Revolucionária – Palmares (VAR-PALMARES), organização guerrilheira que combatia a ditadura.
Ramos Estevão esteve no Presídio Tiradentes durante longos nove meses. Antes disso, havia sido torturada pela Operação Bandeirantes – ação das forças de segurança organizada com recursos do empresariado paulista para combater a esquerda – e, depois de libertada, ainda seria presa mais duas vezes e levada ao exílio.
Seu relato deixa explícito o contraste entre captores e capturadas. Os primeiros têm como principal característica o sadismo. Torturavam nem sempre para captar informações, mas também por divertimento. Em especial os civis, chamados pela autora de “fascistas voluntários”, que colaboravam com a repressão não por disciplina do quartel, mas por convicção política (ou crueldade). As últimas, a despeito das dificuldades, das condições sub-humanas de sobrevivência, da pressão psicológica causada pelo medo de dizer algo sob tortura, buscavam de alguma maneira trazer acalento umas às outras. Estevão relembra um episódio em que tentou aliviar o sofrimento de uma companheira de cela massageando apenas seus pés, já que todo o resto do corpo estava em carne viva devido às agressões.
Outras PalavraseFundação Rosa Luxemburgosortearãoum exemplardeTorre das guerreiras e outras memórias, de Ana Maria Ramos Estevão, entre os apoiadores do nosso jornalismo. O formulário de participação será enviado pore-maile as inscrições serão aceitas até a próxima quinta-feira, 6/4, às 14h.
Como livro de memórias,Torre das guerreirasé mais amplo que um diário de prisão. Engloba um período mais longo da vida da autora (em síntese, a ditadura), e ela registra ali seus pensamentos da época mas também as reflexões que faz hoje em dia sobre aquele tempo, que reencontra hoje ao rever companheiros e lugares para escrever o livro. Também liga sua biografia militante iniciada naALN de Marighellacom sua vida pregressa de imigrante nordestina em São Paulo, participante fiel das atividades sociais de sua Igreja Metodista e jovem estudiosa na Faculdade Paulista de Serviço Social.
Íntimo e sensível, o livro da professora da Unifesp nos permite acessar uma perspectiva pessoal sobre o que aconteceu na ditadura, algo que muitas vezes a narrativa historiográfica não consegue transmitir com a força necessária. Ao mesmo tempo, a obra mantém aceso nas consciências o alerta sobre as desumanidades praticadas naquele período obscuro da história do país, que precisamos evitar a todo custo que retorne, como querem alguns militares.
Amanhã será o primeiro 1º de abril após a saída da presidência do principal representante das viúvas da ditadura na política nacional. Ocorrerão manifestações em todo o país pela punição dos golpistas de ontem e hoje – os pontos de encontro estão nas imagens abaixo –, e será uma importante oportunidade de mostrar a força do grito “ditadura nunca mais!”.
Nos somando às ações que todos os anos rememoram (e repudiam) o golpe militar de 1964 e seus crimes, ofereceremos entre nossos leitores1 exemplardeTorre das guerreiras e outras memórias, deAna Maria Ramos Estevão, em parceria com aFundação Rosa Luxemburgo.
O formulário de participação será enviado pore-mailpara os leitores que colaboram comOutras Palavras, e ficará aberto até apróxima quinta-feira, 6/4, às 14h. Se você ainda não faz parte do Outros Quinhentos, nossa rede de financiamento coletivo, acesseapoia.se/outraspalavras/e escolha um plano de contribuição!
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O Estado precisa combater brutais costumes brasileiros de matar, de torturar, de homenagear homicidas como acontece com a horrenda eleiçao de deputados serial killers
Ministra das Mulheres, Cida Gonçalves, afirmou que a denúncia é o primeiro passo para combater a violência contra a mulher.
Canditados desumanos que praticaram o sadismo, a crueldade de matar mais de tres pessoas (serial killer), a malvadeza de matar nas chacinas dos favelados, dos sem terra, no genocidios dos povos indigenas, dos quilombolas, nao devem ser candidatos a cargos eletivos.
Quantos deputados celerados, maleficos, desumanos, que mataram mais de cem pessoas existem no Congresso Nacional?
Nao se pode combater o femicidio ao lado de malvados, malditos parlamentares que torturam e assassinaram mais de cem pessoas.
E' excentrica, estranbolica, a uniao de deputados com serial killers, aquele civil ou militar que matou mais de tres individuos. Vide tags
Escreve Tiago Pereira, na Rede Brasil Atual:Na véspera do Dia Internacional da Mulher, a ministra Cida Gonçalves antecipou algumas das medidas que o governo federal deve anunciar nesta quarta-feira (8) para combater o aumento da violência contra a mulher. Serão entregues, por exemplo, 270 viaturas da Patrulha Maria da Penha, serviço que acompanha as mulheres em situação de violência. Para a ministra, a patrulha é a política publica mais eficaz na prevenção ao feminicídio.
Ao lado da primeira-dama Janja da Silva e da atriz e apresentadora Luana Xavier, a ministra participou do programa especial Papo de Respeito: Enfrentamento à violência contra a Mulher, transmitido na TV Brasil e nas redes Sociais, nesta quarta-feira (7).
Ela prometeu fortalecer as Casas da Mulher Brasileira e as delegacias especializadas. Disse que a denúncia é o primeiro passo para combater a violência. Citou o Ligue 180 – Central de Atendimento à Mulher – como o mais importante serviço de informação e orientação à mulher vítima de violência. Mas para além do fortalecimento das políticas públicas, a ministra disse que a sociedade também precisa combater a violência machista.
Nesse sentido, Cida Gonçalves lembrou que qualquer pessoa pode denunciar casos de violência contra a mulher, e não apenas a vítima. “‘Ah, mas vou meter a colher em briga de marido e mulher?’ – comentou a ministra, citando o dito popular que deve ser abandonado. “Não, você vai pedir para que o Estado intervenha”, afirmou.
Para Janja, defender a mulher vítima de violência é responsabilidade de todo indivíduo. “Porque o Poder Público pode criar toda a rede de proteção, mas se você está ali do lado, vendo uma mulher sofrer em situação de violência, você tem, enquanto cidadão, a obrigação de acolher essa mulher e protegê-la”.
Discurso machista
Somente no primeiro semestre do ano passado, 700 mulheres foram vítimas de feminicídio no Brasil, de acordo com dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP). Em 2021, foram 1.341 casos, contra 1.229 registrados em 2018.
E como fica a danaçao de um parlamentar matar mais de cem brasileiros desarmados, e sempre, depois de torturados?
Para a ministra, também é preciso parar de “culpabilizar” a mulher. “Quando uma mulher é estuprada, fica aquela pergunta: ‘mas o que ela fez? que roupa você estava? 2h da manhã, o que estava fazendo na rua? Bêbada então, é pior ainda”. Esse tipo de “julgamento moral” não ajuda no combate à violência e provoca a “revitimização” da mulher agredida. Quando o agressor é o marido, Cida citou outra frase popular – “ele não sabe por que está batendo, mas ela sabe por que está apanhando” – que acaba “legitimando” esse tipo de violência.
Armas e racismo
Durante o governo Bolsonaro, a ministra ainda que aumentou o percentual de feminicídios executados por arma de fogo. Antes, os agressores preferiam facas e outras armas brancas. Para a ministra, isto se deve pela banalização do porte de armas na gestão anterior. “Hoje as armas estão dentro das casas das mulheres”, frisou Janja.
A primeira-dama também fez questão de lembrar que 67% dos feminicídios são praticados contra as mulheres negras. São “maiorias minorizadas”, frisou Luana Xavier. A atriz e apresentadora destacou o projeto, desenvolvido em Mato Grosso, chamado Mulheres de Terreiro, que capacita líderes religiosas a receberem mulheres vítimas de violência.
De acordo com o FBSP, 3% das vítimas procuram igrejas e outras instituições religiosas em busca de apoio. Entre as que procuraram ajuda, recorreram principalmente à família (17,3%) e amigos (15,6%). Somente depois, em terceiro lugar, que aparecem os serviços públicos de denúncia – como o 180, 190, delegacias convencionais ou especializadas. Amaior parte (45%)acaba não tomando nenhuma atitude frente a um episódio grave de agressão. Seja por não acreditar na polícia, por vergonha ou medo de represálias do agressor.
“Precisamos reforçar o serviço público, para ter credibilidade e a mulher ir até lá. Mas precisamos ter também a amiga, a mãe, o irmão, o pastor ou o padre do nosso lado. E dizer que é preciso dar um basta”, disse a ministra.
Camara dos Deputados, velhacouto de assassinos, de serial killers
O Senado Federal, a Camara dos Deputados, as Assembeias Legislativas, as Camaras Municipais precisam encerrar suas esquisitas, bizarras, estrambolicas convivencias, o coito, a proteçao de serial killers. Que entregue os assassinos em serie, os sanquinarios parlamentares, os sanguinarios ` a Justiça.
Os três policiais rodoviários federais que mataram Genivaldo Santos asfixiado em 25 de maio deste ano, em Umbaúba (SE), estão presos no Presídio Militar de Sergipe, em Aracaju.
Eles foram presos nesta sexta-feira, 14, após se apresentarem voluntariamente à Polícia Federal, cinco dias depois que o Ministério Público Federal (MPF) ofereceu denúncia à Justiça contra eles.
William de Barros Noia, Kleber Nascimento Freitas e Paulo Rodolpho Lima Nascimento foram indiciados pela Polícia Federal por homicídio qualificado e abuso de autoridade. Os policiais trancaram Genivaldo no porta-malas de uma viatura da PRF, fazendo-o inalar forçadamente gás lacrimogêneo.
Ele ficou 11 minutos e 27 segundos exposto a gases tóxicos, e impedido de sair da viatura. A certidão de óbito apontou asfixia e insuficiência respiratória como causa da morte. Perícia aponta que o esforço físico intenso e o estresse causados pela abordagem policial resultaram numa respiração acelerada de Genivaldo, podendo ter potencializado ainda mais os efeitos tóxicos dos gases, que causaram um colapso no pulmão da vítima.
Genivaldo sofria de esquizofrenia, fazia tratamento há pelo menos 18 anos e tomava antipsicóticos.
Humor sádico nazista
Segundo a família da vítima, três meses após a morte, os familiares receberam uma correspondência da Polícia Rodoviária Federal, constando que Genivaldo foi multado por estar sem capacete no dia de sua morte, sem habilitação e de sandálias.
Ele recebeu quatro multas da PRF, no valor total de R$ 1.800.
A entidade policial, no entanto, informou que um processo foi instaurado para suspender as multas.
Dois dias depois de ser presa e levada para o quartel do Exército em Vila Velha, a jornalista Miriam Leitão, na época militante do PCdoB, foi retirada da cela e escoltada para o pátio. Seu suplício, iniciado no dia 4 de dezembro de 1972, até ali já incluía tapas, chutes, golpes que abriram a sua cabeça, o constrangimento de ficar nua na frente de 10 soldados e três agentes da repressão e horas intermináveis trancada na sala escura com uma jiboia. A caminho do pátio escuro, os torturadores avisaram que seria último passeio, como se a presa tivesse seguindo para o fuzilamento.
Vi minha sombra refletida na parede branca do forte, a sombra de um corpo mirrado, uma menina de apenas 19 anos. Vi minha sombra projetada cercada de cães e fuzis, e pensei: “Eu sou muito nova para morrer. Quero viver”.
Miriam Leitão, 42 anos depois de viver a traumatizante experiência da tortura nos porões do regime, cedeu aos apelos do jornalista gaúcho Luiz Cláudio Cunha. Em longo depoimento divulgado nesta terça-feira pelo portal “Observatório da Imprensa”, ela deu detalhes sobre o que sofreu no quartel de Vitória, e revelou o nome do chefe da equipe de torturadores: Pablo. O mesmo codinome usado pelo tenente-coronel Paulo Malhães, na época agente do Centro de Informações do Exército (CIE), que contou ao GLOBO, há dois anos, que usava em seus interrogatórios uma cobra apelidada de “Miriam”.
Quando a reportagem com Malhães foi publicada, Miriam Leitão emocionou-se e teve vontade de chorar. Ela jamais esqueceu das horas de terror com a jiboia, período em que procurou não se mexer para não atrair o réptil. Porém, num primeiro momento, resolveu esconder sua experiência até dos filhos. Mudou de ideia, recentemente, depois da divulgação de relatórios produzidos pelas Forças Armadas, a pedido da Comissão Nacional da Verdade, nos quais Exército, Marinha e Aeronáutica negaram a ocorrência de “desvios de função” nas suas unidades durante o regime militar.
— Eu vivi o desvio de função — disse.
A ÍNTEGRA DO DEPOIMENTO DE MÍRIAM LEITÃO
“Eu morava numa favela de Vitória, o Morro da Fonte Grande. Num domingo, 3 de dezembro de 1972, eu e meu companheiro na época, Marcelo Netto, estudante de Medicina, acordamos cedo para ir à praia do Canto, próxima ao centro da capital. Acordei para ir à praia e acabei presa na Prainha. É o bairro que abriga o Forte de Piratininga, essa construção bonita do século 17. Ali está instalado o quartel do 38º Batalhão de Infantaria do Exército, do outro lado da baía.
Eu tinha dado quatro plantões seguidos na redação da rádio Espírito Santo e já tinha quase um ano de profissão. Eu vestia uma camisa branca larga, de homem, sobre o biquini vermelho. Caminhando pela Rua Sete em direção à praia, alguém gritou de repente:
– Ei, Marcelo?
Nos viramos e vimos dois homens correndo em nossa direção com armas. Eu reconheci um rosto que vira em frente à Polícia Federal. Meu ônibus sempre passava em frente à sede da PF e eu tentava guardar os rostos.
– É a Polícia Federal – avisei ao Marcelo
Em instantes estávamos cercados. Apareceram mais homens, mais um carro. Voltei a perguntar:
– O que está acontecendo?
Eles nos algemaram e empurraram o Marcelo para o camburão. Era uma camionete Veraneio, sem identificação. Eu tive uma reação curiosa: antes que me empurrassem sentei no chão da calçada e comecei a gritar, a berrar como louca, queria chamar a atenção das pessoas na rua. Mas ainda era cedo, manhã de domingo, havia pouca gente circulando. Achava que quanto mais gente visse aquela cena, mais chances eu teria de sair viva. Como eu berrava, me puxaram pelos cabelos, me agarraram para me colocar no carro. Eu, ainda com aquela coisa de Justiça na cabeça, reclamei:
– Moço, cadê a ordem de prisão?
O homem botou a metralhadora no meu peito e respondeu com outra pergunta:
– Esta serve?
As algemas eram diferentes, eram de plástico, e estavam muito apertadas, doíam no pulso. Viajamos sem capuz, eu e Marcelo, em direção a Vila Velha, onde fica o quartel do Exército. Eu ainda achava que não era nada comigo, que o alvo era o Marcelo. Ele estava no quarto ano de Medicina e tinha acabado de liderar a única greve de estudantes do país daquele ano, que trancou por dois dias as aulas na universidade de Vitória e paralisou os trabalhos no Hospital de Clínicas. Achei que estava presa só porque estava indo à praia com o Marcelo.
A Veraneio entrou no pátio do quartel, o batalhão de infantaria. Nos levaram por um corredor e nos separaram. Marcelo foi viver seu inferno, que durou 13 meses, e eu o meu. Sobre mim jogaram cães pastores babando de raiva. Eles ficavam ainda mais enfurecidos quando os soldados gritavam: “Terrorista, terrorista!”. Pareciam treinados para ficar mais bravos quando eram incitados pela palavra maldita. De repente, os soldados que me cercavam começaram a cantar aquela música do Ataulfo Alves: “Amélia não tinha a menor vaidade/ Amélia é que era mulher de verdade”. Só então percebi que minha prisão não era um engano. “Amélia” era o codinome que o meu chefe de ala no PCdoB tinha escolhido pra mim: “Você, a partir de agora, vai se chamar Amélia”. Quis reagir na hora, afinal não tenho nada de Amélia, mas não quis discordar logo na primeira reunião com o dirigente.
O comandante do batalhão era o coronel Sequeira [tenente-coronel Geraldo Cândido Sequeira, que exerceu o comando do 38º BI entre 10 de março de 1971 a 13 de março de 1973], que fingia que mandava, mas não via nada do que acontecia por lá. O homem que de fato mandava naquele lugar, naquele tempo, era o capitão Guilherme, o único nome que se conhecia dele. Ele era o chefe do S-2, o setor de inteligência do batalhão. Todos os interrogatórios e torturas estavam sob a coordenação dele. Ele pessoalmente nada fazia, mas a ele tudo era comunicado. Nesse primeiro dia me deu um bofetão só porque eu o encarei.
– Nunca mais me olhe assim! – avisou.
Fui levada para uma grande sala vazia, sem móveis, com as janelas cobertas por um plástico preto. Com a luz acesa na sala, vi um pequeno palco elevado, onde me colocaram de pé e me mandaram não recostar na parede. Chegaram três homens à paisana, um com muito cabelo, preto e liso, um outro ruivo e um descendente de japonês. Mandaram eu tirar a roupa. Uma peça a cada cinco minutos. Tirei o chinelo. O de cabelo preto me bateu:
– A roupa! Tire toda a roupa.
Fui tirando, constrangida, cada peça. Quando estava nua, eles mandaram entrar uns 10 soldados na sala. Eu tentava esconder minha nudez com as mãos. O homem de cabelo preto falou:
– Posso dizer a todos eles para irem pra cima de você, menina. E aqui não tem volta. Quando começamos, vamos até o fim.
Os soldados ficaram me olhando e os três homens à paisana gritavam, ameaçando me atacar, um clima de estupro iminente. O tempo nessas horas é relativo, não sei quanto tempo durou essa primeira ameaça. Viriam outras.
Eles saíram e o homem de cabelo preto, que alguém chamou de Dr. Pablo, voltou trazendo uma cobra grande, assustadora, que ele botou no chão da sala, e antes que eu a visse direito apagaram a luz, saíram e me deixaram ali, sozinha com a cobra. Eu não conseguia ver nada, estava tudo escuro, mas sabia que a cobra estava lá. A única coisa que lembrei naquele momento de pavor é que cobra é atraída pelo movimento. Então, fiquei estática, silenciosa, mal respirando, tremendo. Era dezembro, um verão quente em Vitória, mas eu tremia toda. Não era de frio. Era um tremor que vem de dentro. Ainda agora, quando falo nisso, o tremor volta. Tinha medo da cobra que não via, mas que era minha única companhia naquela sala sinistra. A escuridão, o longo tempo de espera, ficar de pé sem recostar em nada, tudo aumentava o sofrimento. Meu corpo doía.
Não sei quanto tempo durou esta agonia. Foram horas. Eu não tinha noção de dia ou noite na sala escurecida pelo plástico preto. E eu ali, sozinha, nua. Só eu e a cobra. Eu e o medo. O medo era ainda maior porque não via nada, mas sabia que a cobra estava ali, por perto. Não sabia se estava se movendo, se estava parada. Eu não ouvia nada, não via nada. Não era possível nem chorar, poderia atrair a cobra. Passei o resto da vida lembrando dessa sala de um quartel do Exército brasileiro. Lembro que quando aqueles três homens voltaram, davam gargalhadas, riam da situação. Eu pensava que era só sadismo. Não sabia que na tortura brasileira havia uma cobra, uma jiboia usada para aterrorizar e que além de tudo tinha o apelido de Míriam. Nem sei se era a mesma. Se era, talvez fosse esse o motivo de tanto riso. Míriam e Míriam, juntas na mesma sala. Essa era a graça, imagino.
Dr. Pablo voltou, depois, com os outros dois, e me encheu de perguntas. As de sempre: o que eu fazia, quem conhecia. Me davam tapas, chutes, puxavam pelo cabelo, bateram com minha cabeça na parede. Eu sangrava na nuca, o sangue molhou meu cabelo. Ninguém tratou de minha ferida , não me deram nenhum alimento naquele dia, exceto um copo de suco de laranja que, com a forte bofetada do capitão Guilherme, eu deixei cair no chão. Não recebi um único telefonema, não vi nenhum advogado, ninguém sabia o que tinha acontecido comigo, eu não sabia se as pessoas tinham ideia do meu desaparecimento. Só três dias após minha prisão é que meu pai recebeu, em Caratinga, um telefonema anônimo de uma mulher dizendo que eu tinha sido presa. Ele procurou muito e só conseguiu me localizar no fim daquele dezembro. Havia outros presos no quartel, mas só ao final de três semanas fui colocada na cela com a outras presas: Angela, Badora, Beth, Magdalena, estudantes, como eu.
Fiquei 48 horas sem comer. Eu entrei no quartel com 50 kg de peso, saí três meses depois pesando 39 kg. Eu cheguei lá com um mês de gravidez, e tinha enormes chances de perder meu bebê. Foi o que médico me disse, quando saí de lá, com quatro meses de gestação. Eu estava deprimida, mal alimentada, tensa, assustada, anêmica, com carência aguda de vitamina D por falta de sol. Nada que uma mulher deve ser para proteger seu bebê na barriga. Se meu filho sobrevivesse, teria sequelas, me disse o médico.
– A má notícia eu já sei, doutor, vou procurar logo um médico que me diga o que fazer para aumentar as chances do meu filho.
Mas isso foi ao sair. Lá dentro achei que não havia chance alguma para nós. Eu era levada de uma sala para outra, numa área administrativa do quartel, onde passava por outras sessões de perguntas, sempre as mesmas, tudo aos gritos, para manter o clima de terror, de intimidação. Na noite seguinte, atravessei a madrugada com uma sessão de interrogatório pesado, o Dr. Pablo e os outros dois berrando, me ameaçando de estupro, dizendo que iam me matar. Um dia achei que iria morrer. Entraram no meio da noite na cela do forte para onde eu fui levada após esses dois dias. Falaram que seria o último passeio e me levaram para um lugar escuro, no pátio do quartel, para simular um fuzilamento. Vi minha sombra refletida na parede branca do forte, a sombra de um corpo mirrado, uma menina de apenas 19 anos. Vi minha sombra projetada cercada de cães e fuzis, e pensei: “Eu sou muito nova para morrer. Quero viver”.
Um dia, um outro militar, que não era nenhum daqueles três, botou um revólver na minha cabeça e falou: “Eu posso te matar”. E forçou aquele cano frio na minha testa. Me deu um sentimento enorme de solidão, de abandono. Eu me senti absolutamente só no mundo. Pela falta de notícias, imaginava que o Marcelo estava morto. Entendi que iria morrer também e que ninguém saberia da minha morte, pensei. Mas não quis demonstrar medo. Lembro que o homem do revólver tinha olhos azuis. Olhei nos seus olhos e respondi: “Sim, você pode pode me matar”. E repeti, falando ainda mais alto, com ar de desafio: “Sim, você pode!”
Um dos interrogatórios foi feito na sala do capitão Guilherme, o S-2 que mandava em todos ali. Era noite, ele não estava, e me interrogaram na sala dele. Lembro dela porque havia na parede um quadro com a imagem do Duque de Caxias. Estava ainda com o biquíni e a camisa, era a única roupa que eu tinha, que me protegia. Nessa noite, na sala, de novo fui desnudada e os homens passaram o tempo todo me alisando, me apalpando, me bolinando, brincando comigo. Um deles me obrigou a deitar com ele no sofá. Não chegaram a consumar nada, mas estavam no limite do estupro, divertindo-se com tudo aquilo.
Eu estava com um mês de gravidez, e disse isso a eles. Não adiantou. Ignoraram a revelação e minha condição de grávida não aliviou minha condição lá dentro. Minha cabeça doía, com a pancada na parede, e o sangue coagulado na nuca incomodava. Eu não podia me lavar, não tinha nem roupa para trocar. Quando pensava em descansar e dormir um pouco, à noite, o lugar onde estava de repente era invadido, aos gritos, com um bando de pastores alemães latindo na minha cara. Não mordiam, mas pareciam que iam me estraçalhar, se escapassem da coleira. E, para enfurecer ainda mais os cães, os soldados gritavam a palavra que enlouquecia a cachorrada: “Terrorista, terrorista!...”
As primeiras três semanas que passei lá foram terríveis. Só melhorou quando o Dr. Pablo e seus dois companheiros foram embora. Entendi então que eles não pertenciam ao quartel de Vila Velha. Tinham vindo do Rio, é o que chegaram a conversar entre eles, em papos casuais: “E aí, quando voltarmos ao Rio, o que a gente vai fazer lá...” Isso fazia sentido, porque o quartel de Vila Velha integra o Comando do I Exército, hoje Comando do Leste, que tem o QG no Rio de Janeiro.
Quando o trio voltou para o Rio, a situação ficou menos ruim. Eles já não tinham mais nada para perguntar. Me tiraram da cela da fortaleza e me levaram para a cela coletiva. Foi melhor. Na cela do forte não havia janelas, a porta era inteiriça e minhas companhias eram apenas as baratas. Fiz uma foto minha, agora em 2011, ao lado da porta.
Até que chegou o dia de assinar a confissão, para dar início ao IPM, o inquérito policial-militar que acontecia lá mesmo, dentro do quartel. Me levaram para a sala do capitão Guilherme, o S-2, e levei um susto. Lá estava o Marcelo, que eu pensava estar morto. Os militares saíram da sala e nos deixaram sozinhos. Quando eu fui falar alguma coisa, o Marcelo me fez um sinal para ficar calada. Ele levantou, foi até a parede e levantou o quadro do Duque de Caxias. Estava cheio de fios e microfones lá atrás. Era tudo grampo.
Depois disso, o Marcelo foi levado para o Regimento Sampaio, na Vila Militar, no Rio de Janeiro, e lá ficou nove meses numa solitária. Sem banho de sol, sem nada para ler, sem ninguém para conversar. Foi colocado lá para enlouquecer. Nove longos e solitários meses... Nós, todos os presos, e os que já estavam soltos nos encontramos mais ou menos em junho na 2ª Auditoria da Aeronáutica, para o que eles chamam de sumário de culpa, o único momento em que o réu fala. Eu com uma barriga de sete meses de gravidez. O processo, que envolvia 28 pessoas, a maioria garotos da nossa idade, nos acusava de tentativa de organizar o PCdoB no estado, de aliciamento de estudantes, de panfletagem e pichações. Ao fim, eu e a maioria fomos absolvidos. O Marcelo foi condenado a um ano de cadeia. Nunca pedi indenização, nem Marcelo. Gostaria de ouvir um pedido de desculpas, porque isso me daria confiança de que meus netos não viverão o que eu vivi. É preciso reconhecer o erro para não repeti-lo. As Forças Armadas nunca reconheceram o que fizeram.
Nunca mais vi o capitão Guilherme, o S-2 que comandou tudo aquilo. Uma vez ele apareceu no Superior Tribunal Militar como assessor de um ministro. Marcelo foi expulso do curso de Medicina, após a prisão, e virou jornalista. Fomos para Brasília em 1977. Por ironia do destino, Marcelo só conseguiu vaga de repórter para cobrir os tribunais. E lá no STM, um dia, ele reviu o capitão Guilherme. Depois disso, não soubemos mais dele. Nem sei se o S-2 ainda está vivo.
O que eu sei é que mantive a promessa que me fiz, naquela noite em que vi minha sombra projetada na parede, antes do fuzilamento simulado. Eu sabia que era muito nova para morrer. Sei que outros presos viveram coisas piores e nem acho minha história importante. Mas foi o meu inferno. Tive sorte comparado a tantos outros.
Sobrevivi e meu filho Vladimir nasceu em agosto forte e saudável, sem qualquer sequela. Ele me deu duas netas, Manuela (3 anos) e Isabel (1). Do meu filho caçula, Matheus, ganhei outros dois netos, Mariana (8) e Daniel (4). Eles são o meu maior patrimônio.
Minha vingança foi sobreviver e vencer. Por meus filhos e netos, ainda aguardo um pedido de desculpas das Forças Armadas. Não cultivo nenhum ódio. Não sinto nada disso. Mas, esse gesto me daria segurança no futuro democrático do país. (Depoimento a Luiz Cláudio Cunha).
Sadismo, crueldade e mentiras formam a triste figura do coronel Ustra, o primeiro torturador condenado no Brasil. Luiz Eduardo Merlino morre mais uma vez
Juca Guimarães
Brasil de Fato
Ao declarar o seu voto no processo de impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff, o deputado federal Jair Bolsonaro (PSL) fez uma homenagem à memória do coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra chamando-o de “o pavor de Dilma Rousseff”, por ter comandado as sessões de tortura contra a ex-presidenta, que foi presa durante a ditadura militar.
Em 2013, quando foi depor naComissão Nacional da Verdade, décadas após o fim da ditadura, Ustra mostrou novamente a faceta dissimulada e mentirosa ao afirmar que não houve mortes dentro das instalações que comandava.
“[O Doi-Codi] foi um organismo de repressão política construído pela ditadura que misturava agentes da polícia civil, da polícia militar e do Exército com uma certa informalidade e agilidade necessária para que eles pudessem agir com a intensidade e brutalidade que agiram. O principal instrumento utilizado foi a tortura das pessoas suspeitas que eram presas, envolvidas com a luta armada ou que tinham algum contato com elas. E são muitos os relatos que envolvem o nome do comandante Ustra na condução dessas torturas”, explica José Carlos Moreira da Silva, professor de Direito da PUC-RS.
“Neste caso da família Teles, que é um caso terrível porque os pais do Edson Teles e da Janaina Teles, na época o Edson tinha 4 anos de idade e a Janaina 9, eles foram torturados brutalmente e os filhos foram levados até as dependências do Doi-Codi e viram as pessoas torturadas e seus pais machucados. Num primeiro momento não os reconheceram. Eles ficaram ali durante um tempo sem a presença de nenhum parente e nenhuma pessoa conhecida sendo utilizados como moeda de troca para que os pais, a Amelinha Teles e o César Teles, pudessem falar o que eles [torturadores] queriam ouvir”, disse o professor e membro da ABJD (Associação Brasileira de Juristas pela Democracia).
Ocaso da tortura da família Teles, em 2008, deu origem à primeira condenação que confirmou como torturador o chefe do Doi-Codi e herói do Bolsonaro. O Brasil é signatário de acordos internacionais que condenam a prática da tortura desde o final da Segunda Guerra Mundial, com a assinatura da Convenção de Genebra. Por isso, as atrocidades comandadas por Ustra e exaltadas por Bolsonaro também eram ilegais, independentemente de quem eram ou o do que fizeram os torturados.
Membro da Comissão da Anistia por mais de dez anos, julgando casos de perseguidos políticos e pessoas que foram presas na ditadura militar, o jurista Prudente Mello tomou conhecimento de centenas de processos que apontavam o coronel Ustra como um dos principais agentes da tortura na ditadura militar.
"Era muito comum ouvir das pessoas que passavam por lá [comissão da anistia], que foram torturadas, reportando sobre o coronel Brilhante Ustra e as práticas de tortura que ele foi responsável. Os relatos ao longo dos processos de pessoas torturadas dão conta disso. Realmente não tem como esconder ou tentar invisibilizar este personagem que foi um personagem triste na história do Brasil. Nós temos que aprender com os erros que foram praticados e cometidos até mesmo para que eles não voltem a se repetir”, disse.
Edição: Pedro Ribeiro Nogueira
Processo
Luiz Eduardo Merlino morre mais uma vez
por Jornalistas Livres
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A família de Luiz Eduardo da Rocha Merlino, vive mais um momento de luto produzido pela justiça brasileira. No julgamento realizado nesta quinta-feira (10/10/2019), por 2 votos a 1, a 11ª Turma do TRF-3 (Tribunal Regional Federal da 3ª Região), em São Paulo, não aceitou recurso e não recebeu a denúncia do MPF que pedia que fossem processados pelo homicídio do jornalista Luiz Eduardo Merlino, três agentes da ditadura. O jornalista foi morto no Hospital do Exército, em julho de 1971, após 24 horas de tortura no DOI-Codi.
Assistente da acusação Eloísa Machado afirmou durante o julgamento:
“A busca pela verdade faz parte da história dessa família há 48 anos”
Somente Fausto Di Sanctis foi favorável a levar os três servidores à julgamento pela morte do jornalista. O relator, desembargador José Lunardelli, e o presidente da turma, Nino Toldo, votaram contra a tese do MPF. Para eles, não há como contornar a decisão do STF (Supremo Tribunal Federal), de 2010, que julgou constitucional a Lei de Anistia de 1979 e, por isso, não seria possível receber a denúncia. Cabe recurso da decisão.
Os denunciados são o delegado aposentado Aparecido Laertes Calandra e o delegado da Polícia Civil de São Paulo Dirceu Gravina, acusados de homicídio doloso qualificado (com intenção de matar), por motivo torpe e com emprego de tortura que impossibilitou a defesa da vítima. O médico Abeylard de Queiroz Orsini, à época, legista, é acusado pelo crime de falsidade ideológica, decorrente da falsificação do laudo necroscópico do jornalista.
Apresentada em setembro de 2014, a denúncia do MPF contra os agentes foi rejeitada pelo juiz federal Fábio Rubem David Müzel, sob a alegação de que os acusados estariam cobertos pela Lei de Anistia. Em outubro do mesmo ano, o MPF recorreu da decisão.
A família de Merlino luta por justiça e punição dos torturadores e do mandante Coronel Alberto Brilhante Ustra, que comandava o centro de torturas e que deu ordem para que deixassem Luiz Eduardo Merlino morrer no hospital militar. Com a sua morte, em 2015, a punibilidade criminal contra ele foi extinta. Mas a família de Merlino moveu ação indenizatória.
Anibal de Castro Lima e Souza, advogado da família do jornalista , falou aoBrasil de Fatosobre a relevância histórica de desvendar os crimes da ditadura e seus autores.
“É um caso importante, não só ao direito da memória da família do Merlino que foi brutalmente assassinado pela ditadura, mas também para relembrar para a geração atual e a futura o que aconteceu na história do Brasil”, disse.
O advogado também comentou sobre a tentativa de transformar em herói um torturador.
"É triste porque primeiro porque é desumano, segundo porque ignora as leis e os tratados que o Brasil é signatário. O Brasil é fundador da ONU, a nossa Constituição veda a tortura. A tortura é definida no Brasil como crime, inafiançavel e imprescritível. As pessoas que negam isso ou que relativizam a tortura, na minha opinião, não conhecem a lei. Não acredito que uma pessoa ao sentar, raciocinar sobre o que está dizendo ou tomar conhecimento de alguém que foi torturado possa manter essa opinião”, disse.
Quando morreu, em outubro de 2015, o coronel Ustra morava em uma casa de alto padrão em uma área nobre de Brasília.
Mídia NINJA on Twitter: "Um homem que colocava ratos na vagina de mulheres"
Mídia NINJA
@MidiaNINJA
Um homem que colocava ratos na vagina de mulheres não pode ser considerado um homem de honra. É um torturador que precisa ir para a lata do lixo da história
(Observatório de Imprensa, 19/08/2014)A mulher serena na frente do homem inquieto. A repórter experiente perante a autoridade calejada. A entrevistadora firme ante o ministro gelatinoso. A profissional de imprensa olho no olho com sua fonte. Uma brasileira, presa e torturada na ditadura, frente a frente com o ministro da Defesa que hoje comanda o Exército que ontem, na ditadura, prendeu e torturou a mulher, a repórter, a jornalista, a brasileira que o questionava (leia abaixo o depoimento inédito de Míriam Leitão sobre as torturas que sofreu).
Esse dramático confronto de 22 minutos brilhou na tela da TV numa noite de quinta-feira, no final de junho de 2014, quando a jornalista Míriam Leitão, 61 anos, fez para a GloboNews uma notável entrevista com o ministro da Defesa, Celso Amorim, 72 anos. Viu-se então uma aula prática do melhor jornalismo, confrontando a convicção com a dúvida, a energia com a tibieza, o categórico com o evasivo, a verdade com a mentira. A repórter se agigantando num diálogo em que o ministro se apequenava, acuado, hesitante, gaguejante.
Míriam fez o que o resto da grande imprensa, acomodada e preguiçosa, não fez. Foi a Brasília ouvir o chefe civil dos militares, apenas nove dias após a entrega à Comissão Nacional da Verdade (CNV) de uma insossa, imprestável sindicância de quatro meses realizada pelos três comandantes das Forças Armadas (FFAA). Diante de questões objetivas com nomes, datas e locais de mortes e torturas apontadas pela CNV, os chefes da tropa responderam, num catatau de 455 páginas, que não registravam nenhum “desvio de finalidade” em sete centros militares do Exército, Marinha e Aeronáutica onde foram meticulosamente documentados casos de graves violações aos direitos humanos pelo regime militar de 1964-1985. Os oficiais-generais das três Armas simplesmente negaram a ocorrência de abusos até mesmo nos sangrentos DOI-CODI da Rua Tutoia, em São Paulo, e da Rua Barão de Mesquita, no Rio de Janeiro, onde a CNV já constatou pelo menos 81 mortes por tortura. Os comandantes esqueceram até dos 22 dias de suplício no DOI-CODI paulistano a que sobreviveu em 1970 uma guerrilheira chamada Dilma Rousseff, hoje casualmente presidente da República e, como tal, comandante-suprema dos generais que omitem a crua verdade sobre a ditadura das FFAA (ver “Quem mente? A presidente ou os generais?“).
Semblante sério, como recomendava o tema e exigia o embate, a jornalista entrou de sola na entrevista:
Míriam– Ministro, os militares disseram que não houve desvio de função, mas a resposta causou perplexidade…
Amorim – […] A CNV não perguntou se as pessoas foram torturadas. Ela focaliza muito na destinação dos imóveis. Com esta pergunta, a resposta também sinaliza uma resposta formal. Não houve, não há registro formal de desvio de funcionalidade…
Míriam– A CNV fez as perguntas erradas?
Amorim – Ela não fez as perguntas que ela não precisava fazer […] As FFAA não negam, nem comentam. Elas não contestam. Elas simplesmente não entram [no assunto]. Se um estabelecimento, militar ou outro qualquer, é usado para tortura, isso não é um ilícito administrativo. Isso é um crime […] Especificamente sobre as torturas, ela [CNV] não faz nenhuma pergunta, ela afirma. E as afirmações [da CNV] não são contestadas.
Míriam– Uma coisa é o DOI-CODI prender. Outra coisa é matar o preso.
Amorim – Isso é horrível. Não é um desvio de finalidade, é um crime. […] Se você disser que as respostas são formais, eu concordo. Até acho que elas são formais. Elas não são mentirosas, nem descumprem formalmente o que foi perguntado. Elas decepcionam quem…
Míriam– … elas omitem a questão principal, ministro. As pessoas foram mortas dentro de instalações militares, foram torturadas, e não foi para isso que se criaram essas instalações. Elas existem para defender o Brasil, não para torturar e matar brasileiros.
Amorim – Não há a menor dúvida. Tortura e morte é errado em qualquer lugar. Eu acho isso e a sociedade brasileira acha isso…
Míriam– Mas os seus comandados não acham. Como ministro da Defesa, o sr. é o comandante dos comandantes militares. O sr. não deveria levá-los a tomar uma decisão sobre isso? O que eles fizeram nessa sindicância foi tergiversar sobre a questão fundamental que se pergunta…
Amorim – Nós estamos completando uma transição, a última etapa da transição é o relatório da CNV. A CNV vai produzir um relatório final e todos terão que se posicionar diante dele. Quanto às respostas em si à CNV, elas atendem ao que foi perguntado formalmente. Não houve nenhuma pergunta, tipo “o sr. confirma que houve tortura e morte?”. Até porque eu sei que a resposta aí seria: “Todos os documentos da época [da ditadura] foram destruídos”.
Míriam– É o que eles dizem, aliás.
Amorim – Não houve nenhum esforço, nenhuma pretensão de negar os fatos…
Míriam– O jornalista Zuenir Ventura escreveu que, se [tortura e morte]não era desvio de função, então era norma. O que o sr. diz dessa conclusão?
Amorim – Acho que tortura e assassinato de uma pessoa indefesa é algo indefensável. Se isso era norma explícita, eu não… eu creio que não. Mas, implícita, talvez fosse. Infelizmente, era um governo ditatorial. Ninguém vai discutir isso. Você sabe muito bem: eu deixei meu cargo na Embrafilme porque autorizei a elaboração de um filme pago pela empresa em que a OBAN era o tema central.
Arte do convencimento
Amorim, sempre diplomata, não esclareceu bem aos telespectadores esse episódio que o dignifica e está relacionado à OBAN, a Operação Bandeirante, a repressão unificada em São Paulo que antecedeu em 1969 o DOI-CODI criado no ano seguinte. Ele não “deixou” o cargo, ele foi exonerado em abril de 1982 da presidência da Embrafilme, a estatal de cinema da ditadura, por pressão dos generais do governo Figueiredo, irritados com o temerário financiamento que a empresa concedeu ao cineasta Roberto Farias para produzir Pra Frente, Brasil. Era um filme de 105 minutos, estrelado por Reginaldo Faria, Natália do Valle e Antônio Fagundes retratando de forma contundente, pela primeira vez no cinema, os horrores da repressão sem limites. Os personagens eram calcados nos algozes da OBAN, no delegado do DOPS Sérgio Fleury e nos empresários que financiavam a tortura do regime. O ator Carlos Zara interpretou o sádico “Dr. Barreto”, o policial inspirado em Fleury, que havia torturado seu irmão, Ricardo Zaratini, um dos presos políticos trocados pelo embaixador americano Burke Elbrick em 1969. O ator Paulo Porto encarnou o personagem inspirado no industrial Henning Boilesen que – como caixa da OBAN no meio empresarial e amigo do poderoso ministro Delfim Netto – foi executado por guerrilheiros em abril de 1971. Lançado em 1982, Pra Frente, Brasil ganhou cinco prêmios em festivais internacionais e, após uma arrojada exibição em Gramado, RS, conquistou o troféu de melhor filme do festival de cinema mais importante do país. Em seguida, foi censurado e retirado das salas de exibição. Só voltou a ser mostrado no início de 1983, liberado sem cortes.
Hoje comandante dos militares que no passado o expurgaram do serviço público, Celso Amorim agora tem bons motivos para medir a diferença no calendário.
Amorim – O Brasil precisa das FFAA. E os militares de hoje não são os militares de ontem. Nós precisamos dialogar com estes militares de hoje. Eles tem que saber separar o que foi o passado e o que é hoje. O 31 de março já não é mais comemorado…
Míriam– Mas eles mesmos não fazem esta separação, quando não admitem os erros do passado. Até para preservar a instituição [das FFAA], eles não deveriam fazer esta separação?
Amorim – Você quer minha opinião pessoal? Acho que devem [fazer a separação]. Mas, isso não se faz com uma ordem. Isso é uma mudança cultural. Porque, as ordens eles podem até obedecer. Isso é uma mudança cultural que vem aos poucos. Essa ordem depende do diálogo. Há outras concepções culturais das corporações. Como isso se concilia, é uma coisa complicada. Não vou entrar aqui numa discussão filosófica sobre culpas coletivas, ou culpas intergeracionais. O tempo vai fazer com que isso ocorra. O primeiro passo é eliminar as coisas oficiais, como as comemorações do 31 de março. Nunca ouvi de nenhum militar, pelo menos comigo, nunca ouvi nenhum defender a tortura, sob nenhum aspecto. Nenhum veio aqui e disse: “Ah, mas naquele caso tivemos que fazer isso…”. Nenhum. Nunca ouvi. Nem direta, nem indiretamente.
Míriam– E nem condenaram, também…
Amorim fecha os olhos, suspira, e não diz nada. É salvo pelo intervalo do programa de entrevista, aos 13’33’’. Na segunda parte, Amorim volta falando das coisas positivas que vê hoje na área militar.
Amorim – […] Como a criação do Estado Maior Conjunto das FFAA, subordinado diretamente ao Ministério da Defesa. Ou seja, o Ministro está na cadeia de comando, inclusive das operações militares. E temos um secretário-geral civil, no mesmo nível dos comandantes. Incluímos disciplinas de direitos humanos em todas as escolas militares. Os livros [das escolas militares] devem ser aprovados pelo MEC e fazem parte do currículo. Os colégios militares são excelentes. Você poderia me perguntar: “Mas, o sr. não pode dar uma ordem?” Posso, mas eu prefiro convencer. O convencimento tem mais durabilidade. Aprendi isso com a diplomacia. Acho que o convencimento é melhor do que uma ordem estrita.
Míriam – Em algum momento as FFAA vão se deixar convencer a pedir desculpas ao País pelos crimes cometidos na ditadura, para que eles não se repitam?
Amorim – Esta é uma questão complicada. Eu não sei… Acho que… talvez, talvez. Eu esperaria… Acho que o grande input para isso seria o próprio relatório da CNV, o tratamento que ele vai ter e como será recebido pela sociedade. Agora, você tem um conflito entre duas concepções. Uma, as FFAA de hoje pedindo desculpas pelo que não foi feito por elas? Não sei… Eu, como ministro das Relações Exteriores, se formos pedir desculpas por tudo que tenha sido feito pelo Itamaraty, inclusive no tempo da ditadura, talvez fosse complicado para mim… Acho melhor ir mudando, mudando a prática, e deixando aquilo que se deve ver e analisar para o Judiciário, o Congresso, a sociedade… Mas, não sei… Talvez fosse bom para eles [os militares]. Eu acho…
Gaguejando, vacilando, traindo suas dúvidas internas, Amorim revelou na GloboNews as incertezas existenciais que são antigas e comuns entre os sete homens que ocuparam o Ministério da Defesa desde sua criação, em junho de 1999, pelo presidente Fernando Henrique Cardoso. Nascida 14 anos após a queda da ditadura, a pasta reproduzia a experiência de nações mais avançadas nos padrões democráticos. É a realização administrativa da constatação feita por um médico francês do século passado, Georges Clemenceau (1841-1929), o primeiro-ministro da França nos anos turbulentos da Primeira Guerra Mundial (1914-1918), que diagnosticou: “A guerra é uma coisa demasiadamente grave para ser confiada aos militares”. Para expurgar a arrogância natural de 21 anos de regime de exceção no Brasil, onde a voz da caserna com frequência se confundia com os rugidos mais assustadores da caverna autoritária, um Ministério da Defesa ocupado por um civil tinha, como primeira vantagem, tirar o intocadostatus ministerial das Forças Armadas habituadas ao cachimbo torto da hegemonia sobre a República e do arbítrio sobre todos.
Gritos e sussurros
Rebaixando os ministros militares ao nível de comandantes, sob o tacão de um civil na Defesa, o país imaginava se vacinar contra recidivas no delicado processo da regeneração democrática. O problema é que, em vez de Ministro da Defesa do Estado, cada um dos ocupantes do posto assumiu o equivocado papel de ministro da defesa dos comandantes militares. Desde o primeiro e mais fugaz, Élcio Alvarez, que durou meros sete meses no cargo, até o mais longevo, Nelson Jobim, que Lula legou a Dilma e sobreviveu no posto por longos 50 meses. Mais do que encarnar o papel de comandante civil do governo sobre os escalões militares, os ministros acabaram vestindo a farda de porta-vozes dos quartéis e seus chefes, tornando mais difícil o pleno reconhecimento das diferenças cruciais que existem entre os Exércitos da ditadura e da democracia – e que nem os comandantes sabem separar, como reconheceu Amorim para Míriam.
O atual ministro da Defesa, profissional do Itamaraty desde 1989, quando o país teve sua primeira eleição direta para presidente em três décadas, levou para o cargo as manhas da diplomacia, esquecido de que o tom acatado nos quartéis é a ordem gritada e peremptória, não o sussurro do lerdo convencimento ciciado nas missões diplomáticas. O que Amorim aprendeu com as luvas de pelica nos salões atapetados do Itamaraty não combina com os coturnos empoeirados dos campos de manobra dos generais. São áreas diferentes, são mundos separados. O ministro da Defesa, com ingenuidade, confessou na GloboNews que é um chefe que abdica de suas atribuições: em vez de mandar, como se faz e se espera na caserna, prefere convencer, como nem os diplomatas às vezes conseguem.
Militar, desde a academia, sabe que o ofício do soldado é obedecer, assim como a missão do comandante é comandar. O diplomata Amorim, com a muleta da “durabilidade”, prefere convencer. Nas praias da Normandia, nas areias de El Alamein, nas colinas de Waterloo, nas alturas de Monte Castelo, no estreito das Termópilas, no mar revolto de Midway, onde ecoaram algumas das batalhas épicas que todo oficial de Estado-Maior estuda nas aulas de tática e estratégia em combate na academia, os militares não esperavam ser convencidos para cumprir sua missão, para comandar e obedecer, para matar ou morrer. Se fossem esperar pelo moroso convencimento proposto por Amorim, os generais teriam perdido a batalha, a guerra, a vida e talvez a honra.
O general francês Charles De Gaulle (1890-1970), que não convencia mas sabia mandar, tinha esta áspera opinião sobre os colegas de carreira de Amorim: “Diplomatas são úteis apenas sob bom tempo. Assim que chove eles se afogam em cada gota”. O parlamentar inglês Henry Wotton (1568-1639), embora embaixador, era ainda mais cínico: “O diplomata é um cavalheiro honesto enviado ao exterior para mentir pelo bem de seu país”.
Agente da borrasca
Como o cavalheiro honesto que é, Amorim poderia dizer a verdade pelo bem do país começando por um único pedido de desculpas, na condição de ex-ministro das Relações Exteriores, por uma grave truculência cometida por seus polidos pares de diplomacia exatamente no tempo da ditadura: o Centro de Informações do Exterior (CIEx), o serviço secreto criado dentro do Itamaraty, no primeiro governo da ditadura, o do general Castelo Branco. Foi obra e engenho de um diplomata sempre útil e que sorvia cada gota da borrasca, Manoel Pio Correa Júnior (1918-2013), um anticomunista ferrenho que se notabilizou pela caça aos comunistas na carreira diplomática e pelo combate aos “vagabundos, bêbados e pederastas” que encontrou pelo caminho. Uma de suas vítimas mais notáveis foi o diplomata e compositor Vinícius de Moraes, cassado pelo AI-5. O poetinha brincava com os amigos: “Ei, eu sou o bêbado, viu?”.
Capitão R/2 da Cavalaria, o sóbrio Pio Correa vestia sobre o terno de diplomata a capa de agente da CIA, servindo na estação do Rio de Janeiro da agência de inteligência norte-americana, conforme revelou o ex-agente Phillip Agee na página 384 de seu livro de memórias, Por Dentro da Companhia (Edição Círculo do Livro, 1976). Ali, para constrangimento de Amorim e qualquer cavalheiro honesto, o homem da CIA no Uruguai relatou, no diário de Montevidéu datado de 17 de junho de 1964, menos de três meses após o golpe no Brasil:
[…] a base do Rio [da CIA] decidiu enviar mais dois de seus elementos para a embaixada do Brasil aqui – além do adido militar, coronel Câmara Sena. Um deles é um funcionário de carreira de alto nível do ministério das Relações Exteriores do Brasil, Manoel Pio Correa, que virá como embaixador; o outro é Lyle Fontoura, protegido de Pio Correa, que será o novo primeiro-secretário. Até o mês passado, Pio era embaixador do Brasil no México, onde, de acordo com o currículo enviado pela base [da CIA] do Rio, demonstrou muita eficiência nas tarefas operacionais para a base [da CIA] da Cidade do México. Contudo, como o México não reconheceu o novo governo militar do Brasil, Pio foi chamado de volta ao seu país e a base [da CIA] do Rio de Janeiro providenciou para que fosse nomeado para Montevidéu, que no momento é o ponto em ebulição da diplomacia brasileira. Assim que chegarem os novos elementos do corpo diplomático, Holman [Ned. P., chefe da CIA em Montevidéu] entrará em contato com Pio, enquanto O’Grady [Gerald, subchefe da CIA] se encarregará de entrevistar-se com Fontoura. De uma forma ou de outra, a base [da CIA] do Rio está decidida a elaborar operações contra os exilados, e – ao que parece – Pio é o homem indicado, pois tem perserverança suficiente para manter as pressões sobre o governo uruguaio.
Com a mão pesada da CIA, Pio Correa foi premiado pelo governo Castelo Branco justamente com a embaixada em Montevidéu, onde se concentravam os inimigos que acompanharam João Goulart e Leonel Brizola ao exílio. Lá, o agente duplo da CIA Pio Correa, com o braço forte do adido militar, o coronel Câmara Senna, outro serviçal da agência americana, começou a montar o seu CIEx, formado inicialmente por uma rede de contatos que incluía políticos, militares, juízes, delegados de polícia, fazendeiros e comerciantes que fechavam o cerco sobre as atividades de Jango e Brizola no Uruguai.
A bem sucedida experiência uruguaia o levou, como secretário executivo do chanceler Juracy Magalhães, a redigir e assinar a portaria ultrassecreta que criou o CIEx no governo Castelo Branco. Tão secreta que nem constava da estrutura formal do pudico Itamaraty. A existência do CIEx só seria confirmada em 2007, exatamente quando Amorim era o chanceler do segundo governo Lula. A constrangedora revelação coube à monumental série de reportagens produzida pelo repórter Cláudio Dantas Sequeira, do Correio Braziliense, revelando a ação repressiva da primeira agência criada sob o amparo do Serviço Nacional de Informações (SNI) e de seu criador, o general Golbery do Couto e Silva.
O repórter descobriu que, no início, o secreto CIEx foi camuflado como Assessoria de Documentação de Política Exterior, ou simplesmente ADOC, com verba secreta e subordinado à Secretaria Geral de Relações Exteriores. Dos primeiros anos da ditadura até 1975, funcionou dissimulado como seu criador na sala 410 do quarto andar do “Bolo de Noiva”, o Anexo I do Palácio do Itamaraty, em Brasília. Desmontado com a ditadura em 1985, o lugar hoje abriga a inofensiva Divisão de Promoção do Audiovisual. Vasculhando 20 mil páginas de documentos com 8 mil informes escondidos nos arquivos do CIEx, o repórter Sequeira apurou que, dos 380 brasileiros mortos ou desaparecidos durante o regime, os nomes de 64 das vítimas estavam lá, nas pastas secretas de Pio Correa. Atuando em linha com os adidos militares das embaixadas, a tropa civil dos adidos do CIEx de Pio Correa foi decisiva na atuação do Brasil na Operação Condor, o Mercosul da repressão que caçava e matava sob o mando e desmando dos generais do Cone Sul do continente.
Proposta indecente
Como chefe dos diplomatas, Amorim não lembrou de pedir desculpas pelo CIEx. Como chefe dos militares, Amorim chegou a pensar em um pedido de desculpas dos generais pelos 21 anos de ditadura. Foi o que ele fez em 18 de fevereiro passado, em seu gabinete no Ministério da Defesa, em Brasília, na audiência que concedeu aos seis comissários da Comissão Nacional da Verdade. O ministro se remexeu na cadeira, surpreso e incomodado com a entrega inesperada do requerimento da CNV, listando sete locais de tortura e morte administrados pelo Exército, Marinha e Aeronáutica. Ele reagiu com uma proposta inusitada, que desconcertou os comissários: ofereceu, em nome dos comandantes das FFAA, um pedido público de desculpas ao país pelos excessos cometidos em duas décadas de arbítrio. Em troca, Amorim pediu à CNV garantias de que não haveria a temida revisão da Lei de Anistia que a ditadura se autoconcedeu em 1979 no governo Figueiredo, para salvar a pele e a biografia dos torturadores até hoje impunes.
Os comissários reagiram na hora, com a altivez devida, rejeitando a proposta indecente de Amorim. Ela apenas retrata a preocupação crescente dos quartéis com uma provável recomendação de impacto no relatório final da CNV, a ser apresentado ao país em dezembro próximo. É cada vez mais forte a tendência na CNV para recomendar a revisão da anistia da ditadura, diante das pesadas evidências e contundentes provas documentais que se acumulam sobre abusos e violências cometidos pelo regime arbitrário de 1964. Aceitar os termos do Ministro da Defesa para o pedido de desculpas dos generais seria uma indesculpável barganha política que fere o bom-senso e a ética.
Seria coisa ainda pior, a transgressão de um mandamento pétreo proclamado pelo mestre maior de Amorim e seus colegas de carreira: “Um diplomata não serve a um regime e sim ao seu país”, ensinou o diplomata José Maria da Silva Paranhos Júnior, o Barão do Rio Branco (1845-1912), o chanceler que atravessou quatro governos da nascente República, no início do Século 20, e ampliou o Brasil redesenhando suas fronteiras. Os generais de hoje devem pedir desculpas à Nação pelos erros cometidos pelos generais de ontem como um imperativo ético que demarca fronteiras morais e faz uma justa e sanitária separação entre o Exército da democracia, a que eles servem, e o Exército da ditadura, que eles deveriam repudiar para preservar a honra e a imagem histórica da corporação.
Amorim esqueceu de se desculpar na GloboNews pelo desonroso CIEx. Não recordou da ideia de um pedido de desculpas dos generais ao país. E, distraído, não lembrou da ficha da repórter que o entrevistava no seu gabinete. O ministro da Defesa, até pela autoridade do cargo, conhece os detalhes da biografia de Míriam Leitão que o Brasil desconhece. Amorim esqueceu que era entrevistado por uma sobrevivente da ditadura e das torturas que os generais sob seu comando agora negam, como negaram as torturas no DOI-CODI onde padeceu a guerrilheira da VAR-Palmares Dilma Rousseff.
O “doutor” e a jibóia
Míriam não integrava a luta armada, como Dilma. Nos idos de 1972, aos 19 anos, Míriam era uma militante da base estudantil do então clandestino PCdoB, que tentava derrubar em Vitória (ES) a mesma ditadura que mantinha Dilma no cárcere, em São Paulo (SP). “A gente apenas pichava muros, espalhava cartazes nos pontos de ônibus e nas cabines de orelhões. Lembro que um dia pichei ‘Viva a guerrilha do sul do Pará! Abaixo a ditadura!’ Um idealismo de jovens que acreditavam naquilo, que sabiam que era preciso resistir a tudo aquilo, até mesmo com um simples panfleto”, lembrou Míriam.
Mineira de Caratinga, filha de um pastor presbiteriano e de uma professora primária, sexto filho do casal (depois de três mulheres e dois homens) numa família de 12 irmãos, ela cursava o primeiro ano de História quando conseguiu um emprego na redação de uma rádio de Vitória, o que mudaria sua carreira para sempre. Estreava na profissão como repórter quando sentiu na carne o peso da repressão, sequestrada e presa durante três meses, entre dezembro de 1972 e fevereiro de 1973, no quartel do 38º Batalhão de Infantaria do Exército em Vila Velha, onde foram encarceradas e torturadas cerca de 40 pessoas – a maioria estudantes da Universidade Federal do Espírito Santo e um dos professores, o médico Vítor Buaiz, que fundou o PT, elegeu-se prefeito de Vitória em 1989 e sagrou-se governador do Estado em 1994.
Na primeira parte do livro Brasil: Nunca Mais, dedicado a “Castigo Cruel, Desumano e Degradante”, o Capítulo 2 fala sobre “Modos e instrumentos de tortura”. Na página 39 do trabalho, um resumo do projeto original em 12 volumes escrito por Ricardo Kotscho e Frei Betto, existem oito depoimentos de presos políticos torturados sob a rubrica “Insetos e Animais”.
O quarto depoimento, registrado no livro nº 674, volume 3, páginas 782v-783 do projetoBrasil: Nunca Mais, é a transcrição parcial do auto de qualificação e interrogatório de uma jornalista, então com 20 anos, chamada Míriam de Almeida Leitão Netto. Suas palavras:
[…] que, apesar de estar grávida na ocasião e disto ter ciência os seus torturadores […] ficou vários dias sem qualquer alimentação;
[…] que as pessoas que procediam o interrogatórios, soltavam cães e cobras para cima da interrogada; […]
No livro de Kotscho e Betto havia outro depoimento, de um auxiliar de escritório de 31 anos, Dalton Godinho Pires, que em 1973, no volume 5 do livro n° 75, página 1224, revelou no seu interrogatório:
[…] havia também, em seu cubículo, a lhe fazer companhia, uma jiboia de nome Míriam […]
Não era uma piada. Era uma jiboia mesmo, um exemplar da boa constrictor, a segunda maior cobra do Brasil (só menor que a sucuri), que mede em média três metros de comprimento. O autor deste artigo lembrou desses dados e entrou em contato com Míriam Leitão para esclarecer melhor sua dramática passagem pelo quartel do Exército na praia de Piratininga, no bairro Prainha de Vila Velha, 12 quilômetros ao sul da capital capixaba. Míriam me contou:
“Fiquei presa ali, no 38º Batalhão. Os torturadores vieram de fora e, depois, sumiram. Eles trouxeram a cobra. Eu lembro que chamavam o pior dos torturadores, o dono da cobra, de Dr. Pablo.”
Dr. Pablo era o codinome de um dos mais truculentos oficiais do DOCI-CODI do II Exército, na Rua Barão de Mesquita, no bairro carioca da Tijuca: Paulo Malhães, coronel do Centro de Informações do Exército (CIE). Em março passado Malhães deu um aterrador depoimento à Comissão Nacional da Verdade, numa sessão no Rio com a presença da imprensa. Ali confessou ter arrancado as arcadas dentárias e cortado os dedos de presos mortos sob tortura para não permitir a identificação dos corpos desaparecidos. Um mês depois da confissão, Malhães foi encontrado morto em seu sítio, na Baixada Fluminense, aparentemente vítima de infarto após ter a casa invadida por três bandidos, que fugiram dali levando, entre outros artigos bizarros para um ladrão, três pastas de documentos e o disco rígido de um dos dois computadores do coronel.
Dois anos antes, em junho de 2012, Malhães confirmou ser o dono da Míriam, a cobra que deslizou pela cela da aterrorizada Míriam no batalhão do Exército em Vila Velha. O coronel do CIE contou aos repórteres de O Globo Chico Otávio, Juliana del Piva e Marcelo Remígio que, na primeira metade da década de 1970, levou cinco filhotes de jacaré e uma jiboia para torturar os presos na carceragem do Pelotão de Investigações Criminais (PIC) do I Exército, na Barão de Mesquita, sede do DOI-CODI carioca, onde podem ter morrido 30 presos, segundo estimativas da CNV.
Malhães tinha atuado na “Casa Azul”, o QG da repressão à guerrilha do Araguaia, instalado na antiga sede do DNER em Marabá, no sul do Pará. Ali, segundo levantamento da CNV, morreram 24 presos, 22 dos quais militantes do PCdoB, o mesmo partido pelo qual Míriam pichava muros e espalhava panfletos em Vitória antes do encontro dramático com a Míriam do Dr. Pablo. O coronel contou aos repórteres de O Globo:
“Eu estava um dia à beira de um rio, na região do Araguaia, quando senti a terra tremer. Descobri que estava sentado em cima de um ninho com filhotes de jacaré. Consegui pegar cinco, que batizei de Pata, Peta, Pita, Pota e Joãozinho. E ainda peguei uma jiboia de seis metros, que chamei de Míriam. Trouxe todos para o DOI-CODI, no Rio. Os filhotes de jacaré não mordiam. Só faziam tec-tec com a boca…”
O jornalista mineiro Dalton Godinho Pires, citado pelo Brasil: Nunca Mais, ficou quatro anos preso, mas gravou na pele e na memória os 90 dias de terror no PIC da Barão de Mesquita, graças à Míriam. Localizado em 2012 pelo repórter Chico Otávio, Pires lhe contou:
“Eles chegaram com um isopor enorme, apagaram a luz e ligaram um som altíssimo. Percebi na hora que era uma cobra imensa, que eles chamavam de Míriam. Felizmente, ela não quis nada comigo. Mas, irritada com a música, a cobra não parava de se mexer. O corpo dela, ao se deslocar, arranhou o meu. Cheguei a sangrar. Mas o maior trauma foi o cheiro que ela exalava, um fedor que custei a esquecer.”
Verso e reverso
Quando leu esta reportagem dois anos atrás, no jornal em que trabalha, Míriam teve uma longa e privada crise de choro, ao cruzar na memória de dor o relato de cobras e jacarés da repartição de terror do coronel Malhães. “Era muita coincidência. A ninguém eu disse isso, nem aos meus filhos”, confessou-me ela, sempre refratária a discutir publicamente o seu drama pessoal. “Guardo aqui a sensação de que a minha dor eu mesmo curo. Não é dela que se trata. O que é importante é a dor do país e ela faz certas exigências às instituições. Uma delas é esse reconhecimento das Forças Armadas de que erraram”.
Com a elegância exigida, Míriam preservou os limites institucionais de sua entrevista com o Ministro da Defesa, sem jamais confundir sua história de vida com a vida do país, embora elas se cruzem e se confundam. A consciência de que tinha diante de si uma sobrevivente da ditadura deve explicar o desempenho nervoso de Amorim na entrevista, ao tentar defender o que ele sabia, de corpo presente, não ser verdade. Aos 61 anos, mãe de dois filhos, ambos jornalistas (Vladimir, repórter da Rede Globo em Brasília, e Matheus, repórter da Folha de S.Paulo na sede do jornal), e avó de quatro netos, Míriam é hoje uma das mais importantes profissionais da imprensa brasileira. Acumula 24 prêmios de jornalismo, a terceira maior coleção de troféus no ranking nacional do site Jornalistas & Cia, logo atrás dos campeoníssimos José Hamilton Ribeiro, o mais premiado repórter brasileiro de todos os tempos, e Eliane Brum.
Em 2005, Míriam tornou-se a primeira jornalista brasileira a receber o Prêmio Maria Moors Cabot, patrocinado pela prestigiosa Escola de Jornalismo da Universidade de Columbia (EUA), uma das mais importantes do mundo. Em 2012, Míriam produziu para a GloboNews um programa especial de 50 minutos, A história inacabada, com um devastador relato sobre o sequestro, tortura e morte do ex-deputado Rubens Paiva. O trabalho lhe deu o Prêmio Vladimir Herzog de Anistia e Direitos Humanos, concedido pelo Sindicato dos Jornalistas de São Paulo.
Existe uma maneira simples para definir a qualidade do jornalismo e a essência da conduta profissional de Míriam Leitão. Veja e reveja os dois programas que ela conduziu com brilho e coragem para a GloboNews. Aquele sobre a história inacabada do desaparecido Rubens Paiva, este sobre o desempenho do irresoluto Celso Amorim. O ex-deputado e o atual ministro são, por razões opostas, o verso e o reverso de um mesmo país, ainda atolado no medo endêmico e no cinismo contagioso que rebaixa o debate sobre nosso passado recente.
As perguntas de Míriam e as respostas de Amorim provam, na telinha da GloboNews, que ainda existem jibóias que se enroscam na mentira e jacarés que tentam atemorizar a verdade. O didático enfrentamento na TV entre a repórter e o ministro deixou claro, para os que querem ver, quem enfrenta a jiboia e quem instiga os jacarés.
O inferno das duas Míriam: a jornalista e a jibóia
Três anos atrás, sem contar nada ao marido e aos filhos, Míriam Leitão fez uma furtiva viagem de volta ao passado e ao inferno de sua juventude.
Saiu do Rio de Janeiro e uma hora depois desembarcou em Vitória. Pegou um carro, atravessou a Terceira Ponte, que liga a capital à cidade de Vila Velha, do outro lado da baía, e seguiu em direção a um dos principais pontos turísticos do Estado: o morro da Penha, uma elevação de 150 metros de onde se admira uma bela paisagem. No alto está o velho Convento da Penha, com uma história de 454 anos. Ao pé do morro está outro monumento: o Forte de Piratininga, ali plantado em meados do século 16.
Forte de Piratininga, quartel do Exército, porão de tortura de Miriam Leitão
Míriam não fazia um repentino programa de turista. Era uma dorida viagem interior ao cenário dos piores momentos que a jornalista passou em sua vida. “Quando o país começou a discutir a criação da Comissão da Verdade, por volta de 2011, decidi voltar lá. Eu quis fazer minha viagem pessoal, um retorno particular à minha história”, explica Míriam, no emocionado desabafo que faz pela primeira vez, quatro décadas após o inferno que amargou naquele cenário hoje encantador. Desde o final da Primeira Guerra Mundial, o forte lá embaixo abriga um batalhão de infantaria subordinado ao Comando Militar do Leste (antigo I Exército), no Rio de Janeiro. A construção mais antiga, redonda [na foto, no alto à esquerda], é o prédio histórico da Fortaleza São Francisco Xavier de Piratininga, reformado no século 17. Foi ali que a Míriam quase adolescente de 1972, uma menina grávida de 19 anos, desceu ao submundo da repressão desatinada que marcava o auge da violência do governo mais truculento da ditadura, o do general Emílio Garrastazú Médici.
No início do século 20, a unidade ainda se chamava 3º Batalhão de Caçadores. Em setembro de 1972, três meses antes da prisão ali de Míriam Leitão, o lugar mudou de nome, passando a chamar-se 38º Batalhão de Infantaria. Entre os 707 processos políticos vasculhados no Superior Tribunal Militar pelo projeto Brasil: Nunca Mais, seis deles procedem do único quartel do Exército baseado em solo capixaba, oriundos do belo forte de Vila Velha. Neles, constam 46 denúncias de torturas consumadas no antigo 3º Batalhão de Caçadores. Outros 13 casos de torturas envolvem o atual 38º Batalhão de Infantaria. Todos se referem ao ano de 1972. Um deles é o de Míriam.
Foi lá que Míriam enfrentou a danação de um nome que resumia como ninguém a truculência do regime: o coronel Paulo Malhães, o temido “Dr. Pablo” do DOI-CODI da Rua Barão de Mesquita. Ao ver na TV o velho torturador de 76 anos depondo para a Comissão da Verdade, cinco meses atrás, Míriam chegou a duvidar que fosse o mesmo e fogoso oficial de 34 anos e cabeleira negra e farta que comandou seu interrogatório. Mas ela recorda bem que os outros militares o chamavam de “Dr. Pablo”, o codinome que Malhães usava no DOI-CODI. Existe outra forte coincidência a confirmar a identidade do doutor com o coronel. Malhães veio do Rio trazendo um acessório de tortura que o tornou inconfundível na mitologia da repressão, pelo inusitado da escolha: uma cobra.
Na verdade, uma jiboia que Malhães trouxe do Araguaia e casualmente apelidou de Míriam. Talvez para assustar ainda mais suas vítimas, o coronel dizia que a cobra media seis metros de comprimento. Um evidente exagero do “Dr. Pablo”, pois nem Míriam lembra de uma cobra tão grande. Jiboia dessa dimensão, com 6 metros e 120 kg de peso, só foi vista anos atrás no Camboja. Uma jiboia amazônica como Míriam é mais modesta, varia entre 2 e 3 metros e tem 50 kg de peso, ainda assim com tamanho suficiente para intimidar qualquer um.
Durante horas de um dia assustador a jiboia do “Dr. Pablo” foi a solitária companhia na sala onde Míriam Leitão esteve trancafiada no quartel. Quando voltou à vida, libertada três meses depois, a jovem franzina que só pesava 50 kg tinha perdido 11 kg no cativeiro, onde chegou com um mês de gravidez.
Para a visita agora a esse passado de terror, Míriam contou com a ajuda do ex-governador Paulo Hartung, que conhecia o comandante de 2011 da guarnição e facilitou o acesso da ex-presa. “Fui sozinha, não queria ninguém junto comigo. Era uma jornada só minha. Entrei e não precisei que ninguém me mostrasse o caminho. Era esquisito, não tenho bom senso de orientação, mas eu conhecia aquele quartel como a palma da minha mão. Percebi algumas reformas, paredes que não existem mais, escadas que mudaram de lugar, salas que foram modificadas. Não me permitiram ir a alguns lugares, mas o essencial estava na minha memória”, conta Míriam, hoje, com o tremor na voz que trai os demônios que assombraram aquele lugar. Ela posou para fotos junto à porta da cela onde ficou um tempo, tiradas pelo motorista que a acompanhava. E conseguiu voltar à sala grande onde passou a madrugada de horror com sua homônima jiboia. “O lugar agora é um anfiteatro, mas eu fui direto ao ponto onde me mantiveram de pé, nua, durante horas, antes e durante o tempo em que fiquei com a cobra. É uma imagem que não sai da minha cabeça. Ali eu fiz essa foto”, explica, abrindo pela primeira vez seu arquivo pessoal.
Míriam, em meio a tanto sofrimento, lembra de um paradoxo que vivia na época: “Minha cela ficava na fortaleza. Quando eu saía de lá à noite e era levada para outro local de tortura, eu a contornava e passava pela escadaria. Saía desse belo prédio circular, às margens da baía – e que hoje, por ironia, o Exército aluga para festas –, e era levada para a parte nova do quartel onde funcionavam algumas seções administrativas do quartel. Olhava aquele lugar lindo, lindo até hoje, o convento lá em cima, e pensava o quanto nada daquilo fazia sentido. Era uma beleza que contrastava com a violência daquele lugar. Eu não conseguia entender isso. Não entendia naquela época, não entendo até hoje”, diz Míriam, a voz embargada pela emoção da memória. Pela primeira vez, Míriam Leitão conta aqui como viveu, e sobreviveu, naquele lugar:
Helenira Resende de Souza Nazareth é considerada desaparecida política por não terem sido entregues os restos mortais aos seus familiares
“Foi nesse quadro, na volta, que o próprio Nagib fez o que ele chamava de ‘tortura sexual científica’. Eu ficava nua, com o capuz na cabeça, uma corda enrolada no pescoço, passando pelas costas até as mãos, que estavam amarradas atrás da cintura. Enquanto o torturador ficava mexendo nos meus seios, na minha vagina, penetrando com o dedo na vagina, eu ficava impossibilitada de me defender, pois, se eu movimentasse os meus braços para me proteger, eu me enforcava e, instintivamente, eu voltava atrás”.
A citação é de Lucia Murat, uma das mulheres torturadas e machucadas psicologicamente pelo regime militar que, em 2021, “comemora” 57 anos de instauração. Foi em um 31 de março que o Brasil dormiu em um regime democrático e acordou com uma ditadura que perseguiu, torturou e matou centenas de pessoas, entre de 1964 e 1985, incluindo jovens, mulheres e crianças.
O depoimento de Murat consta na Comissão Nacional da Verdade, um mecanismo criado pela ex-presidente, Dilma Rousseff, para investigar e esclarecer as graves violações de direitos humanos ocorridas entre 18 de setembro de 1946 e 5 de outubro de 1988. Depois de colher os depoimentos e ouvir diversos militantes e agentes repressivos da época, a CNV virou um documento que pode ser acessado facilmente pela internet.
Sorocaba também teve uma movimentação parecida. O secretário de organização do Sindicato dos Metalúrgicos de Sorocaba e Região (SMetal), Izídio de Brito, presidiu – durante seu mandato como vereador – a Comissão Municipal da Verdade que repercutiu os fatos da Ditadura Militar no município. Em 2014, foram ouvidos nomes que estiveram envolvidos com os acontecimentos do regime: eram militantes, trabalhadores, professores, sindicalistas que se viram enquadrados, muitas vezes, como “subversivos”, simplesmente por não compactuarem com o tipo de governo vigente.
Apesar de não ter sido efetivo no que diz respeito à punição e/ou condenação efetiva dos agentes da repressão, para Izídio de Brito, o documento teve importância em prestar homenagem e honrar a memória das vidas que foram perdidas no regime autoritário.
“Foi muito importante por dois motivos: para levantarmos as verdadeiras histórias de tudo que ocorreu e também para fazer valer aquilo que as famílias sofreram. Tivemos aqui muitos familiares que perderam seus entes queridos e ficaram com sequelas. Durante a Comissão, vejo como um período rico nacionalmente. Nas cidades que foram feitas comissões houve um resgate que, na minha percepção, deu condição às pessoas em expor os seus sentimentos e todas elas estiveram muito orgulhosas em fazer parte desse enfrentamento”, recorda.
A CNV, em seu relatório final, reconheceu 434 mortes e desaparecimentos políticos entre 1964 e 1988 e ficou constatado, ainda, o uso da força bruta como tentativa de colher “delações” dos militantes de esquerda. O pau de arara, os choques, a cadeira do dragão... Todos mecanismos de repressão que brutalizaram intensamente os homens, mas duplamente as mulheres já que os agentes do estado utilizavam das questões de gênero para violar, ainda mais, os direitos dessas companheiras.
Dilma Rousseff, Helenira Resende, Maria Amélia de Almeida Teles, Iara Iavelberg, Aurora do Nascimento Furtado, Nilda Carvalho Cunha, Rose Nogueira, Iracema de Carvalho Araújo, Miriam Leitão, Zuzu Angel... São muitos nomes de mulheres que sofreram com os tentáculos da ditadura. Ainda assim, as que sobreviveram para contar suas histórias, são tantas vezes descreditadas.
“Apesar de todas os relatos que ouvimos, ainda há pessoas que insistem em não acreditar nas torturas desse processo. Que ficaram comprovadas pela Comissão Nacional da Verdade”, comenta o presidente do Sindicato dos Metalúrgicos, Leandro Soares. Ele traz ao debate o processo de descrença que o regime militar sofre até os dias de hoje.
O doutor em ciências sociais e jornalista, João José de Oliveira Negrão, considera que esse “apagamento”, que muitos tentam propagar, se dá por uma negação geral da população. “Em primeiro lugar, há o desconhecimento da história do país. Em segundo, penso, ocorre algo que a psicanálise chama de negação: nós adoramos nos ver como um povo alegre, festeiro, receptivo. A ditadura cívico-militar que se instalou com o golpe de 64 foi o contrário disso. Então, tendemos a negar ou relativizar seus males, para que nossa auto-imagem se preserve”, explica.
A violência de gênero exposta na ditadura
A socióloga e especialista em psicopedagogia, Carolina Canon, explica como os abusos destinados a mulheres iam desde a violência física, até a psicológica. “A ditadura civil-militar no Brasil, através das figuras algozes de seus torturadores, usou amplamente não só do estupro, mas também da brusca separação dos filhos e filhas de suas mães militantes, no intuito de, mais do que puni-las por seus comportamentos subversivos, faze-las exemplos para outras mulheres que pudessem insurgir contra o Estado, na tentativa de suprimir qualquer tipo de mudança, tanto ao que dizia respeito ao regime totalitário instaurado, quanto a esta pseudo-naturalização de papeis femininos e masculinos na vida social”, afirma.
Relembrar é viver. Jamais estaremos na pele de quem sofreu com as chagas de um sistema atroz, mas se faz importante mergulhar pelas lutas dos companheiros que deram suas vidas pela democracia. Por isso, o SMetal selecionou trechos de depoimentos femininos na Comissão Nacional da Verdade que precisam ser de conhecimento público:
Izabel Fávero, depoimento à CNV, em 27 de abril de 2013.
“Eu fui muito ofendida, como mulher, porque ser mulher e militante é um karma, a gente além de ser torturada física e psicologicamente, a mulher é vadia, a palavra mesmo era “puta”, “menina decente, olha para a sua cara, com essa idade, olha o que tu está fazendo aqui, que educação os teus pais te deram, tu é uma vadia, tu não presta”, enfim, eu não me lembro bem se no terceiro, no quarto dia, eu entrei em processo de aborto, eu estava grávida de dois meses, então, eu sangrava muito, eu não tinha como me proteger, eu usava papel higiênico, e já tinha mal cheiro, eu estava suja, e eu acho que, eu acho não eu tenho quase certeza que eu não fui estuprada, porque era constantemente ameaçada, porque eles tinham nojo de mim. E eu lembro que no dia em que nós fomos presos, exatamente no dia 4, nós tínhamos estado em Cascavel, e quando a gente saiu da ginecologista, tinha um veículo militar, mas a gente em momento nenhum pensou que eles estivessem vigiando a gente, eles já estavam no encalço da gente, eles seguiram, esse dia eles nos seguiram o dia todo. E o meu marido dizia, “por favor não façam nada com ela, pode me torturar, mas ela está grávida”, e eles riam, debochavam, “isso é história, ela é suja, mas não tem nada a ver”, enfim. Em nenhum momento isso foi algum tipo de preocupação, em relação [...]. Eu certamente abortei por conta dos choques que eu tive nos primeiros dias, nos órgãos genitais, nos seios, ponta dos dedos, atrás das orelhas, aquilo provocou, obviamente, um desequilíbrio, eu lembro que eu tinha muita, muita, muita dor no pescoço, quando a gente sofreu choque, a gente joga a cabeça pra trás, aí tinha um momento que eu não sabia mais onde doía, o que doía em todo lado, mas enfim. Certamente foi isso. E eles ficavam muito irritados de me ver suja e sangrando e cheirando mal, enfim. Eu acho que ficavam até com mais raiva, e me machucavam mais ainda”.
Antônia Ribeiro Magalhães foi presa e levada com o marido para o DOI-CODI/SP 1971.
“Na questão da mulher, a coisa ficava pior porque... quer dizer pior, era pior para todo mundo, não tinha melhor para ninguém, né? Mas [...] existia uma intenção da humilhação enquanto mulher. Então, o choque na vagina, no ânus, nos mamilos, alicate no mamilo, então... eram as coisas que eles faziam. Muitas vezes, eu fui torturada junto com Celso Brambilla porque a gente sustentou a questão de ser noivo. Eles usaram, obviamente, essa situação, esse vínculo, suposto vínculo, além da militância, que seria um vínculo afetivo também, para tortura. Muitas vezes, eu fui amarrada com o rosto na genitália do Celso, e dado choque, enfim... fios amarrados em nós, para que levássemos choque no pau de arara [...] Uma das coisas mais humilhantes, além dessas de choques na vagina, no ânus, no seio, foi que eu fui colocada em cima de uma mesa e fui obrigada a dançar para alguns policiais, nua. Enquanto isso, eles me davam choque. [...] Celso estava sendo torturado ao lado, também com choque elétrico, me vendo nessa situação.”
Criméia Schmidt de Almeida, presa em 1972 e levada ao DOI-CODI
“Numa dessas sessões, um torturador da Operação Bandeirantes que tinha o nome de Mangabeira ou Gaeta [...] eu amarrada na cadeira do dragão, ele se masturbando e jogando a porra em cima do meu corpo. Eu não gosto de falar disso, mas eu vejo a importância desse momento de tratar a verdade e gênero pensando nessas desigualdades 408 10 – violência sexual, violência de gênero e violência contra crianças e adolescentes entre homens e mulheres, em que os agentes do Estado, os repressores usaram dessa desigualdade para nos torturar mais, de certa forma. De usar essa condição nossa. Nós fomos torturadas com violência sexual, usaram a maternidade contra nós. Minha irmã acabou tendo parto, tendo filho na prisão. [...] Nós sabemos o quanto a maternidade, o ônus da maternidade, que nós carregamos.”
Eleonora Menicucci de Oliveira
“Um dia, eles me levaram para um lugar que hoje eu localizo como sendo a sede do Exército, no Ibirapuera. Lá estava a minha filha de um ano e dez meses, só de fralda, no frio. Eles a colocaram na minha frente, gritando, chorando, e ameaçavam dar choque nela. O torturador era o Mangabeira [codinome do escrivão de polícia de nome Gaeta].”
Flora Strozenberg, raptada em 1974 e levada ao DOI-CODI
“Aí ele arruma a cadeira do ginecologista. [...] É uma cadeira de ginecologista que eles pegam choque elétrico e botam [na vagina] com as seguintes palavras: “Isto é para você nunca mais botar comunista no mundo”. Num primeiro momento, me senti muito ameaçada. Senti como uma ameaça não a mim, aos meus filhos havidos e futuros. [...] Aí eu fiquei bem deprimida, né? Mas voltei para a cela [...] e pensei: bom, também pode ser uma boa notícia porque se eu não vou mais botar comunista no mundo ele não tem mais condição de me matar, nem de me torturar de forma externa.”
Em entrevista à Imprensa SMetal, a socióloga Carolina Canon fala sobre as questões de gênero na ditadura. Você pode conferir, na íntegra, aqui.
Não continue votando em deputados estadual e federal homicidas. Não reeleja um serial killer, quem matou mais de três pessoas. Quando existe parlamentar que confessa, com orgulho e propaganda política e amedrontamento, ter assassinado (pasmem!) cem, duzentas pessoas, usando a desculpa de que bandido bom é bandido morto, acontecendo do morto ser sempre um negro ou mulato.
As assembléias legislativas estaduais e o Congresso Nacional estão repletos de racistas, genocidas, criminosos cruéis, que matam por prazer, para ser temidos, para continuarem comandando quadrilhas de matadores de aluguel, de pistoleiros que eliminam adversários políticos, lideranças comunitárias, ambientalistas, líderes sindicais, defensores de direitos humanos.
São deputados chefes de milícias. Temos no Rio de Janeiro, o Escritório do Crime, sediado no Rio das Pedras, que metralhou Marielle Franco. Um mando criminoso que se estende pela turística Barra da Tijuca, pelo Condomínio Vivendas da Barra, de onde saiu o mando da morte de Moïse Kabagambe.
Um policial, para um exemplo, não precisa ser um monstro. Aline Mendes Favarim, em sua tese "Psicopatia e assassinos em série: o perfil do criminoso e sua relação com a vítima", cita Friedrich Nietzsche: “Quem combate monstruosidades deve cuidar para que não se torne um monstro. E se você olhar longamente para um abismo, o abismo também olha para dentro de você.”
Monstros policiais, nesta campanha eleitoral de 2022, já ameaçaram de morte o candidato a presidente Lula da Silva.
Não vote em deputado homicida. Em serial killer
Precisamos alertar: Nestas eleições de 2 de outubro próximo não vote em deputado homicida. Não vote em serial killer.
Aline Mendes Favarim escreveu tese com "o propósito de trazer para a realidade acadêmica a discussão acerca de temas de grande interesse social, quais sejam, a psicopatia e os assassinos em série, abordando a técnica do perfil criminal e a perspectiva da vítima através da introdução de aspectos sobre a Vitimologia".
Escreve Aline Favarim: "Inicialmente, explica- se a origem do conceito de psicopatia e os fatores que contribuem para o seu surgimento. Em seguida, apresenta-se o PCL-R, instrumento de maior confiabilidade para a identificação de traços de psicopatia, os principais traços presentes em um psicopata e a sua relação com a violência. O debate acadêmico prossegue com a abordagem da confusão existente entre os conceitos de psicopatia e transtorno de personalidade antissocial, a qual gera divergências inclusive entre os profissionais da área da saúde mental. Sobre os assassinos em série são expostos o conceito de crime em série, as classificações de seus agentes e a equivocada concepção de que o sexo feminino não se engaja no cometimento de tal tipo de delito. Procura-se demonstrar que não somente a psicopatia pode integrar a personalidade dos serial killers, mas também diversos transtornos parafílicos, sendo os responsáveis pelas suas preferências (fazer a vítima sofrer, vitimar apenas crianças, etc.). Possuindo como objetivo identificar tais criminosos surgiu a técnica do perfil criminal, criticada devido à subjetividade que demanda, fato sobre o qual se discorre juntamente com a contribuição que à elaboração do perfil prestam outras áreas do conhecimento. Por fim, é analisado o papel da vítima no crime cometido, bem como a necessidade da adoção de políticas que visem a auxiliá-la a superar o trauma sofrido, contrariando a perspectiva atual, na qual os esforços se concentram no criminoso.
Psicopatia e assassinos em série: o perfil do criminoso e sua relação com a vítima
Para Aline Mendes Favarim: A psicopatia está situada entre os aspectos mais intrigantes que envolvem a mente humana. Especialistas mantêm a busca por instrumentos que definam com precisão as características do indivíduo psicopata - em que pese o PCL-R ser mundialmente reconhecido como a melhor ferramenta para tal - e por maior grau de certeza quanto aos fatores que levam uma pessoa a se tornar psicopata, o que talvez permitisse prevenir de alguma forma o surgimento desta condição da personalidade. Ademais, a incessante procura por alternativas que surtam efeito enquanto tratamento faz com que a psicopatia permaneça em constante estudo.
Neste contexto, temos o transtorno de personalidade antissocial (TPAS), não muito conhecido pelo senso comum, eis que os meios de comunicação costumam utilizar a denominação “psicopatia” indiscriminadamente, apesar das diferenças existentes entre ambos. A menos que se faça a leitura de um artigo científico sobre o tema ou de alguma notícia que tenha como fonte especialistas da área da Psicologia ou da Psiquiatria, é muito provável que se encontre a definição de “psicopatia” como transtorno mental, ignorando a existência do TPAS.
Considerando a grande exposição que a psicopatia possui atualmente e a utilização de seu nome, por vezes, de forma equivocada, se faz importante diferenciá-la do transtorno de personalidade antissocial, mostrando que nem sempre uma pessoa com atitudes aparentemente características de um psicopata pode ser diagnosticada como tal. De igual forma, não se pode presumir que, por ser psicopata, um indivíduo seja, obrigatoriamente, violento e vá, futuramente, cometer um crime, tendo em vista que são pouco numerosos os casos em que psicopatas praticam delitos, convivendo a maioria em sociedade normalmente, apresentando apenas determinados traços de personalidade que podem ser considerados inadequados ou incorretos, mas que não chegam a ser sinal de alerta, já que podem ser encontrados em qualquer outra pessoa.
No Brasil, a psicopatia tornou-se conhecida popularmente há não muito tempo, mas nos Estados Unidos, por exemplo, o interesse do cinema e da televisão pelo tema já é antigo, sendo representado pelas produções que envolvem criminosos seriais. Contudo, não é possível afirmar que todos os assassinos em série são psicopatas, porquanto podem sofrer de diversos transtornos mentais.
Outrossim, cada série de crimes possui características e motivações diferentes, o que é suficiente para demonstrar que devemos analisá-las cautelosamente.
Da mesma forma que ocorre com a psicopatia, o destaque conferido aos serial killers nos dias de hoje tem origem principalmente na abordagem de casos reais e fictícios pelos meios de comunicação (telejornais, seriados, filmes, novelas, internet). Sendo assim, é necessário cuidado com os estereótipos e conceitos pré- estabelecidos acerca desses sujeitos, pois nem sempre correspondem à verdade.
Devido à complexidade dos homicídios em série, foi desenvolvida a técnica do perfil criminal, cujo objetivo é compreender a personalidade do agente que comete esse tipo de delito. Surgida nos Estados Unidos, hoje a ferramenta é mundialmente utilizada e reconhecida como a mais confiável para auxiliar na identificação e prisão dos suspeitos, fato que, porém, não a exime de críticas e não faz dela um método infalível. Conhecer a mente do criminoso é um ponto considerado essencial para a sua identificação, além de possibilitar a previsão de seus próximos passos, evitando o surgimento de novas vítimas e, consequentemente, colaborando para a prevenção de futuros delitos.
No entanto, apesar de comumente esquecida, a perspectiva da vítima é tão importante quanto a do criminoso. Partindo do estudo das características da(s) vítima(s), é possível estabelecer o padrão seguido pelo agressor, o qual serve de alerta para outras pessoas que possuem os mesmos traços, além de auxiliar o trabalho policial.
Tal é o panorama que envolve a presente dissertação. Pretende-se, primeiramente, analisar o conceito de psicopatia, apresentando, para isso, o PCL-R, elaborado por Robert Hare – instrumento que almeja identificar psicopatas através do preenchimento de certos itens característicos desse tipo de personalidade, os quais são valorados de acordo com critérios que aqui serão expostos. Não apenas por meio da Escala Hare, a psicopatia será abordada pelo viés dos fatores que levam ao seu surgimento, discutindo-se a influência de aspectos biológicos, psicológicos e sociais para verificar se é possível afirmar que uma pessoa será psicopata futuramente. Busca-se, ainda, avaliar a relação da psicopatia com a violência, bem como as características geralmente encontradas na personalidade psicopata.
A partir da pesquisa da psicopatia, parte-se para o estudo do transtorno de personalidade antissocial, trazendo as definições encontradas na CID (Classificação Internacional das Doenças) e no DSM (Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais). Com isso, tem-se a base para a diferenciação entre a psicopatia e o TPAS, de importante realização em razão dos equívocos já mencionados, mas que, adianta-se, carece de um consenso. Logo, não é o objetivo deste trabalho encerrar a discussão sobre o tema, e sim demonstrar que os conceitos são diversos e que muitos equívocos são cometidos quando da utilização das denominações em questão.
Na sua tese, Aline Mendes Favarim trata dos assassinos em série. Iniciando pela discussão acerca do conceito – quantos homicídios são necessários para configurar uma série? Exige-se determinado intervalo de tempo entre os crimes? – que envolve definições correlatas que podem ser confundidas com a caracterização de uma série de crimes, chegaremos às classificações dos assassinos em série, enfatizando a tipologia proposta pelo FBI, haja vista ser o órgão de referência no estudo de suas personalidades.
Quanto ao aspecto psicológico dos serial killers, tendo por base o DSM-V, serão abordados os transtornos parafílicos, indissociáveis da figura do assassino em série – especialmente o sadismo sexual – com o escopo de mostrar que não é apenas a psicopatia que se faz presente nos agentes que cometem tais crimes. Outrossim, encerrando a discussão deste ponto, a psicopatia será abordada na sua ligação com os serial killers, sendo esta exemplificada pela história de Ted Bundy, um dos principais assassinos em série que já estiveram em atividade nos Estados Unidos.
Para a abordagem do criminoso no terceiro capítulo, serão trazidos conceitos e ferramentas utilizadas pelo FBI, pois impossível tratar do perfil criminal sem mencionar como surgiu e foi sendo aperfeiçoado ao longo do tempo. Por ser um tema extenso e complexo - e não ser este o escopo desta dissertação - não é possível aprofundá-lo, porém, é importante trazer críticas pontuais a determinados aspectos do perfil, bem como demonstrar que não é uma técnica mágica, mas que trabalha com o raciocínio dedutivo e indutivo, além de possuir auxílio do perfil geográfico e das ciências forenses, entre outras áreas do conhecimento, para garantir maior confiabilidade e precisão nas suas conclusões. Brevemente, ao final, avalia-se a admissibilidade da técnica no sistema jurídico brasileiro, mencionando-se a sua relevância no julgamento de Francisco de Assis Pereira, que ficou conhecido como “O Maníaco do Parque”.
Por fim, será apresentado o panorama da Vitimologia. Para a discussão, fundamental trazer-se as concepções dos primeiros autores que trataram do tema, pontuando algumas críticas das visões mais modernas a respeito do mesmo. Discorrendo sobre a relação entre o criminoso e a vítima, chega-se à importância que o Código Penal Brasileiro confere ao seu papel na ocorrência do crime que sofreu, bem como na ideia da Vitimologia Positiva, que busca soluções que, efetivamente, auxiliem a vítima na superação do fato e não promovam outro processo de vitimização, como o sistema jurídico-penal costuma fazer, ainda que não intencionalmente.
A preocupação de proteger a vítima dos nocivos efeitos do crime
Acrescenta Aline Favarim: A violência não é um fenômeno recente. De alguma forma, sempre esteve presente ao longo da História, por mais que, atualmente, a impressão seja a de que nunca se observou tanta violência na sociedade. De fato, diversos fatores levaram ao aumento dos índices que apontam sua incidência, porém, o que mais impressiona, aparentemente, é que a violência aumenta cada vez mais e em todas as suas formas – violência contra a mulher, idosos, negros, homossexuais, crimes com motivação fútil, torpe, ou mesmo sem qualquer motivo, entre outros. Ainda que a população se sensibilize com relação, principalmente, aos delitos que envolvem algum tipo de preconceito, bem como aqueles praticados contra familiares (pais, avós, filhos, etc.) é notório que os crimes considerados “bárbaros” são os que mais espantam as pessoas.
Há dois anos, o diretor executivo da Yoki, Marcos Matsunaga, foi morto pela mulher, Elize Matsunaga, no apartamento onde moravam, na cidade de São Paulo. Entretanto, o que chamou a atenção neste caso não foi o fato de Marcos ter sido assassinado pela esposa, mas sim a revelação desta, de que havia esquartejado o corpo do marido. Tal caso é um exemplo daquilo que realmente choca a sociedade: os requintes de crueldade utilizados em certos crimes. Claro, a questão da crueldade é subjetiva, pois as formas de execução consideradas cruéis para uns, não o são para outros, mas, em geral, estamos acostumados a relatos de violência envolvendo armas de fogo e armas brancas, assim, qualquer caso que saia de tal padrão é suficiente para ganhar destaque.
A barbárie de determinados comportamentos criminosos leva à busca de explicações para tamanha violência, e, neste contexto, é inserida a psicopatia. Quando parece não haver explicação plausível para um crime ou a compreensão dos motivos torna-se impossível, a reação instantânea é afirmar que o agressor só pode se tratar de um psicopata. Há de se salientar que os meios de comunicação contribuem para essa concepção equivocada, conferindo grande destaque a tal tipo de delito e, por vezes, adiantando-se a conclusões precipitadas.
A psicopatia não permite definições baseadas no senso comum, pois se trata de um tema complexo, que não apresenta consenso quanto aos fatores que a originam – uma conjunção de fatores, uns em maior e outros em menor grau – ou quanto à sua definição. Pode-se dizer que a psicopatia é uma condição definida através dos critérios do PCL-R que identificam um indivíduo psicopata, contudo, o que determina se a pessoa que está se submetendo ao instrumento pertence a esse grupo é a pontuação que ela obtém. O ponto de corte do PCL-R varia de acordo com o objetivo e o contexto de sua utilização, sendo de 23 pontos na versão brasileira, conforme definido por Hilda Morana. Tais informações são suficientes para demonstrar o porquê da preocupação com as ideias difundidas pelo senso comum, no que se refere à psicopatia. No entanto, temos, ainda, a confusão entre a sua definição e o transtorno de personalidade antissocial, que é ainda mais nebulosa. É imperioso destacar que existem diferenças entre ambos, sendo este o ponto mais importante; todavia, existe grande dificuldade em desvinculá-los como diagnósticos distintos.
Os delitos praticados por indivíduos que apresentam comportamento antissocial não superam, entretanto, em termos de destaque na mídia, os crimes cometidos por assassinos em série. Talvez pelo fascínio que esses criminosos exercem na cultura americana, principal exportadora dos filmes e seriados assistidos no Brasil, tenhamos adquirido o mesmo interesse, tanto pelas obras fictícias quanto pelos acontecimentos reais. Impossível discorrer sobre o tema sem utilizar como norte as diretrizes elaboradas pelo FBI, pois foi através de seu ex-agente Robert Ressler que foram dados os primeiros passos em direção à conceituação do homicídio em série. Ademais, procedeu-se ao desenvolvimento dos estudos sobre a personalidade criminosa na instituição, através de unidades como a BRIU (Behavioral Research and Instruction Unit) - a Unidade de Pesquisa e Instrução Comportamental - a qual integra o NCAVC (National Center for the Analysis of Violent Crime) - o Centro Nacional para a Análise de Crimes Violentos.
As especificidades dos crimes em série são vistas desde a sua definição, que não deve ser confundida com o assassinato em massa (mass murder) e com a onda de assassinatos (spree murder). Outrossim, as classificações dos sujeitos que praticam esses delitos variam de acordo com o autor pesquisado e não podem ser aplicadas às assassinas seriais, pois são consideradas um caso à parte, eis que existem diferenças entre os crimes em série cometidos por homens e mulheres. Ainda, a psicopatologia dos serial killers pode envolver mais de um transtorno mental, fato que se reflete diretamente nos motivos para os delitos.
Considerando que os homicídios em série geralmente possuem componentes sexuais que levam ao estupro, além da grande violência demonstrada pelas cenas dos crimes e a tendência do serial killer de continuar matando até que seja preso ou morto, tem-se a urgência de que esses crimes sejam desvendados o mais rápido possível. Assim, a fim de auxiliar a investigação dos casos mais complicados surgiu a técnica do perfil criminal, conquanto o interesse pelo estudo da personalidade humana exista há séculos. Apesar de ser apresentada em filmes e seriados como uma técnica mágica, que identifica um assassino em série precisamente, em pouco tempo, com base apenas em alguns dados obtidos na cena do crime e por meio da experiência dos chamados profilers – cuja habilidade parece, de igual forma, mágica – trata-se de uma ferramenta em constante aperfeiçoamento, que direciona a investigação com base nas prováveis características do suspeito que cometeu o crime. Destaca-se, por fim, que os dados fornecidos pelo perfil criminal devem ser analisados com cautela, pois este ainda depende muito dos conhecimentos e da experiência do profissional que o utiliza, e aqui reside uma das críticas à ferramenta: a carga de subjetividade que ela exige.
Quase sempre esquecida, a vítima sobrevivente passa pelo trauma de ter sofrido uma violência e, enquanto tenta se recuperar para continuar vivendo normalmente, é obrigada a vivenciar novamente a experiência que gostaria de esquecer - seja para ajudar a polícia a encontrar seu algoz ou para tentar ajudar na condenação deste, no seu julgamento. O papel da pessoa que sofre o processo de vitimização é de grande relevância para a investigação, pois permite o reconhecimento de um padrão por parte do suspeito (Ted Bundy, por exemplo, atacava mulheres com as mesmas características), e a partir dos dados obtidos na investigação, é possível saber se as suas escolhas são baseadas em algum fato ocorrido em sua vida pregressa, tal como um trauma ou um acontecimento que o tenha marcado por alguma razão. Por outro lado, a descoberta do tipo de vítima a que o agressor costuma visar já possibilita a prevenção de novas vítimas, como nos casos de homicídios de prostitutas, que serão alertadas para redobrar o cuidado na sua rotina de trabalho.
Em contrapartida, a vitimologia nos traz outro aspecto, este normalmente deixado de lado, qual seja, o da humanização da vítima. O foco sempre reside no criminoso, esquecendo-se de quem sofreu a violência e precisará conviver com o fato para o resto de sua vida, sendo visto, inclusive, somente como um instrumento para a identificação, prisão e posterior condenação de seu agressor. Nos homicídios em série, não é sempre que uma vítima consegue sobreviver (porque fugiu ou porque obteve socorro a tempo), mas quando isso ocorre, além de conviver diariamente com o trauma, esta ainda precisará se submeter a depoimentos que farão com que reviva o fato, além de um desfecho que deve demorar, no mínimo, meses, período durante o qual será mais difícil a ela superar o trauma sofrido.
Propositalmente, as discussões propostas na presente dissertação são atuais e envolvem tópicos sobre os quais existem inúmeras controvérsias, pois apenas através do debate é possível ampliar e aperfeiçoar os conhecimentos acerca de qualquer tema. Quanto maior a discussão acadêmica sobre determinado assunto, maior a divulgação e o interesse despertado pelo tema; assim, consequentemente, maior é a gama de subsídios angariados para que, futuramente, se possa chegar a um consenso.
Trazendo as bases do debate a respeito dos conceitos de psicopatia e TPAS, se procura comprovar que a questão abrange mais elementos que aparenta e é foco de controvérsia entre os profissionais de saúde mental até hoje. Os crimes cometidos por assassinos em série ganham importante destaque nos meios de comunicação, mas exigem um estudo mais detalhado acerca das condições sociais e psicopatológicas que levaram à sua prática. O perfil criminal é uma ferramenta que, se utilizada da forma correta, pode ser de grande auxílio para a investigação policial, indo muito além de uma suposta mágica ou mera intuição do agente que dela se vale. A vitimologia é um campo de estudo explorado ainda de maneira rasa, e que merece um profundo debate acadêmico, tendo em vista que as concepções mais modernas visam a proteger a vítima dos nocivos efeitos do crime.
Assim sendo, é relevante desvincular os tópicos aqui tratados do senso comum, logo, objetiva-se esclarecer os pontos que mais conduzem a conclusões equivocadas pelo imaginário popular, bem como apresentar a visão acadêmica sobre os mesmos. Entre as intenções deste trabalho está demonstrar que temas aparentemente exauridos e repetitivos são, na verdade, muito explorados fora da realidade acadêmica, o que faz surgir a percepção de que não possuem complexidade ou espaço para aprofundamento de seu estudo.
Longe de pretender exaurir as discussões, este trabalho pretende ser uma contribuição para a discussão científica de cada área, discorrendo sobre temas de grande interesse popular, aprofundando seu estudo e realizando um link entre os mesmos. Com isso, espera-se instigar o leitor a buscar informações de credibilidade a respeito dos tópicos que lhe são curiosos, afastando-se daquilo que reproduz o senso comum. Finalmente, busca-se incentivar o debate acadêmico no que concerne aos assuntos abordados, eis que lidam com problemas e soluções para uma das situações que mais preocupam a sociedade: a violência.