A autora de “A torre das guerreiras”, Ana Maria Ramos Estêvão
Ainda que tenha como tema um período histórico sofrido, de exílios, violência, torturas e perdas humanas, o livro de Ana Maria Ramos Estevão, uma de minhas parceiras de resistência enquanto vivemos intermináveis meses encarceradas no Presídio Tiradentes, em São Paulo, entristece-nos pelas denúncias que voltam à tona, mas não nos deprime. Pelo contrário, consegue ser lírico, de um lirismo improvável, mas que tem o aroma agradável de um relato cheio de sinceridade.
Comove pela honestidade e pela capacidade que a autora tem de, mesmo em meio ao ódio e à brutalidade das torturas com que nós, presos políticos, fomos tratados, encontrar, onde preponderava o sofrimento, pequenas alegrias e motivos para acreditar na humanidade quando a rotina era a banalidade do mal.
Neste livro não há rancor e ressentimento, apenas o desejo de que aquelas tragédias – não apenas a tragédia do país, mas os dramas pessoais a que Ana Maria assistiu e viveu – não sejam esquecidas pelas atuais gerações. Que sejam lembradas sempre para que não se repitam. Como ela mesma afirma, “sinto-me no dever moral de registrar estas memórias, antes que o tempo as apague e não reste nada mais que a lembrança difusa da dor que esta escrita pretende, senão extinguir, ao menos, acalmar.”
Nós, que dividimos a Torre das Donzelas, ou “das Guerreiras”, como Ana Maria decidiu renomear, só temos a agradecer por ela ter adotado a missão de preservar as suas memórias. Parte delas também é nossa. As lembranças deste livro ressaltam e valorizam, em meio à crueldade de uma ditadura que brutalizava suas vítimas, pequenos e grandes gestos de solidariedade e amizade entre militantes muito jovens – tínhamos, a maioria, entre 20 e 25 anos –, todas dispostas a sonhar com outro país e com coragem de lutar por ele.
Com justiça, este livro aponta o dedo acusador também para os que, mesmo sendo civis, participaram alegremente das sessões de sevícias, oferecendo apoio aos torturadores fardados, e que “riam cinicamente enquanto as pessoas sofriam e gritavam. Esse não era o trabalho deles: eram fascistas voluntários”.
Mas também conta a história de rara beleza, de que só a grandeza humana é capaz. “Nunca abrimos mão do riso, da alegria e da civilidade como estratégia de sobrevivência, haja vista que, para garantir o moral elevado, o humor era fundamental. Cantar também era nosso costume. Cantávamos o tempo todo: por tristeza, para avisar das novidades, quando alguém chegava, quando alguém saía. As cantorias estavam sempre presentes”.
Canções que poderiam ser canções de amor, como a de Tânia, que cantava perto da pequena janela para ser ouvida por seu companheiro Gabriel, que, com câncer, estava preso no mesmo local, em cela distante. Todas fazíamos silêncio para que Tânia fosse ouvida pelo marido e, quando, um dia, Ana Maria perguntou por que cantava todas as noites, ela respondeu: “Assim ele me ouve e sabe que estou bem”.
Apesar de pertencer à Igreja Metodista desde menina, onde iniciou sua militância política, Ana Maria, como todas nós, também passou por momentos em que se rendeu ao desabafo do desespero, como quando diz que “na tortura não existe sujeito, ele foi anulado, […] foi rebaixado ao estado de ‘coisa’. […] Deus não existe na tortura, ficamos sós, completamente sós”.
Depois de ter sido barbaramente torturada na Oban e ter passado nove meses na Torre das Guerreiras, a autora deste livro foi presa de novo e ainda sofreu o exílio, durante o qual, pelo menos, teve a alegria de conhecer um ídolo, Paulo Freire, a quem brindou com um jantar tipicamente nordestino.
A brava Ana Maria soube enfrentar o pior, e felizmente está aqui para nos contar, já que muitas não tiveram a mesma chance. Ela explica que “o fio condutor destas memórias é a vida de quem sobreviveu e de quem precisou aprender a mentir para defender a sua vida e a de seus companheiros, mesmo porque, em algumas situações, as pequenas verdades podem ser perigosas”. Sua razão de viver e sua gana de sobreviver ela justifica numa frase que é a perfeita tradução deste livro: “A luta e a esperança, sempre! Viver é muito perigoso, mas é muito bom!”.
Ana Maria não apenas ainda vive como se mantém íntegra, hoje professora da Unifesp e ativista no Sindicato Nacional dos Docentes das Instituições de Ensino Superior (Andes). Quem passou pela Torre das Guerreiras foi marcada pelas dores da vida e, claro, pelas imposições do tempo, mas permanecem entre nós o respeito mútuo e o compromisso com a democracia e com a luta por um país melhor.
Boa leitura a todos!
Ana Maria Ramos Estevão é professora do departamento de Serviço Social da UNIFESP da Baixada Santista, além de membro do ANDES (Sindicado dos Docentes das Instituições de Ensino Superior). Em decorrência de sua militância no período da Ditadura Militar, Ana Maria foi presa três vezes pela repressão e torturada. Foi ex-colega de cela de Dilma Rousseff no presídio Tiradentes, em São Paulo. Recentemente, lançou o livro “Torre das Guerreiras e Outras Memórias“, sobre as perseguições e torturas sofridas durante o regime militar, que conta com o prefácio escrito pela ex-presidente Dilma: “Neste livro não há rancor, apenas o desejo de que aquelas tragédias não sejam esquecidas pelas atuais gerações”. Nesta entrevista, Ana Maria conversa com a equipe de redação do Jornal GGN sobre seu novo livro, sobre o período da Ditadura Militar e sua prisão e o momento atual de negação da história. 📌 A democracia brasileira é coisa frágil. Defendê-la requer um jornalismo capaz de lançar luz sobre a escuridão.
Estreou (25/09/2019) em vários cinemas do Brasil o documentário Torre das Donzelas de Susanna Lira. O filme debate e denuncia as experiências cruéis e brutais a que as mulheres prisioneiras foram sujeitas durante o período da Ditadura Militar brasileira, através dos relatos de diversas mulheres perseguidas e presas, dentre elas a ex-presidente brasileira Dilma Rousseff.
No filme, as mulheres, presas pelo regime militar, relatam o seu dia a dia na prisão, as torturas de que foram vítimas e de como foram capturadas pela sua luta pela democracia, bem como a rotina das celas e a importância da leitura na manutenção da esperança.
O filme Torre das Donzelas recriou, a partir das memórias das ex-reclusas, um cenário semelhante ao Presídio Tiradentes, onde se encontrava a Torre das Donzelas, parte do presídio feminino que foi demolido em 1973.
A diretora Susanna Lira se interessou por esta prisão específica porque dela tinham saído mulheres potentes, importantes para a história do Brasil.
A partir de desenhos feitos por cada uma das entrevistadas com giz em um quadro, o título cria um campo de subjetividade ao reerguer uma torre cenográfica, inspirada em Dogville (2003), de Lars Von Trier. Outras referências cinematográficas para a construção audiovisual foram em"César deve morrer"(2012), dos Irmãos Taviani, e"A imagem que falta"(2013), documentário histórico de Rithy Panh sobre a ditadura no Camboja.
A cineasta pediu às entrevistadas que desenhassem, de acordo com a própria memória, como eram os corredores e celas que as abrigaram na década de 1970. A partir das lembranças, o filme recriou um cenário similar ao presídio, com grades, camas, banheiros e corredores inspirados nos traços de quem ali viveu. As ex-presidiárias comentam as torturas sofridas, contam como foram capturadas por sua militância democrática, detalham o dia a dia, desde a limpeza das celas até a importância da leitura na manutenção da esperança e o breve respiro a cada visita de um familiar.
A instalação cenográfica onde foram feitas as filmagens, que reconstitui o espaço carcerário ficou sob a responsabilidade do premiado diretor de arte Glauce Queiroz.
O documentário centra-se na solidariedade e a integração entre as presas, que se juntam numa espécie de família, características evidentes nos depoimentos das participantes.
Participam de Torre das Donzelas: Ana Maria Aratangy, Ana Mércia, Darci Miyaki, Dilma Rousseff, Dulce Maia, Elza Lobo, Eva Teresa Skazufka, Guida Amaral, Iara Glória Areias Prado, Ieda Akselrud Seixas, Ilda Martins da Silva, Janice Theodoro da Silva, Leane Ferreira de Almeida, Lenira Machado, Leslie Beloque, Lucia Salvia Coelho, Maria Aparecida dos Santos, Maria Luiza Belloque, Marlene Soccas, Nadja Leite, Nair Benedicto, Nair Yumiko Kobashi, Robêni Baptista da Costa, Rose Nogueira, Sirlene Bendazzoli, Telinha Pimenta e Vilma Barban.
Quando fui convidada a escrever esse artigo e a ser uma representante feminina nesta edição sobre o Golpe Militar de 1964, como uma feminista marxista, vi a oportunidade de escrever sobre a resistência das mulheres daquele tempo que foram torturadas e morreram nas trincheiras das guerrilhas no campo e na cidade, nos porões da ditadura, nas emboscadas, nos fuzilamentos, na violenta repressão nas manifestações. Os nomes dessas mulheres nem sempre são lembrados, mas precisamos pensar nelas para realizar a tarefa do nosso tempo: derrotar o fascismo que se avizinha através do governo ilegítimo de Jair Bolsonaro.
A resposta à pergunta sobre quem são as mulheres que enfrentaram a ditadura foi parcialmente respondida pela Comissão Nacional da Verdade que registra uma rápida biografia de 434 pessoas que foram mortas ou desapareceram de 18 de setembro de 1964 a 5 de outubro de 1988. A obra Luta, um substantivo feminino, organizada por Tatiana Merlino, registra a história de 45 mulheres mortas e 27 depoimentos de mulheres sobreviventes à Ditadura Militar. Dessa obra, alguns depoimentos selecionados serão apresentados ao longo do texto.
A construção de um movimento feminista no Brasil remonta à Primeira República (1889-1930) e foi influenciada pelas lutas das sufragistas. A organização cabia às mulheres da classe média e da classe dominante cujas pautas reivindicavam o acesso a cargos públicos sem distinção e o direito ao voto, conquistado apenas em 1934. Antes do golpe de 1964, as ações e a organização das mulheres pela mudança das condições a que estavam subjugadas na sociedade brasileira estavam ganhando força: as associações femininas; a criação da União Feminina ligada à Aliança Nacional Libertadora (ANL), em 1936; a criação da Federação das Mulheres do Brasil (FMB), em 1947; as Assembleias Nacionais de Mulheres; a Liga Feminina do Estado da Guanabara; o Encontro Nacional da Mulher Trabalhadora, em 1963. As mulheres estavam se organizando articuladas sobre as pautas mais diversas, contra a carestia, contra os despejos das favelas, pela paz, dentre outros.
O poder crescente das mulheres era notório, por isso, as forças que tramavam o golpe e precisavam dar-lhe ares de legitimidade frente à democracia usaram da força das mulheres na conhecida Marcha com Deus pela Família e a Liberdade (entre 19 de março e 8 de junho de 1964). Essa série de manifestações públicas levantaram bandeiras pela proteção da nação contra a ameaça vermelha do comunismo. Apoiaram-se em organizações femininas que, em cursos de formação sobre a união da família, divulgavam as ideias anticomunistas arregimentando para as marchas que foram compostas também por mulheres trabalhadoras conquistadas pelo discurso conservador das forças políticas de direita.
Ele me pôs para marchar na frente dele, para lá e para cá, para lá e para cá durante um bom tempo. E os homens falando: Ô negra feia. Isso aí devia estar é no fogão. Negra horrorosa, com esse barrigão. Isso aí não serve nem para cozinhar. Isso aí não precisava nem comer com essa banhona, negra horrorosa’. E eu tendo de marchar. Imagine só, rebaixar o ser humano a esse ponto. – MARIA DIVA DE FARIA era enfermeira quando foi presa em 5 de setembro de 1973, em São Paulo (SP). Hoje, vive na mesma cidade e é aposentada.
1964 foi também um golpe na vida dessas mulheres. A repressão engendrada pelo Regime não deixou escapar nem as organizações de mulheres que questionavam os direitos mais básicos de igualdade democrática entre os sexos. Amélia Teles, em seu livro Breve história do feminismo no Brasil, aponta como o crescimento do capitalismo às custas da superexploração da força de trabalho atingiu também as mulheres que, apesar de ingressarem no mercado, estavam submetidas a condições desumanas de existência: cresceu o número de favelas, de cortiços e de crianças abandonadas; aumentou o índice de mortalidade infantil; a absorção de mulheres pelo mercado de trabalho gerou o acúmulo com o trabalho doméstico, ao mesmo tempo em que as empresas não ofereciam condições de trabalho próprias para as mulheres. Resultado: muitas das mazelas sociais geradas pela Ditadura Militar caíram nas costas das mulheres trabalhadoras.
Há que se destacar também que as mulheres se levantaram por seus entes desaparecidos nas ações violentas dos militares no poder. Foi assim que surgiu a União Brasileira de Mães que chegou a organizar passeatas pela vida dos seus. Nas mobilizações por moradia, na resistência nos locais de trabalho, nas lutas cotidianas pela sobrevivência, na reorganização molecular da luta operária e camponesa, a presença de mulheres mostrou-se imprescindível. Foi também na luta armada que as mulheres combateram a Ditadura Militar e, aqui, enfrentaram não somente os algozes do Regime, mas as condições pensadas apenas para o corpo masculino nos espaços de guerrilhas, o machismo dos camaradas, a descrença em suas possibilidades de atuar em frentes majoritariamente masculinas, mas elas resistiram e permaneceram nas trincheiras nas quais o comando estava a cargo do homem.
Quando o corpo feminino ou a dita feminilidade era aproveitada na estratégia de resistência, as mulheres estavam em ações de espionagem, de observação, apoio, pois poderiam se camuflar mais facilmente na multidão. De todas as formas, as mulheres colaboraram na derrubada do Regime Militar e de todas as formas foram mortas, violadas, torturadas e humilhadas. As perversões nos porões da ditadura foram o exercício do mais alto nível de misoginia. O acesso ao corpo da mulher, nas torturas, foi experimentado por homens que expressaram toda a força do patriarcado, todo ódio pela insubmissão daquelas mulheres que ousaram questionar o lugar que a sociedade lhes reservou.
“Sobe depressa, Miss Brasil”, dizia o torturador enquanto me empurrava e beliscava minhas nádegas escada acima no Dops. Eu sangrava e não tinha absorvente. Eram os ’40 dias’ do parto. – Rose Nogueira. ex-militante da Ação Libertadora Nacional (ALN), era jornalista quando foi presa em 4 de novembro de 1969, em São Paulo (SP). Hoje, vive na mesma cidade, onde é jornalista e defensora dos direitos humanos.
A luta pelas liberdades democráticas unificou todas estas mulheres: pobres, ricas, brasileiras, estrangeiras, pretas, brancas, estudantes universitárias, costureiras. Todas em prol de um objetivo comum: o fim da ditadura, a redemocratização do país, o direito à liberdade. Devemos exaltar todas essas mulheres, lembrar de suas lutas, conhecer seus nomes, aprender com suas histórias, mas não podemos esquecer, entretanto, que haviam mulheres nas Forças Armadas, mulheres que torturaram outras mulheres, que perseguiram, denunciaram, que se alinhavam com a repressão fascista e a exploração porque eram suas bandeiras. A extrema direita no poder coloca a luta mais às claras: é classe contra classe. As camadas médias não puderam se abster do enfrentamento ao Regime Militar porque também eram vítimas dele.
Eu estava grávida de dois meses, e eles estavam sabendo. No quinto dia, depois de muito choque, pau de arara, ameaça de estupro e insultos, eu abortei. Depois disso, me colocaram num quarto fechado, fiquei incomunicável. Durante os dias em que fiquei muito mal, fui cuidada e medicada por uma senhora chamada Olga. Quando comecei a melhorar, voltaram a me torturar. – IZABEL FÁVERO, ex-militante da VAR-Palmares, era professora quando foi presa em 5 de maio de 1970, em Nova Aurora (PR). Hoje, vive no Recife (PE), onde é professora de Administração da Faculdade Santa Catarina.
O feminismo no Brasil ganhou uma nova força, após a redemocratização, ganhou cara, ganhou adeptas, multiplicou-se em vertentes, pois a democracia burguesa e sua ideia formal de liberdade, de igualdade, de respeito às diferenças faz parecer que todas as lutas são iguais. Não é assim. É preciso enxergar como as mulheres estão sendo chamadas novamente às pautas conservadoras. As mulheres trabalhadoras, as costureiras, as trabalhadoras domésticas remuneradas e não-remumeradas, as operárias, que chegam em casa após um dia exaustivo de trabalho e se deparam com o feminismo liberal em suas mais variadas formas (feminismo negro, corporativo, do faça acontecer, do liberalismo) e o rechaçam. É o feminismo da mídia. A negação desse feminismo por essas mulheres, entretanto, é esvaziada: elas acham que ele é o único feminismo, um feminismo que não dá conta de suas pautas, de suas necessidades cotidianas, não apresenta resposta para as mazelas sociais que as atingem. Um feminismo que simplesmente “subverte” os padrões sociais há muito estabelecidos. Sabemos que extratos significativos da classe trabalhadora brasileira são conservadores no que tange aos costumes, aos valores, à moral, etc.
Ele falava isso e virava a manivela para me dar choque. Ele também dizia: “Que militante de direitos humanos coisa nenhuma, nada disso, vocês estão envolvidos”. E virava a manivela. Havia umas ameaças assim: “Vamos prender todos os advogados de direitos humanos, colocá-los num avião e soltar na Amazônia”. – MARIA LUIZA FLORES DA CUNHA BIERRENBACH era advogada de presos políticos quando foi presa em 8 de novembro de 1971, em São Paulo (SP). Hoje, vive na mesma cidade, onde é procuradora do Estado aposentada.
Ao mesmo tempo, o discurso feminista liberal conquista corações e mentes na esquerda contemporânea. Vemos muitas mulheres influenciadas pela sororidade, pelo empoderamento, pelo faça acontecer, pela representatividade, etc. Estamos deixando que, mais uma vez, a extrema direita manipule a classe trabalhadora e use o poder das mulheres. O grupo Mulheres com Bolsonaro, no Facebook, em 2018, tinha mais de 300 mil seguidoras. Pesquisas à época da eleição de 2018, indicaram que, de cada 10 eleitores de Bolsonaro, duas eram mulheres. A popularidade do (des)governo já caiu bastante, por isso é preciso disputar as mulheres trabalhadoras para um feminismo que objetive verdadeiramente a transformação. E esse não é o feminismo que empodera fazendo maquiagem para negras, colocando mulheres nas esferas de poder e fazendo filmes com protagonistas mulheres.
Nesse ponto, nós, feministas marxistas, nos encontramos diante de uma dupla tarefa: combater a influência do feminismo liberal nas organizações de mulheres de esquerda e chamar as mulheres trabalhadores de base para o feminismo, um feminismo radicalmente anticapitalista, antirracista e internacionalista, pois só a superação da sociedade capitalista pode dar uma resposta à liberdade das mulheres, dos homens e de todos os seres humanos.
Talvez, leitora e leitor, você se pergunte como fazer isso. O avanço da extrema direita, as contrarreformas já consolidadas pelo (des)governo de Jair Bolsonaro, a ameaça à previdência pública, tudo isso responde novamente à necessidade do capital em superexplorar a classe trabalhadora. Mais uma vez, o peso dessas ações cai nas costas das mulheres trabalhadoras. É papel das feministas retomar as raízes da luta histórica das mulheres, compreendendo que o feminismo que não questiona a estrutura da sociedade e não objetiva superar a diversas formas de exploração/opressão e que, por isso, não quer mudar o estado das coisas não nos serve. Aprendamos com todas as mulheres que viveram o regime militar, com todas elas.
A primeira coisa que fizeram foi arrancar toda a minha roupa e me jogar no chão molhado. Aí, começaram os choques em tudo quanto é lado — seio, vagina, ouvido — e os chutes. Uma coisa de louco. Passei por afogamento várias vezes. Os caras me enfiavam de capuz num tanque de água suja, fedida, nojenta. Quando retiravam a minha cabeça, eu não conseguia respirar, porque aquele pano grudava no nariz. Um dos torturadores ficou tantas horas em pé em cima das minhas pernas que elas ficaram afundadas. Demorou um tempão para se recuperarem. Meu corpo ficou todo preto de tanto chute, de tanto ser pisada. Fui para o pau de arara várias vezes. De tanta porrada, uma vez meu corpo ficou todo tremendo, eu estrebuchava no chão. Eles abusavam muito da parte sexual, com choques nos seios, na vagina […] passavam a mão. – MARIA DO SOCORRO DIÓGENES, ex-militante do Partido Comunista Brasileiro Revolucionário (PCBR), era professora quando foi presa no Recife (PE), em 4 de abril de 1972. Hoje, vive em São Paulo (SP), onde é supervisora de ensino da rede estadual.
REFERÊNCIAS
MERLINO, Tatiana. Direito à memória e à verdade: Luta, substantivo feminino. São Paulo: Editora Caros Amigos, 2010.
TELES, Maria Amélia de Almeida. Breve história do feminismo no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1999.
Helenira Resende de Souza Nazareth é considerada desaparecida política por não terem sido entregues os restos mortais aos seus familiares
“Foi nesse quadro, na volta, que o próprio Nagib fez o que ele chamava de ‘tortura sexual científica’. Eu ficava nua, com o capuz na cabeça, uma corda enrolada no pescoço, passando pelas costas até as mãos, que estavam amarradas atrás da cintura. Enquanto o torturador ficava mexendo nos meus seios, na minha vagina, penetrando com o dedo na vagina, eu ficava impossibilitada de me defender, pois, se eu movimentasse os meus braços para me proteger, eu me enforcava e, instintivamente, eu voltava atrás”.
A citação é de Lucia Murat, uma das mulheres torturadas e machucadas psicologicamente pelo regime militar que, em 2021, “comemora” 57 anos de instauração. Foi em um 31 de março que o Brasil dormiu em um regime democrático e acordou com uma ditadura que perseguiu, torturou e matou centenas de pessoas, entre de 1964 e 1985, incluindo jovens, mulheres e crianças.
O depoimento de Murat consta na Comissão Nacional da Verdade, um mecanismo criado pela ex-presidente, Dilma Rousseff, para investigar e esclarecer as graves violações de direitos humanos ocorridas entre 18 de setembro de 1946 e 5 de outubro de 1988. Depois de colher os depoimentos e ouvir diversos militantes e agentes repressivos da época, a CNV virou um documento que pode ser acessado facilmente pela internet.
Sorocaba também teve uma movimentação parecida. O secretário de organização do Sindicato dos Metalúrgicos de Sorocaba e Região (SMetal), Izídio de Brito, presidiu – durante seu mandato como vereador – a Comissão Municipal da Verdade que repercutiu os fatos da Ditadura Militar no município. Em 2014, foram ouvidos nomes que estiveram envolvidos com os acontecimentos do regime: eram militantes, trabalhadores, professores, sindicalistas que se viram enquadrados, muitas vezes, como “subversivos”, simplesmente por não compactuarem com o tipo de governo vigente.
Apesar de não ter sido efetivo no que diz respeito à punição e/ou condenação efetiva dos agentes da repressão, para Izídio de Brito, o documento teve importância em prestar homenagem e honrar a memória das vidas que foram perdidas no regime autoritário.
“Foi muito importante por dois motivos: para levantarmos as verdadeiras histórias de tudo que ocorreu e também para fazer valer aquilo que as famílias sofreram. Tivemos aqui muitos familiares que perderam seus entes queridos e ficaram com sequelas. Durante a Comissão, vejo como um período rico nacionalmente. Nas cidades que foram feitas comissões houve um resgate que, na minha percepção, deu condição às pessoas em expor os seus sentimentos e todas elas estiveram muito orgulhosas em fazer parte desse enfrentamento”, recorda.
A CNV, em seu relatório final, reconheceu 434 mortes e desaparecimentos políticos entre 1964 e 1988 e ficou constatado, ainda, o uso da força bruta como tentativa de colher “delações” dos militantes de esquerda. O pau de arara, os choques, a cadeira do dragão... Todos mecanismos de repressão que brutalizaram intensamente os homens, mas duplamente as mulheres já que os agentes do estado utilizavam das questões de gênero para violar, ainda mais, os direitos dessas companheiras.
Dilma Rousseff, Helenira Resende, Maria Amélia de Almeida Teles, Iara Iavelberg, Aurora do Nascimento Furtado, Nilda Carvalho Cunha, Rose Nogueira, Iracema de Carvalho Araújo, Miriam Leitão, Zuzu Angel... São muitos nomes de mulheres que sofreram com os tentáculos da ditadura. Ainda assim, as que sobreviveram para contar suas histórias, são tantas vezes descreditadas.
“Apesar de todas os relatos que ouvimos, ainda há pessoas que insistem em não acreditar nas torturas desse processo. Que ficaram comprovadas pela Comissão Nacional da Verdade”, comenta o presidente do Sindicato dos Metalúrgicos, Leandro Soares. Ele traz ao debate o processo de descrença que o regime militar sofre até os dias de hoje.
O doutor em ciências sociais e jornalista, João José de Oliveira Negrão, considera que esse “apagamento”, que muitos tentam propagar, se dá por uma negação geral da população. “Em primeiro lugar, há o desconhecimento da história do país. Em segundo, penso, ocorre algo que a psicanálise chama de negação: nós adoramos nos ver como um povo alegre, festeiro, receptivo. A ditadura cívico-militar que se instalou com o golpe de 64 foi o contrário disso. Então, tendemos a negar ou relativizar seus males, para que nossa auto-imagem se preserve”, explica.
A violência de gênero exposta na ditadura
A socióloga e especialista em psicopedagogia, Carolina Canon, explica como os abusos destinados a mulheres iam desde a violência física, até a psicológica. “A ditadura civil-militar no Brasil, através das figuras algozes de seus torturadores, usou amplamente não só do estupro, mas também da brusca separação dos filhos e filhas de suas mães militantes, no intuito de, mais do que puni-las por seus comportamentos subversivos, faze-las exemplos para outras mulheres que pudessem insurgir contra o Estado, na tentativa de suprimir qualquer tipo de mudança, tanto ao que dizia respeito ao regime totalitário instaurado, quanto a esta pseudo-naturalização de papeis femininos e masculinos na vida social”, afirma.
Relembrar é viver. Jamais estaremos na pele de quem sofreu com as chagas de um sistema atroz, mas se faz importante mergulhar pelas lutas dos companheiros que deram suas vidas pela democracia. Por isso, o SMetal selecionou trechos de depoimentos femininos na Comissão Nacional da Verdade que precisam ser de conhecimento público:
Izabel Fávero, depoimento à CNV, em 27 de abril de 2013.
“Eu fui muito ofendida, como mulher, porque ser mulher e militante é um karma, a gente além de ser torturada física e psicologicamente, a mulher é vadia, a palavra mesmo era “puta”, “menina decente, olha para a sua cara, com essa idade, olha o que tu está fazendo aqui, que educação os teus pais te deram, tu é uma vadia, tu não presta”, enfim, eu não me lembro bem se no terceiro, no quarto dia, eu entrei em processo de aborto, eu estava grávida de dois meses, então, eu sangrava muito, eu não tinha como me proteger, eu usava papel higiênico, e já tinha mal cheiro, eu estava suja, e eu acho que, eu acho não eu tenho quase certeza que eu não fui estuprada, porque era constantemente ameaçada, porque eles tinham nojo de mim. E eu lembro que no dia em que nós fomos presos, exatamente no dia 4, nós tínhamos estado em Cascavel, e quando a gente saiu da ginecologista, tinha um veículo militar, mas a gente em momento nenhum pensou que eles estivessem vigiando a gente, eles já estavam no encalço da gente, eles seguiram, esse dia eles nos seguiram o dia todo. E o meu marido dizia, “por favor não façam nada com ela, pode me torturar, mas ela está grávida”, e eles riam, debochavam, “isso é história, ela é suja, mas não tem nada a ver”, enfim. Em nenhum momento isso foi algum tipo de preocupação, em relação [...]. Eu certamente abortei por conta dos choques que eu tive nos primeiros dias, nos órgãos genitais, nos seios, ponta dos dedos, atrás das orelhas, aquilo provocou, obviamente, um desequilíbrio, eu lembro que eu tinha muita, muita, muita dor no pescoço, quando a gente sofreu choque, a gente joga a cabeça pra trás, aí tinha um momento que eu não sabia mais onde doía, o que doía em todo lado, mas enfim. Certamente foi isso. E eles ficavam muito irritados de me ver suja e sangrando e cheirando mal, enfim. Eu acho que ficavam até com mais raiva, e me machucavam mais ainda”.
Antônia Ribeiro Magalhães foi presa e levada com o marido para o DOI-CODI/SP 1971.
“Na questão da mulher, a coisa ficava pior porque... quer dizer pior, era pior para todo mundo, não tinha melhor para ninguém, né? Mas [...] existia uma intenção da humilhação enquanto mulher. Então, o choque na vagina, no ânus, nos mamilos, alicate no mamilo, então... eram as coisas que eles faziam. Muitas vezes, eu fui torturada junto com Celso Brambilla porque a gente sustentou a questão de ser noivo. Eles usaram, obviamente, essa situação, esse vínculo, suposto vínculo, além da militância, que seria um vínculo afetivo também, para tortura. Muitas vezes, eu fui amarrada com o rosto na genitália do Celso, e dado choque, enfim... fios amarrados em nós, para que levássemos choque no pau de arara [...] Uma das coisas mais humilhantes, além dessas de choques na vagina, no ânus, no seio, foi que eu fui colocada em cima de uma mesa e fui obrigada a dançar para alguns policiais, nua. Enquanto isso, eles me davam choque. [...] Celso estava sendo torturado ao lado, também com choque elétrico, me vendo nessa situação.”
Criméia Schmidt de Almeida, presa em 1972 e levada ao DOI-CODI
“Numa dessas sessões, um torturador da Operação Bandeirantes que tinha o nome de Mangabeira ou Gaeta [...] eu amarrada na cadeira do dragão, ele se masturbando e jogando a porra em cima do meu corpo. Eu não gosto de falar disso, mas eu vejo a importância desse momento de tratar a verdade e gênero pensando nessas desigualdades 408 10 – violência sexual, violência de gênero e violência contra crianças e adolescentes entre homens e mulheres, em que os agentes do Estado, os repressores usaram dessa desigualdade para nos torturar mais, de certa forma. De usar essa condição nossa. Nós fomos torturadas com violência sexual, usaram a maternidade contra nós. Minha irmã acabou tendo parto, tendo filho na prisão. [...] Nós sabemos o quanto a maternidade, o ônus da maternidade, que nós carregamos.”
Eleonora Menicucci de Oliveira
“Um dia, eles me levaram para um lugar que hoje eu localizo como sendo a sede do Exército, no Ibirapuera. Lá estava a minha filha de um ano e dez meses, só de fralda, no frio. Eles a colocaram na minha frente, gritando, chorando, e ameaçavam dar choque nela. O torturador era o Mangabeira [codinome do escrivão de polícia de nome Gaeta].”
Flora Strozenberg, raptada em 1974 e levada ao DOI-CODI
“Aí ele arruma a cadeira do ginecologista. [...] É uma cadeira de ginecologista que eles pegam choque elétrico e botam [na vagina] com as seguintes palavras: “Isto é para você nunca mais botar comunista no mundo”. Num primeiro momento, me senti muito ameaçada. Senti como uma ameaça não a mim, aos meus filhos havidos e futuros. [...] Aí eu fiquei bem deprimida, né? Mas voltei para a cela [...] e pensei: bom, também pode ser uma boa notícia porque se eu não vou mais botar comunista no mundo ele não tem mais condição de me matar, nem de me torturar de forma externa.”
Em entrevista à Imprensa SMetal, a socióloga Carolina Canon fala sobre as questões de gênero na ditadura. Você pode conferir, na íntegra, aqui.
Quando fui convidada a escrever esse artigo e a ser uma representante feminina nesta edição sobre o Golpe Militar de 1964, como uma feminista marxista, vi a oportunidade de escrever sobre a resistência das mulheres daquele tempo que foram torturadas e morreram nas trincheiras das guerrilhas no campo e na cidade, nos porões da ditadura, nas emboscadas, nos fuzilamentos, na violenta repressão nas manifestações. Os nomes dessas mulheres nem sempre são lembrados, mas precisamos pensar nelas para realizar a tarefa do nosso tempo: derrotar o fascismo que se avizinha através do governo ilegítimo de Jair Bolsonaro.
A resposta à pergunta sobre quem são as mulheres que enfrentaram a ditadura foi parcialmente respondida pela Comissão Nacional da Verdade que registra uma rápida biografia de 434 pessoas que foram mortas ou desapareceram de 18 de setembro de 1964 a 5 de outubro de 1988. A obra Luta, um substantivo feminino, organizada por Tatiana Merlino, registra a história de 45 mulheres mortas e 27 depoimentos de mulheres sobreviventes à Ditadura Militar. Dessa obra, alguns depoimentos selecionados serão apresentados ao longo do texto.
A construção de um movimento feminista no Brasil remonta à Primeira República (1889-1930) e foi influenciada pelas lutas das sufragistas. A organização cabia às mulheres da classe média e da classe dominante cujas pautas reivindicavam o acesso a cargos públicos sem distinção e o direito ao voto, conquistado apenas em 1934. Antes do golpe de 1964, as ações e a organização das mulheres pela mudança das condições a que estavam subjugadas na sociedade brasileira estavam ganhando força: as associações femininas; a criação da União Feminina ligada à Aliança Nacional Libertadora (ANL), em 1936; a criação da Federação das Mulheres do Brasil (FMB), em 1947; as Assembleias Nacionais de Mulheres; a Liga Feminina do Estado da Guanabara; o Encontro Nacional da Mulher Trabalhadora, em 1963. As mulheres estavam se organizando articuladas sobre as pautas mais diversas, contra a carestia, contra os despejos das favelas, pela paz, dentre outros.
O poder crescente das mulheres era notório, por isso, as forças que tramavam o golpe e precisavam dar-lhe ares de legitimidade frente à democracia usaram da força das mulheres na conhecida Marcha com Deus pela Família e a Liberdade (entre 19 de março e 8 de junho de 1964). Essa série de manifestações públicas levantaram bandeiras pela proteção da nação contra a ameaça vermelha do comunismo. Apoiaram-se em organizações femininas que, em cursos de formação sobre a união da família, divulgavam as ideias anticomunistas arregimentando para as marchas que foram compostas também por mulheres trabalhadoras conquistadas pelo discurso conservador das forças políticas de direita.
Ele me pôs para marchar na frente dele, para lá e para cá, para lá e para cá durante um bom tempo. E os homens falando: Ô negra feia. Isso aí devia estar é no fogão. Negra horrorosa, com esse barrigão. Isso aí não serve nem para cozinhar. Isso aí não precisava nem comer com essa banhona, negra horrorosa’. E eu tendo de marchar. Imagine só, rebaixar o ser humano a esse ponto. – MARIA DIVA DE FARIA era enfermeira quando foi presa em 5 de setembro de 1973, em São Paulo (SP). Hoje, vive na mesma cidade e é aposentada.
1964 foi também um golpe na vida dessas mulheres. A repressão engendrada pelo Regime não deixou escapar nem as organizações de mulheres que questionavam os direitos mais básicos de igualdade democrática entre os sexos. Amélia Teles, em seu livro Breve história do feminismo no Brasil, aponta como o crescimento do capitalismo às custas da superexploração da força de trabalho atingiu também as mulheres que, apesar de ingressarem no mercado, estavam submetidas a condições desumanas de existência: cresceu o número de favelas, de cortiços e de crianças abandonadas; aumentou o índice de mortalidade infantil; a absorção de mulheres pelo mercado de trabalho gerou o acúmulo com o trabalho doméstico, ao mesmo tempo em que as empresas não ofereciam condições de trabalho próprias para as mulheres. Resultado: muitas das mazelas sociais geradas pela Ditadura Militar caíram nas costas das mulheres trabalhadoras.
Há que se destacar também que as mulheres se levantaram por seus entes desaparecidos nas ações violentas dos militares no poder. Foi assim que surgiu a União Brasileira de Mães que chegou a organizar passeatas pela vida dos seus. Nas mobilizações por moradia, na resistência nos locais de trabalho, nas lutas cotidianas pela sobrevivência, na reorganização molecular da luta operária e camponesa, a presença de mulheres mostrou-se imprescindível. Foi também na luta armada que as mulheres combateram a Ditadura Militar e, aqui, enfrentaram não somente os algozes do Regime, mas as condições pensadas apenas para o corpo masculino nos espaços de guerrilhas, o machismo dos camaradas, a descrença em suas possibilidades de atuar em frentes majoritariamente masculinas, mas elas resistiram e permaneceram nas trincheiras nas quais o comando estava a cargo do homem.
Quando o corpo feminino ou a dita feminilidade era aproveitada na estratégia de resistência, as mulheres estavam em ações de espionagem, de observação, apoio, pois poderiam se camuflar mais facilmente na multidão. De todas as formas, as mulheres colaboraram na derrubada do Regime Militar e de todas as formas foram mortas, violadas, torturadas e humilhadas. As perversões nos porões da ditadura foram o exercício do mais alto nível de misoginia. O acesso ao corpo da mulher, nas torturas, foi experimentado por homens que expressaram toda a força do patriarcado, todo ódio pela insubmissão daquelas mulheres que ousaram questionar o lugar que a sociedade lhes reservou.
“Sobe depressa, Miss Brasil”, dizia o torturador enquanto me empurrava e beliscava minhas nádegas escada acima no Dops. Eu sangrava e não tinha absorvente. Eram os ’40 dias’ do parto. – Rose Nogueira. ex-militante da Ação Libertadora Nacional (ALN), era jornalista quando foi presa em 4 de novembro de 1969, em São Paulo (SP). Hoje, vive na mesma cidade, onde é jornalista e defensora dos direitos humanos.
A luta pelas liberdades democráticas unificou todas estas mulheres: pobres, ricas, brasileiras, estrangeiras, pretas, brancas, estudantes universitárias, costureiras. Todas em prol de um objetivo comum: o fim da ditadura, a redemocratização do país, o direito à liberdade. Devemos exaltar todas essas mulheres, lembrar de suas lutas, conhecer seus nomes, aprender com suas histórias, mas não podemos esquecer, entretanto, que haviam mulheres nas Forças Armadas, mulheres que torturaram outras mulheres, que perseguiram, denunciaram, que se alinhavam com a repressão fascista e a exploração porque eram suas bandeiras. A extrema direita no poder coloca a luta mais às claras: é classe contra classe. As camadas médias não puderam se abster do enfrentamento ao Regime Militar porque também eram vítimas dele.
Eu estava grávida de dois meses, e eles estavam sabendo. No quinto dia, depois de muito choque, pau de arara, ameaça de estupro e insultos, eu abortei. Depois disso, me colocaram num quarto fechado, fiquei incomunicável. Durante os dias em que fiquei muito mal, fui cuidada e medicada por uma senhora chamada Olga. Quando comecei a melhorar, voltaram a me torturar. – IZABEL FÁVERO, ex-militante da VAR-Palmares, era professora quando foi presa em 5 de maio de 1970, em Nova Aurora (PR). Hoje, vive no Recife (PE), onde é professora de Administração da Faculdade Santa Catarina.
O feminismo no Brasil ganhou uma nova força, após a redemocratização, ganhou cara, ganhou adeptas, multiplicou-se em vertentes, pois a democracia burguesa e sua ideia formal de liberdade, de igualdade, de respeito às diferenças faz parecer que todas as lutas são iguais. Não é assim. É preciso enxergar como as mulheres estão sendo chamadas novamente às pautas conservadoras. As mulheres trabalhadoras, as costureiras, as trabalhadoras domésticas remuneradas e não-remumeradas, as operárias, que chegam em casa após um dia exaustivo de trabalho e se deparam com o feminismo liberal em suas mais variadas formas (feminismo negro, corporativo, do faça acontecer, do liberalismo) e o rechaçam. É o feminismo da mídia. A negação desse feminismo por essas mulheres, entretanto, é esvaziada: elas acham que ele é o único feminismo, um feminismo que não dá conta de suas pautas, de suas necessidades cotidianas, não apresenta resposta para as mazelas sociais que as atingem. Um feminismo que simplesmente “subverte” os padrões sociais há muito estabelecidos. Sabemos que extratos significativos da classe trabalhadora brasileira são conservadores no que tange aos costumes, aos valores, à moral, etc.
Ele falava isso e virava a manivela para me dar choque. Ele também dizia: “Que militante de direitos humanos coisa nenhuma, nada disso, vocês estão envolvidos”. E virava a manivela. Havia umas ameaças assim: “Vamos prender todos os advogados de direitos humanos, colocá-los num avião e soltar na Amazônia”. – MARIA LUIZA FLORES DA CUNHA BIERRENBACH era advogada de presos políticos quando foi presa em 8 de novembro de 1971, em São Paulo (SP). Hoje, vive na mesma cidade, onde é procuradora do Estado aposentada.
Ao mesmo tempo, o discurso feminista liberal conquista corações e mentes na esquerda contemporânea. Vemos muitas mulheres influenciadas pela sororidade, pelo empoderamento, pelo faça acontecer, pela representatividade, etc. Estamos deixando que, mais uma vez, a extrema direita manipule a classe trabalhadora e use o poder das mulheres. O grupo Mulheres com Bolsonaro, no Facebook, em 2018, tinha mais de 300 mil seguidoras. Pesquisas à época da eleição de 2018, indicaram que, de cada 10 eleitores de Bolsonaro, duas eram mulheres. A popularidade do (des)governo já caiu bastante, por isso é preciso disputar as mulheres trabalhadoras para um feminismo que objetive verdadeiramente a transformação. E esse não é o feminismo que empodera fazendo maquiagem para negras, colocando mulheres nas esferas de poder e fazendo filmes com protagonistas mulheres.
Nesse ponto, nós, feministas marxistas, nos encontramos diante de uma dupla tarefa: combater a influência do feminismo liberal nas organizações de mulheres de esquerda e chamar as mulheres trabalhadores de base para o feminismo, um feminismo radicalmente anticapitalista, antirracista e internacionalista, pois só a superação da sociedade capitalista pode dar uma resposta à liberdade das mulheres, dos homens e de todos os seres humanos.
Talvez, leitora e leitor, você se pergunte como fazer isso. O avanço da extrema direita, as contrarreformas já consolidadas pelo (des)governo de Jair Bolsonaro, a ameaça à previdência pública, tudo isso responde novamente à necessidade do capital em superexplorar a classe trabalhadora. Mais uma vez, o peso dessas ações cai nas costas das mulheres trabalhadoras. É papel das feministas retomar as raízes da luta histórica das mulheres, compreendendo que o feminismo que não questiona a estrutura da sociedade e não objetiva superar a diversas formas de exploração/opressão e que, por isso, não quer mudar o estado das coisas não nos serve. Aprendamos com todas as mulheres que viveram o regime militar, com todas elas.
A primeira coisa que fizeram foi arrancar toda a minha roupa e me jogar no chão molhado. Aí, começaram os choques em tudo quanto é lado — seio, vagina, ouvido — e os chutes. Uma coisa de louco. Passei por afogamento várias vezes. Os caras me enfiavam de capuz num tanque de água suja, fedida, nojenta. Quando retiravam a minha cabeça, eu não conseguia respirar, porque aquele pano grudava no nariz. Um dos torturadores ficou tantas horas em pé em cima das minhas pernas que elas ficaram afundadas. Demorou um tempão para se recuperarem. Meu corpo ficou todo preto de tanto chute, de tanto ser pisada. Fui para o pau de arara várias vezes. De tanta porrada, uma vez meu corpo ficou todo tremendo, eu estrebuchava no chão. Eles abusavam muito da parte sexual, com choques nos seios, na vagina […] passavam a mão. – MARIA DO SOCORRO DIÓGENES, ex-militante do Partido Comunista Brasileiro Revolucionário (PCBR), era professora quando foi presa no Recife (PE), em 4 de abril de 1972. Hoje, vive em São Paulo (SP), onde é supervisora de ensino da rede estadual.
REFERÊNCIAS
MERLINO, Tatiana. Direito à memória e à verdade: Luta, substantivo feminino. São Paulo: Editora Caros Amigos, 2010.
TELES, Maria Amélia de Almeida. Breve história do feminismo no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1999.
Muitos foram afetados pelo sistema da repressão durante a Ditadura Militar, no entanto, as mulheres militantes de esquerda sofreram com atrocidades (e crimes contra a humanidade) particularmente fortes. Durante depoimentos para a Comissão Nacional da Verdade, militantes revelaram que o estupro era uma pratica sistemática de tortura, e existem relatos de abusos físicos e sexuais por parte de autoridades do Exército e da polícia.
Conheça cinco mulheres que sofreram com a tortura do Estado mas sobreviveram para denunciar a história nos dias atuais.
1. Rose Nogueira
Atuando na ALN, Rose foi presa num dia comum enquanto estava em seu apartamento com o marido Luiz Roberto e seu filho, Carlos. Na época, tinha 33 anos e foi abordada pelo delegado Fleury, que ameaçou não devolver o pequeno. No entanto, com a abordagem, Rose convenceu o torturador a deixar a criança com os avós.
Assim, foi levada ao DEOPS (Departamento Estadual de Ordem Política e Social, em São Paulo), onde foi torturada psicologicamente, violada e estuprada. Aprisionada em celas insalubres com mais de 50 mulheres (incluindo Dilma Rousseff), ela estava amamentando na época e, não podendo tomar banho, cheirava a leite azedo.
Por nove meses, ficou presa na Penitenciária Tiradentes. Depois, foi solta e se manteve em condicional sendo vigiada até o julgamento, que ocorreu dois anos depois. Em 1972, foi julgada e absolvida.
2. Miriam Leitão
Crédito: Pedro Ladeira / Arquivo pessoal
Hoje atuando como jornalista, Leitão foi presa em 1972 por envolvimento com o PCdoB no combate ao regime. Segundo Miriam, durante sua prisão no quartel de Vila Velha, Espírito Santo, sofreu torturas físicas. Grávida aos 19 anos, com um feto de um mês no ventre, ela foi jogada numa cela escura completamente nua e obrigada a interagir com uma jiboia viva.
Durante os interrogatórios, levou chutes, socos, cacetadas e tapas por parte dos oficiais, sendo ameaçada de estupro diversas vezes. Ainda foi privada de alimentação nas celas do quartel. Leitão também revelou que os soldados, com sadismo, lançavam cães em sua direção enquanto a chamavam de terrorista aos gritos, fazendo com que nos animais ficassem irritados.
3. Dilma Rousseff
Em foto clássica da Ditadura, Dilma mantém-se firme no julgamento enquanto os juízes escondem seus rostos das câmeras
Primeira presidente mulher da história do Brasil, Dilma iniciou sua militância num núcleo chamado Organização Revolucionária Marxista, antes de efetivamente se unir ao órgão armado Comando de Libertação Nacional. Na época, teve de abandonar o curso de economia em Minas Gerais. Logo depois, o grupo que fazia parte integrou a Vanguarda Armada Revolucionária Palmares, mas ela nunca pegou em armas. Capturada pela Operação Bandeirantes em 1970, foi presa e torturada em São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro.
Dilma passou pelo pau-de-arara e pelas máquinas de eletrochoque, além ser violentada com palmatória e cassetetes, desfigurando sua arcada. Foi então condenada a seis anos de prisão, teve os direitos políticos cassados e ficou encarcerada numa cela com 50 mulheres. Como participou do julgamento, conseguiu reduzir sua pena e saiu da prisão em 1972.
Militante do PCdoB, Amelinha foi presa em 1972 através da Operação Bandeirantes e conduzida para o DOI-CODI de São Paulo, onde caiu na mão de Brilhante Ustra que, pessoalmente, a torturou junto ao marido Carlos Nicolau Danielli. Em frente à esposa, ele foi assassinado e usado para tortura psicológica.
Amélia ainda conta que, após a decisão de Ustra, seus filhos, que tinham menos de 5 anos na época, foram levado à sala de tortura, sendo obrigados a assistir a sessões em que a mãe era agredida e estuprada por oficiais do Exército. Ela sobreviveu e tornou-se militante na causa das famílias de desaparecidos políticos.
5. Iracema de Carvalho Araújo
Montagem com uma foto atual de Iracema de Carvalho Araújo ao lado outra de quando era criança — Foto: Marcelo Brandt/Arquivo pessoal
Iracema tinha aproximadamente 11 anos (pois ela não sabe ao certo o ano em que nasceu) quando foi sequestrada, junto à mãe, pelo Destacamento de Operações de Informação (DOI) de Recife. Sua mãe, Lúcia, era professora ligada ao Partido Comunista e às Ligas Camponesas. Assim, tornou-se alvo da polícia, que naquele dia colocou as duas mulheres num carro, vendadas, e as agrediu fisicamente, danificando 80% da visão de Iracema com um soco no rosto.
No DOI-CODI, a criança passou por sessões de tortura física e foi obrigada a assistir à mãe sendo agredida, espancada e eletrocutada. Com uma curta memória da vida antes do período, ela lembra que a tortura foi intensa, ficando marcada em sua memória.
Após diversas sessões, Iracema foi deixada numa praça pelos militares, agonizando seminua no chão quando foi encontrada por um casal que a levou para o Rio de Janeiro. Nunca mais viu a mãe, que é considerada desaparecida política.