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O CORRESPONDENTE

Os melhores textos dos jornalistas livres do Brasil. As melhores charges. Compartilhe

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O CORRESPONDENTE

17
Dez23

Os violinos, a sinfonia inacabada e os 35 anos da Constituição

Talis Andrade

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Nos 35 anos da Constituição do Brasil, quero falar hoje sobre o "direito sinfônico". Direito como sinfonia. Nestes tempos de direito simplificado, mastigado e desenhado (e de hermenêuticas criminosas), conto uma pequena alegoria  em homenagem aos leitores e ao Observatório de Jurisdição Constitucional:

"O chefe do Departamento de Reengenharia ganhou um convite do presidente da Empresa para assistir a uma apresentação da Sinfonia Inacabada de Franz Schubert, no Teatro Municipal.

Como estava impossibilitado de comparecer, passou o convite para o seu gerente de Neo gestão, Legal Design e Visual Law, pedindo-lhe que, depois, enviasse sua opinião sobre o concerto, porque ele iria mostrar ao presidente.

Na manhã seguinte, quase na hora do almoço, o chefe do Departamento recebeu do seu gerente de Neo-gestão Legal Design-Visual law o seguinte relatório:

1 – Por um período considerável de tempo, os músicos com oboé não tinham o que fazer. Sua quantidade deveria ser reduzida e seu trabalho redistribuído pela orquestra, evitando esses picos de inatividade.

2 – Todos os 12 violinos da primeira seção tocavam notas idênticas. Isso parece ser uma duplicidade desnecessária de esforços e o contingente nessa seção deveria ser drasticamente cortado. Se um alto volume de som fosse requerido, isso poderia ser obtido através de uso de amplificador.

3 – Muito esforço foi desenvolvido em tocar semitons. Isso parece ser um preciosismo desnecessário e seria recomendável que as notas fossem executas no tom mais próximo. Se isso fosse feito, poder-se-ia utilizar estagiários ou robôs em vez de profissionais.

4 – Não havia utilidade prática em repetir com os metais a mesma passagem já tocada pelas cordas. Se toda essa redundância fosse eliminada, o concerto poderia ser reduzido de duas horas para apenas 20 minutos. Seria um music design.

5 – Enfim, sumarizando as observações anteriores, podemos concluir que: se o tal  Schubert tivesse dado um pouco de atenção aos pontos aqui levantados, talvez tivesse tido tempo de acabar a sua sinfonia.

6 – Resumindo: esse "tal" de Senhor Schubert — do qual, aliás, nunca ouvi falar — desperdiçava tempo e materiais. Um retrógrado. Um dinossauro.

Assinado: Arguto Moederno, gestor de Legal Design e Visual law (obs: a assinatura era eletrônica)."

Pronto. E não é que no direito já tem livro com título de "Direito sem as partes chatas"? Simplifica direito! Simplifica orquestra! Fora com violinos e oboés.

Bem, examinando o que se vê por aí em termos de "neo literatura jurídica" e algumas decisões em embargos e agravos, parece que "nossa jus orquestra" já perdeu a maioria dos violinos e oboés.  

São os novos tempos.

Mas pergunto: atravessamos a tempestade que teve o seu ápice no 8 de janeiro? Difícil de responder. No Brasil, a democracia é uma sinfonia inacabada e a todo momento chega o "cara" para "terminar" o inacabado de Schubert. O golpista quer terminar na marra a Sinfonia. A Constituição, com tantas emendas, corre o risco de passar de obra aberta para obra desfeita. Sem as "partes chatas, repetitivas e complexas", diria o "novo jurista".

Já tentaram de tudo para tirar os violinos da orquestra constitucional. Recentemente o parlamento vem apontando um lança chamas sobre o STF e contra a Constituição, tentando se colocar como corregedor das decisões da Suprema Corte, por meio de várias PECs. No fundo, trata-se de backlash contra a pauta-bomba (ao menos assim acreditam os parlamentares) da ministra Rosa Weber quem, ao sair da presidência, buscou "resolver" os desacordos morais do país a golpes de caneta. Estranho é que, adepta do "princípio da colegialidade" (sic) — tese que, inclusive, custou a liberdade do atual presidente da República —, a ex-ministra não consultou o colegiado para elaborar as pautas, ao que se sabe. Está errado o parlamento? Sim. Mas o STF também tem de reconhecer-se como corte política e, como qualquer tribunal do mundo, entender o significado de diálogos e desenhos institucionais.

É evidente que a Constituição é locus para resolver nossos desacordos. Mas não dá também para resolver a febre amarela por ADI ou ADC. É o limite do sentido e o sentido do limite.

Nossas primeiras décadas de plena democracia: eis o que devemos comemorar. E pela primeira vez na República golpistas — perdedores — estão no banco dos réus. Nem todos. Falta muita gente. Por exemplo, os que incentivaram e vitaminaram o putsch (leiam as notas de rodapé 1 e 2).  

O direito é esse fenômeno complexo, mesmo. Ele é a sinfonia inacabada. Não dá para tirar os violinos ou achar que que há direitos demais no texto constitucional. Constituição é carta de direitos.  O direito é o produto de um arranjo em que moral, política e economia se juntam para forjar um quarto elemento — chamado direito — que tem a função de os controlar — e se isso der certo, ter-se-á a coisa chamada democracia.

Passados 35 anos, ainda temos enorme dificuldade para nos livramos dos fantasmas do passado. O artigo 142 quase nos cleptou a democracia. Melhor dizendo, o que quase nos tirou a democracia foi a hermenêutica delinquencial do artigo 142. Por isso proponho que se institua a cadeira de hermenêutica nas escolas militares, para que os comandantes das armas não interpretem um parágrafo como o do artigo 358 do CP ao seu contrário, como se viu no manifesto de 11 de novembro de 2022, que deu carta branca para os insurrectos irem a Brasília e invadirem os três poderes — literalmente. O ministro da defesa, José Múcio, também terá de comparecer às aulas.

Talvez um dos problemas graves nesses 35 anos tenha sido o modo de olhar o novo com os olhos do velho. Quando a CF entrou em vigor, parcela considerável da comunidade jurídica buscou nos velhos modelos voluntaristas um modo de interpretar algo que deveria ser interpretado de forma, digamos assim, mais formalista, no estilo "força normativa da Constituição".

Essa lenda jus urbana de que "com a nova Constituição, morreu o juiz boca da lei e nasceu o juiz dos princípios", causou muitos estragos. Procura-se o inventor desse meme. O pamprincipialismo veio daí. A interpretação do artigo 142 tem ali o ovo da serpente. Dizer qualquer coisa sobre qualquer coisa. Deus morreu e agora pode tudo…

Isso se espraia nas decisões judiciais (falo do aspecto simbólico que isso representa).  E foram se formando nesses anos caricaturas de teorias jurídicas, como a de que "princípios são valores", com o fundamento de que, superado o positivismo (sic), agora tínhamos que argumentar para sustentar o (novo) juiz protagonista. E passamos a argumentar para justificar o que já foi decidido. Argumentação de viés de confirmação.

Tudo isso pode ser traduzido do seguinte modo: a promulgação da Constituição enfrentou uma longa caminhada, cheia de percalços: do formalismo civilista (que invadiu outras áreas), que insistia em interpretar a Constituição a partir da lei, para uma tardia jurisprudência dos valores (recepcionada aliás no marco do velho culturalismo jurídico realeano, não menos conservador e autoritário), que despreza(va) a lei e reduz(ia) a Constituição a valores abstratos. O resultado disso foi o incremento do protagonismo-ativismo judicial. Com pitadas de instrumentalismo processual, é claro.

Foi sedutor ver determinados juízes e tribunais assumirem a vanguarda (iluminista?) da implementação dos direitos constitucionais. É evidente que nos primeiros anos era necessário absorver esse novo paradigma constitucional e fazer a transição de um imaginário jurídico que desconhecia o significado de Constituição em direção ao Estado Constitucional. O problema foi a transição malfeita. Nos primeiros anos, talvez todos tenhamos cometido equívocos.

Vigência não é igual a validade. Eis o básico que tivemos e ainda temos dificuldade em absorver. Não resolvemos nem o problema da "morte ficta", questão que vem da década de 60 e que ainda é claudicante nos tribunais (o que apenas demonstra a existência dos fantasmas do passado).  Vigência não é, mesmo, igual à validade. E veja-se quantas leis anteriores a CF sobrevivem. Uma portaria pode valer mais do que a Constituição.

Em alguns pontos, ainda teríamos que ler um julgado do Tribunal Constitucional da Espanha, do ano de 1981 (que eu repetia como um mantra Brasil afora), que determinava uma platitude: que os juízes aplicassem a Constituição.

De minha parte, ortodoxamente, sustento a força normativa. No final dos anos 2000, quando Canotilho disse que a Constituição Dirigente morrera, de imediato propus que adotássemos uma Constituição Dirigente Adequada a Países de Modernidade Tardia, que consta em diversas edições do meu Jurisdição Constitucional. Continuo a acreditar nessa tese.

Um ponto sensível que acaba incrementando backlashs do legislativo é a confusão que ainda é feita entre os conceitos de ativismo e judicialização. Uma decisão que manda comprar ônibus escolar para crianças pode ser bonita, fofa, mas pode ser um problema pelo seu ativismo. Para fazer essa diferenciação entre os conceitos, criei três perguntas fundamentais. Sendo uma das três perguntas respondida negativamente, estar-se-á, com razoável grau de certeza, em face de uma atitude ativista, como se pode ver no voto do ministro Gilmar no caso Homeschooling.

Não há direito sem dogmática. E sem uma sólida doutrina. Que não deveria ser colonizada pela jurisprudência. Porém, o que vemos — nos anos recentes isso ficou mais forte — é um crescente caminhar rumo a uma espécie de commonlização do direito, só que sem o rigor dos precedentes daquela família de direito. E isso tem reflexos enormes no acesso à justiça. Ou alguém tem dúvida de que o realismo jurídico (chamemos de jurisprudencialismo) é a tese dominante no Brasil?

A fragilização da doutrina em favor da jurisprudência: talvez esse seja o gap doutrinário mais profundo desses 35 anos. A transformação dos Tribunais em Cortes de Vértice ou de edição de Teses, paradoxalmente sob os auspícios de parcela da doutrina, indica esse caminho de super empoderamento do judiciário. Teses, tornadas "precedentes" por imputação (autorictas, non veritas), tomam o lugar da legislação — e aqui não preciso ser prescritivo, porque uma descrição densa (C. Geertz) constata sem dificuldades esse fenômeno.

O uso da ponderação sem critérios e a desmesura na interpretação conforme a Constituição são outros elementos fragilizadores do direito, como se pode ver recentemente no caso da prisão decorrente de tribunal do júri e no juiz das garantias, em que a interpretação conforme serviu como meio para substituir o texto aprovado pelo legislativo por um outro da lavra do STF.

Por outro lado, há indicativos de que, passados mais de três décadas, não ultrapassamos o velho dualismo metodológico, pelo qual a realidade vale mais do que a CF. A voz das ruas engolfa, por vezes, a Constituição. Assim, vimos grandes julgamentos incorporarem essa dualização, propiciando que uma dita realidade social se sobrepusesse à realidade normativa. Assim foi no mensalão, na operação "lava jato" (e os recursos judiciais decorrente de seus julgamentos), e no caso das diversas ações envolvendo aquele que é o maior julgamento destes 35 anos: a presunção da inocência e sua redefinição a partir do HC 126.292, ocasião pela qual o STF ignorou a literalidade (sim, tivemos que sustentar no STF que, na democracia, defender a lei não é proibido) do artigo 283 do CPP sem, no entanto, declará-lo inconstitucional. Somente em 2019 conseguimos reverter.

Nestes 35 anos da Constituição, ainda há um déficit considerável acerca do verdadeiro papel do rule of law. As faculdades de Direito colabora(ra)m enormemente para que o ensino do Direito fosse substituído por péssimas teorias políticas do poder. Gravíssimo isso.

Tanto é que, quando precisamos de resistência constitucional, o debate é tomado por posições ideológicas, em que soçobram as garantias constitucionais, mormente no âmbito do processo penal. Estatísticas mostraram que no julgamento da presunção da inocência 63% dos advogados se mostravam contra a garantia. Veja-se, ademais, a dificuldade para se implementar o artigo 212 do CPP, uma vez que implica controle de poder.

Quanto ao ponto fulcral de cada nação — a democracia — os brasileiros não temos certeza se (já) atravessamos a tempestade dos últimos anos. A democracia esteve por um fio há alguns meses. Quase que não chegamos aos 35 anos.

Aqui é necessário registrar o papel fundamental do STF na preservação da democracia. É bem verdade que, em um primeiro momento, a Corte deixou-se levar pelo imaginário social punitivista formatado pela mídia que assumiu o lado lavajatista da história (isso é, hoje, fato histórico). Esse, aliás, foi um fenômeno que teve pouca resistência. Porém, em um segundo momento o STF fez a coisa certa. Inclusive quando, acossado e abandonado pela PGR, teve que lançar mão de seu regimento interno. E dali surgiu o "grande inquérito", que, paradoxalmente, ajudou a salvar o EDD. Sem o TSE e o STF a Constituição não sobreviveria.

E, assim, atravessamos o mar revolto que incluiu tentativa de golpe de Estado. O que fica de lição?

Simples. A de que devemos considerar o Direito com um grau acentuado de autonomia frente à política, moral e econômica. Não podemos tratar o Direito e a Constituição como “meras ferramentas”, isto é, como uma mera racionalidade instrumental manejável como um machado. A verdade é que nos damos conta do problema quando a água já estava pelo pescoço.

E não sei se aprendemos a lição.

Sobrevivemos. Alvíssaras. Porém, há que se ver o custo dessa sobrevivência. Visivelmente há um crescimento do realismo jurídico (podem chamar de jurisprudencialização do direito) — e vejo pouquíssimos setores da doutrina denunciando esse fenômeno. Nas faculdades já imitamos, com baixa epistemologia, o case law dos norte-americanos. Com a diferença é que pegamos a "tese" editada após o julgamento (que é uma espécie de lei geral) e aplicamos por subsunção em inúmeros outros, fazendo desparecer o caso concreto. Já vivemos sob a égide de uma espécie de juiz boca dos "precedentes". E isso não é opinativo. Uma descrição densa aponta para a existência do fenômeno.

Outro tema que passa ao largo da doutrina é o criterialismo: discute-se em abstrato conceitos que acabam obscurecendo o próprio Direito.

Porém, o que importa é que sobrevivemos a um conjunto de iniciativas golpistas (e não apenas o 8 de janeiro). Na Roma antiga, quando um general voltava de uma batalha vitoriosa, recebia os louros pelos feitos. Ao seu lado, segurando a sua capa, andava um fâmulo, que, a cada 500 jardas, dizia: lembras-te que és mortal. Por aqui, as autoridades deveriam contratar um estagiário para, a cada 30 minutos, advertir:

– lembra-te do 8 de janeiro;
– lembra-te dos ataques ao STF;
– lembra-te do ex-presidente que chamou ministros do STF de "canalhas";

– lembra-te do twitter do Villas Bôas [1] e do "ravengarismo" do general Heleno (e de quando puxou o coro "se gritar 'pega centrão'" …";
– lembra-te das minutas do golpe, "das quatro linhas de Bolsonaro" e da interpretação delinquencial do artigo 142 da CF [2];

– lembra-te das outras "hermenêuticas criminosas" — ou, simplesmente: "lembra-te da Constituição"!

Não retiremos os violinos. E, podem acreditar, não há oboés demais na Carta. Se aparentemente o músico do oboé fica sem nada fazer, é porque esse nada tem um sentido no conjunto da obra. Na Constituição também é assim. Não há filigranas. É uma obra inacabada? É. Mas por isso mesmo é tão bela. E tão necessária. Para a sobrevivência da música…quer dizer, da democracia.

Dava para tirar os violinos e escorraçar Schubert na sinfonia? Bem, dava. Mas já não seria mais uma sinfonia.

E esse é ponto. Podemos retirar as "filigranas"? As "taxações" elencadas no artigo 5º? Os direitos? As garantias? Bem… poder, podemos. Mas já não seria mais a Constituição. Aos que não se importam, recupero Tom Bingham e digo: você pode até não gostar da Constituição. Agora imagine sua vida sem ela.

Podemos retirar do direito os textos, os livros e as partes chatas? Podemos. Mas já não será mais direito.

Podemos retirar o direito da democracia? Podemos. Já não será mais uma democracia.

É preciso ter muito cuidado. O "novo" não é bom só porque é novo. Sobretudo quando for igualzinho às partes ruins do que é velho, só que novo.

Salvemos os violinos! Para que não sejamos nós os violinistas do Titanic, com o barco afundando.

 - - -

[1] Para além do twitter de 3.4.2018 (ameaçando o STF — veja-se o livro de Celso Castro, Villas Bôas: conversa com o comandante), agora, naqueles dias de novembro e dezembro de 2022, a trama continuava. Segundo matéria da Folha de São Paulo do dia 13.10.2023, houve várias tratativas para um golpe, com minutas e conspirações outras. Diz a matéria, cujos fatos, aliás, já são conhecidos (mas é bom que fiquem registrados para a história — já que, lamentavelmente até agora não há movimentação do Ministério Público indicando indiciamentos do ex-presidente e dos generais conspiradores) — que Bolsonaro recebeu diversos militares das cúpulas das Forças para discutir a adesão que teria após a derrota no segundo turno das eleições. O general Eduardo Villas Bôas, ex-comandante do Exército, foi duas vezes ao Palácio da Alvorada, em 7 e 20 de dezembro, segundo registros obtidos pela Folha da agenda confidencial do ex-presidente. Os encontros foram relatados em e-mails trocados entre os militares da ajudância de ordens de Bolsonaro. Some-se a isso a nota dos comandantes das Três Forças do dia 11 de novembro e temos a tempestade perfeita.

[2] Manchete da Folha de 13.10.2023: "Bolsonaro mudou de estratégia e discutiu golpe após multa de Moraes". Na matéria lê-se: "Aliados do ex-presidente citavam o artigo 142 da Constituição, que trata das atribuições das Forças Armadas. Na visão dos militares palacianos, o dispositivo daria margem para uma ação se fossem relatados os abusos do Poder Judiciário nas considerações do decreto".

01
Out23

Que seja o fim do terror judicial

Talis Andrade

redação liberdade prisão Vladimir Kazanevsky

 

LIBERDADE DE IMPRENSA

STF derruba ações de retaliação ajuizadas por juízes contra jornal e jornalistas

Por Danilo Vital

O ajuizamento de dezenas de ações padronizadas contra jornalistas de uma mesma publicação com o intuito de retaliação e imposição de mordaça representa abuso do direito de acesso à Justiça e fere a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal.

Rosa Weber
Ministra Rosa Weber reconheceu abuso praticado por meio da série de processos. Desenho de J. Bosco

 

Com esse entendimento, e por maioria de votos, o Plenário do STF julgou procedente uma reclamação constitucional e derrubou uma série de processos movidos por juízes contra o jornal Gazeta do Povo e jornalistas que atuam ou atuaram no veículo.

As ações seriam uma retaliação contra uma série de reportagens publicada pelo jornal mostrando que juízes e promotores recebem salários abaixo do teto, mas se beneficiam de auxílios e benefícios como forma de "indenização", que não se submetem a esse limite.

Todos os processos estão paralisados ou com seus efeitos suspensos desde 2016, por decisão da ministra Rosa Weber. A alegação dos autores da reclamação é de que o objetivo é punir jornalistas e empresa e, assim, evitar novas reportagens desfavoráveis ao Judiciário do Paraná.

Votaram com a relatora os ministros André Mendonça, Cristiano Zanin, Edson Fachin, Dias Toffoli, Cármen Lúcia, Gilmar Mendes e Luís Roberto Barroso. Abriu a divergência e ficou vencido o ministro Alexandre de Moraes, seguido pelo ministro Kassio Nunes Marques.

O jornal Gazeta do Povo foi representado na causa pelo advogado Alexandre Jobim.  

 

ADPF 130

As ações foram derrubadas por meio de reclamação constitucional. O STF entendeu que elas ofenderam o que a corte decidiu na ADPF 130, em que declarou inconstitucional a Lei de Imprensa de 1967, aprovada sob uma ótica cerceadora da liberdade de expressão e que permitiria tais exercícios judiciais.

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Para ministro Alexandre de Moraes, reclamação foi ajuizada antes de existir qualquer decisão a violar a ADPF 130. Desenho de Cícero

 

Relatora, a ministra Rosa Weber apontou que as ações são padronizadas, foram ajuizadas em um diminuto espaço de tempo e em diferentes comarcas, o que só foi possível porque os autores escolheram usar os Juizados Especiais.

Com isso, jornal e jornalistas se viram obrigados a lidar com audiências em diversas comarcas paranaenses em datas e horários próximos, senão simultâneos, o que indica uma ação dolosa para prejudicar o exercício do fundamental do direito de defesa.

"Nesse diapasão, e porque independente de configuração de culpa, entendo caracterizada, no caso dos autos, a prática do exercício disfuncional — e ilegítimo — do direito de ação em desfavor dos ora reclamantes, utilizada com o propósito intimidatório da imprensa", afirmou a ministra.

 

Ação antecipada

Abriu a divergência o ministro Alexandre de Moraes, com base em óbices processuais. Em sua análise, o uso da reclamação é inviável porque, quando ela foi ajuizada, não havia nenhum ato decisório proferido pelos juízos reclamados.

"Ou seja, no momento em que provocada a corte, não seria possível sequer falar em eventuais violações aos paradigmas apontados como violados, tendo em vista a ausência de qualquer manifestação de méritos."

Assim, segundo Alexandre, o receio do jornal e dos jornalistas sobre a possibilidade de os juizados ferirem o que o STF decidiu na ADPF 130, ainda que justo e fundado, não autoriza que eles usem a reclamação constitucional para acionar o tribunal.

Clique aqui para ler o voto da ministra Rosa Weber
Clique
aqui para ler o voto do ministro Aleandre de Moraes
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30
Set23

As contribuições de portais de notícias na cobertura da descriminalização do aborto

Talis Andrade

Portais feministas e voltados a saúde têm sido exemplo de jornalismo que educa e ampara, fomentando debate sobre direitos reprodutivos e dignidade para mulheres, meninas e pessoas que gestam. Imagem: Fernando Frazão/Agência Brasil

por Tânia Giusti
objETHOS

Foi em 2013, na faculdade de jornalismo, a primeira vez que tive contato com os alarmantes números de mortes de mulheres, em decorrência de abortos realizados no país. Os dados divulgados, na época, pela Agência Pública davam conta que a cada dois dias uma brasileira pobre morria por aborto inseguro no Brasil.

Mais de dez anos depois, os números, infelizmente, continuam crescendo, sobretudo para mulheres negras e pobres. Não havíamos tido nenhum avanço no que se refere à legislação e à formulação de políticas públicas no assunto, até a última semana, quando o Supremo Tribunal Federal (STF) iniciou a votação da Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 442 que discute a descriminalização do aborto até a 12ª semana.

A presidente e ministra Rosa Weber, relatora do caso, foi quem iniciou a votação no plenário virtual.  A ação, apresentada pelo PSOL e pelo Instituto de Bioética (Anis), questiona trechos do Código Penal, de 1940, ou seja, quase após 80 anos. Com um discurso amparado nas recomendações internacionais da Organização Mundial da Saúde (OMS) e na Pesquisa Nacional do Aborto (PNA), de 2021, realizada pelo Instituto Anis e diversos outros estudos científicos, a magistrada foi enfática: “a maternidade não há de derivar da coerção social fruto de falsa preferência da mulher, mas sim do exercício livre da sua autodeterminação na elaboração do projeto de vida”.

Esse é o primeiro movimento dos órgãos de justiça no Brasil, depois de quatro anos de obscurantismo do governo da morte de Jair Bolsonaro que tentou dificultar o acesso ao aborto, mesmo nos casos já garantidos por lei. Nos últimos anos, o Estado violentou meninas, crianças e mulheres dificultando o acesso ao procedimento em casos de estupro. 

A criminalização ao qual as mulheres são submetidas não impede que o procedimento ocorra, mas as leva a buscar a clandestinidade. De acordo com os dados da Gênero e Número, entre 2012 e 2022, 483 mulheres morreram por aborto em hospitais da rede pública de saúde do Brasil. Além disso, segundo dados da PNA, pelo menos uma em cada sete mulheres já interrompeu uma gestação no Brasil.

Débora Diniz, antropóloga, professora da Universidade de Brasília e uma das coordenadoras da PNA, comentou em live em seu perfil do Instagram o voto da ministra. “É um voto de uma mulher. É um voto que inaugura formas de falar sobre a interrupção voluntaria da gravidez. O voto cumpre com tudo que tem uma prescrição do que é um julgamento constitucional, mas ele também foi escrito para nós pessoas comuns, mulheres comuns, que precisamos ler e dizer: estamos falando de nós, depois de um hiato de silêncio. É um voto acessível”, avaliou.

Um jornalismo que acolhe, mas que também é perseguido

 

Imagem: Portal Catarinas

 

A decisão da ministra é histórica por uma série de fatores, e um deles se dá pelo dia 28 de setembro, quinta-feira, Dia de Luta pela Descriminalização e Legalização do Aborto na América Latina e Caribe. Em alusão a data, o Portal feminista Catarinas, em parceria com a Revista AzMina e Gênero e Número, lançou uma série de reportagens chamada “Aborto é cuidado”, que aborda as consequências da descriminalização do aborto: como questões socioeconômicas, pesquisas, indicações de filmes e documentários sobre o assunto. Segundo os portais, o objetivo é “apontar para a necessidade do acolhimento a quem decide abortar, traçando uma linha entre cuidado e aborto”.

“Todo mundo ama alguém que já fez um aborto”, foi o tema do editorial lançado na última semana nos três veículos. São textos que educam, acolhem, esclarecem e que contribuem para fomentar o debate sobre direitos reprodutivos e dignidade para mulheres, meninas e pessoas que gestam.

Foi também o Portal Catarinas, junto do The Intercept Brasil, que deu visibilidade a uma menina de 11 anos que, vítima de estupro, teve seu direito violado ao acessar o abortamento. Tanto as jornalistas responsáveis pela cobertura, quanto médicos e advogadas foram alvos de perseguição e de uma CPI na Assembleia Legislativa de Santa Catarina. 

O Portal Dráuzio Varella, formado pela equipe do médico amplamente conhecido em todo o país, também trouxe alguns materiais didáticos, em forma de vídeo, esclarecendo os motivos de tratarmos o aborto como uma questão de saúde pública no país. Amparado em pesquisas, infográficos e numa linguagem acessível, o médico e sua equipe explicam o impacto em gastos na saúde pública, as causas de mortalidade, entre outros fatores relacionados ao aborto. 

Mariana Varella @marivarella

A editora-chefe do Portal Drauzio Varella, Mariana Varella, ao divulgar o material, cita a palavra coragem ao abordar a temática. Diferente do que vem fazendo a mídia tradicional, falar sobre o assunto como saúde pública desagrada e enfurece grupos que estão sempre a postos para levar o debate para fora da laicidade a qual está inserido.

A exemplo dos veículos citados acima, muitos outros coletivos também vêm noticiando o tema com ampla cobertura e muita responsabilidade. 

 

Coberturas focadas em saúde e direitos fundamentais

É de autoria do Portal Catarinas, em parceria com a Plataforma “Nem Presa Nem Morta”, o guia “Boas práticas de cobertura feminista sobre aborto no Brasil”. A publicação gratuita está disponível no site do Catarinas. O Guia é apoiado pelo Anis, Cladem, Coletivo Feminista Sexualidade e Saúde e Coletivo Margarida Alves.

A diretora executiva do Portal Catarinas, Paula Guimarães, ressaltou no dia do lançamento do guia, ocorrido no dia na Liberdade de Imprensa que “nada mais oportuno do que tratar da cobertura do aborto no dia que evidencia a liberdade de imprensa. Por ser capturado pelo estigma, o assunto é constantemente interditado e alvo de desinformação”, falou.

O jornalismo que atua como vanguarda dos direitos das mulheres, é também uma ponte para estabelecer diálogos saudáveis com a opinião pública. Como também aprendido nos bancos escolares da universidade, o jornalismo deve ficar ao lado dos que não tem voz, e essa missão só é cumprida com maestria quando nos posicionamos diante de injustiças e em defesa das minorias. 

 
 
30
Set23

Fachin condena estado a indenizar familiares de bala perdida

Talis Andrade

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Para o ministro, diante da falta de investigação sobre a morte, o Estado deve ser responsabilizado

 

O ministro Edson Fachin, do Supremo Tribunal Federal (STF), votou nesta sexta-feira (29) para obrigar os governos do Rio de Janeiro e federal a indenizar os familiares de uma vítima de bala perdida.

O caso envolve a morte de Vanderlei Conceição de Albuquerque, ocorrida em 2015, durante tiroteio entre traficantes e a força de pacificação do Exército no conjunto de favelas da Maré.

No entendimento do ministro, que é relator do caso, os familiares de Vanderlei devem receber R$ 300 mil de indenização, sendo R$ 200 mil para os pais e R$ 100 mil para o irmão, além de ressarcimento dos gastos com funeral e pensão vitalícia.

Para o ministro, diante da falta de investigação sobre a morte, o Estado deve ser responsabilizado. De acordo com o processo, não há informações sobre a finalização do inquérito, aberto em 2016, para apurar o caso.

"Sem perícia conclusiva que afaste o nexo, há responsabilidade do Estado pelas causalidades em operações de segurança pública", argumentou o ministro.

O voto do relator foi seguido pela ministra Rosa Weber. O placar do julgamento está com dois votos pela indenização.

O julgamento ocorre no plenário virtual e vai até 6 de outubro.

Pela modalidade virtual, os ministros inserem os votos no sistema eletrônico e não há deliberação presencial. O julgamento é aberto com o voto do relator. Em seguida, os demais ministros passam a votar até o horário limite estabelecido pelo sistema.

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24
Set23

Longevidade e envelhecimento saudável precisam de proteção jurídica

Talis Andrade

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Por Jones Figueirêdo Alves

Consultor Jurídico

 

Estamos às vésperas do Dia Nacional do Idoso e do Dia Internacional da Terceira Idade que são comemorados em 1º de outubro (01).

Melhor ainda: cumpre lembrar que em 1º de outubro de 2003 foi aprovada a Lei n. 10.741 que instituiu o Estatuto do Idoso (ao depois o Estatuto da Pessoa Idosa), cujo vintenário agora é celebrado com o registro de importantes avanços.

A esse tempo decorrido, os idosos representam 14,3% dos brasileiros e, dentro de sete anos (em 2030), o número de idosos deve superar o de crianças e adolescentes de zero a quatorze anos. Da população brasileira de 210 milhões, 37,7 milhões são pessoas idosas, sob a égide do art. 230 da CF.

Nesse determinado espaço temporal, estamos vivenciando a Década do Envelhecimento Saudável (2021-2030), declarada pela Assembleia Geral das Nações Unidas, no sentido aglutinativo de serem empreendidos esforços para que longevidade, qualidade de vida, e envelhecimento sustentável signifiquem, no seu conjunto, um "avanço civilizatório importante em tempos em que se manifesta lamentável etarismo".

Essa assertiva, proferida pela ministra Rosa Weber, presidente do STF, tem fomento quando o Plenário do CNJ, em sua 13ª sessão ordinária (05.09.23), instituiu pelo Ato Normativo n. 0005234-84.2023, uma Política Judiciária sobre Pessoas Idosas e suas Interseccionalidades no Poder Judiciário. (02)

Para assegurar o princípio constitucional da razoável duração do processo, destinado ao idoso que integre a demanda, adotou-se, de imediato, uma política de capacitação de servidores e magistrados que manejem essas ações destinadas ao grupo mais vulnerável e que mais cresce na população brasileira.

Nesse fim, “os trabalhadores da Justiça deverão fazer cursos sobre esse tema, que deverão ser inseridos no Plano de Capacitação Anual das Escolas Judiciais e de Servidores”.

Interessante é anotar que no último dia 18 de setembro foi sancionada a Lei nº 14.679/23, alterando a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional e a Lei Orgânica da Saúde (Leis n. 9.394/96 e 8.080/90), para incluir a proteção integral dos direitos de crianças e adolescentes entre os fundamentos da formação dos profissionais da educação e para incluir a proteção integral dos direitos humanos e a atenção à identificação de maus-tratos, de negligência e de violência contra crianças e adolescentes entre os princípios do Sistema Único de Saúde.

Entretanto, às vésperas do Dia Nacional do Idoso, a Lei 14.679/23 omitiu tratar dos idosos, quanto ao necessário apoio à formação permanente de profissionais da educação acerca do ensino de cuidados de proteção àqueles e, ainda, no tocante à uma especial atenção do SUS quanto a identificar maus-tratos, negligencias e violências contra os idosos.

Nesse aspecto, impende urgentes as iniciativas pedagógicas direcionadas às crianças e jovens “na conscientização de um tratamento humanizado para com os idosos” e, no particular, não se cogitou de educadores capacitados a esse fim.

“Temos que começar com os mais novos, criando uma cultura de apoio, responsabilidade e respeito para com a terceira idade”, advertiu a advogada Ágatha Rosset, ao discutir, perante o CNJ, políticas públicas de atenção aos idosos (03).

Enquanto o normativo do CNJ busca um melhor tratamento jurisdicional a idosos. a exemplo da observância de prazos dos processos, estimando prazo de até 15 (quinze) meses para tramitação e julgamento, em primeiro grau, das ações cíveis e de até 24 (vinte e quatro) meses para as ações civis públicas (propostas com o objetivo de garantir direitos difusos e coletivos de pessoas idosas); as leis antes citadas não cogitam, em seus textos, de um tratamento especial aos idosos e não foram alteradas, para essa política protetiva, pela recente Lei n. 14.679/23.

Ou seja, “a preferência na formulação e na execução de políticas sociais públicas específicas”, como direito garantido aos idosos resultou desatendida.

Eis que a formação de políticas públicas envolvendo “sociedade civil, governos, profissionais especializados, agências internacionais, universidades, iniciativa privada” e a comunidade jurídica, destinadas aos idosos, exige um compartilhamento de experiencias setoriais, em conjugação com a própria pessoa idosa.

Como mecanismos propositivos elencam-se alguns elementos determinantes em proposição contemporânea de políticas de proteção jurídica da longevidade e de segurança ao envelhecimento saudável.

(i) O primeiro deles é primacial, diante da complexidade da proteção do idoso, em prestígio do seu envelhecimento saudável e qualitativo, quando as questões subjacentes da própria idade avançada, apresentam-se sob fatores de maior agravamento, a saber “interpassadas por raça, etnia, deficiência, gênero e situação econômica, etc.”, em ponto oportunamente realçado pelo relator do CNJ, conselheiro Mário Goulart Maia, diante daquele Ato Normativo de 05.09.23.

Iniludível que ditas políticas públicas, designadamente jurídicas, devam observar o idoso com essa gama de diversidades e situações especificas, para um enfrentamento conjunto.

Assim, de todo conveniente a criação de comitês multi e interinstitucionais para um corpo de medidas jurídicas envolvendo diversos ministérios de Estado, órgãos públicos e privados.

(ii) Outro ponto tem pertinência com a necessidade de uma mais extensa e segura compreensão do fenômeno do envelhecimento em nosso país. Para isso, a providência mais imediata será a de acompanhar as produções cientificas e jurídicas sobre envelhecimento.

Em outras palavras, compreender o envelhecimento como um direito personalíssimo e a sua projeção como um direito social, na dimensão e alcance próprios do art. 8º do Estatuto da Pessoa Idosa, e em “fruição completa de todos os direitos que lhe são derivados e consectários”, conforme assentado pela jurista Patrícia Novais Calmon, em sua obra “Direito das Famílias e da Pessoa Idosa” (04).

A pessoa idosa está no centro da comunidade familiar, como destinatária maior das relações familiares, quando, dentre os institutos jurídicos familistas, despontam (I) o cuidado essencial com os idosos; (ii) os direitos avoengos; (iii) os direitos de dinâmica intergeracional, e (iv) os direitos de integração social ativa do idoso.

Estamos diante de profundas modificações do perfil etário, onde as necessidades de ordem socioeconômica, cultural e de saúde, são desafiadas por problemas funcionais e de ausência de políticas públicas adequadas.

(iii) A identificação das modificações e necessidades reclama a chamada de voz dos próprios idosos. Este ponto é fundamental para que se tenha a garantia do viver bem e com qualidade de vida no envelhecimento estendido. Critérios objetivos de definição das necessidades vitais, mecanismos indutores de responder à realidade exigente de superação dos problemas etários e a oportunidade de uma vida melhor na terceira idade, convergem a um cenário de novas práticas políticas para a dignidade da pessoa idosa.

De saída, um plano de ação política exigirá que equipes multiprofissionais e interdisciplinares, sejam ampliadas e mais capacitadas ao conhecimento técnico do envelhecimento como arte e ciência para assistir a pessoa idosa, em todas as suas demandas. Para além disso, todo e qualquer plano antes obriga uma consciência social afirmativa para a mobilização das ações políticas.

Tássia Chiarelli e Samila Batistoni oferecem oportuno estudo sobre a Trajetória das Políticas Públicas Brasileiras para pessoas idosas frente a Década do Envelhecimento Saudável (2021-2030) (05) e é interessante assinalar que essa trajetória tem em 2023, um marco centenário diante do seu ponto inicial. Precisamente pelo Decreto n.º 4.682, de 24 de janeiro de 1923, que ficou conhecido como Lei Eloy Chaves, quando provoca as primeiras discussões sociojurídicas com fundo na política previdenciária do país.

Segue-se a Lei n.º 6.179/1974, com a criação da Renda Mensal Vitalícia (benefício não contributivo), sob o viés do provimento de renda, e outras leis que incursionaram em específicos temas.

Diz-nos Chiarelli e Batistoni que somente em 1982, com a I Assembleia Mundial sobre o Envelhecimento, promovida pela Organização das Nações Unidas (ONU) em Viena, na Áustria, tiveram origem políticas públicas no trato exclusivo da população idosa. Aquele primeiro fórum mundial sobre a ancianidade estabeleceu as diretrizes do I Plano de Ação Mundial sobre o Envelhecimento, publicado em 1983.

Então, afirme-se, que o principal marco regulatório dessa construção política de proteção ao ser envelhecente opera-se somente há quarenta anos.

Nesse influxo, a Constituição Federal de 1988, foi um marco, ao dispor no seu art. 30 que:

A família, a sociedade e o Estado têm o dever de amparar as pessoas idosas, assegurando sua participação na comunidade, defendendo sua dignidade e bem-estar e garantindo-lhes o direito à vida”.

Chiarelli e Batistoni sublinham que, na década de 90, “novamente a ONU lança esforços sobre a temática da longevidade”. Em 1991, a Assembleia Geral instituiu os Princípios das Nações Unidas para os Idosos, encorajando os governos a adotarem, em seus programas, dezoito (18) direitos das pessoas idosas relacionados à independência, participação, cuidado, autorrealização e dignidade. Logo o Brasil adere, com a Lei n.º 8.842/94, que estabeleceu a Política Nacional do Idoso (PNI), regulamentada pelo Decreto n.º 1.948/96 e com a Lei n. 10.741/2003, instituindo o então Estatuto do Idoso, para a efetividade de todos os seus direitos.

Quando a geriatria e a gerontologia alcançam os mais elevados padrões de qualificação médica, assegurando o aumento dos níveis de expectativa de vida, com impacto na sua qualidade existencial, toda e qualquer política pública mais eficiente obriga uma abordagem intersetorial com o sistema de saúde.

Integrar serviços de cuidados e de atenção primária à saúde adequados à pessoa idosa, propiciando-lhe o acesso a cuidados de longa duração, são dois dos quatro eixos de iniciativas que formatam as ações previstas para a presente “Década de Envelhecimento Saudável”.

Nessa perspectiva, exige-se maior proteção social ditada por uma nova ordem jurídica. Assim se apresenta a PEC n. 555/2006, que revoga o art. 4º da Emenda Constitucional nº 41, de 2003 e extingue com a cobrança de contribuição previdenciária sobre os proventos dos servidores públicos aposentados (Contribuição de Inativos). Bem de ver, porém, da necessidade urgente de isenção para todos os aposentados em geral, como foi objeto da PEC n. 61/2004, depois arquivada.

Lado outro, há de se estabelecer o implemento de planos de saúde exclusivos para idosos, de forma diferenciada, sem a carga de onerosidade ocorrente no atual sistema geral de planos e seguros de saúde, regidos pela ANS.

Em outro giro, anote-se que o art. 150 § 20 do Estatuto da Pessoa Idosa determina que cabe ao Poder Público fornecer aos idosos, gratuitamente, medicamentos, especialmente os de uso continuado, assim como próteses, órteses e outros recursos relativos ao tratamento, habilitação ou reabilitação de sua saúde.

No ponto, informa-se que “desde que apresente a receita médica e o Laudo de Medicamentos Excepcionais (LME) fornecido pelo médico, o paciente pode fazer a solicitação do medicamento pelo SUS gratuitamente”.

Entretanto, a obtenção de medicamentos de uso continuo, bem como a dos medicamentos de alto custo, sujeita-se a um ritual de critérios e regras que equivalem à omissão de socorro público, notadamente quando determinados medicamentos ainda não se acham incluidos no rol de dispensação médica.

De fato, a Relação Nacional de Medicamentos Essenciais (Rename) permanece em prejuizo do acesso à melhor garantia farmacêutica pelos idosos. Há uma desafagem na relação dos medicamentos utilizados no âmbito do SUS.

A tanto, o Ministério da Saude reconhece que “a atualização permanente da Rename, como instrumento promotor do uso racional e lista orientadora do financiamento e acesso a medicamentos no âmbito da Assistência Farmacêutica, torna-se um grande desafio para os gestores do SUS, diante da complexidade das necessidades de saúde da população, da velocidade da incorporação tecnológica e dos diferentes modelos de organização e financiamento do sistema de saúde”. (06)

Por essa compreensão, torna-se urgente que politicas públicas favoreçam o acesso do idoso à uma assistencia farmaceutica mais avançada, incorporando as condições para um envelhimento acompanhado pela qualidade de saúde prestada pelo Estado. É dizer que a garantia de acesso à rede de serviços de saúde, como o SUS, é um direito absoluto e não pode ser relativizado por deficiências do Poder Público.

Inconteste o impacto da longevidade nos sistemas de saúde quando em 1960, a expectativa de vida era de 52 anos e 5 meses e hoje situa-se em média nos 77 anos, segundo apurado pelo IBGE (25.11.2022).

Convenha-se que estejamos em plena conformidade com as metas da atual Década do Envelhecimento Saudável. Para isso, autonomia, independência e capacidade decisiva, servirão à dignidade do idoso, cumprindo-se um planejamento de governo e da sociedade em pronto atendimento às necessidades da nossa população idosa.

Quando se busca construir uma sociedade para todas as idades, com integração comunitária e familiar, proclamemos um esforço conjugado de respeito ao mais idoso, viabilizando-o potencialmente enquanto pessoa. A pessoa idosa que amanhã seremos todos nós, perseverando continuar a vida.

O médico Peter Attia, criador de um método de Estratégia de Longevidade (“Early Medical”), diz-nos em sua obra Outlive: The Science And Art of Longevity” (2023), (07) da necessidade de ser mantido pelo idoso, um plano individual de vida. De fato, as pessoas envelhecem quando param de pensar no futuro.

Não coloquemos o idoso no seu passado. Ele está na sua juventude acumulada, em perfeita e constante envelhescência.

- - -

(01) Texto extraído de palestra do autor no seminário “20 anos do Estatuto da Pessoa Idosa”, IBDFAM/ES e IBDFAM/DF, em 20.09.23. Web: https://1drv.ms/v/s!Av3N97-N7Y7zgcQ95luXNsIqYV5g1g?e=jZ8zRk

(02) CNJ. Web: https://www.cnj.jus.br/cnj-aprova-politica-voltada-para-melhor-tratamento-aos-idosos-no-judiciario/

Web: https://www.conjur.com.br/2023-set-07/cnj-aprova-medida-melhorar-tratamento-idoso-judiciario

(03) CNJ. Web: https://www.cnj.jus.br/atencao-a-pessoa-idosa-em-tarde-de-debates-comissao-recebe-sugestoes-para-politica-judiciaria/

(04) CALMON. Patrícia Novais Calmon, “Direito das Famílias e da Pessoa Idosa”; 2ª ed., Editora Foco, 2023, p. 31.

(05) CHIARELLI, Tássia Monique. BATISTONI, Samila Sathler Tavares. Trajetória das Políticas Públicas Brasileiras para pessoas idosas frente a Década do Envelhecimento Saudável (2021-2030). Web: https://revistas.pucsp.br/index.php/kairos/article/view/55685

(06) MINISTÉRIO DA SAUDE. Web: https://bvsms.saude.gov.br/publicada-a-relacao-nacional-de-medicamentos-rename-2022/

(07) ATTIA, Peter. Outlive: a arte e a ciência de viver mais e melhor. Ed. Intrínseca, 2023.

22
Set23

Yalorixá e líder quilombola assassinada na Bahia

Talis Andrade
 

Quem mandou matar Mãe Bernadete Pacífico?

 

por NPC 

Na noite do dia 17/08/23, a Yalorixá Maria Bernadete Pacífico, de 72 anos, liderança do Quilombo Pitanga dos Palmares, em Simões Filho (BA), foi executada a tiros dentro do terreiro onde vivia. Mais um crime cometido em consequência de disputas fundiárias em torno de terras das comunidades tradicionais.

A pressão e as ameaças feitas por grupos ligados à especulação imobiliária não são algo novo na realidade daquela região. Em 2017, Flavio Gabriel Pacífico dos Santos, o Binho do Quilombo, filho biológico de Mãe Bernadete, foi executado com dez tiros. Ao longo desses seis anos que se passaram, a Yalorixá seguiu firma na luta por justiça pelo assassinato do filho e pelos direitos dos quilombolas, e por isso se tornou alvo de ameaças.

Ainda em 2017, ela foi incluída no Programa Nacional de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos, Comunicadores e Ambientalistas (PPDDH), mas não foi suficiente. Em junho de 2023, já quase sem proteção, Mãe Bernadete denunciou sua situação para a presidenta do Superior Tribunal Federal (STF), a ministra Carmem Lúcia. A partir daí, as ameaças se intensificaram.

Agora, pouco mais de dois meses depois da denúncia, essa mulher que dava corpo a tantas lutas, como pela demarcação das terras quilombolas e contra o racismo religioso, entre outras, foi assassinada.

De acordo com o relatório Conflitos no Campo Brasil 2022, publicado pela Comissão Pastoral da Terra (CPT), a Bahia é o terceiro estado do país onde, nos últimos anos, foram registrados os maiores índices de conflitos por terra no campo, ficando atrás apenas de Maranhão e Pará. Com relação a ameaças de morte e agressões, os números mostram que, entre 2021 e 2022, houve um aumento de 175% no número de pessoas agredidas e 170% nas ameaças de morte no estado.

Há anos a comunidade do Quilombo Pitanga dos Palmares luta pela regularização fundiária de suas terras. Apesar de terem tido o direito reconhecido em 2017 pelo Relatório Técnico de Identificação e Delimitação – RTID, o processo tramita lentamente e ainda não foi concluído pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra). O resultado disso é que as 289 famílias que ali vivem, aproximadamente, seguem vulneráveis e expostas à pressão da especulação imobiliária, direta ou indiretamente, e correm riscos não apenas de serem expulsas do território, mas também risco de vida.  

Diante de um crime tão brutal, diversas entidades e lutadores se manifestaram em repúdio ao crime. Que possamos nos unir para, de maneira coletiva, fortalecer a luta pelos direitos humanos, pelos direitos das comunidades e povos tradicionais e contra o machismo, racismo e intolerância religiosa.

20
Set23

Provocações sobre marco temporal, execução de liderança quilombola, jornalismo e direito à verdade

Talis Andrade

O jornalismo não pode se furtar à sua parcela de responsabilidade quanto à superação da herança colonial que perpetua violências - Foto: Manny Becerra/Unsplash

por Aline Rios
objETHOS

Na semana em que o Supremo Tribunal Federal (STF) retomou a discussão sobre o marco temporal indígena que, inclusive, irá ditar os rumos sobre Terra Indígena Ibirama-Laklãnõ que está sendo requerida pelo Governo de Santa Catarina, e também, quando vêm à tona novas informações sobre a execução da liderança quilombola e Yalorixá Maria Bernadete Pacífico, executada aos 72 anos com 22 tiros, sendo 12 deles em sua face, a organização Artigo 19 oportunamente publica o relatório Direito à Informação: memória e verdade), em que busca chamar a atenção para a estreita relação entre direito à informação, direito à verdade e reparação histórica.

No relatório de 75 páginas, lançado no Dia Internacional das Vítimas de Desaparecimentos Forçados, em 30 de agosto, a Artigo 19 busca expor o quanto o acesso aos arquivos nacionais públicos pode ser mais ou menos determinante para o reconhecimento e superação da ocorrência sistemática de violações dos direitos humanos no passado. O documento relaciona a questão à violência contra povos negros e indígenas no contexto brasileiro, mas também situa aspectos mais recentes, como a repressão durante a ditadura militar e o que chama de ‘violência embranquecedora’, que ainda é perpetrada contra as populações brasileiras não-brancas.

A Artigo 19 expressa no relatório que compreende o direito à informação como um direito humano fundamental, mas também de caráter instrumental, uma vez que passa por este a necessária efetivação de outros direitos. Em Direito à Informação: memória e verdade, a organização aponta a vinculação entre o direito à informação e o direito à verdade; sendo este entendido como a obrigação do Estado de publicizar informações sobre violações de direitos humanos ocorridas a qualquer tempo e que sejam relevantes para a reparação e o acesso à justiça.

Essa exposição da ‘verdade histórica’ teria, portanto, a pretensão de superar o negacionismo e o revisionismo, reclamando uma reescrita da história, mas também, reivindicando o redesenho de políticas públicas e superando a impunidade fincada no colonialismo e que ainda corrompe o sistema social, político e de justiça no Brasil.

 

Brasil profundo

E antes de ‘torcer o nariz’ para as questões aqui colocadas, carecemos de lembrar que há pouco tempo o país teve como mandatário da Presidência da República e representante da extrema direita e elites oligárquicas, um Jair Messias Bolsonaro que, sem qualquer pudor, cometeu o disparate de afirmar em rede nacional, durante entrevista ao programa Roda Viva (TV Cultura), que “(…) se for ver a história realmente, os portugueses nem pisavam na África, os próprios negros que entregavam os escravos”.

Tamanho despropósito, para se dizer o mínimo, em um país que ainda engatinha e esbarra em vários obstáculos para promover dispositivos como a Lei 10.639/2003, que versa sobre o ensino de história e cultura afro-brasileira na escola, que encarcera a população negra em massa, e que também é vergonhosamente um país em que mais se mata negras e negros, algo assim não poderia jamais ocorrer sem reprimendas. Mas, no Brasil profundo e, ao mesmo tempo, ‘raso’, ainda há quem diga que não existe racismo no país.

Quando transpomos o olhar para a questão indígena, não se pode esquecer da reiterada afirmação da primeira ministra dos Povos Indígenas da história do país, Sônia Guajajara, que sempre faz questão de enfatizar que “sem território, não existem povos indígenas”.

Para a Artigo 19, a preservação e acesso a documentos públicos no Brasil é essencial para passar essa história a limpo, uma vez que isso permitiria constatar como o Estado brasileiro tem agido nestes mais de 500 anos para promover ou contribuir para o esbulho das terras indígenas e, portanto, para o apagamento dessas identidades e extermínio de sua população.

 

Informar para superar

Assim como versa o Código de Ética dos Jornalistas Brasileiros, profissionais do jornalismo, devidamente qualificados para o exercício da profissão com ética e compromisso social, devem atuar de maneira rigorosa na defesa dos direitos humanos e, por meio dessa, contribuir para o fortalecimento da democracia.

Dessa forma, considerando as 21 recomendações que a Artigo 19 faz a respeito do acesso às informações que se encontram em arquivos nacionais públicos, além de buscar esses dados para melhor contextualizar a oferta noticiosa à sociedade, o jornalismo pode e deve atuar para fortalecer esse sistema.

Uma atuação jornalística mais responsável e comprometida nesse sentido pode assegurar os meios para que as populações negras, quilombolas e indígenas possam reescrever suas histórias por si mesmas, mas também pode atuar: fiscalizando e vigiando o acesso aos arquivos públicos; divulgando a existência e o acesso a esses documentos; combatendo os obstáculos ao cumprimento da transparência no acesso a essas informações; cobrando medidas para promover a segurança informacional desses acervos; além de reivindicar a necessária redução da opacidade sobre os documentos de interesse público que se encontram em poder do Estado.

O jornalismo enquanto forma de conhecimento ancorada no presente e atravessada por contradições (GENRO FILHO, 1987), não pode se furtar à responsabilidade de lançar luz sobre o passado colonialista brasileiro e que, lamentavelmente, ainda chancela o silenciamento de vozes como a de Mãe Bernadete e, do grito sufocado dos nossos povos originários.

É preciso que se reconheça a violência historicamente praticada contra determinadas populações brasileiras, para que suas vítimas possam buscar e garantir a reparação destas, mas, principalmente, para que estas jamais voltem a se repetir.

- - -

Referências:

CUNHA, Brenda. Et al. Direito à Informação: memória e verdade. 1ª Edição. São Paulo: Artigo 19, 2023.

GENRO FILHO, Adelmo. O segredo da pirâmide: para uma teoria marxista do jornalismo. Porto Alegre: Editora Tchê, 1987.

A líder do Quilombo Pitanga dos Palmares foi assassinada na noite desta quinta-feira (17). Em julho, Maria Bernadete Pacífico falou sobre a violência contra quilombolas em um encontro com a ministra do STF Rosa Weber.

18
Set23

Bolsonaro usou R$ 1 bilhão da Defesa para criar 2º orçamento secreto

Talis Andrade

 

Ao menos 23 parlamentares do Centrão indicaram o destino de recursos do programa Calha Norte, que financiava obras de infraestrutura no Norte, Nordeste e Centro-Oeste

 

19
Ago23

Luto entre os quilombolas

Talis Andrade

 

As comunidades remanescentes de diferentes povos africanos, reconhecidas como quilombolas, têm sido desprezadas, assim como os indígenas. Entram e saem governos e o mandamento constitucional, que garante a demarcação das terras que ocupam, não é respeitado. Nos últimos 10 anos, pelo menos 30 líderes quilombolas foram mortos, por resistirem à pressão de especuladores ou de latifundiários que ambicionam as terras que ocupam. É assim com os indígenas, estejam eles em áreas demarcadas, ou não.

Nesta quinta-feira, a líder da comunidade Pitanga de Palmares, na Bahia, Bernadete Pacífico, 72 anos, foi executada com 14 tiros, em casa, por dois homens de capacete, ainda não identificados. Jurandir, filho de Mãe Bernadete, como ela era conhecida, por ser uma ialorixá (dirigente de uma casa de candomblé), atribui o assassinato à especulação imobiliária. Segundo ele, a mãe havia recebido várias ameaças. Em 2017, o irmão Flávio Gabriel Pacífico foi morto diante da escola da mesma comunidade. Ambos os casos serão investigados pela Polícia Federal.

Os quilombolas somam 1.327.802 pessoas, ou 0,65% da população brasileira, espalhadas por 1.696 municípios, segundo o Censo de 2022. Depois da Bahia, onde vivem 397.059 quilombolas (29,90% da população recenseada) e o Maranhão, com 269.074 pessoas, Minas Gerais tem a terceira maior população de remanescentes dos quilombos — 135.310 pessoas, distribuídas em 392 comunidades oficialmente reconhecidas. Desde a Constituição de 1988,o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) titulou menos de 60 quilombos, dos 3 mil existentes no país, de acordo com levantamento da Fundação Palmares, que não tem a atribuição de regularizar os territórios. Nos cálculos de especialistas, mantido o atual ritmo de identificação e titulação dos territórios, provavelmente, o Brasil levará 2.188 anos para concluir a legalização dessas áreas.

Os quilombolas, bem como os povos originários, vivem da produção agropecuária. Mas, como os indígenas, têm relevante importância na preservação do patrimônio ambiental. Esse costume tem estreita relação com a afrorreligiosidade praticada pelos afrodescendentes. Os cuidados com a flora e com as nascentes fazem parte das tradições desses povos. Preservar a natureza vai além dos conceitos de sustentabilidade ambiental. É uma expressão religiosa, legada pelos seus ancestrais.

A morosidade do poder público em questões de interesse dos indígenas e dos negros é, entre tantas outras, uma manifestação de desprezo e desrespeito a esses segmentos da sociedade. Favorece aos conflitos, que resultam em perdas de vidas e prejuízos aos dois grupos, que não contam com influentes representantes nos espaços de poder político.

Intolerância e racismo andam juntas no Brasil — e alimentam-se mutuamente. Desde o início do século 16, quando chegaram os primeiras grupos de negros sequestrados, para serem escravos nas terras Santa Cruz, que a sociedade brasileira estabeleceu uma divisão desumana entre pretos e brancos. Os negros eram, na concepção dos cristãos, indivíduos sem alma, sem sentimento e, portanto, não eram humanos, mas, sim, as criaturas inferiores em relação aos eurocentristas. Esse entendimento ainda prevalece em diferentes camadas da sociedade, o que explica as renitentes e cruéis expressões de racismo, em pleno século 21. Explicam também o descuido das instâncias de poder com essas parcelas sociedade.

27
Jun23

Clima pesou no TRF-4: Thompson Flores, Malucelli e Gabriela Hardt dificilmente escapam da aposentadoria (prêmio pelos crimes cometidos)

Talis Andrade

ética vaza jato_lane.jpg

 

Flores não foi à posse do novo presidente do tribunal, descontente com o não-convite a Moro e também contrariado por prestar depoimento à corregedoria

 

por Joaquim de Carvalho

- - -

 

O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) deve divulgar em agosto o relatório sobre a correição realizada na 13a. Vara Federal em Curitiba e em gabinetes dos desembargadores da 8a. Turma do Tribunal Regional Federal da 4a. Região. 

O resultado não deve agradar pelo menos três magistrados: Gabriela Hardt, Marcelo Malucelli e Carlos Eduardo Thompson Flores Lenz. Sergio Moro também não ficará bem, mas o CNJ já não tem mais jurisdição sobre ele. O problema Moro será resolvido primeiramente no âmbito da justiça eleitoral.

Pelo menos é isso o que se comenta entre funcionários graduados no TRF-4, onde a correição já foi realizada. Thompson Flores teve que prestar depoimento e seu descontentamento ficou nítido quando ele deixou de comparecer à posse do novo presidente do tribunal, Fernando Quadros da Silva, na última sexta-feira (23).
Quadros da Silva não é lavajatista, como deixou claro em uma frase de seu discurso. "O Judiciário deve permanecer discreto e agir somente quando chamado, esses são os ideais que defendemos”, afirmou.

Na posse estavam presentes a presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), ministra Rosa Weber, os ministros do STF Dias Toffoli e Edson Fachin, além da presidente do Superior Tribunal de Justiça (STJ), ministra Maria Thereza de Assis Moura, juntamente com os ministros do STJ Luis Felipe Salomão, corregedor nacional de Justiça, e Herman Benjamin.

Thompson Flores, que presidiu o tribunal no auge da Lava Jato, entre 2017 e 2019, foi uma ausência notada. Ele teria defendido que o cerimonial enviasse convite a Sergio Moro, para comparecer na condição de senador pelo estado do Paraná, um dos três que compõem a 4a. Região. Mas Thompson Flores não foi atendido.

Além disso, o clima no TRF-4 pesou para Thompson Flores depois que ele foi obrigado a prestar depoimento na correição. Quando era presidente do tribunal, Thompson Flores se uniu ao desembargador João Pedro Gebran Neto e a Sergio Moro, na época titular da 13a. Vara Federal em Curitiba, para que um alvará de soltura de Lula não fosse cumprido no dia 8 de julho de 2018.

Pelo que se comenta nos corredores do TRF-4, Thompson Flores poderá ser instado a pedir aposentadoria. Marcelo Malucelli, que é visto nas sessões do tribunal com a aparência de quem está tomando tranquilizantes, dificilmente escapará da aposentadoria compulsória, já que ele não conseguiu convencer os responsáveis pela correição de que agiu corretamente ao se manter como relator da Lava Jato mesmo em uma situação de conflito de interesses: seu filho é sócio e genro de Sergio Moro.

O destino de Gabriela Hardt também parece selado: dificilmente deixará de ser aposentada compulsoriamente. Ela prestou dois depoimentos. No segundo, para o próprio corregedor Luiz Felipe Salomão, teria deixado a sala chorando. Sua transferência imediata para a 3a. Turma Recursal do Paraná foi uma exigência do próprio corregedor. 

A correição comandada por Luiz Felipe Salomão poderá ter também repercussão criminal, além das punições administrativas. O CNJ já constatou que parte do dinheiro recebido em acordos de leniência não foi destinado conforme as normas legais. 

O Ministério Público Federal tem responsabilidade direta nesses desvios de finalidade, que podem ou não configurar corrupção. Quem tinha o dever de zelar pelos recursos é o juiz - no caso, Moro, Gabriela Hardt e Luiz Antônio Bonat.

E quem tinha que revisar decisões equivocadas ou ilegais da 13a. Vara Federal de Curitiba é o TRF-4 – primeiramente, a 8a. Turma –, mas este não cumpriu o seu papel de maneira adequada e, até recentemente, continuava a blindar a turma de Moro, como ocorreu com o escandaloso afastamento de Eduardo Appio.

A volta de Appio à 13a. Vara Federal em Curitiba, aliás, ainda não está decidida.

 

 

 

 
 

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