"Uma loucura francesa"
A revista L’Obs desta semana traz uma longa reportagem sobre o livro “Raoult, une folie française” (“Raoult, uma loucura francesa”, em tradução livre), uma biografia do médico que ficou conhecido como o “doutor cloroquina”.
Reproduzindo trechos do livro, a revista conta como, em 2003, Raoult chegou a alertar sobre o risco de uma pandemia de proporções mundiais. Em um relatório entregue ao Ministério da Saúde, o médico chamava a atenção para os riscos da concentração demográfica e previa a difusão rápida de “um vírus transmitido por via respiratória”. Premonitório, o microbiologista antecipava, nesse mesmo relatório, que “a gestão das doenças infecciosas pode colocar em questão as liberdades individuais, com isolamento necessário para evitar a contaminação”. Dizia ainda que a França não estaria preparada para enfrentar essas novas doenças contagiosas.
Em 2020, a Covid-19 tomou conta do planeta, confirmando algumas previsões de Raoult. Mas o médico subestima o surto, afirmando ter encontrado um remédio milagroso: a cloroquina. Raoult acreditava tanto em sua hipótese de cura com essa substância que chegou a dizer que essa seria provavelmente a infecção respiratória mais fácil de ser tratada na história.
"Visionário destruído pelo próprio ego"
O protocolo à base de hidroxicloroquina e “a esperança em torno desta suposta ‘poção mágica’ suscitam uma Raoultmania”, lembra a revista. Mas rapidamente surgem as polêmicas sobre a fiabilidade dos estudos clínicos feitos pelas equipes do médico e sobre a eficácia do tratamento.
Segundo a reportagem, o livro deixa a impressão de que Raoult é, acima de tudo, “um visionário destruído por seu próprio ego” e que perdeu as estribeiras no momento em que a glória batia à sua porta.
“Em 5 de junho de 2020, as conclusões de um vasto estudo britânico confirmam que o tratamento de Raoult não funcionava”, recorda a L’Obs. Resultado: não apenas a França adotou um protocolo de vacinação e aboliu, como boa parte do mundo, a hidroxicloroquina, como “a Raoultmania virou coisa do passado”. Transcrevi trechos. A reportagem da RFI aqui .
Continuando com a reportagem de Guilherme Balza:
O resultado do estudo da Prevent foi divulgado dias depois que outro estudo semelhante, realizado em Manaus, foi suspenso em razão da morte de pacientes que ingeriram cloroquina. A pesquisa também não encontrou evidências da eficácia da medicação.
Outro estudo iniciado na época envolveu algumas das principais instituições de saúde do país, como os hospitais Albert Einstein e Sírio-Libanês, mas a conclusão também foi de que a cloroquina não é eficaz contra a Covid. Restou, portanto, apenas o estudo da Prevent.
A análise da planilha dos pacientes do estudo mostra que, dos 636 participantes, apenas 266 fizeram eletrocardiograma, que é recomendado para pacientes tratados com cloroquina, pelo risco de problemas cardíacos. Uma das pessoas que morreu, um homem de 83 anos, tomou cloroquina e apresentou arritmia cardíaca, que é um dos efeitos colaterais possíveis da medicação.
Além disso, apenas 93 pacientes (14,7% do total) realizaram teste para saber se estavam com Covid ou não. Foram 62 casos positivos, menos de 10% do total de participantes.
Comissão de ética suspendeu pesquisa
O estudo chegou a ser submetido à Conep (Comissão Nacional de Ética em Pesquisa) e aprovado, mas o órgão suspendeu a pesquisa por constatar que a investigação começou a ser feita antes da aprovação legal.
Até hoje, no entanto, o estudo é usado pela própria Prevent Senior para justificar a prescrição da cloroquina aos seus associados. Ao longo da CPI, foram várias as menções.
Subnotificação de mortes por Covid
Além das suspeitas que recaem sobre o estudo, há indícios de que a operadora subnotificou mortes por Covid ocorridas em suas unidades. A GloboNews conversou com outra médica que trabalhou na Prevent e afirmou que essa prática tem ocorrido desde julho de 2020.
Em uma mensagem enviada a grupos de aplicativos, outro diretor da Prevent determina aos coordenadores das unidades que alterem o código de diagnóstico (CID) dos pacientes que deram entrada com Covid-19 após algumas semanas de internação.
“Após 14 dias do início dos sintomas (pacientes de enfermaria/apto) ou 21 dias (pacientes com passagem em UTI/Leito híbrido), o CID deve ser modificado para qualquer outro exceto o B34.2 (código da Covid-19) para que possamos identificar os pacientes que já não tem mais necessidade de isolamento. Início imediato.”
A justificativa é viabilizar o isolamento dos pacientes, mas a alteração do CID, segundo a médica, faz com que o diagnóstico de Covid desapareça de um eventual registro de óbito.
A GloboNews conseguiu comprovar dois casos em que a Covid foi omitida da declaração de óbito dos pacientes. O primeiro deles é de um homem que foi internado em novembro de 2020 na unidade da Prevent Senior do Itaim, Zona Sul da capital paulista. Ao dar entrada no hospital, o exame PCR deu positivo para Covid.
Os médicos, então, prescreveram as medicações do chamado kit Covid, como cloroquina, ivermectina e azitromicina. Ele já havia ingerido essas medicações antes mesmo de ser internado e voltou a recebê-las no hospital. Também foi submetido a cerca de 20 sessões de ozonioterapia.
Segundo a Conep, a ozonioterapia só pode ser feita em pesquisas experimentais por instituições credenciadas. O órgão informou que a Prevent não está credenciada.
O paciente ficou dois meses internado e morreu após ter uma hemorragia digestiva. A Covid, doença que desencadeou a morte, foi omitida da declaração de óbito dele.
O outro caso é de uma paciente que também morreu após ficar internada na Prevent Senior para tratar um quadro de Covid. Ela recebeu as medicações do kit Covid, mas o quadro não melhorou. Na declaração de óbito, a Covid também foi omitida.
Investigações
A Prevent Senior é investigada desde março pelo Ministério Público de São Paulo, que abriu um inquérito civil após uma reportagem da GloboNews mostrar 12 relatos de associados do plano que estavam recebendo o kit covid. Parte deles nem sequer tinha diagnóstico confirmado de Covid-19.
Em abril, outra reportagem da GloboNews trouxe relatos de médicos que trabalharam na operadora. Eles disseram que foram coagidos a prescrever os remédios do kit covid e que foram forçados a trabalhar enquanto estavam infectados com o novo coronavírus. Tudo isso foi incluído na investigação da promotoria.
O MP também investiga o uso de medicações sem eficácia comprovada, como flutamida, etanercepte, heparina inalatória e ozonioterapia. DHPP (Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa da Polícia Civil de São Paulo) e ANS (Agência Nacional de Saúde Suplementar) também abriram investigações.
A reportagem teve acesso a uma página usada como guia por médicos da área de telemedicina da Prevent. A página contém uma planilha atualizada com os nomes dos pacientes e as medicações recebidas.
É possível ver que a cloroquina e a ivermectina continuam sendo prescritas mesmo após o Ministério da Saúde ter declarado que o medicamento não funciona, o próprio ministro Marcelo Queiroga ter desaconselhado o uso das medicações e depois de estudos amplos de meta-análise indicarem que a cloroquina pode provocar um aumento das mortes de pacientes, e não a redução.
O mesmo guia ainda mostra que a Prevent Senior continua testando outras duas medicações nos pacientes. A bicalutamida, um inibidor de hormônios masculinos, contraindicado para mulheres, e a chamada “Pílula do Açaí”.
A CPI da Covid recebeu já denúncias formais que afirmam que a operadora de saúde e o governo federal fizeram um acordo, no início da pandemia do coronavírus, para testar e disseminar as medicações do kit covid.
O documento cita uma série de irregularidades que, segundo os médicos, foram praticadas pela empresa, e reveladas pela GloboNews e o G1 em abril deste ano. O Ministério Público abriu investigação.
A Prevent Senior afirmou, por meio de nota, que sempre atuou "dentro dos parâmetros éticos" (leia mais abaixo).
O primeiro desdobramento do acordo entre a Prevent e governo federal, segundo a denúncia, foi a pesquisa feita com mais de 600 pacientes para testar a eficácia da hidroxicloroquina contra a Covid-19, realizada entre março e abril do ano passado. O resultado teria sido manipulado para que os resultados fossem favoráveis ao uso da cloroquina contra a doença.
A denúncia afirma ainda que a Prevent realizou uma série de tratamentos experimentais em seus pacientes, muitas vezes sem que houvesse consentimento deles. O texto diz que pacientes foram usados como "cobaias humanas" para testar medicações contra a Covid.
Em nota, a Prevent diz que "sempre atuou dentro dos parâmetros éticos e legais e, sobretudo, com muito respeito aos beneficiários. Todas as dúvidas e questionamentos formulados pela CPI foram devidamente esclarecidos junto às autoridades competentes". Vide documentos e áudios