INDÍGENAS DA TI WAIMIRI ATROARI SE REUNIRAM EM 2022 PARA REMEMORAR O GENOCÍDIO OCORRIDO QUASE 50 ANOS ANTES, QUANDO O EXÉRCITO DIZIMOU ALDEIAS COM PULVERIZAÇÃO DE ARMAS QUÍMICAS. ‘QUEIMAVA TUDO POR DENTRO’, DIZEM OS SOBREVIVENTES. PROCESSO MOVIDO PELO MINISTÉRIO PÚBLICO PEDE QUE GOVERNO PAGUE 50 MILHÕES DE REAIS EM INDENIZAÇÃO PELO ATAQUE ÀS ALDEIAS DURANTE A DITADURA. NA IMAGEM DE 26 DE FEVEREIRO DE 2018 INDÍGENAS RECEBEM COMITIVA DA JUSTIÇA ITINERANTE. FOTO: RAPHAEL ALVES
Laudo obtido com exclusividade por SUMAÚMA mostra oito aldeias dizimadas por armas químicas nos anos 1970 para a construção da BR-174. Ação que pede a condenação da União pode ser julgada nos próximos meses e tem como perito técnico do governo federal um coronel reformado indicado por Bolsonaro
O indígena Baré Bornaldo, perto dos 60 anos de idade, senta-se diante do microfone. Militares em fardas camufladas e coturnos o observam com atenção. A cena se passa em uma das malocas da Terra Indígena Waimiri Atroari, entre o nordeste do Amazonas e o sudeste de Roraima, naAmazôniabrasileira. Bornaldo é testemunha de um crime do qual foi um dos poucos a sobreviver em sua aldeia. A audiência pública realizada pela Justiça Federal é parte de um processo movido pelo Ministério Público Federal contra o governo brasileiro. É 27 de fevereiro de 2019 – e é a primeira vez que os reservados Waimiri Atroari falam publicamente sobre o que aconteceu meio século atrás, naditadura empresarial-militarque oprimiu o Brasil de 1964 a 1985. “Perdi meu pai, minha mãe, minha irmã e meu irmão”, diz Bornaldo. E ele só estava começando a contar.
Kinja (pronuncia-seKinhá) é como o povo de Baré Bornaldo chama a si mesmo. Significa “povo verdadeiro”. Entre o final de 1974 e o início de 1975, pelo menos oito aldeias dos Kinja foram atacadas por um Batalhão de Infantaria de Selva do Exército, com disparo de armas químicas por aeronaves de combate. Os corpos queimavam por dentro, relataram os indígenas ouvidos no laudo pericial a que SUMAÚMA teve acesso com exclusividade. A arma química, segundo o perito João Dal Poz Neto, responsável pelo documento, “causou óbitos entre os moradores”, sem afetar as malocas e a floresta no entorno das aldeias.
Em alguns casos, após a pulverização de veneno sobre os indígenas, o Exército fez investidas com tropas terrestres munidas de armas de fogo e facões. O laudo ressalta que, depois dos ataques coordenados, o que Dal Poz Neto chama de uma verdadeira “guerra de ocupação”, os sobreviventes foram obrigados a fugir pela mata. As aldeias foram dizimadas. Tudo para garantir que os indígenas saíssem do caminho da BR-174, uma dasestradas abertas pela ditadurapara levar o “progresso” à Amazônia.
Infográfico: Rodolfo Almeida/SUMAÚMA
Nesses oito ataques, estima-se que 58 indígenas morreram. Mas a Comissão Nacional da Verdade calcula que o total de Kinja mortos entre 1972 e 1977 chegou a 2.650 – não só durante a abertura da rodovia, mas também depois, pelas doenças levadas pelos brancos. A Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) estimou, na época, que os Kinja somavam 3 mil pessoas, ao todo. Foi o extermínio quase total de um povo.
Na ação civil pública, o MPF afirma que houve umgenocídio. Por isso exige da União o pagamento de uma indenização de 50 milhões de reais, além de um pedido público de desculpas aos indígenas, como forma de compensar as violências cometidas entre 1974 e 1975 durante a construção da rodovia, que atualmente liga Manaus a Boa Vista. O desfecho dessa ação na primeira instância está previsto para os próximos meses.
A Advocacia-Geral da União (AGU), que defende o governo brasileiro, adotou, até fins de abril de 2023, uma postura alinhada com a visão bolsonarista – militar, anti-indígena e de avanço sobre a Amazônia –, em detrimento dos povos originários. Mesmo após a posse do presidenteLuiz Inácio Lula da Silva(PT), seu posicionamento seguia similar ao do governo anterior. A AGU nomeou como seu assessor técnico no processo um coronel reformado que usa como foto de perfil, numa rede social, uma montagem que retrata o ministro do Supremo Tribunal Federal Alexandre de Moraes – alvo preferido dos bolsonaristas – com chifres de demônio. O papel desse assessor seria acompanhar a realização das perícias e laudos encomendados pela Justiça para definir como aconteceram os massacres. Só após ser questionado por SUMAÚMA o órgão mudou de postura no processo e sinalizou que deseja realizar um acordo.
IMAGEM DO PERFIL NO FACEBOOK DO CORONEL HIRAM REIS E SILVA, INDICADO PELO EXÉRCITO PARA SER ASSISTENTE TÉCNICO DA DEFESA NO PROCESSO JUDICIAL. FOTO: REPRODUÇÃO
Um dos autores da ação judicial, o procurador da República Julio Araujo, diz que o MPF “não está fechado” a negociar judicialmente com o governo. Caso não exista acordo, o governo brasileiro poderá ser finalmente responsabilizado pelo genocídio dos Kinja. “Houve genocídio no território Waimiri Atroari. Naquele contexto, patrocinado pelo Estado, que deixou de impedir, de prevenir que ele escalasse. Os elementos nos autos são fartos para comprovar o que estamos sustentando”, afirma o procurador.
Se a União for condenada, não será a primeira vez. Em processos sobre genocídio contra indígenas durante a ditadura, o Brasil já foi sentenciado a reparar os povos Krenak, em Minas Gerais, Tenharim e Jiahui, no Amazonas, e Avá-Canoeiro, no Tocantins (continua)
Um triste ensaio sobre o genocídio de povos originários durante os anos 1970 e suas consequências nos dias atuais
Por Ben hur Nogueira
Hodiernamente, foi estimado na Comissão da Verdade que até 1968, após a instauração do AI-5, os casos que concerniam este genocídio passariam a ter uma responsabilidade coletiva dos agentes da ditadura militar. Boa parte, na época do AI-5, buscava o poder de terras que pertenciam por direto aos povos que ali sempre residiram.
Em 16 de julho de 1970, instaurada pelo então presidente Médici, o Plano de Integração Nacional buscava nitidamente ocupar territórios que pertenciam a comunidades originárias amazônicas, planejando a criação de estradas novas como a BR-163, que liga a cidade de Cuiabá até Santarém, e a criação da Transamazônica, cujo seu principal planejador, o então ministro do Interior José Costa Cavalcanti, intencionava um investimento que acabaria com o lar de mais de 29 etnias que habitavam a região naquela época. Exemplo disso é a construção do trecho que cruza o município de Humaitá, no estado do Amazonas, que resultou no genocídio em massa da população originária que, na época, era estimada em mais de 2 mil habitantes, a maioria pertencente à etnia Jiahui. Hoje, passados mais de 50 anos deste massacre atroz, é contabilizado aproximadamente 700 habitantes, muito menos que a metade.
Existem vários relatos que reafirmam expedições criminosas em regiões da floresta amazônica, nas quais originários habitantes da região eram constantemente atacados.
Um deles, provavelmente o mais famigerado, é o Relatório Figueiredo, criado pelo procurador Jader de Figueiredo Correa em 1967, o documento noticiou crimes, estupros, relatos de escravidão, guerra química e bacteriológica contra povos originários brasileiros.
O texto original tem mais de 7 mil páginas que proveem uma acurácia desumana sobre o hecatombe produzido pelos militares da época, apesar disso, só foi oficialmente revelado em 2013, na Comissão da Verdade já que, na época, havia sido estritamente censurado pelos militares e dado como desaparecido em um suposto incêndio que ocorreu no Ministério da Agricultura naquele mesmo ano.
O relatório ainda expôs que membros do Governo Militar, além de levar etnias originárias à extinção através de torturas e mortes em massa, roubar suas terras e escravizar seu povo, foi omisso em relação a questões sanitárias, não distribuindo vacinas contra epidemias da época e, principalmente, não fornecendo ajuda higiênica para populações em situações de vulnerabilidade ante ataques de garimpeiros e fazendeiros que expurgavam os originários de suas aldeias.
Um exemplo disso é um relato histórico que não consta no Relatório Figueiredo, mas no texto Memórias Reveladas, do Arquivo Nacional, que expõe um crime de omissão sanitária cometido por agentes de saúde que atuavam com membros da etnia Yanomami, em 1975. Na ocasião, segundo o relato, uma campanha de vacinação com previsão de três semanas foi inacreditavelmente reduzida para dois dias e meio, tendo apenas 230 originários Yanomami vacinados. A situação torna-se ainda mais horrenda quando, à luz do Relatório Figueiredo, é revelado que havia o desvio, por parte de militares, do orçamento destinado ao ataque de enzimas e epidemias em reservas originárias. Certamente, um triste capítulo da história brasileira e que nunca, sequer, ouvimos falar nos livros de história.
Etnias originárias como Xetá, por exemplo, foram dadas como extintas no início dos anos 1980, já que mesmo antes do período militar sofriam com ataques constantes de fazendeiros do Paraná. Apenas nos anos 1990 poucos sobreviventes passaram a lutar por seus direitos constitucionais.
Outro caso bastante conhecido no que tange ao hecatombe originário foi o dos Tapayuna. Estimados em mais de 1200 pessoas nos anos 1960, foram dizimados através de envenenamento, armas de fogo e principalmente pela omissão do Estado Brasileiro ao não fornecer vacinas para a população, restando apenas 40 pessoas relacionadas à etnia em 1971, no auge dos anos de chumbo.
No estado do Tocantins, membros da etnia Avá-Canoeiro foram submetidos a sessões de tortura pública e, segundo relatos, escravizados, maximizados em filas indianas e expostos constantemente em ambientes públicos. Entre os anos de 1972 e 1973, ainda foi feito uma espécie de zoológico humano com eles, localizado na sede da fazenda Canuanã. Relatos também dão conta que mulheres da etnia sofriam abusos sexuais e torturas psicológicas. Hoje em dia existem aproximadamente 23 pessoas pertencentes à etnia, um número surpreendentemente discrepante no que tange ao número original de habitantes, antes mesmo da colonização europeia no Brasil.
Ademais, todas estas construções e obras mencionadas anteriormente tiveram consequências irreversíveis para os povos que habitavam em regiões vizinhas. Além da BR-174 e da Transamazônica, o texto Memórias Reveladas expõe que a construção da Usina Hidrelétrica de Balbina, criada através do decreto número 86.630 pelo general Figueiredo no ano de 1981, inundou mais de 30 mil hectares pertencentes ao povo Waimiri-Atroari, realocando mais de duas aldeias inteiras daquela área.
Os próprios Waimiri-Atroari já sofriam com repressões de garimpeiros que atuavam naquela região desde o início do século 20, contudo, foi no Governo Militar que o garimpo ilegal e assassinatos frequentes dos povos que ali habitavam tornou-se uma triste praxe, o que eventualmente culminou nas várias tentativas de usar pretextos para deslocarem os habitantes da região.
Se isso não bastasse, foi revelado que em 1974 uma aldeia cujo o nome era Kramna Mudi realizava uma festa típica de habitantes Kina. Por volta do meio-dia daquela data, crianças originárias escutaram roncos de um avião do exército e saíram para ver o que ocorria no pátio. Abruptamente, notaram um pó saindo do avião sendo despejado na aldeia. Todos que ali estavam, com a exceção de um sobrevivente, morreram. Uma estimativa de 33 mortos nesse massacre doentio e sádico provido pelos militares.
O pretexto de um genocídio sádico e histórico contra povos originários sempre foi contado pelo lado colonizador, nunca pelo colonizado. Quando percebemos os números que ocorreram antes do período militar, notamos que sempre houve uma omissão e consequentemente uma culpa nunca assumida pelo Estado brasileiro.
Contudo, foi no auge do Governo Militar, onde o descaso à ciência, o obscurantismo humanitário causado pelos militares daquela época e, principalmente, o plano eugênico causado por parte dos militares reinava, que houve a extinção de povos que habitavam e tinham estas terras por direito – antes mesmo de qualquer golpe de Estado.
Escrever sobre o passado é acima de tudo evitar que no futuro tenhamos de escrever novamente sobre um hecatombe histórico contra um povo que vem sendo dizimado pelo Estado brasileiro.
A luta antirracista é acima de tudo uma luta anticolonial, e a luta anticolonial é uma luta que todos os cidadãos brasileiros que não são corrompidos por falácias obscurantistas devem aderir.
Nos últimos anos do (des)governo Bolsonaro, os mesmos argumentos que haviam sido utilizados outrora para justificar o massacre contra povos originários, foi verbalmente dito por aquele que, além de ser responsável por mortes na pandemia, também será lembrado nos futuros livros de história como um autor de vários crimes contra povos originários. Tudo o que ele fez para esses foi dar sequência a um projeto de governo usado pelos militares durante o período militar. Além de negar assistência, também negou responsabilidades constitucionais para esses, como foi o caso dos originários Yanomami, veiculado em toda a imprensa, contra os quais foi omisso ao recusar pedidos de socorro, ato que resultou na morte de mais de 100 crianças no último ano.
Parafraseando a canção “Clube da esquina 2”, que serve tristemente para este final, este Brasil deve muito aos povos originários, muito mesmo, pois nossa mãe é “Um rio de asfalto e gente”.
De onde vem a confiança inabalável de que as Forças Armadas podem pôr ordem na casa? Tropas e tanques podem até abafar crises e garantir certa ordem, mas não são capazes de solucionar problemas estruturais
ainda se lembram da Operação Rio? Com essa "operação", o então governador do Rio de Janeiro, Marcello Alencar, queria combater a violência nas favelas da cidade maravilhosa. Em outubro de 1994, mandou tanques e tropas do Exército brasileiro aos morros. Depois de sete meses, desistiu. A "operação" era cara demais e não foi capaz de diminuir o tráfico e a violência.
Desde então, me pergunto: de onde vêm a confiança e a fé inabalável de que as Forças Armadas podem colocar ordem na casa? Será que é um sinal de desespero?
Até hoje, as Forças Armadas se mantêm como a instituição em que a população brasileira mais confia. Segundo uma pesquisa do instituto Datafolha de julho de 2019, 42% dos entrevistados disseram confiar muito nos militares, 38% confiam um pouco, e 19% não confiam.
Desde o fim da ditadura militar, as Forças Armadas foram chamadas inúmeras vezes para "socorrer" o país: no combate ao crime organizado, na Copa, nas Olimpíadas, nas UPPs, para expulsar garimpeiros de reservas indígenas. E, agora, na crise do coronavírus: o prefeito do Rio, Marcelo Crivella, pediu "ajuda" dos militares a fim de reduzir a circulação de pessoas nas ruas.
Mas apesar de todos esses gritos de socorro, o crime organizado continua aterrorizando a população nas comunidades das grandes metrópoles. A invasão de garimpeiros em reservas indígenas progride, assim como a grilagem e o desmatamento ilegal na Floresta Amazônica. E, claro, as infecções por coronavírus não vão parar com o Exército nas ruas.
As "obras faraônicas" do "Brasil Grande", entre eles a rodovia Transamazônica, o projeto de celulose de Jari e as usinas nucleares de Angra, fizeram a dívida externa do país estourar, e custam caro ao Brasil até hoje. A "década perdida" foi uma herança pesada para a transição democrática.
Além da dívida econômica, também a repressão política e a violação de direitos humanos durante a ditadura deixaram a sociedade marcada, e as famílias das vítimas, traumatizadas. O trabalho da Comissão Nacional da Verdade não causou um grande debate nacional, os crimes contra direitos humanos não foram punidos, e as velhas narrativas sobre os militares e um suposto passado melhor continuam. O "milagre brasileiro" se sobrepõe à repressão política, ao inchaço do setor público e à corrupção.
As experiências mais recentes com operações militares também não foram muito promissoras. Ficou evidente que tropas e tanques podem até abafar crises e garantir uma certa ordem, mas não são capazes de solucionar problemas estruturais. Sem projeto político, visão estratégica e diálogo com a sociedade, esses problemas são empurrados para a frente e estouram na próxima ocasião com mais impacto ainda.
Parece que as Forças Armadas entenderam isso melhor do que o próprio presidente e seus seguidores, que participaram recentemente de protestos a favor da intervenção militar na frente do Quartel-General do Exército em Brasília.
Pode ser uma ironia do destino que um capitão reformado perca o apoio justamente dos militares que ele mesmo chamou para compor seu gabinete. E em vez de uma intervenção militar, os militares venham a intervir pela democracia. Nunca imaginei que um dia chegaria a esse tipo de raciocínio.