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O CORRESPONDENTE

Os melhores textos dos jornalistas livres do Brasil. As melhores charges. Compartilhe

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O CORRESPONDENTE

10
Abr23

Lula cancela privatizações e mídia esperneia

Talis Andrade

 

Charge publicada no Sindibancários/ES

 

por Altamiro Borges 


Cumprindo compromisso da campanha eleitoral, o presidente Lula cancelou nesta quinta-feira (6) o processo de privatização de sete estatais, retirando-as do Programa Nacional de Desestatização (PND). São elas: Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos (ECT); Empresa Brasil de Comunicação (EBC); Empresa de Tecnologia e Informações da Previdência (Dataprev); Nuclebrás Equipamentos Pesados (Nuclep); Serviço Federal de Processamento de Dados (Serpro); Agência Brasileira Gestora de Fundos Garantidores e Garantias (ABGF) e Centro Nacional de Tecnologia Eletrônica Avançada (Ceitec). 

Além disso, o governo anunciou a retirada de três empresas do Programa de Parcerias de Investimentos (PPI): Armazéns e imóveis da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab); Empresa Brasileira de Administração de Petróleo e Gás Natural – Pré-Sal Petróleo S.A. (PPSA); e Telecomunicações Brasileiras. (Telebras). Todas elas seriam vendidas a preço de banana pelo destrutivo desgoverno de Jair Bolsonaro. O desmonte, porém, começa a ser revertido. Já na posse, em 1º de janeiro, o presidente Lula havia assinado o “revogaço”; agora, a medida é oficializada no Diário Oficial da União. 

A histeria de Josias de Souza

 
De imediato, o cancelamento gerou a fúria da mídia privatista e dos seus “analistas de mercado” – nome fictício dos porta-vozes da cloaca burguesa. O site G1, do Grupo Globo, lamentou: “Em fevereiro de 2021, o ex-presidente Jair Bolsonaro entregou ao Congresso o projeto de lei que abria caminho para a privatização dos Correios. O governo havia escolhido um modelo que previa a venda de 100% da estatal. À época, existia uma previsão de um leilão para concretizar a venda no 1º semestre de 2022. No entanto, a privatização dos Correios travou no Senado, após ser aprovada pela Câmara. Depois que Lula foi eleito para um terceiro governo, o grupo de transição propôs que a privatização da estatal fosse descartada”. 

Já o Estadão ouviu apenas os abutres financeiros para atacar a medida, sem espaço para o contraditório. “‘Decisão de Lula é ruim. Com privatização, governo poderia focar no que é relevante’, diz economista. Para Sergio Vale [chefe da consultoria MB Associados], empresas que foram retiradas do programa de privatizações perdem a possibilidade de renovação e remodelação, com ganhos de eficiência”, destacou a matéria do jornalão oligárquico, que hoje é comandado por banqueiros. 

Mais agressivo ainda foi Josias de Souza, articulista do UOL e da Folha famoso por suas posições ultraneoliberais. Em artigo postado neste sábado (8), com o escandaloso título “Lula recoloca as estatais na trilha da roubalheira”, ele espalha a fake news de que só a privatização evita as “maracutaias” dos gestores públicos – talvez se esquecendo do roubo bilionário das Lojas Americanas e de outras sujeiras “privadas”, nos dois sentidos da palavra. Ele aproveita ainda para criticar a decisão do Supremo Tribunal Federal, que suspendeu a absurda quarentena de três anos imposta pela Lei das Estatais. A histeria do jagunço do Grupo Folha rendeu um tuite ácido do jornalista Xico Sá: “Um colunista a serviço da opinião do patrão”.

31
Ago21

Ouro amazônico do barro ao luxo

Talis Andrade

por Gustavo Basso /DW /Pará

Imagem aérea de garimpos montados ao longo de igarapé no município de Jacareacanga/PA

Igarapés revirados

De acordo com o Ministério Público Federal (MPF), o solo revirado pelo maquinário pesado utilizado no garimpo acaba liberando mercúrio mineral no ambiente. Somado ao mercúrio lançado na atmosfera para extração do ouro, torna-se um contaminante perigoso na cadeia pesqueira da bacia do rio Tapajós. A imagem aérea mostra garimpos montados ao longo de um igarapé no município de Jacareacanga, no Pará.

Imagem aérea de garimpo montado às margens da Rodovia Transamazônica (BR-230) no município de Jacareacanga/PA

Clareira e assoreamento

Defensores da atividade afirmam que a área desmatada para a exploração do ouro é menor do que em atividades como a criação de gado ou plantio de soja, sem levar em consideração o assoreamento de igarapés e rios, visto como problema ambiental crucial pela Polícia Federal. Na imagem, vê-se um garimpo montado às margens da Rodovia Transamazônica (BR-230) em Jacareacanga.

Mecânicos soldam peça de escavadeira em oficina de Jacareacanga/PA

Oportunidade de negócio

Com o aumento intenso da mecanização dos garimpos na última década, o reparo e venda de peças para escavadeiras e tratores vêm se tornando um mercado cada vez maior e lucrativo em Jacareacanga. Alan Carneiro, um dos principais nomes na luta pela legalização do garimpo de ouro na região, veio de Rondônia há quatro anos para aproveitar este mercado.

Lanchas são enfileiradas aguardando a partida no porto de Jacareacanga/PA

A outra margem do rio

Diariamente partem do porto improvisado de Jacareacanga dezenas de lanchas e balsas transportando pessoas e produtos para os garimpos na região, na outra margem do rio Tapajós. Do outro lado do rio estão somente áreas federais protegidas: as TIs (Terra Indígenas) Sai-Cinza e Mundurucu, e a Floresta Nacional do Crepori. O garimpo de ouro é vetado atualmente em ambas áreas.

Garimpeiro exibe as joias de ouro puro na vila de São José do Pacu, município de Jacareacanga/PA

Vaidade dourada

Joias de ouro como anéis e relógios são utensílios obrigatórios utilizados por garimpeiros e aqueles que se relacionam com a atividade, como este minerador, morador da vila de São José do Pacu.

Cozinheira prepara refeição em barraco montado em garimpo de ouro na região da Floresta Nacional do Crepori

Trabalho feminino, universo masculino

Cozinheiras são as únicas presenças femininas em campo nos garimpos, responsáveis pelas cinco refeições diárias, bancadas pelos patrões. Ao contrário dos garimpeiros, que recebem uma porcentagem do ouro extraído, as cozinheiras recebem como salário 20 gramas de ouro por mês, avaliado em Jacareacanga em torno de R$ 5.000, mais de três vezes a média salarial do Norte e Nordeste do paísGarimpeiro caminha diante de buraco de solo revolvido para extração mecanizada de ouro.

Matéria bruta

Para extrair em média 300 g em um intervalo de duas semanas, os barrancos são escavados até que o cascalho subterrâneo seja exposto; é onde fica depositado o ouro de erosão, até 30 metros sob o solo. O garimpo atualmente é compreendido como atividade empresarial industrial de pequena escala, dado o impacto e investimento empregado na atividade.Gerador elétrico a diesel funciona dentro de clareira aberta na floresta amazônica no município de Jacareacanga/PA

Eletricidade a diesel

Todos os dias milhares de litros de óleo diesel são consumidos por todo tipo de veículos e maquinário pesado utilizado no suporte à extração do ouro. Os geradores de energia elétrica são presença geral e barulhenta em regiões dentro de áreas protegidas aonde a energia elétrica não chega.

Balsa transporta combustível e outros itens em igarapé às margens de Jacareacanga/PA

Atividade artesanal ou pequena empresa?

Para o procurador federal Paulo de Tarso Oliveira, a sociedade necessita debater o garimpo e seus impactos. Segundo ele, uma atividade que emprega maquinários caros como balsas de até R$ 2 milhões não pode ser considerada artesanal como na época da Constituição Federal de 1988.

Barraco abandonado em área de garimpo às margens da Rodovia Transamazônica (BR-230)

Várzeas ameaçadas

O ouro de garimpo é extraído nos "baixões": áreas de várzea às margens de igarapés, onde o minério lavado pelas chuvas se acumula. A contaminação por mercúrio e assoreamento dos igarapés é um dos grandes impactos da exploração além do desmatamento de áreas protegidas legalmente pela União. Na foto, um barraco abandonado em área de garimpo às margens da Rodovia Transamazônica (BR-230).

José Freitas, 69 anos, vendedor de alimentos no mercado municipal de Itaituba/PA

Como muitos outros retirantes da pobreza no nordeste, José Freitas, de 69 anos, veio para a região do Tapajós nos anos 1980 tentar a sorte no garimpo. Após anos trabalhando manualmente, acabou se assentando em Itaituba, onde comprou um terreno para plantar alimentos vendidos no mercado municipal.

 

27
Fev21

Dois anos de desgoverno? – um projeto criminoso

Talis Andrade

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Com a pandemia, o genocídio passa a se configurar efetivamente como política estatal

 

por Laymert Garcia dos Santos /a terra é redonda

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A equipe editorial do site A Terra é Redonda concebeu a publicação de uma série de artigos sobre a era Bolsonaro intitulada “Dois anos de desgoverno”. O que me leva a interrogar-me sobre o que teriam em mente e a pensar, antes de tudo, no sentido ambíguo do termo proposto.

Com efeito, numa acepção primeira, mais frequente, desgoverno designaria um governo errático feito uma biruta, desorientado, sem rumo definido. A ser verdade, estaríamos diante de uma atuação marcada sobretudo pela imprevisibilidade, pela ignorância e pela incompetência de governantes “sem noção”. Mas tal perspectiva só procede se tomarmos como medida e parâmetros aquilo que a era Bolsonaro não é (mas deveria ser…): uma democracia representativa funcionando, ainda que precariamente, de acordo com as regras de um Estado de Direito republicano.

O que, convenhamos, não é bem o caso, tendo em vista a sucessão vertiginosa de antecedentes criminosos e fraudulentos dos últimos seis-sete anos que abriu o caminho para a ascensão da orcrim ao poder máximo. Aliás, a rigor, tal sucessão nem precisaria ser lembrada – está gravada na mente traumatizada de todos. Assim, se levarmos a sério o que aconteceu, e que é do conhecimento geral, torna-se impossível aceitar que a palavra desgoverno designe desacerto. Aceitar tal hipótese seria corroborar a tese da primazia da falta de competência e de conhecimento, da falta da arte de governar…

Seria, então, desgoverno um des-governo, isto é, o desfazimento da política de Estado, pelo menos tal como a experimentamos, de novo, precariamente, no Brasil republicano? Se for isso, temos de admitir que não há falta, há afirmação sempre reiterada de um agencia categórica de desmandos para destruir a frágil ordem vigente até então, com suas leis, usos e costumes, em todas as esferas da vida social, visando implantar uma nova ordem – ainda que ela aspire à reconfiguração fantasmática do rebotalho do passado colonial e da ditadura.

Nesse caso, deveríamos compreender a expressão “dois anos de desgoverno” em sua acepção positiva, isto é, como dois anos de uma política deliberada de destruição das instituições, de decomposição da nação e de desconstituição da sociedade brasileira. O que, evidentemente, a inteligência praticamente se recusa a aceitar, dada a enormidade e a monstruosidade do empreendimento. Pois estaríamos falando do fim do Brasil como país.

Mas se à lucidez repugna tal constatação imperiosa, o mesmo não acontece com os afetos. Sente-se o choque do fim na angústia renovada (e intensificada) a cada dia, que se declara incontornável e, ao mesmo tempo inassimilável. Como diria o escritor Henry Miller, o mundo degringola primeiro secretamente, no inconsciente, antes de irromper no exterior.

“Se penso na Alemanha durante a noite, / Logo perco o sono.” – escreveu Heinrich Heine, na década de 30 do século XIX. Os célebres versos do poeta alemão dão uma ideia da inquietação que o sacudia. Ora, o que dizer da reação dos intelectuais brasileiros diante de um “país em crise total e mortal”, na expressão do arguto analista político Jânio de Freitas? Parece-me que perdem muito mais que o sono. Perdem, além dele, a voz – seja porque não encontram palavras à altura do acontecimento, seja porque só lhes resta esgoelar as desgraças até a rouquidão, em um alarme tanto mais estridente quanto mais impotente. O silêncio… ou palavras ao vento.

À esquerda, muita gente reclama da falta de intervenções propositivas, da desconexão dos intelectuais com o povo e com o país. Talvez não seja um caso de indiferença, de desinteresse, mas sim da percepção que o horizonte do Brasil se fechou, tornou-se “horizonte negativo”. Isso fica bastante evidente quando pensamos nos grandes intelectuais brasileiros do século XX. Apesar dos óbices de toda ordem (e mapearam muitos), eles acreditavam que seria possível superar a herança maldita do passado colonial e construir um futuro.

Por isso, dedicavam-se à questão da formação de um país chamado Brasil – que se pense em Caio Prado Jr, em Sérgio Buarque, em Gilberto Freire, em Antônio Candido, em Florestan Fernandes, em Celso Furtado, em Darcy Ribeiro, e tantos outros tentando entender o Brasil para ajudar a transformá-lo. Mas quem, hoje, pode em sã consciência pretender pensar o país em termos de formação? Roberto Schwarz, já na década de 1990, empregava o termo desmanche para designar uma característica maior do capitalismo contemporâneo, e, em 2003, nomeava o Brasil como um “ex-país ou semipaís”; Paulo Arantes publicava em 2007 um livro intitulado Extinção, e Chico de Oliveira, que tanto amava a sua terra natal, teve de reconhecer nela a figura de um ornitorrinco…

Não faz muito tempo – foi em 2003! Hoje, a evolução sem saída do ornitorrinco-Brasil se consumou. O bicho cresceu exponencialmente, assumiu sua dimensão continental. E cada uma de suas incongruências entrou em guerra com todas as outras, dilacerando a figura monstruosa. Salvo engano, sem remissão.

Desgoverno?

A palavra, agora, até soa gentil, recatada demais para nomear um processo letal, desde que os diversos estratos do establishment selaram uma aliança jurada sobre a bíblia do fundamentalismo neoliberal para acabar com a raça dos trabalhadores e abrir a temporada internacional de rapina dos recursos do Brasil, enormes, porém não-inesgotáveis.

Cada estrato do establishment deu a sua contribuição específica: os militares inventando e promovendo Jair Bolsonaro com métodos de guerra híbrida até alçá-lo ao trono, para supostamente “salvar” o Brasil do comunismo petista e a Amazônia da cobiça internacional, através de uma política de terra arrasada (o que inclui, além da devastação dos biomas, a limpeza social e étnica do território, com o genocídio de índios e quilombolas); o Judiciário pondo em prática o lawfare da Lava-Jato em todas as instâncias, para criminalizar os opositores e instaurar a exceção permanente; os órgãos de “segurança” mancomunando-se com milicianos e jagunços para semear o terror nas periferias e ameaçar os movimentos sociais e seus líderes no campo e nas cidades; a grande mídia com sua leniência em relação a todos os crimes que vêm sendo cometidos, para não falarmos de seu mal dissimulado jogo de afetar “independência” mas fechar com a extrema-direita sempre que necessário; e, last but not least, a alta finança e o alto empresariado – verdadeiro pilar de sustentação do regime, junto com os militares –, interessados nas “reformas” que implicam na demolição do pouco de  Estado de Bem Estar que existia e na conversão do Estado em mera polícia do Kapital. E não vale invocar a resignação suspirosa dos punhos de renda por terem de tolerar a escrotidão sem limites dos governantes. A sagração do lumpesinato miliciano aos postos máximos é obra deles, sua responsabilidade histórica.

A Lei, a Ordem, o Kapital… e todos os “homens de bem” do establishment. De mãos dadas com o lúmpen de todos os estratos sociais, em prol da destruição. Por motivos diversos, porém convergentes. Os bandidos do Judiciário para transformar o poder de julgar e punir (e seus efeitos) em cosa nostra; isto é o poder da lei em poder do arbítrio. Os militares, associados aos milicianos, para exercer o mando através da força armada e do medo dela. O Kapital para impor o fundamentalismo neoliberal. É sabido que este tem como princípios basilares o não-reconhecimento da existência da sociedade e a extinção da categoria “trabalhadores”, até mesmo de uma perspectiva teórica. “And, you know, there’s no such thing as society. There are individual men and women and there are families” – sentenciara, em 1987, Margareth Thatcher, o totem de Paulo Guedes, junto com Pinochet.

Há indivíduos e há mercado. E como não há mais trabalhador, quem puder que se transmute em empreendedor, capitalista de si próprio, investindo no mercado seus recursos inatos e adquiridos. Quem não puder, “sujeito monetário sem dinheiro”, na expressão de Roberto Schwarz, que morra em silêncio, como descartável. Por isso mesmo, todas as reformas propostas convergem para a extinção de todos os direitos, inclusive o direito à vida, menos o sacrossanto direito à propriedade. Por isso mesmo, garantia de emprego e renda, acesso à saúde e à educação, estabilidade do serviço público, moradia, segurança pública, ciência, cultura, ambiente, vida enfim, precisam ser aniquilados. Em última instância, o fundamentalismo neoliberal reserva às populações, como única perspectiva, a vida nua, isto é, matável.

Assim, para todo lado que se olhe, na cena da vida brasileira, prevalece a tendência à destruição e uma formidável pulsão de morte, cuja manifestação concreta teve início em 2013. Agora que ela se espraiou, o projeto do desgoverno é mobilizá-la nos níveis micro e macro, isto é tanto dentro do indivíduo quanto no coletivo, é desembestá-la para, posteriormente, quem sabe, instaurar sobre os escombros um regime de dominação total.

Isso já foi diagnosticado por vários analistas e classificado como necropolítica, seja ela considerada fascista, ou meramente autoritária, bonapartista, etc… Contudo, o diagnóstico ficou restrito ao âmbito dos letrados e era de difícil compreensão até para as camadas médias mais informadas das grandes cidades. Ora, a pandemia mudou tudo, ao tornar explícito o projeto criminoso. Levou certo tempo, é claro, para que todo mundo entendesse que a inexistência de uma política sanitária era deliberada e zelosamente conduzida pelo Ministério da Saúde, além de acompanhada por medidas administrativas de toda sorte que pudessem, seja impedir o combate ao vírus, seja comprometê-lo.

Entretanto, a partir da publicação da pesquisa da Faculdade de Saúde Pública da USP e da Conectas Direitos Humanos, no início de 2021, ficou demonstrado que Bolsonaro tem uma “estratégia institucional de propagação do coronavírus”. Ou seja: o genocídio deixou de ser deduzido do desgoverno federal, como um desacerto, passando a se configurar efetivamente como política estatal. À falta de medidas sanitárias preventivas, para evitar a proliferação do contágio, somou-se a falta, patente, de vacinas e de outros insumos, sem esquecermos da promoção sistemática de medidas pró-contaminação. Já nem se trata de um descaso com a pandemia, de um Cada um por si e Deus contra todos – é pior, muito pior. Assim, a peste radicalizou a crise ao escancarar a natureza perversa do governo e ao inviabilizar o mantimento das aparências de que “as instituições estão funcionando”.

Num texto instigante e, num certo sentido, profético, intitulado “Para além da necropolítica”, Vladimir Safatle prenunciou que a crise entrava numa nova fase, na qual a disseminação da morte deixava de ser dirigida aos “outros”, para tornar-se, também, suicídio do Estado. Inspirando-se no conceito de Estado Suicidário forjado por Paul Virilio para pensar a lógica explicitada pelo nazismo quando a constatação da derrota se tornou incontornável (o famoso Telegrama 71, no qual Hitler ordena: “Se a guerra está perdida, que a nação pereça”), o filósofo aponta que o Brasil se tornou ingovernável.

Não em virtude de uma espécie de efeito colateral e imprevisto do processo de destruição, mas sim porque militares, magistrados, políticos, financistas, madeireiros, mineradoras, agronegócio e investidores internacionais, em luta para arrancar o máximo que puderem da riqueza nacional, no menor tempo possível, atuam no sentido de acelerar o fim do Estado-Nação. No entender de Safatle, esse é o sentido do “experimento” que está sendo posto em prática aqui.

Cujos contornos se delineiam quando o entreguismo desenfreado e a destruição das instituições ganham sinergia. No estamento militar, com a desmoralização continuada de um Exército já comprovadamente desonrado; no Judiciário, com as revelações escabrosas da Vaza Jato desmascarando as ilegalidades da “República de Curitiba” e a cumplicidade das instâncias superiores, elevando ao máximo a insegurança jurídica (Walter Delgatti é o nosso Snowden, o hacker que expôs as entranhas podres que o establishment mais desejava esconder); na diplomacia, com a transformação do Brasil em molambo internacional e seu banimento do jogo geopolítico; na política, com as negociações escandalosas entre o Centrão e os militares bolsonaristas, afundando ainda mais o Congresso no já conhecido pântano da corrupção; e agora, no primeiro embate entre o bolsonarismo e o mercado, uma vez que as contradições entre o projeto de poder total miliciano-militar e as exigências do Kapital nem sempre convergem, o que deve ensejar o aprofundamento da crise para a população e para o país.

Em suma: o establishment está sendo atravessado por tensões violentas entre suas diferentes vertentes e dentro de cada uma delas. E já dá sinais de que tem dificuldades para processá-las e contê-las, muito embora siga acreditando que pode jogar a conta exclusivamente nas costas da população, como sempre foi o seu costume.

Alguém acredita que o Kapital rifará Bolsonaro através de um processo de impeachment por seu descontentamento com a intervenção militar na Petrobrás? Seria fácil criminalizá-lo – há razões de sobra. Mas poucos dias antes o Kapital não havia recebido de presente a autonomia do Banco Central? Caso houvesse um rompimento, como ficaria a santa aliança para gerir a liquidação do mundo do trabalho, sem o braço armado que em última instância permite executá-la? Por outro lado, há chance de o nacionalismo de araque dos militares tornar-se algo sério, a ponto de passar a confrontar diretamente os planos do Kapital, que o governo endossava até ontem? Há forte probabilidade de tudo terminar em pizza, com Bolsonaro e os militares cedendo… Porém, as fissuras vão se acumulando… enquanto a esquerda ainda parece acreditar numa saída eleitoral para contradições e conflitos dessa envergadura!

Vários indícios e tendências sugerem que o diagnóstico de Vladimir Safatle está correto. A destruição das instituições conduz à decomposição do país e à desconstituição da sociedade; sugere que o Estado brasileiro está num processo suicidário, levando junto o povo e a nação. E não será o conceito miserável e fajuto de “Nação” dos militares que poderá camuflar a desintegração do Brasil. Cujas consequências, evidentemente, serão incalculáveis, tendo em vista a riqueza de recursos em água, em minérios, em petróleo, em florestas. Mais ainda: tendo em vista a dimensão continental do Brasil e sua importância crucial para a solução do aquecimento climático global.

O mundo inteiro tem interesse em que o Brasil sobreviva. Mas o establishment brasileiro não tem olhos nem ouvidos para a intensidade do colapso. O establishment tem certeza de que tudo está como sempre esteve. Sob controle.

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14
Out19

O processo de deterioração ecológica e social do Sertão do Araripe, Pernambuco

Talis Andrade

Os principais efeitos na saúde da população exposta à poluição ambiental oriunda da poeira de gesso

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por Marcilio Sandro de Medeiros

A Organizacion Internacional del Trabajo (OIT) vem alertando para o crescimento das atividades mineralógicas de pequena escala em diversos países da África, Ásia e América Latina que funcionam, na maioria dos casos, desrespeitando as legislações ambientais e trabalhistas vigentes, causando danos à saúde humana e ao ambiente (OIT, 1999). Tudela (1989) define esse tipo de trabalho como “la modernizacion forzada del trópico”, correlacionando-o ao processo de deteriorização tanto social como ecológica. Isso se deve ao modelo de inserção econômica desses países, que implantam um estilo tecnológico e de produção muitas vezes inadequados e insustentáveis (Santos e Silveira, 2001). No Brasil temos como exemplo a atividade de mineração de gesso na região nordeste, que se estima ser a maior reserva de gipsita do país, principalmente pela facilidade de exploração e elevador teor de pureza do minério (Conselho de Desenvolvimento de Pernambuco, 1966). As reservas localizadas na Microrregião de Araripina, no estado de Pernambuco, abrangem os municípios de Araripina, Ipubi, Trindade, Ouricuri e Bodocó, que até duas décadas atrás apresentava uma paisagem de morfologia agrária, tipicamente agropastoril, conhecida na região pela grande produção de farinha de mandioca (Melo, 1988). O gesso produzido da gipsita (sulfato de cálcio bihidratado) é obtido através da calcinação em fornos de tecnologia, muitas vezes, ineficientes do ponto de vista econômico e ambiental, que funcionam da combustão da madeira (originada da caatinga) ou do óleo BPF (óleo combustível fóssil pesado com Baixo Ponto de Fluidez) ou ainda do coque (originado de resíduos de petróleo) (Belfort, 2002). O polo gesseiro de Pernambuco é responsável por 90% da produção de gipsita do país, gerando na região mais de 12 mil empregos, constituindo-se assim uma das mais importantes atividades econômicas do Sertão do Araripe (Santos e Sardou, 1996). O processo de deteriorização ecológica e social da região foi referido “cautelosamente” no Plano Estadual de Controle da Desertificação de Pernambuco1 , que classifica a região apenas como área com problemas ambientais, e por Sobral (1997), que aborda a temática com ressalva. A referida autora adverte para as implicações negativas da racionalização da produção sobre o número de postos de trabalho. A mesma entende que essa mudança no processo de produção provocaria um novo desemprego na região. Os problemas de saúde causados pela produção do gesso na região ainda são poucos explorados. A Secretaria de Saúde de Pernambuco, em uma inspeção sanitária, encontrou problemas relacionados a segurança do trabalho (excesso de poeira, calor e ruído), ausência de serviços de saúde voltados para o atendimento do trabalhador e inexistência de dados sobre as patologias geradas pela exposição à poeira de gesso (Coutinho e col., 1994). Já o Serviço Brasileiro de Apoio à Pequena Empresa (Sebrae) destacou que as causas do absenteísmo no trabalho do polo gesseiro são: bebidas alcoólicas (38%), doenças comuns (35%) e atividades agrícolas (22%). Entre as denominadas “doenças comuns”, as mais referidas (50%) estão relacionadas ao aparelho respiratório (Santos e Sardou, 1996). A poeira de gesso pode causar um amplo espectro de problemas à saúde das pessoas, acarretando desde efeitos irritativos nos olhos, nas mucosas e no aparelho respiratório, passando por efeitos cutâneos, ou até mesmo efeitos crônicos ou permanentes na saúde das pessoas. Comumente são diagnosticadas conjuntivite, rinite, amidalite, irritação nos brônquios e traqueia, sangramentos nasais e prejuízos ao olfato e paladar, ou doenças pulmonares crônicas, como exemplo, pneumoconiose, calcicosilicosis e fibrose pulmonar 2 (Niosh, 2002; YESO, 1989; Santos, 2001; Dorland, 1994). Há um relatório-síntese russo da década de 1960 que mostra a crescente incidência de fibrose modular alveolar, rinite subtrópica, laringite e faringe em trabalhadores de uma indústria de gesso naquele país (Niosh, 2002; Voroparev, 1967). Ademais, experimentos feitos com animais expostos à poeira de gesso atestaram o desenvolvimento de pneumonia e pneumoconioses intersticiais, produzindo alterações na circulação sanguínea e linfática em nível pulmonar (YESO, 1989, p. 279). Todavia, é sabido que o quadro clínico completo, ou seja, a instalação da doença poderá ocorrer muito tempo após a fase inicial da exposição, inclusive os efeitos tóxicos sistêmicos sobre o aparelho cardiovascular, sistema nervoso central, fígado ou rins. E que a presença desses sinais e sintomas pode estar associada a uma gama de fatores confundidores ou potencializadores no desencadeamento desses agravos (Amâncio, 1983; Rozenberg, 1981; Santos 2001; Aránguez e col., 1999; Croce e col., 1998; López-A ntuñano, 1998). O Instituto Nacional para Segurança e Saúde Ocupacional dos Estados Unidos (Niosh) (2002) alerta para os riscos adicionais inerentes ao processo de desidratação ou calcinação do mineral, como, por exemplo, óxidos de enxofre. No caso do Araripe, esses processos são potencializados com outras substâncias em virtude das matrizes energéticas empregadas – hidrocarbonetos aromáticos e benzeno, oriundos da combustão da lenha, óleo BPF e coque. Nessas situações, há uma resposta inflamatória do aparelho respiratório induzida pela ação de substâncias oxidantes, que acarretam aumento da produção da acidez, viscosidade e consistência do muco produzido pelas vias aéreas, levando a uma diminuição de resposta ou reparo do sistema mucociliar (Cançado e col., 2006). Nesses casos, os estudos epidemiológicos adquirem um papel importante na intervenção sobre os efeitos dos poluentes do ar sobre a saúde das pessoas. Haja vista as ações de vigilância serem mais efetivas quando iniciadas por meio da identificação de sinais e sintomas precoces das doenças (Pivetta e Botelho, 1997; André e col., 2000; Brasil, 2001). Em razão da necessidade de se compreender os fatores epidemiológicos que concorrem com a saúde das pessoas que vivem e trabalham no contexto sociotecnicoambiental de produção de gesso e artefatos no semiárido pernambucano e pela inexistência de dados nos sistemas de informações em saúde, este artigo tem como objetivo descrever os principais efeitos na saúde da população exposta à poluição ambiental oriunda da poeira de gesso.

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Gesso, a degradação da saúde dos trabalhadores e moradores de Araripina, Ouricuri, Ipubi, Trindade e Bodocó

Discussão Nas décadas de 1980 e 1990 a agricultura perdeu espaço para o gesso, nos municípios que compõem a microrregião do Araripina no alto sertão pernambucano. Apesar de alguns agricultores tradicionais não associarem o declínio da produção, em decorrência do avanço do gesso na região. Técnicos da Empresa de Abastecimento e Extensão Rural de Pernambuco (Ebape-Araripina) esclarecem que a má interpretação do capítulo III do Código Mineral Brasileiro associada a problemas de ordem edáfica e tecnológica, ambos relativos ao plantio, são as causas do êxodo rural na região. O agricultor, proprietário da terra, temeroso de sofrer as sanções previstas no código mineral, prefere vender suas terras para as mineradoras, a valores inferiores ao do mercado, achando se tratar de um negócio mais seguro. O que vem modificando a morfologia da paisagem tipicamente agropastoril, outrora descrita por Melo (1988). Os problemas de saúde relatados pela população estudada coincidem com outros estudos correlatos. Lariqui e colaboradores (2001) encontraram em um estudo de coorte retrospectivo prevalência de conjuntivite (48,3%), dermatite (22,5%), dispnéia (21,6%), tosse (15,8%) e bronquite crônica (11,7%) em trabalhadores empregados em fábricas de pré-moldados de concreto expostos à poeira (tais como areia, brita e cimento) no Marrocos (África) muito superior quando comparada, ao grupo de não expostos. Na análise dos problemas de saúde segundo o sexo, a população feminina foi a que mais sofreu com os efeitos irritativos, cutâneos e permanentes da poeira de gesso: irritação nos olhos e na pele, cansaço e falta de ar. Enquanto a população masculina referiu mais os efeitos irritativos e permanentes: tosse, sangramento nasal, diagnóstico de doença respiratória pelo serviço médico. Esses dados são semelhantes aos de Faria e colaboradores (2006) que, em um estudo transversal, identificaram também maior prevalência de sintomáticos respiratórios no sexo feminino quando expostos aos diversos tipos de poeira oriunda da produção agrícola e animal na Serra Gaúcha (RS), Brasil. No geral, crianças (de 1 a 9 anos) e idosos (> 60 anos) sofrem mais com todos os efeitos da exposição à poeira de gesso (irritação nos olhos, tosse, cansaço, e histórico de doenças respiratória pregressa). A fisiologia explica que o aparelho respiratório de ambos os grupos são mais susceptíveis. Na criança a maturidade do sistema respiratório é alcançada somente aos dez anos, enquanto entre os idosos ocorre diminuição dos sistemas reparadores mucociliar e macrófagos (Bethlem, 1985). Entre adolescentes (de 10 a 19 anos) e adultos (de 20 a 59 anos) foram mais relatados os efeitos irritativos (sangramento nasal) e cutâneo (irritação da pele). Isso poderia se explicar pelo fato de os adolescentes e adultos estarem em maior contato com os fatores de risco em consequência da atividade desenvolvida por eles diariamente, como, por exemplo, nos afazeres do lar, do trabalho e da escola. Os distúrbios respiratórios provocados pelo fogão a lenha dentro do domicílio foram pesquisados por Prietsh e colaboradores (2003) em conjunto com outras variáveis que avaliavam a influência do ambiente doméstico na saúde das crianças menores de 5 anos. A prevalência de doença respiratória aguda baixa encontrada no estudo foi de 29,2% e a RP = 1,25, o que coincide com os dados de nossa pesquisa. Quanto aos fatores individuais destacados no estudo, outros autores já demonstraram os efeitos do tabagismo na saúde de crianças menores de 5 anos. Gonçalves-Silva e colaboradores (2006) identificaram riscos as doenças respiratórias (RP > 1,00) em crianças associados ao tabagismo dos conviventes do mesmo domicílio, sendo os sintomas referidos: tosse (65,6%); falta de ar (18,9%) e internação na vida por pneumopatia (13,2%). Conclui-se, pela análise, que a poeira de gesso dentro de casa, mesmo quando avaliada em situações distintas (com presença de fatores confundidores ou potencializadores dos efeitos ou sem a presença deles), apresentaram RP maior que 1,00. Registra-se, inclusive, um incremento nesse indicador quando analisado sem a presença dos fatores confundidores ou potencializadores dos efeitos, o que o qualifica como um importante indicador qualitativo para avaliar o impacto na saúde da população. Nesse caso, deverá servir de indicador de alerta para as ações de proteção a serem desencadeadas pelos serviços de saúde locais (Brasil, 2001). A variável ambiental distância em relação às unidades fabris mostrou-se importante elemento geográfico para o entendimento de como a direção dos ventos influência na dispersão da poeira de gesso no local, impactando na saúde das pessoas. Essa constatação também foi observada em estudos anteriores. Fellenberg (1997) averiguou que nas vizinhanças distantes a menos de 1 quilômetro de uma indústria de calcário, havia precipitação de mais da metade de todo o material emitido pela chaminé. Alpirez Guardão (2000) identificou maior risco para bronquite crônica para os residentes mais perto da pedreira: < 250 metros OR = 4,93; 500 metros OR = 5,47; 1.000 metros OR = 2,51. Quanto aos efeitos sobre a saúde humana decorrentes da exposição a hidrocarbonetos aromáticos, oriundos da combustão da madeira, óleo BPF e mais recentemente do coque verde de petróleo (benzeno), apesar de já ser cientificamente comprovada a relação causal entre exposição a esses agentes químicos e a leucemia (Augusto e Novaes, 1999; Mendes, 1988), são necessários estudos mais específicos para melhor conhecer os danos dos expostos nessa atividade. Outra questão não menos importante, detectada durante a coleta dos dados, refere-se à desconfiança dos moradores em informar o tipo de ocupação. Possivelmente o número de pessoas que desenvolve alguma atividade na produção de gesso era superior ao registrado pela pesquisa: apenas 24 dos 462 indivíduos entrevistados declararam trabalhar “no gesso”. Segundo relatos, temia-se que os problemas de saúde respiratória da localidade, possivelmente associados à produção do gesso, implicassem na suspensão da atividade pelos órgãos ambientais ou da justiça do trabalho. O pequeno número de entrevistados que referiram atuar na atividade, apesar de residir ao lado das unidades de produção, é um indicador bastante sugestivo de configuração desse viés, o que não foi minimizado mesmo após leitura do TCLE que garantia a confidencialidade dos dados informados, como também explicava detalhadamente a finalidade da pesquisa. O fato acarretou algumas perdas no valor de N de algumas variáveis dependentes do estudo, o que não trouxe nenhum maior prejuízo às informações ora apresentadas. Finalizando, os efeitos identificados da exposição ambiental à poeira de gesso coincidem com o que a literatura especializada destaca: amplo espectro de problemas na saúde das pessoas, acarretando desde irritações nos olhos, até problemas na pele e no aparelho respiratório. Considerações Finais O inquérito epidemiológico na área de estudo evidenciou um quadro nosológico de elevada prevalência de irritação nos olhos, alergia e sintomáticos respiratórios desconhecidos pelas autoridades sanitárias locais. As técnicas aplicadas no controle dos fatores confundidores ou potencializados nos efeitos à saúde e a estratificação da população em sintomático e não sintomático, ambos mensuradas pela RP, identificou um subgrupo denominado de domiciliados sintomáticos, o que revelou outras nuanças dos fatores epidemiológicos que concorrem à promoção ou à degradação da saúde das pessoas inseridas no contexto sociotécnicoambiental de produção de gesso e artefatos no município de Araripina. Os dados demonstraram que os fatores ambientais intradomiciliares que se mostraram mais prevalentes entre os sintomáticos respiratórios foram cozinhar a lenha e poeira de gesso dentro de casa. O indicador poeira dentro de casa, quando analisado separadamente sem a presença dos fatores intradomiciliares confundidores ou potencializados, se apresentou como um importante indicador qualitativo para avaliar o impacto da poeira de gesso na saúde da população. Nesses domicílios a presença da poeira dentro de casa se mostrou mais prevalente com as queixas de irritação dos olhos, irritação da pele, cansaço e tosse, em que as RP sempre foram superiores a 1,00. Concluindo, o polo gesseiro de Pernambuco caracterizou-se por um tipo de desenvolvimento forçado mediante processos produtivos não sustentáveis, relacionados com a expropriação de terra, uso de matrizes energéticas que degradam o ambiente e impactam na saúde, havendo a necessidade de estruturação da vigilância à saúde do trabalhador e de saúde ambiental, nesses locais bem como um serviço de referência com caráter regional para doenças respiratórias e oftálmicas no polo gesseiro. [Transcrevi trechos ]

 

14
Out19

A exploração do gesso e os riscos da desertificação

Talis Andrade

O gesso e as placas utilizadas em tetos, banheiros e cozinhas vêm da Chapada do Araripe (PE), onde 80% da vegetação da caatinga foram queimadas

 
26/02/2016 

Reprodução

 
A Chapada do Araripe está no extremo oeste do estado, no limite com o Ceará e o Piauí, conta com 11 municípios, uma população de 231 mil habitantes, conhecido nacionalmente pelo gesso industrial e agrícola aqui produzido. Uma história de desenvolvimento concentrado, que beneficia uma minoria, já reduziu 80% da vegetação da caatinga, para ser queimada nos fornos das calcinadoras. O mineral gipsita encontrado na Chapada do Araripe tem uma pureza entre 88 e 98%, a mais alta do mundo. Esta também é uma história que envolve êxodo rural, poluição atmosférica, destruição de solos e comunidades de agricultores familiares, prostituição infantil, drogas e alcoolismo.
 
O vanço do capitalismo selvagem nas terras

dos coronéis
 
Esses assuntos foram discutidos durante a abertura da Caravana Agroecológica por 120 participantes de vários estados- Bahia, Ceará, Piauí, Rio Grande do Norte, Sergipe e Minas Gerais. A região também faz parte do estudo “Promovendo Agricultura em Rede”, projeto da ANA com o apoio do BNDES e da Fundação Banco do Brasil. Foram estabelecidas quatro rotas de visitas no campo, para conhecer os problemas enfrentados pelos agricultores e agricultoras familiares com a chegada da indústria do gesso, de grandes obras como a Transnordestina e da pecuária, que substitui a vegetação da caatinga por pasto. A essência da Caravana Agroecológica é esta: retratar o perfil da região, dos sistemas de produção, detalhar a produção agroecológica e mostrar o sofrimento das comunidades com o avanço do capitalismo selvagem que sempre impera no Brasil rural.
 
O caso do Polo Gesseiro do Sertão do Araripe, porque as minas estão localizadas no vale, e não na serra, é um exemplo amplamente deseducativo. O governo de Pernambuco apresenta como um arranjo produtivo local, que gera 12 mil empregos diretos outro tanto indireto, em 42 minas, 174 indústrias de calcinação – o minério é derretido para produzir o gesso –e 750 indústrias de pré-moldados, uma avaliação do Instituto Tecnológico de Pernambuco para um simpósio da chamada cadeia produtiva realizado em 2014. Os dados são sempre jogados para cima. Mesmo assim, o documento do evento ressalta:
 
“- Esse cenário – do desmatamento da caatinga – coloca o Araripe como área susceptível à desertificação e suas consequências nos aspectos sociais, e ambientais e econômicos”.


 
Como vive uma família vizinha da fábrica
 
Anualmente o Polo Gesseiro consome 652 mil metros cúbicos de madeira para queimar em fornos antigos, que desperdiçam energia. O próprio documento do Simpósio ressalta: “os processos de queima são ultrapassados com grandes perdas ambientais e econômicas”. Lógico que a saída é plantar uma exótica, é também claro que se trata do eucalipto, uma árvore extremamente exigente em água, que neste raciocínio insano, é totalmente adequada para um território que está em um processo de desertificação.
 
Fiz parte da Rota 4, cujo objetivo era mostrar como vive uma família de agricultores e agricultoras familiares, que tem como vizinho uma calcinadora de gesso. A visão do pó branco estava disfarçada pela chuva que caiu recentemente. Mas normalmente as plantas estão sempre cobertas de branco. Dona Dudu, de 45 anos, moradora há 40 anos no Sítio Riacho Novo, com cinco filhos diz que volta da roça pintada de branco. Não é apenas um caso de poluição atmosférica, que irrita a garganta, os olhos, durante a seca. O pó de gesso penetra ao longo do tempo nos pulmões e termina por calcinar os brônquios. Além do rejeito acumulado perto das minas que ficam a poucos metros da comunidade de dona Dudu.


 
Prostituição infantil e violência contra mulheres
 
Antes da instalação da fábrica ela convocou os vizinhos para assinarem um abaixo-assinado contra a instalação da fábrica. Saiu durante o dia para procurar o promotor e o juiz na cidade, mas não conseguiu contato. Voltou à noite para o sítio, que fica no município de Trindade, cerca de 30 km de Ouricuri, e estavam todos apavorados. Não queriam mais participar do movimento. Temiam ser presos. E deu no que deu. Muitas famílias formam embora, inclusive o agricultor que vendeu a terra à empresa, muitos se arrependeram de não protestar e todos se queixam das consequências.
 
O fluxo de caminhões caçamba carregados de pedras de gipsita é constante, as explosões nas minas – algumas já atingiram mais de 100 metros de profundidade – provoca rachadura nas casas. Os caminhoneiros acampam na beira de estradas, cercadas de botequins de quinta categoria, onde mulheres e crianças são vendidas como mercadoria. A prostituição infantil e os índices de AIDS são elevados na região. Há 15 anos o Fórum das Mulheres do Araripe tenta junto ao governo estadual a instalação de uma delegacia da mulher e um centro de referência ou uma casa de apoio para mulheres agredidas.
 
Os trilhos separam mãe e filha
 
Mas a Chapada em grupos, comunidades, cooperativas envolvidos com a agroecologia, que lutam para produzir comida de verdade, sem agrotóxicos. A tradição da organização dos trabalhadores e trabalhadoras sem terra é muito antiga na Chapada do Araripe. Começou na década de 1960 com as comunidades eclesiais de base e com as ligas camponesas. O próprio sindicato dos trabalhadores rurais tem mais de 60 anos em Ouricuri, e a mesma linha de apoio e luta pela terra e por políticas públicas, que beneficiam os agricultores familiares é defendida pela Federação dos Trabalhadores na Agricultura de Pernambuco.
 
Nas outras rotas, os participantes conheceram a irresponsabilidade das construtoras brasileiras, neste trecho da Odebrecht, encarregada na construção da ferrovia Transnordestina, que já chegou a Araripina, dentro do polo gesseiro. Os trilhos cortam comunidades inteiras, famílias, como do seu João Henrique e de dona Inocência, que precisa descer pelo menos 20 metros, atravessar os trilhos, subir outros 20 metros e chegar à casa da filha, que fica dentro da propriedade da família. Como indenização do corte de um hectare receberam R$3 mil. A responsabilidade social das construtoras no Brasil é pré-capitalista, não enxerga as pessoas que encontra pelo caminho. Por sinal, todo vez que você, a senhora, o senhor, seus parentes e amigos comprarem um apartamento, casa, mansão, não esqueça que o gesso e as placas utilizadas em tetos, em banheiros em cozinhas vieram da Chapada do Araripe, onde 80% da vegetação da caatinga foram queimadas. (Esta reportagem é de 26 de fevereiro de 2016. Tudo só piorou. Pó banco passou a ser símbolo da negra fome. Só fez aumentar a miséria e o sofrimento dos antigos moradores rurais, que perderam seus sítios, que presenciaram a desertificação de suas terras. O pó branco provocou novas doenças, notadamente respiratórias. Câncer. Da cidade grande, os caminhoneiros, os operários trouxeram a prostituição e a aids. O pó branco é escravidão e morte, e riqueza do homem que mora do outro lado do mar. 
 

Em consequência dessa organização, foram atraídas para a região, empresas de distribuição do gesso, de construção civil (aplicação do gesso), de máquinas e ferramentas, de explosivos, transportadoras, oficinas mecânicas e metalúrgicas, indústrias químicas, de embalagens, e centros de tecnologia)

 

 




 
14
Out19

Que ganha Pernambuco ter a maior mina de gipsita do mundo?

Talis Andrade

 

 

araripina.png

Localização de Araripina, Pernambuco

 

Por que escondem esta informação dos pernambucanos? Foi revelada pelo mais premiado jornalista brasileiro, Mauri König, que entrevistou João Suassuna, pesquisador e agrônomo da Fundação Joaquim Nabuco.

Esvreve Kónig: “No extremo de Pernambuco fica a maior mina de gipsita do mundo. Para extrair o gesso é preciso calfinar o mineral, queimá-lo em fornalhas. Para isso, estão usando a caatinga. ‘Está virando carvão, estão acabando com um bioma que pouco se conhece, disse Suassuna”.

Leia a reportagem de uma série “sobre a tragédia brasileira da diáspora da seca” que se agrava cada vez mais com a sonegação das águas do Rio São Francisco que correm para o mar. Pela maldade de Bolsonaro de matar o sonho de Lula, pela rancor de desfazer a profecia de Antonio Conselheiro: "O Sertão vai virar mar, o Mar vai virar Sertão".

Antonio Conselheiro foi morto e desenterrado, e a cabeça cortada pelo Exército. Manchas de petróleo da Shell avançam pelo Nordeste, apodrecendo as águas do mar, apodrecendo as areias das praias, apodrecendo tudo que toca.  

 

14
Out19

Neve no Sertão de Pernambuco: A fome é negra, mas o pó é branco

Talis Andrade

Grande parte deles são adolescentes de 15, 16, 17 anos. Trabalham em temperatura escaldante ou carregando pesos hercúleos que os envergam cedo para o chão. Mas há também homens de meia idade que não encontram outra alternativa de sobrevivência. A maioria tem a pele negra ou parda, mas a paisagem do Araripe, no Sertão de Pernambuco, e o pulmão dos homens e mulheres que vivem na região estão brancos. Meio ambiente, pessoas, plantas e bichos estão doentes. Adultos e crianças cedo desenvolvem asma, bronquite, problemas respiratórios e pulmonares graves. Sertão Branco, documentário produzido pela ONG Papel Social, denuncia as condições de vida do povo de trabalhadores semi escravizados e adoecidos pela extração e produção de gesso.

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Para compor o quadro desse Nordeste embranquecido pelo pó da quase escravidão, uma equipe de repórteres entrevistou empregados do gesso adultos e púberes, agentes de fiscalização, de vigilância sanitária, assistentes sociais e médicos. Eles trazem o testemunho da infração a todas as leis e convenções sobre a dignidade, saúde e respeito no trabalho. Lesões e mutilações encurtam a vida laboral desses lúmpen-proletários, grande parte autônomos, sem vínculo empregatício ou com vínculo precário. Jornada excessiva e não-regulamentada; amputação de braços, mãos e dedos, devido à falta de máscaras e equipamentos de proteção fazem parte dessa vida severina. Afastados da escola, os adolescentes do gesso chegam em casa só para dormir e retornar à rotina esfalfante na manha seguinte.

Além da violações de direitos trabalhistas, as calcinadoras poluem a atmosfera e causam doenças respiratórias

A atmosfera, as árvores, plantas, ruas, casas e pessoas cobertas de pó branco compõem o cenário descolorido e sombrio da região do Araripe, no Estado de Pernambuco. Os municípios de Araripina, Ipubi, Trindade, Bodocó e Ouricuri integram o principal polo de produção de gesso do Brasil, produzido a partir do beneficiamento de um mineral chamado gipsita.

Em 2018, a Papel Social recebeu a tarefa de conduzir, sob a coordenação do jornalista Marques Casara, uma análise situacional sobre as condições de trabalho na cadeia produtiva do gesso, como parte do Projeto “Promoção e Implementação dos Princípios e Direitos Fundamentais do Trabalho no Brasil”. Implementado pela Organização Internacional do Trabalho, em parceria com o Ministério Público do Trabalho, o projeto apurou trabalho escravo, semi-escravo, infantil e irregular ou sem condições de segurança em várias regiões do país, com recursos de multas e indenizações pelo lesionamento de empregados. Sertão Branco é fruto desse investimento na promoção de trabalho decente.

Em 2019, o projeto “Neve no sertão: a experiência do MPT na (re)configuração do ambiente do trabalho do maior polo gesseiro do mundo” conquistou o segundo lugar na categoria “Transformação Social” do Prêmio CNMP (Conselho Nacional do Ministério Público). Sertão Branco é fruto da colaboração entre a Agência de Pesquisa Papel Social, o Ministério Público do Trabalho  e a Organização Internacional do Trabalho para a construção de um diagnóstico e planos de ação para a promoção de condições dignas laborais.

EXPECTATIVA DE VIDA: 50  ANOS

No dia 15 de outubro, terça-feira, na sala Machado de Assis, o Curso de Pós Graduação em Tradução da Universidade Federal de Santa Catarina (PGET/UFSC), promove uma discussão sobre o resultado dessa investigação dolorosa no evento “Traduzindo o Sertão”, aberto ao público. Após a exibição do documentário Sertão branco, haverá um debate com parte da equipe de jornalistas diretores e produtores, composta por André Picolotto, Luara Loth e Vitor Shimomura. Daniel Grajew assina a trilha sonora. Como jornalista e professora, integrante da rede de mídia independente Jornalistas Livres, farei a mediação do debate.

O documentário perfaz o sentido do clássico texto “Fome negra”, publicado na obra A alma encantadora das ruas de crônicas-reportagem que inventariam os povos surgidos no início da industrialização, nos primeiros anos do século XX. Nele, o jornalista, dramaturgo e escritor João do Rio traz uma lancinante denúncia das condições desumanas dos imigrantes negros empregados nas atividades de extração e transporte do carvão das ilhas do Rio de Janeiro para o exterior. Um século depois de “Fome negra”, Sertão branco mostra que o Brasil continua um país escravocrata.

Longe dos olhos da cidade, o capitalismo feudal continua a se alimentar de povos que trabalham em condições degradantes apenas para sobreviver, mesmo cientes de que esse tipo de ganha-pão significa a condenação à morte ou à invalidez precoces, como revela outro trabalhador entrevistado:

“Mais na frente o cabra tá lascado com esse pó de gesso. É o pó do bicho. Daqui a uns tempos o cabra tá morto, né?”

Sem expectativa de futuro, os maltratados operários do minério fino, que mal ganham o dia para comer, encontram subterfúgios para encarar a dura realidade, como na resposta irônica do jovem negro:

“Quando inteirar 50 anos já tá bom. Já vivi bastante…”

 

https://www.youtube.com/watch?v=shDTQpxNIHQ&t=5s

Trabalhadores narram sua rotina de horrores e pedem socorro usando as paredes de uma calcinadora. Foto: Vitor Shimomura

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