Cerrado, berço das águas esquecido

Seres humanos e animais não podem ser privados do acesso à água. O desmatamento no cerrado e na Amazônia, com eliminação de nascentes, poderá comprometer gravemente a oferta do líquido da vida
por Correio Braziliense
Os negacionistas da ciência insistem em contradizer cientistas e climatologistas, que há décadas — desde o século passado — têm alertado governos e populações, sobre a necessidade de revisão das relações com o meio ambiente. O aquecimento do planeta está ocorrendo e avança em rapidez contrária ao da revisão dos modelos econômicos, das indústrias, da mineração, do fornecimento de energia, entre outras atividades que impactam o patrimônio natural.
No início deste ano, após constatar o drama enfrentado pelos povos indígenas da Amazônia, em especial na Terra Yanomami, o governo federal investiu contra os garimpeiros e desmatadores ilegais que, há muito, afrontam as leis ambientais e os direitos dos povos originários. Hoje, os índices de desmatamento têm caído a cada mês, devido às intervenções da fiscalização dos órgãos de Estado, bem como por iniciativa dos povos tradicionais e originários.
Países desenvolvidos e comprometidos com políticas de mitigação do efeito estufa se engajaram para conter os avanços das atividades predatórias na Amazônia, reconhecendo a importância da preservação do bioma para o planeta. Doações de milhões de dólares garantiram ao governo federal recompor a composição dos órgãos ambientais, desmontados nos últimos quatro anos, e recuperar os instrumentos necessários ao combate dos agressores. De agosto de 2022 a julho deste ano, o desmatamento diminuiu 22,3% na comparação com igual período anterior. Pela primeira vez, a derrubada da vegetação ficou abaixo de 10 mil km², segundo os dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe).
As mesmas iniciativas não alcançaram o cerrado, berço das águas. Responsável pelo abastecimento de nove das 12 grandes bacias hidrográficas, inclusive uma transnacional, o bioma está sendo dizimado. O estado de Tocantins perdeu 198,6km² de vegetação nativa, o correspondente a 29% da área do cerrado em outubro. Na sequência, Maranhão, com perda de 129,3km², Bahia (74,5km²) e Piauí (68,8km²) — unidades que, juntas, formam a região Matopiba, a nova fronteira do agronegócio, onde 71% da perda de vegetação nativa ocorreram no ano passado, inclusive em áreas suscetíveis à desertificação.
Repetidas vezes, a professora Mercedes Bustamante, presidente da Fundação de Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), tem alertado para os danos que a falência do cerrado poderá causar ao país. Um dos alertas se refere à crise de abastecimento de água numa região que se destaca pela produção agropecuária. Mas as advertências tanto da bióloga e pesquisadora, quanto especialistas em clima não parecem suficientes para uma ação mais incisiva no cerrado, voltado à preservação da flora e da fauna. Alega-se que o desmatamento se dá em propriedades privadas e, portanto, não há como o Estado intervir.
Seres humanos e animais não podem ser privados do acesso à água. O desmatamento no cerrado e na Amazônia, com a eliminação de nascentes, poderá comprometer gravemente a oferta do líquido da vida. A solução desse impasse desafia não só o governo, mas toda a sociedade. Todos ficarão de braços cruzados ante a degradação do berço das águas? — é a questão que exige rápida resposta.
Vídeo: A ecologista Mercedes Maria da Cunha Bustamante é uma das principais referências no bioma Cerrado – trabalha com o tema há quase 30 anos. Nascida no Chile, formou-se em Ciências Biológicas na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), concluiu o mestrado na Universidade Federal de Viçosa e o doutorado na Universidade de Trier (Alemanha). É professora do Instituto de Ciências Biológicas (IB) da Universidade de Brasília. A docente atua principalmente na área de ecologia de ecossistemas. Além do Cerrado, pesquisa temas relacionados a mudanças no uso da terra, biogeoquímica e mudanças ambientais globais. Desde 2018, integra a Academia Mundial de Ciências e em 2014 passou a fazer parte da Academia Brasileira de Ciências. Em 2020, foi eleita bolsista honorária da Association of Tropical Biology and Conservation (ATCB). Em 2021, foi eleita membra da Academia de Ciências dos Estados Unidos (NAS) e entrou para a Earth League. A influência acadêmica de Mercedes Bustamante é reforçada pela sua presença em rankings internacionais. Em 2021, ficou entre os cientistas de universidades mais citados da América Latina nos últimos cinco anos – repetindo o destaque obtido em 2020, em que esteve entre os pesquisadores mais citados do mundo. O reconhecimento das suas contribuições científicas também engloba prêmios, como o Verde das Américas e o Cláudia, na categoria Ciências, pelos seus estudos sobre o Cerrado. Em 2018, recebeu a Comenda da Ordem Nacional do Mérito Científico. Foi ainda co-coordenadora do Grupo de Trabalho Mitigação do Painel Brasileiro de Mudanças Climáticas, responsável pela elaboração do relatório técnico sobre Mitigação de Mudanças Climáticas no Brasil, entre 2011 e 2014, e já trabalhou junto ao Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas – na mesma área, estudando as possibilidades na redução de impactos.
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