Eu começo as minhas andanças no que agora é conhecido como Complexo de Israel — mas na época eu só conhecia como Parada de Lucas ou Cidade Alta — como pastora da Assembleia de Deus, dando aula de teologia nas igrejas da comunidade. Nessas andanças eu identifico as pinturas e as identidades das ruas mudando. Fui conhecendo a favela e entendendo que aquela divindade naquelas pichações tinha uma relação com a prática de fé do dono do morro. Comecei a pensar se aquela relação da substituição das imagens anteriores, de São Jorge e Nossa Senhora, pela frase “Jesus é o dono do lugar”, ou pichações com essa assinatura em determinados lugares, poderia ter alguma relação com o tráfico. Como pastora pentecostal e teóloga, eu vou pensar: “não tem como o nome de Jesus ser usado num contexto de violência”. Fui fazer o mestrado em ciências da religião na Umesp (Universidade Metodista de São Paulo) e estudar a narrativa do crime com essa categoria de fé nesse contexto. E aí eu identifico que não tem como dizer que o nome de Jesus não pode ser usado nesse contexto de violência, ela já está sendo. Então, eu busco tentar compreender como o imaginário desse novo Jesus — guerreiro, valente, vitorioso, com características do Deus do Antigo Testamento, mas também com características de São Jorge — começa a aparecer e a se revelar pra mim nas ruas das favelas e nas leituras da pesquisa.

 

Inclusive na introdução do livro você conta uma experiência que teve, numa aula de introdução ao Novo Testamento, em que um dos alunos era um ex-traficante e outro ainda continuava no movimento do tráfico. O primeiro contava uma história mais comum nas denominações pentecostais, a da pessoa que deixa o crime e identifica essa saída como uma salvação. Já o outro ainda estava no ambiente criminoso, mas mesmo assim se identificava como evangélico e associava as vitórias que ele tinha como criminoso à ajuda de Deus. A sua reação, que você conta no livro, foi a de perceber que não tinha como “dar respostas para realidades que não conheço”. Como foi isso para você?

Eu conhecia o contexto do ex-traficante evangélico. É um perfil que vem sendo muito pesquisado e nós, que estamos no ambiente evangélico, assistimos a muitos testemunhos dessas pessoas que tinham uma ficha criminal pesada e que foram salvas a partir de um encontro com Jesus e da transformação que essa fé provocou no seu modo de ver o mundo e de viver a vida. Mas, naquela experiência que eu vivi em sala de aula, eu estava vendo algo absolutamente inédito para mim: um traficante me dizendo que é necessário ele participar do movimento porque a partir dali tem um emprego, sustenta a família dele, leva alimento pra dentro de casa. E que a prova de que Deus estava com ele é que, numa situação de risco, ele clamou a Deus e Deus livrou a vida dele. Como eu diria pra ele que Deus não estava com ele? É essa a resposta que eu sentia que não podia dar. Eu não podia dizer “você estava em pecado e tinha que ter morrido”. Estava diante de um fato novo: um traficante convertido, estudando teologia, se identificando como evangélico e afirmando que Deus estava com ele. E ali eu não me sentia apta a responder, porque eu entendo que não posso falar sobre a experiência dele. Porque ali já tinha um pouco da cientista da religião também. Alguém que olha para o fenômeno e não se sente no direito de julgar, mas que procura ler e ouvir essa experiência religiosa como algo que acontece no corpo do outro. Aí eu entendi que precisava respeitar a experiência que ele viveu. E fiz uma oração meio que pra fugir da resposta, porque aí eu joguei pra Deus.

 

De fato, no livro você não desqualifica as experiências dos traficantes evangélicos como sendo menos legítimas, mas tenta entender qual é o papel que esse Deus desempenha na vida deles, a partir de uma epígrafe de Rubens Alves: “Homens ferozes e vingativos criam deuses ferozes e vingativos”.

Fui olhar o fenômeno com a intenção de provar que era impossível relacionar o nome de Jesus e o do Deus evangélico com violência. Mas, olhando para o Complexo de Israel, e fazendo leituras do Marcos Alvito em As cores de Acari e falando da pesquisa dele sobre o crime organizado no final da década de 80 e início da década de 90, e como São Jorge, Ogum, Santo Inácio, São Sebastião e Xangô, como essas divindades e orixás aparecem nessa prática e na dinâmica do crime da favela desde a sua gênese, eu percebi que a categoria religião nunca esteve ausente do mundo do crime. Rubem Alves me ajudou a perceber que a relação desse traficante com São Jorge era necessária porque ele precisa de um Deus protetor, que lhe faça justiça, que lhe dê vitória, que o ajude a conquistar outros territórios e a derrotar o seu inimigo. Com a mudança que acontece na religiosidade praticada nas periferias, que acompanha a mudança do campo religioso brasileiro, Ogum e outras divindades presentes nesses lugares são, em certa medida, substituídas ou redirecionadas para esse Deus de Israel, que também é vitorioso, destrói o inimigo, vence batalha e ajuda na conquista de territórios, que é exatamente a leitura que o Peixão faz nas estratégias para o avanço do território e na administração do Complexo de Israel. E aí, lembrando essa experiência da oração que eu fiz pelos dois alunos que tive, pude entender que aquela divindade, que nasce daquele lugar, nasce do cotidiano do crime que se vive na favela. Uma divindade que precisa dar conta dessa vida de violência constante, que precisa ser protetora, violenta, forte, combativa, vitoriosa, justiceira, que é como a figura de São Jorge, como a figura de Ogum e como essa imagem do Deus de Israel.

 

Quem é Peixão e quais as marcas da religião evangélica na trajetória dele no Complexo de Israel?

O que se sabe do Álvaro Malaquias, que é o Peixão — Peixão em referência ao símbolo do cristianismo do primeiro século —, é o que se vê na mídia, nas denúncias que a própria polícia já divulgou e também o que se ouve na comunidade. Ele é cria da comunidade, um homem absolutamente inteligente e estrategista. Segundo informação da Polícia Civil do Rio de Janeiro, Álvaro Malaquias é um pastor ordenado numa igreja pentecostal em Duque de Caxias, na Baixada Fluminense, e hoje faz parte de uma igreja pentecostal em Parada de Lucas, que é uma das favelas que compõem o Complexo de Israel. É um homem devoto, que tem uma prática constante de recorrer a Deus pedindo direcionamento para estratégias de guerra, proteção em casos de confronto, que recebe profecias de vitória e as torna pública, que faz orações para que haja segurança nos espaços e que recebe de Deus direcionamentos para avançar, para recuar e para a administração da própria comunidade.

Capa do livro lançado pela Thomas Nelson Brasil

 

Você conta no livro que ele também faz uma oração diária na comunidade.

A oração diária não é exclusiva do Peixão e surge antes mesmo disso. É relatada no livro de Cristina Vital [Oração de Traficante], que fala da experiência religiosa de um outro traficante, que também tinha práticas e símbolos evangélicos. No caso do Peixão, além da prática de fazer orações no rádio, ele compartilha visões e revelações que recebe nas orações no monte ou em casa. Nessa prática religiosa, ele busca em Deus direção e sabedoria para solução dos conflitos locais para organização e administração da comunidade a partir de uma ética local com traços de uma identidade evangélica, em que existe, por exemplo, a proibição do crack, como fruto dessa experiência que ele vive e da compreensão desse Deus evangélico. É assim que se apresenta Álvaro Malaquias, o Peixão do Complexo de Israel, esse pastor ordenado na Igreja Pentecostal na Baixada Fluminense.

 

É um senso comum se chocar com a ideia de Jesus ou do Deus evangélico ser associado à violência, mas olhando historicamente essa associação não é algo que fuja tanto assim ao que se conhece. Tem vários “PMs de Cristo” com dezenas de mortes nas costas e algumas das atrocidades cometidas por policiais militares são até maiores que as dos traficantes. Qualquer guerra tem um capelão que vai ali abençoar a matança por um dos lados. A associação entre cristianismo e violência é tão fora do comum assim?

Se a gente pensa em Jesus da maneira que está narrada e contada no texto bíblico, que é um texto fundante para a fé cristã, é impossível essa imagem de Jesus ser associada à violência. Mas, infelizmente, a associação do cristianismo com a violência é possível. E é possível desde o seu nascimento. Há violências justificadas em nome de Deus e de um cristianismo nascido a partir de leituras realizadas do texto bíblico que se baseiam em uma interpretação que dá vida a um Deus evangélico com a identidade de um Deus de Israel, encontrado no Antigo Testamento. Esse Deus guerreiro, que avança conquistando novas terras para reforçar seu poder, não se parece com o Cristo que se revela no Novo Testamento como a encarnação de seu amor. Quando a gente olha para a teologia católica, que é a base também da teologia reformada protestante, essa teologia é branca, ocidental e absolutamente colonizadora. O movimento de expansão territorial dessa igreja usa como base teológica estruturante o avanço realizado em nome de Deus. Qual é a diferença de quando a gente pensa paralelamente com o Deus do Complexo de Israel? Quando a gente entende também que nos espaços de periferia, como na Baixada Fluminense e na zona oeste, a milícia está presente há algumas décadas naturalizando dominação e violência, na prática de um justiçamento com as próprias mãos, e não há uma denúncia da igreja, nem do senso comum? Nós sabemos que há mortes e crimes que são justificados. Quais crimes são esses? Crimes que são realizados em nome de Deus, desde que institucionalizados. Seja pela mão do Estado, seja pela mão de um grupo de extermínio, seja pela mão do Exército, desde que seja reconhecida e legitimada pelo cristianismo que não se parece com o Cristo. É por isso que entre a narrativa do cristianismo e a imagem de Jesus Cristo há tanta diferença. Quando a gente se distancia da imagem de Cristo e olha para a história do cristianismo e de toda conquista e violência que já foi realizada em nome desse Deus cristão, da expansão de teologias do poder e da prosperidade, é possível, sim, compreender que outras pessoas façam leituras do texto bíblico que relativizem violências como as que ocorrem nos territórios do Complexo de Israel.

Pichação religiosa faz referência ao Terceiro Comando Puro, na Favela da Palmirinha, zona norte do Rio, em 2015 | Foto: Viviane Costa 

 

Sobre esse cristianismo que não parece com Cristo, seu livro e o de outros pesquisadores apontam que, antes da chegada dos traficantes evangélicos, já tinha uma atuação de PMs evangélicos que se colocavam contra as divindades afrocatólicas, identificadas com o tráfico de drogas. Tem um exemplo no livro, do 9º Batalhão da PM, na região de Acari, que trocou uma imagem de São Jorge por um outdoor de “Jesus é o dono do lugar”. Como foi esse processo?

A dinâmica no Rio de Janeiro de disputa territorial é, desde a sua gênese, marcada pela presença da religiosidade dos donos do morro. A polícia conhecia essas dinâmicas e sabia que, quando um território era dominado, a divindade que representa o dono do morro também precisava ser destruída ou substituída. Por isso, quando o 9º Batalhão da PM, segundo afirma Christina Vital, entra em Acari e expulsa a facção dominante, tira da associação de moradores a imagem de São Jorge que está ali exposta, comunicando para os moradores da favela que o antigo dono do morro foi vencido e a sua divindade, também. O que acontece é que, depois de muito pouco tempo, uma placa dizendo que “Jesus é o senhor desse lugar” é colocada na associação de moradores, espaço de representação de poder coletivo dentro de uma favela. Esses agentes do Estado não estão excluídos da transformação do campo religioso brasileiro, que nas últimas décadas deixa de ser hegemonicamente católico com o crescimento dos evangélicos, principalmente em lugares de pobreza. Quando a gente olha o crescimento do movimento evangélico crescendo e vê as conversões de agentes penitenciários, de policiais, jogadores do bicho e traficantes, o Estado também começa a mudar sua identidade religiosa que até então era naturalizada, apesar de não laica — já que havia uma presença católica nas estruturas não só das leis, mas das práticas institucionais do país. Essas práticas institucionais começam a ganhar uma nova identidade, com agentes do Estado sendo agentes de Deus. E os agentes participam dessas dinâmicas de destruição e substituição de signos religiosos em confrontos e disputas por territórios no Rio.

 

Essa realidade dos policiais se colocando como agentes de Deus vai além do Rio de Janeiro. Algum tempo atrás houve o episódio daquele criminoso, Lázaro, perseguido pela polícia de Goiás, e os policiais que participavam daquela operação criaram uma retórica em que eles se colocavam como “anjos de Deus” contra um Lázaro que seria “satanista”. A polícia chegou a invadir terreiros, que seriam locais identificados com as “práticas satanistas” de Lázaro. Qual é o impacto de forças de segurança assumindo lado na guerra religiosa brasileira?

Quando você fala da religiosidade dos policiais nesse caso que você compartilha de Goiás, amplia a compreensão de como o campo religioso brasileiro vem mudando e de que forma a religiosidade tem mudado o modo de viver e de operar não só individual, mas coletivo e institucional. E essa religiosidade se apresenta cada vez mais evangélica e pentecostalizada, em alguns casos com leitura fundamentalista do texto bíblico, uma leitura que também é de uma teologia racista e que, estruturalmente, demoniza a religião do negro. Sendo assim, um policial evangélico violar os direitos de um de um criminoso que seja considerado “satanista” ou devoto de uma religiosidade afrobrasileira, entende-se como a vitória de um Deus evangélico pentecostal contra um inimigo da igreja. Essa relação não será condenada como é condenada uma associação de um traficante com o movimento evangélico. As transformações na religiosidade brasileira, nas religiosidades individuais e coletivas, estão influenciando nas estruturas e equipamentos do Estado, o que é, sim, algo preocupante e urgente para se olhar. Agora… como não ser assim? Como pensar que a religião pode ser um marcador social não importante para um político, um professor, para um agente de segurança pública, que deve cuidar da segurança de todos para todos igualmente? O único caminho para que a religiosidade individual não afete a liberdade religiosa de todos é essa fé não ser fruto de uma teologia fundamentalista. Uma religiosidade fundamentalista é excludente, desconsidera qualquer outra e terá como objetivo oprimir, violentar e impedir que os direitos do outro sejam praticados e assegurados. E esse é o grande perigo de movimentos com uma leitura mais intolerante e fundamentalista: tomarem os equipamentos do Estado e esses agentes do Estado agirem como agentes de Deus.

Personagem infantil Peixonauta usado como referência a Peixão, junto a mensagem bíblica, no Complexo de Israel 

 

A religião do Complexo de Israel é fundamentalista também?

Álvaro Malaquias, o Peixão, é alguém que se identifica como evangélico e estrutura as práticas, as dinâmicas, as estratégias, a ética, a estética, a partir dessa experiência religiosa com características de novos movimentos pentecostais. Ele afirma, por exemplo, que Deus o direcionou para livrar a Cidade Alta do Comando Vermelho destruindo as forças rivais caso fosse necessário. Quando uma experiência religiosa direciona alguém para a destruição de um inimigo, contra vida e a favor da morte, fica impossível associar essa mensagem com a figura de Cristo.

 

Esse fenômeno do Complexo de Israel é uma exceção, uma espécie de curiosidade, ou a gente talvez possa ver algo parecido com essa figura dos traficantes evangélicos aparecendo em outros locais aí do Brasil?

No caso do Complexo de Israel, os símbolos pentecostais não aparecem só na expressão religiosa, mas na dinâmica do crime que acontece nesse território. Esse fenômeno se diferencia com o de outros traficantes que também têm uma aproximação com o movimento evangélico, que participam de cultos, cantam louvores, mas se entendem como indignos de se identificarem como evangélicos, ou com os que têm uma prática de oração e se programam para deixar o mundo do crime para se dedicarem a uma vida consagrada a Deus. Quanto mais essa teologia evangélica pentecostalizada for se culturalizando, mais comum será ver novas leituras e identidades evangélicas surgindo, seja no mundo do crime organizado, seja no ambiente político — que até pouco tempo era raro —, com identidades múltiplas e novas características que até então seriam consideradas muito ambíguas e paradoxais.

 

O fenômeno que produziu os traficantes evangélicos é o mesmo que produziu as bancadas evangélicas nos parlamentos?

O crescimento dos evangélicos no Brasil, a popularização de uma mensagem evangélica, o crescimento das igrejas pentecostais, a transformação de um pentecostalismo clássico em novos pentecostalismos, seja a partir de canais em mídias televisivas, em uma igreja de periferia, ou numa igreja de classe média, vai transformando a sociedade brasileira enquanto também é transformado por ela, o que nos aponta para uma ressignificação das religiosidades populares historicamente católicas sincretizadas com práticas afro religiosas.

 

Mas como fazer com que o crescimento dos evangélicos não se traduza, como no caso do Complexo de Israel e das bancadas evangélicas nos parlamentos, em intolerância religiosa e prejuízo à democracia?

O crescimento dos evangélicos no Brasil não representa, necessariamente, o que era um ideal evangélico no pentecostalismo clássico, que é a manifestação do Reino de Deus aqui na terra, um reino de justiça, paz, igualdade. Uma teologia que aponta mais a abdicação da própria vida por amor a Cristo, na expectativa de uma vida vindoura, do que para um estabelecimento e crescimento terreno. O que fundamenta o crescimento dos evangélicos no Brasil hoje e os projetos de lei que estruturam as disputas de poder é uma outra teologia, perigosa, intolerante, de cerceamento de direitos e de liberdades e que precisa ser contida. Isso para que as liberdades religiosas, inclusive para os evangélicos, possam ser exercidas e preservadas, já que se vive num país plural, de uma cultura múltipla, riquíssima, com religiosidades múltiplas e expressões de fé cada vez mais diferenciadas. Conter o crescimento do fundamentalismo religioso é essencial para a garantia da liberdade de ser, existir e crer.