Por Saulo Dutra de Oliveira
A história viria mostrar que os desembargadores Marco Nahum, da 1ª Câmara Criminal, autor da decisão liminar e Antônio Malheiros, único voto favorável à concessão da ordem, no Órgão Especial, anteviam a envergadura da discussão humanitária ali tratada.
A demanda processual não evoluiu nas instâncias superiores, com o indeferimento do recurso ordinário constitucional pelo STJ, mas, sobretudo, com a superveniência de lei estadual de São Paulo, que determinou a substituição dos métodos manuais de revista por aparelhos mecânicos, a exemplo do body scan. Lei Estadual de São Paulo faria perder o objeto da demanda (que seria levada ao STF) ao proibir a revista manual nas unidades prisionais de todo estado, a ser substituída por instrumentos que garantissem a integridade física, moral e psicológica dos visitantes (Lei Estadual 15.552/14, que entrou em vigência aos 12/08/14). Parecia que o cenário mudaria.
A lei continha em seu bojo alguns dos pedidos que o HC coletivo da Defensoria Pública buscava minar via decisão judicial da Corte paulista, seguindo igualmente outras experiências de pouquíssimas varas de execuções penais do país: Artigo 2º – Para os efeitos desta lei, consideram-se: II – visitante: toda pessoa que ingressa em estabelecimento prisional para manter contato direto ou indireto com detento; III – revista íntima: todo procedimento que obrigue o visitante a: 1 – despir-se; 2 – fazer agachamentos ou dar saltos; 3 – submeter-se a exames clínicos invasivos. Artigo 3º – Todo visitante que ingressar no estabelecimento prisional será submetido à revista mecânica, a qual deverá ser executada, em local reservado, por meio da utilização de equipamentos capazes de garantir segurança ao estabelecimento prisional, tais como: I – scanners corporais; II – detectores de metais; III – aparelhos de raios X; IV – outras tecnologias que preservem a integridade física, psicológica e moral do visitante revistado.
No entanto, mesmo após a publicação da Lei Estadual, por exemplo, a Defensoria Pública paulista teve que acionar o Poder Judiciário para sua aplicação. Foi o caso de ação civil pública na região de Itirapina, interior do estado: liminar deferida em 1º grau para obstar que os responsáveis pelas Penitenciárias I e II de Itirapina submetessem os visitantes a qualquer procedimento de revista, conduzido por agentes de segurança penitenciária, que envolvessem o seu desnudamento, ainda que parcial, a realização de agachamentos ou saltos ou, ainda, a realização de exames clínicos invasivos (art. 2º, I, II e III da Lei Estadual nº 15.552/2014).[6]
E mais do que isso, Melina Miranda apurou o espantoso cenário oficial: o estado de São Paulo confirmou a permanência das revistas vexatórias no cotidiano dos/as visitantes das pessoas presas naquele Estado: em 2015, foram 3.200.600 (três milhões, duzentas mil e seiscentas) revistas; em 2016, foram outras 3.328.852 (três milhões, trezentas e vinte e oito mil, oitocentas e cinquenta e duas); e em 2017, até aquele momento, teriam sido feitas 1.672.777 (um milhão, seiscentas e setenta e duas mil, setecentos e setenta e sete) revistas íntimas.[7]
Na práxis dos Tribunais, há acórdãos anulatórios de condenações ou mantenedores de absolvições, pela evidente inconstitucionalidade/ilegalidade da conquista da prova, pelo método da violação do corpo. Por todos:
RECURSO ESPECIAL. TRÁFICO DE DROGAS. REVISTA ÍNTIMA. REVISTA VEXATÓRIA, HUMANA OU DEGRADANTE. ILICITUDE DAS PROVAS OBTIDAS. ABSOLVIÇÃO. RECURSO NÃO PROVIDO. 1. Caso haja fundadas suspeitas de o visitante do presídio estar portando material ilícito, é possível a realização de revista íntima, com fins de segurança, o que, por si só, não ofende a dignidade da pessoa humana. Contudo, não há como olvidar que tal procedimento deve ser realizado dentro dos parâmetros legais e constitucionais, sem nenhum procedimento invasivo, o que, no entanto, não foi observado no caso. 2. Uma vez que o acórdão recorrido reconheceu, expressamente, ter sido a acusada submetida a formas de revista vexatória, desumana ou degradante – agachamento, desnudamento e abertura do canal vaginal -, são ilícitas as provas produzidas em seu desfavor por meio da revista íntima, bem como todas as que delas decorreram (por força da Teoria dos Frutos da Árvore Envenenada), o que impõe a sua absolvição, por ausência de provas acerca da materialidade do delito. 3. Recurso especial não provido. (REsp 1789330/RS, Rel. Ministro ROGERIO SCHIETTI CRUZ, SEXTA TURMA, julgado em 17/12/2019, DJe 12/02/2020).
Diante desta necessidade – de uniformização e afirmação de princípios básicos da Constituição Federal (dignidade humana, vedação da tortura, do tratamento cruel e degradante, da honra e da intimidade, da intranscendentalidade da pena) das normas protetivas de mesmo jaez dos Tratados Internacionais (que embasaram julgamento de 30 anos atrás) – conduzem ao acolhimento da tese do Ministro Edson Fachin, relator do ARE 959.620/STF: É inadmissível a prática vexatória da revista íntima em visitas sociais nos estabelecimentos de segregação compulsória, vedados sob qualquer forma ou modo o desnudamento de visitantes e a abominável inspeção de suas cavidades corporais, e a prova a partir dela obtida é ilícita, não cabendo como escusa a ausência de equipamentos eletrônicos e radioscópicos.
De todas as músicas daquele disco, há uma especial: Voz Unida. Toda vez que lembro um velho samba, óh meu Brasil! Eu ergo o meu copo a quem partiu / Clara, estrela Dalva, amigo Ciro, doce Elis / Sabiás, canários, beija-flores, bem-te-vis / Toda vez que a gente segue em frente nessa lida, Alguma coisa acontece que amadurece essa luta sofrida / Toda vez que canta na avenida o hino, o samba, A voz unida do povo nos dá esperança na vida.[8]
Mulheres visitantes, anestesiadas por décadas de desnudamento, saltos, toques íntimos, não irão abandonar o contato com os seus. Viagens longas, dispêndios em núcleos familiares empobrecidos, abdicação de parcela de seus compromissos cotidianos. Que entrega é essa? Que salto no escuro! Isto é luta e esperança. E onde tudo persevera, a revista íntima, humilhante e ultrajante há deve ser proscrita do já elevado custo social do encarceramento em massa brasileiro.
Notas
[6] http://g1.globo.com/sp/sao-carlos-regiao/noticia/2015/06/justica-proibe-revista-vexatoria-em-visitantes-de-penitenciarias-de-itirapina.html
[7] Dados da Secretaria Estadual de Administração Penitenciária de São Paulo via SICSP – Serviço Integrado de informações ao Cidadão, em 21/07/2017. Protocolo Nº. 632661711441.
[8] Composição: Maurício Tapajós e Paulo César Pinheiro