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O CORRESPONDENTE

Os melhores textos dos jornalistas livres do Brasil. As melhores charges. Compartilhe

Os melhores textos dos jornalistas livres do Brasil. As melhores charges. Compartilhe

O CORRESPONDENTE

29
Out21

Servidoras e servidores públicos têm algo a comemorar?

Talis Andrade

Foto Lula Marques

Há mais de duas décadas acompanhamos uma campanha cotidiana de desvalorização e criminalização do serviço público, capitaneada pela grande mídia e por setores econômicos, interessados em ampliar seus lucros

27
Out21

O mensageiro

Talis Andrade

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por Carol Proner

Por estes dias tem circulado nas redes um áudio – veiculado pelo Brasil 247– revelando uma conversa franca e sincera entre o banqueiro André Esteves e jovens estrategistas do mercado financeiro.

O bilionário, famoso pela capacidade de se regenerar economicamente e voltar ao jogo (Back to The Game – possível referência para o acrônimo do BTG Pactual) dedica 60 minutos a uma espécie de áudio-aula (áudio-lecture) buscando tranquilizar o mercado diante do que foi entendido como “ataques ao teto de gastos” com a aprovação dos 400 reais para o novo Bolsa Família visando a reeleição de Jair Bolsonaro.

Pelo conteúdo das lições transmitidas de forma “aberta e transparente entre pessoas inteligentes, gente boa”, nas palavras banqueiro, não seria de espantar que o vazamento fosse intencional, uma jogada bastante vulgar de autopromoção e para mandar recados econômicos e políticos a quem possa interessar.

Sentado sobre almofadas em nível mais baixo do que o da plateia, o humilde professor pediu um copo d’água para em seguida gabar-se dos contatos com a alta cúpula do poder político, de consultar e ser consultado por ministros, deputados e por autoridades da alta administração federal e arrancou gostosas risadas com frases de efeito como “os políticos não são nem bons nem maus”(...) “nossa obrigação é conversar, explicar, ensinar as causas e consequências dos seus atos”, referindo-se com naturalidade ao que considera erros políticos.

Ressalvando a importância da âncora fiscal prevista na Constituição, Esteves minimizou a fissura no teto e referendou o Auxílio Brasil comparando-o ao Bolsa Família de Lula, que na verdade teria sido invenção do tucano Paulo Renato quando Ministro da Educação de FHC. E repetindo um mantra do liberal-igualitarismo estadunidense dos anos 80-90, as chamadas políticas de ação afirmativa, teorizou: “nós que temos privilégios, se a gente puder fazer uma pequena transferência de renda para aqueles que não tiveram educação, não tiveram acesso, (isso) traz uma enorme paz social para a sociedade.

O áudio vazou e circulou amplamente transmitindo muitos recados: De que os 400 reais mudam pouco o problema de déficit do Brasil, de que a âncora segue firme assim como a credibilidade do teto, e de que se o mercado se estressa é por não saber o que o governo fará a partir de agora.

Enaltecendo a autonomia do Banco Central, também minimizou o problema dos juros e confidenciou ter recebido telefonema do próprio Roberto Campos Neto sinalizando qual seria o piso ideal da taxa de juros no país.

Neste ponto, embora tenha sido uma ostentação um tanto genérica, Esteves pode ter se arriscado no terreno da ortodoxia do mercado financeiro, pois confessa abertamente o tráfico de informações privilegiadas que podem muito bem ser interpretadas como graves distorções.

E então chega ao ponto mais interessante de uma estratégia política que pode ser aproveitada no espalhamento do áudio, as wishful thinkings, o raciocínio baseado no desejo transformado em “advertências”: o vento da sociedade é de centrodireita, nossas pesquisas internas indicam forte apoio da população a Jair Bolsonaro, a população apoia amplamente a reforma administrativa, Lula tem uma falsa baixa rejeição, o problema não é Lula mas o PT e a esquerda só terá vez dentro de uns 10 anos com Tábata Amaral.

E por que é importante destacar esse aspecto “mensageiro” do áudio vazado? Percebe-se claramente que o mercado do qual André Esteves é orgulhoso porta-voz está disposto a tudo, respaldando um Guedes heterodoxo, minimizando offshores, monetizando informações  privilegiadas, e garantindo apoio a Bolsonaro – se necessário - sem qualquer pudor. Não há crise ética nem limites de bom senso diante de 600 mil mortos, nada que possa limitar um sociopata de fazer cálculos e ventilar cenários políticos ideais para o rentismo financeiro.

Ao final da entrevista, e já respondendo às perguntas dos pupilos entusiasmados, André Esteves admite simetrias entre o golpe militar de 1964 e o impeachment de Dilma Rousseff como sendo, comparativamente freios e contrapesos necessários do “centrão” na preservação do centenário republicanismo do Brasil, signo da sofisticação social de um país de imigrantes europeus convivendo com japoneses, sírio-libaneses, afrodescendentes e indígenas em movimento incontornavelmente centrípeto. 

O áudio termina com aplausos de uma claque disposta a tudo para destruir o que resta de Brasil.

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20
Out21

Nove entre 10 brasileiros querem o fim dos supersalários

Talis Andrade

 

 

Pesquisa do Datafolha, a pedido do Movimento Pessoas à Frente, aponta que 93% dos brasileiros defendem que a remuneração dos servidores não ultrapasse o teto constitucional, que hoje corresponde a R$ 39,2 mil mensais

 

por Vera Batista

Correio Braziliense - O fim dos chamados supersalários, que são pagos a uma parcela pequena do funcionalismo público, está previsto no Projeto de Lei 6726/2016. O texto, aprovado na Câmara, está parado na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado, aguardando, há mais de dois meses, a designação do relator.

O fim dos supersalários é uma das bandeiras do Movimento Pessoas à Frente. “Um excelente argumento em defesa do PL do Teto é a necessidade de dar eficácia real a uma decisão que já foi tomada democraticamente pelo Parlamento: a de que deve existir um limite. A Constituição já diz isso. Aprovar a lei é um modo de garantir que a Constituição Brasileira seja levada a sério quanto a isso. O PL não é contra o serviço público. É a favor da Constituição”, ressalta o professor de Direito da FGV-SP e presidente da Sociedade Brasileira de Direito Público, Carlos Ari Sundfeld, um dos integrantes do Movimento Pessoas à Frente

A estimativa é que que hoje o número de funcionários que ganha acima de R$ 39,2 mil mensais – valor equivalente à remuneração dos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) – representa apenas 0,23% do total de servidores estatutários, segundo dados do Centro de Liderança Pública (CLP). Esse teto remuneratório é
ultrapassado por meio do pagamento de auxílios diversos que, apesar de se restringirem a uma minoria, representam R$ 2,6 bilhões por ano de gastos para os cofres públicos. São essas verbas indenizatórias que serão limitadas, caso o PL 6726/2016 seja aprovado, informa o Movimento.

A pesquisa Datafolha foi encomendada pelo Movimento Pessoas à Frente – um movimento da sociedade civil dedicado ao debate sobre a melhoria do Estado a partir da gestão de pessoas que atuam no serviço público – e ouviu 2.072 pessoas entre os dias 9 e 20 de julho deste ano.

Reforma Administrativa
A limitação dos chamados “penduricalhos” nos salários no serviço público é um dos temas enfrentados na proposta de reforma administrativa (PEC 32/20) que está tramitando na Câmara dos Deputados.

Pela proposta original do governo federal, a vedação de pagamento de uma série de auxílios e de licenças atingia futuros servidores públicos dos três poderes ou empregados da administração pública direta ou de autarquia, fundação, empresa pública ou sociedade de economia mista. No entanto, os novos ingressantes dos ditos “membros de poder”, correspondem aos Juízes, Promotores, Conselheiros de Tribunais de Contas e Parlamentares, eram deixados de fora. Militares ocupantes das forças armadas e das polícias militares também foram deixados
de fora.

Após muitas críticas e debates, a Comissão Especial da Câmara sobre a PEC aprovou um parecer que estende as limitações para os ocupantes de cargos eletivos e membros de tribunais e conselhos de Contas. No entanto, assim como na proposta original, as restrições não foram aplicadas a magistrados, membros do Ministério Público e Militares

Sobre o Movimento Pessoas à Frente
Movimento plural da sociedade civil, dedicado ao debate sobre a melhoria do Estado a partir da gestão de pessoas que atuam no serviço público, o Movimento Pessoas à Frente é financiado pela Parceria Vamos, formada por três organizações do terceiro setor: Instituto República.org, Fundação Lemann e Instituto Humanize. Fazem parte do Movimento: especialistas, parlamentares, integrantes dos poderes públicos federal e estadual (Executivo, Legislativo, Judiciário e órgãos de controle), sindicatos e terceiro setor com visões políticas, sociais e econômicas plurais.
Para maiores informações acesse: movimentopessoasafrente.org.br

18
Out21

Beato Salu, vítima da hipocrisia nacional

Talis Andrade

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por Paulo Nogueira Batista Jr

O colunista, mesmo o quinzenal, se vê às voltas, de vez em quando, com o espectro da falta de assunto. Sobre o quê, meu Deus, escrever hoje? Indagamos, aflitos. Quase todos os assuntos parecem esgotados, exaustos e exauridos. E dos que sobram alguns parecem arriscados demais. 

No tempo do Nelson Rodrigues, e antes no do Eça de Queiroz, era muito diferente, leitor. Sempre havia, em Túnis, um Bei, obeso, obsceno e impopular. E o cronista tinha o recurso de arrasar o Bei, sem cerimônia. E era uma delícia desancá-lo, sem qualquer risco, na certeza prévia da total impunidade. O Bei morava longe, e ele e seus assessores eram completamente analfabetos na nossa querida língua portuguesa. 

Mas há solução para tudo. Temos aqui à mão o Paulo Guedes, o pitoresco ministro da Economia do nosso país. Verdade que não é gordo, nem propriamente obsceno, e fala português fluentemente (sem sotaque físico, só espiritual). Tem, entretanto, alguns pontos em comum com o Bei de Túnis – é impopular e obsceno (figurativamente, falando). A impopularidade decorre, por assim dizer, da indecência, das suas ideias e das suas políticas; e podemos, portanto, tratar esses dois aspectos de uma só vez. 

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Ultraliberalismo, um ponto fora da curva

Em pleno século 21, coube ao Brasil a infelicidade inesperada de ter no comando da sua economia um economista ultraliberal. Quem poderia prever? O brasileiro não era dado a extremismos. Os ultraliberais sempre foram raros entre nós. Os economistas brasileiros, tanto à esquerda como à direita, tendiam a certo ecletismo. Faziam as suas combinações e sincretismos, misturando meio a esmo liberalismo, keynesianismo e, às vezes, pitadas de socialismo. Segundo os nossos poucos ultraliberais, era por isso mesmo que a economia brasileira não decolava.

Eis que de repente aparece, triunfante, Paulo Guedes, um Chicago oldie, como ele mesmo se autoqualificou em momento de bom humor. Formado anos 1970 na Universidade de Chicago, Guedes é um doutrinário. Talvez deva dizer “era”, e já explico por quê. Na década de 1980, quando começou a tomar parte ativa e exaltada do debate público brasileiro, recebeu a alcunha de “Beato Salu”, personagem de novela da TV da época, um fanático que vagava pelas ruas anunciando o fim do mundo. Se não me falha a memória, foi o Belluzzo quem lhe pespegou o apelido certeiro.

Por incrível que pareça, antes de concentrar em suas mãos, todas as rédeas da política econômica, Guedes nunca tivera uma passagem pelo serviço público! Saíra da academia para o mercado financeiro. E, depois de décadas no mercado, seguiu impávido para Brasília. Direto da Faria Lima para o ministério mais complicado do planeta – com o agravante de que passou a deter mais poderes e responsabilidade do que os seus antecessores, uma vez que ao Ministério da Fazenda foram incorporados Planejamento, Indústria e Comércio e, inicialmente, Trabalho. Um superministro, portanto, sem experiência de setor público! Episódio digno dos capítulos mais descabelados do realismo fantástico latino-americano. 

Mas vamos deixar a sua trajetória profissional de lado e tratar, primeiro, do aspecto estritamente doutrinário. Nem sempre se percebe, fora dos meios acadêmicos, que o departamento econômico da Universidade de Chicago, pátria mãe do ultraliberalismo, é um ponto fora da curva em termos do establishment econômico internacional. Na maioria das principais universidades dos EUA, ensina-se uma versão da economia em que predomina, sim, o liberalismo, mas sem exclusão de elementos keynesianos. Em outras palavras, aceita-se alguma presença do Estado na economia para mitigar tendências que o mercado exibe quando deixado à própria sorte, especialmente instabilidade macroeconômica e concentração da renda. A defesa do Estado mínimo, a rigor, circunscreve-se a Chicago e algumas de suas subsidiárias acadêmicas.

O ultraliberalismo de Chicago, conhecido também como “fundamentalismo de mercado”, teve o seu auge em termos de influência na década de 1970, ainda na época de Milton Friedman, mas colheu derrotas sucessivas desde então. As primeiras e mais fragorosas, no início da década de 1980, na implementação do modelo de política monetária propugnado pelos monetaristas. Tendo fracassado justamente nesse assunto – moeda! – os monetaristas, ficaram um pouco desmoralizados e inseguros. Foram tantas as decepções que alguns dos seus mais destacados teóricos – Robert Lucas e Thomas Sargent, inclusive – se refugiaram na torre acadêmica de marfim, dando a entender, ou até dizendo, que a teoria nada tinha a dizer de seguro ou útil sobre a realidade da economia. Esse purismo contribuiu para que os economistas de Chicago tenham tido papel modesto no debate público sobre economia nas décadas recentes. Desfecho irônico para uma escola que se consagrara com o ativismo prático de um Milton Friedman.

Brasil na contramão das tendências internacionais

No plano da política econômica e em organismos internacionais como o FMI, passaram a desempenhar mais influência, nas décadas recentes, escolas como as de Harvard e do MIT– que pregam um liberalismo não tão puro e que aceitam alguma presença do Estado, embora concedendo centralidade à ação dos agentes privados e ao funcionamento dos mercados. O chamado Consenso de Washington e a agenda neoliberal que dominaram desde a década de 1980 até a primeira década do século atual, estão muito mais próximos desse liberalismo mitigado do que do ultraliberalismo ensinado em Chicago.

Ironicamente, nos últimos anos, o liberalismo econômico mitigado de Harvard e MIT também entrou em crise. Mais do que crise: sofreu uma sucessão de choques que praticamente o liquidaram. Já não é mais aceito nem nos EUA, seu país de origem. A derrocada começou em 2008, quando estourou a crise do Lehman, provocando o fim da crença na viabilidade de um sistema financeiro privado autorregulado e submetido apenas a controle e supervisão leves das autoridades públicas. Em paralelo, a concentração da renda e da riqueza, que resultou em grande parte, da aplicação da agenda neoliberal levou a uma crise da democracia, contribuindo para a eleição nos EUA e em outros países desenvolvidos de líderes autoritários como Donald Trump, sem qualquer compromisso com o liberalismo econômico e propensos à improvisação e ao pragmatismo selvagem. Em 2020, veio o choque da pandemia da Covid-19, uma dramática demonstração adicional de que as economias não podem prescindir de um Estado forte, atuante, com instrumentos variados, inclusive em termos de políticas industriais nacionais. Finalmente, em 2021, Joe Biden enterrou de vez o neoliberalismo, ao assumir com um programa econômico intervencionista e distributivista, de corte keynesiano e rooseveltiano. Se cruzar na rua com o neoliberalismo, Biden nem cumprimenta. 

Pois bem, justo neste contexto, é que chega a Brasília o nosso Beato Salu. O timing não poderia ser pior. Com ele, o Brasil colocou-se na contramão das tendências econômicas internacionais, adotando como superministro da Economia um economista que professava o ultraliberalismo bem no momento em que até mesmo o liberalismo econômico eclético e mitigado batia em constrangedora retirada mundo afora! Passamos à condição de curiosidade de museu. Em Washington, os economistas do FMI – até do FMI! – olhavam para cá, levantavam os braços para o céu e clamavam: “Como pode! Como pode!”.

A que descaminhos foi conduzida nossa querida nação! Mas doutrina não é tudo, leitor, nunca e jamais. O pensamento do nosso Beato Salu foi imediatamente submetido ao efeito corrosivo da realidade política e social. E quando a doutrina se choca com a realidade (alguma dúvida?), a primeira soçobra rapidamente. 

Para além disso, há um problema fundamental, já destacado por diversos estudiosos da história e do pensamento econômico: o ultraliberalismo é incompatível com a democracia. Os seus exageros, os seus radicalismos não se coadunam com liberdade, eleições periódicas, divisão de poderes. O liberalismo econômico, levado ao extremo, corrói o liberalismo político. Só sobrevive com a destruição da democracia. Não é por acaso que o ultraliberalismo de Friedman e Chicago praticamente só teve sobrevida no Chile de Pinochet! É suprimindo os condicionantes e direitos democráticos, que se torna possível desencadear o liberalismo econômico puro e duro. 

Releio o parágrafo anterior. Carrega um certo tom de “teoria política” incompatível, a rigor, com o estilo da crônica. Paciência. Vai assim mesmo. Mas há, na verdade, um conflito mais simples, mais pedestre entre a figura folclórica do ministro da Economia e o sistema político nacional. Como se sabe, este último é dominado, hoje como nunca, pelo famoso “Centrão”, aquele vasto conjunto político sem ideologia, sem doutrina e até sem ideias. Quando viram o Beato Salu, os políticos do “Centrão” não acreditaram. De que planeta teria saído esse ministro? De que zoológico fugiu? Indagaram, perplexos. Mas passada a surpresa inicial, domesticaram o novato, como seria de prever.   

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Descaminhos do ultraliberalismo no Brasil 

Assim, o ministro Guedes guarda atualmente relação apenas remota com o ideólogo que chegou a Brasília em 2019. Acomodou-se descaradamente às circunstâncias do governo, do seu chefe e do Parlamento. Para desespero de alguns membros menos realistas da turma da bufunfa, pouco sobrou da agenda liberal. O que se tem atualmente é uma caricatura, e bem grotesca. Por exemplo, privatização virou pirataria pura e simples, ou seja, tentativas de comprar ativos públicos na bacia das almas. Reforma administrativa virou uma oportunidade de retirar direitos básicos dos servidores e abrir espaço para a transferência de responsabilidades públicas para a esfera privada. Reforma tributária virou ocasião para arrancar concessões fiscais e proteger privilégios inconfessáveis, inclusive as brechas da legislação que permitem evadir tributos em paraísos fiscais. 

Chego assim ao tema que mais tem mobilizado os críticos impiedosos do ministro da Economia – os chamados Pandora Papers, com a descoberta, por jornalistas investigativos estrangeiros, de que Guedes faz parte de uma lista de figurões que mantêm vultosas aplicações offshore nas Ilhas Virgens no Caribe.  

Longe de mim pretender esgotar o tema, nesta coluna. Vamos aguardar as explicações que o ministro dará ao Congresso e à opinião pública. Salta aos olhos, porém, a injustiça de algumas críticas. Convenhamos, o chamado planejamento tributário (nome sofisticado para a evasão fiscal dos super-ricos) é generalizado. Os super-ricos não sonegam. Sonegação é coisa de pobre, é coisa no máximo para a classe média remediada. Os super-ricos contratam especialistas, advogados, contadores etc., para explorar as brechas da legislação e escapar incólumes à tributação. E, se por acaso, a Receita Federal tenta fechar algumas dessas brechas, inclusive os paraísos, aí estão os lobbies para retirar esses dispositivos de projetos de lei. 

Foi exatamente o que aconteceu há não muito tempo. A Receita tentou fazer algumas correções, fechar algumas brechas, meio de contrabando, na reforma do Imposto de Renda. As propostas passaram pelo crivo desatento do Ministro e da sua assessoria, mas foram derrubadas no Congresso. Com a concordância, segundo se noticiou, do próprio Guedes. 

Conflito de interesse? Vamos largar de ser puristas e hipócritas! Por que exigir que Guedes seja luminosa exceção? Afinal, como esperar que ele não recorra a paraísos fiscais e outros mecanismos que permitem escapar da opressiva tributação – a opressiva tributação que todo liberal que se preza detesta desde criancinha? 

Atire a primeira pedra, aí da Faria Lima, quem nunca teve alguns míseros milhões estacionados num paraíso fiscal!

Uma versão resumida deste artigo foi publicada na revista “Carta Capital” em 15 de outubro de 2021.

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20
Jul21

Mentiras e Riscos da PEC 32

Talis Andrade

Pacote de maldades: ato de entrega do plano de reformas por Bolsonaro, Guedes e demais ministros, ao Congresso, em novembro de 2019

Pacote de maldades dos inimigos do povo e do Brasil: ato de entrega do plano de reformas por Bolsonaro, Guedes e demais ministros, ao Congresso, em novembro de 2019. Foto Marcos Corrêa/PR

 

por Maria Lucia Fattorelli /Extra Classe

Guedes e Bolsonaro entregaram ao Congresso Nacional a proposta de emenda à Constituição – PEC 32 – que, segundo o governo, seria uma “reforma administrativa”.

Quem se dá ao trabalho de estudar o conteúdo da proposta vê claramente que não se trata de uma reforma administrativa, mas, sim, da maior alteração já feita à Constituição brasileira, cujo objetivo é destruir a estrutura do Estado brasileiro em todos os níveis – federal, estadual e municipal – e abrir espaço para privatização e terceirização generalizadas, pondo fim aos serviços públicos gratuitos e universais prestados à população.

A população será a maior prejudicada e está sendo bombardeada com notícias mentirosas de que essa PEC 32 “acabaria com privilégios”.

O discurso de “acabar com privilégios” tem sido usado reiteradamente pelo governo, porque “cola”, tendo em vista que todo mundo tem ódio de privilégios.

Durante as diversas propostas de reforma da Previdência apresentadas pelos sucessivos governos, sempre o discurso de “acabar com privilégios” esteve presente.

A população só descobre que era mentira depois de tudo aprovado, quando vai requerer uma mísera pensão por morte e percebe que receberá apenas uma parte, pois a outra foi garfada por aquela reforma que pregava “fim de privilégios”. Ou quando acha que chegou a sua vez de se aposentar e percebe que terá que trabalhar vários anos a mais e receberá um benefício menor.

Grande parte da população já aprendeu isso e já não se deixa enganar pelo discurso mentiroso, ainda mais diante das inúmeras revelações da Auditoria Cidadã da Dívida, que têm mostrado onde está o verdadeiro privilégio de trilhões que provoca rombo às contas públicas: no Sistema da Dívida e na política monetária suicida do Banco Central, que alimenta esse sistema.

Adicionalmente, em relação às distorções salariais existentes no serviço público e que precisariam ser corrigidas, até parlamentares da base do governo já deixam escapar que a PEC 32 não serve para combater privilégios: “À CNN, Barros, líder do governo, disse que a discussão sobre supersalários não está incluída na proposta de reforma administrativa(…)”.

O mais grave é que a maioria dos parlamentares que irão votar a PEC 32 ainda repetem as mentiras ditas pelo governo e, pior, alguns não entenderam o imenso dano que essa contrarreforma irá provocar ao país, enquanto outros, mesmo entendendo, vislumbram o imenso volume de negócios que essa PEC 32 irá possibilitar!

Neste artigo, resumimos pontualmente alguns aspectos mais relevantes, apelando para que rejeitem a PEC 32 e abram o debate com a sociedade e todos os setores do serviço público para construir outro projeto que melhore a estrutura do Estado em vez de destruí-la.

A PEC da corrupção

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Quem aprovar a PEC 32 estará favorecendo a corrupção! A PEC 32 corta da Constituição a expressão “função pública” que é exatamente o termo que faz a ligação entre os servidores públicos devidamente concursados e selecionados para exercer as “atribuições do Estado”, e o cargo para o qual foram selecionados.

Por que a PEC 32 faz isso? Simplesmente porque ela cria novas ligações através de “vínculos”, quase todos precários, sem concurso, de tal forma que o administrador (presidente, governador, prefeito) de plantão poderá nomear a sua turma sem concurso.

Alguém acredita que isso irá trazer economia de recursos para o Estado? É claro que não! Além de pessoas que não tiveram a sua competência comprovada por concurso público, teremos um quando de trabalhadores dependentes daquele gestor que “deu” a vaga, o que impedirá a necessária independência da gestão pública, incentivará as “rachadinhas”, como inúmeros exemplos de contratações sem concurso público têm comprovado, além do risco de descontinuidade do serviço público a cada troca de governo.

A população será a maior prejudicada.

O apadrinhamento político é um ato de corrupção que ofende a moralidade pública e, se essa PEC 32 for aprovada, esse absurdo irá parar na Constituição Federal. Por isso apelamos para que parlamentares que são contra a corrupção rejeitem a PEC 32.

Privatização e terceirização generalizadas

A serviço de quem? O ministro da Economia, Paulo Guedes, palestra na 20° Conferência Anual Santander em São Paulo

A serviço de quem? O ministro da Economia, Paulo Guedes, palestra na 20° Conferência Anual Santander em São Paulo. Foto Rovena Rosa/Agência Brasil

 

A PEC 32 introduz ao texto constitucional um novo artigo (37-A) que permite que todo e qualquer serviço público, sem exceção, seja privatizado e realizado por trabalhadores terceirizados.

O texto do artigo está disfarçado, pois menciona “cooperação” e “compartilhamento” dos serviços públicos e da estrutura física com o setor privado.

Quem está acreditando na mentira de que a PEC 32 iria atingir somente futuros servidores ainda não entendeu o alcance do referido Art. 37-A. Em vez de concurso público para a reposição dos servidores que se aposentam e falecem, caso a PEC 32 venha a ser aprovada, teremos trabalhadores de uma empresa privada, terceirizados, “compartilhando” o mesmo serviço público, porém, sem o devido preparo e, certamente, com salários aviltantes, pois o lucro irá para a empresa, evidentemente!

Dentro de pouco tempo, essas carreiras de servidores invadidas por essa privatização e terceirização entrarão em extinção, e a regra será a terceirização e o desmonte, ainda mais diante da extinção da “função púbica”, antes comentada.

Por um lado, a população amargará imenso prejuízo, pois deixará de receber serviços prestados por trabalhadores devidamente selecionados por concurso público, treinados e preparados! Amargará também o risco de descontinuidade dos serviços a cada mudança de governo, além do risco de cobrança pelos serviços, já que uma empresa privada vive de lucro!

Por outro lado, já imaginaram quantos negócios serão feitos em todas as esferas: federal, estaduais e municipais? Será que são esses grandes negócios que estão movendo os falaciosos discursos, baseados em mentiras e dados distorcidos apresentados pelo governo e Banco Mundial para “culpar” o serviço público e servidores?

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Dentre os dados distorcidos, cabe destacar:

  • PLOA 2021: o gráfico do projeto de lei orçamentária para 2021 que tem sido divulgado pelo governo simplesmente esconde a maior fatia, de quase 54% do total, referente ao gasto de cerca de R$ 2,2 trilhões com juros e amortizações da chamada dívida pública, estimados para 2021!

 

  • Chega a ser vergonhoso o discurso de que se pretende “economizar” R$ 500 bilhões em 10 anos com a PEC 32, quando em apenas 1 ano o gasto com a chamada dívida pública nunca auditada prevê consumir 4,4 vezes esse valor!

 

  • A falsa alegação de “gasto público excessivo” em anos nos quais produzimos R$ 1 trilhão de Superávit Primário: O texto do Banco Mundial que é usado como “justificação” para a PEC 32 é imprestável, pois tenta jogar a culpa nos servidores públicos e no gasto com a estrutura do Estado brasileiro alegando que teria havido “gasto público excessivo” em duas décadas, referindo-se ao período de 1995 a 2015, que foram anos em que na realidade produzimos R$ 1 trilhão de Superávit Primário, ou seja, gastamos menos do que arrecadamos! Nesse período, a dívida interna federal aumentou de R$ 86 bilhões para quase R$ 4 trilhões no mesmo período, por conta dos mecanismos de política monetária do Banco Central, responsáveis por déficit nominal brutal e pela fabricação da “crise”. Até o Tribunal de Contas da União já declarou que a dívida não serviu para investimento no país.

 

  • A distorcida interpretação da Crise, da queda do PIB em 2015-2016 e da tendência dos investimentos a zero: O texto do Banco Mundial usado como “justificação” para a PEC 32 menciona esses aspectos e, mais uma vez, tenta jogar a culpa nos servidores públicos e no gasto com a estrutura do Estado brasileiro, quando na realidade a “crise” que enfrentamos desde 2014 e que derrubou o PIB em 7% em 2015-2016 foi fabricada pela política monetária do Banco Central, como provam os dados oficiais, e a tendência dos investimentos a zero decorre dessa crise fabricada e não da estrutura do Estado brasileiro, como distorce o Banco Mundial.

 

  • A mentira dos “prêmios salariais excepcionalmente altos: O texto do Banco Mundial usado como “justificação” para a PEC 32 usa terminologia que sequer existe no Brasil e mente! O nível salarial da imensa maioria de servidores públicos é baixíssimo, inferior ao mínimo existencial calculado pelo Dieese. Os membros de poder que recebem acima do teto salarial do Supremo Tribunal Federal não são alcançados pela PEC 32. Saiu na mídia: “À CNN, Barros, líder do governo, disse que a discussão sobre supersalários não está na incluída na proposta de reforma administrativa(…)”.
  • A mentira do “excesso de servidores”: Dados oficiais do próprio governo federal provam que o número de servidores públicos vem caindo drasticamente ao longo dos anos*. Nos estados e municípios a situação é ainda mais calamitosa, com insuficiência de servidores para executar serviços essenciais à população.
    *De acordo com o Boletim Estatístico de Pessoal e Informações Organizacionais do Ministério do Planejamento, no período de 1991 a 2015, a quantidade de servidores civis ativos do Poder Executivo caiu expressivamente em relação à população do país: enquanto a população cresceu 35% (de 151,6 milhões para 204,5 milhões de habitantes), o número de servidores teve um aumento de apenas 8% (de 661.996 para 716.521) no mesmo período. De 2016 a 2020, segundo Painel Estatístico de Pessoal do Governo Federal (https://bit.ly/3oLn4Ts), a quantidade de servidores civis ativos do Poder Executivo caiu ainda mais: enquanto a população cresceu 3% (de 206,2 milhões para 211,8 milhões de habitantes), o número de servidores sofreu uma redução de 4% (de 627 mil para 601 mil). O Boletim Estatístico de Pessoal e Informações Organizacionais do Ministério do Planejamento foi descontinuado, sendo o último dado referente a 2015. Por essa razão, utilizamos os dados do Painel Estatístico de Pessoal do Governo Federal a partir de 2016, como acima indicado.

 

  • A mentira da “economia de recursos”: A PEC 32 trará aumento de gastos para o Estado e para a população. A abre espaço para que qualquer pessoa não ocupante de cargos de carreira no funcionalismo público assuma cargo de chefia no serviço público, o que demandará o pagamento integral de salário para essa pessoa. Assim, o que hoje representa apenas um acréscimo decorrente de gratificação, caso a PEC 32 venha a ser aprovada, irá representar um novo salário cheio para todas as pessoas não ocupantes de cargos de carreira no funcionalismo público que venham a ocupar alguma chefia.

A PEC 32 extingue o Regime Jurídico Único e coloca em risco de extinção as carreiras do serviço público, que serão substituídas por trabalhadores terceirizados e precarizados, em um desmonte brutal que leva à perda do conhecimento historicamente acumulado pelos servidores públicos, colocando em risco diversas experiências relevantes, segurança de dados e informações estratégicas.

Ademais, na medida em que a PEC 32/2020 desmonta toda a estrutura do Estado, ao acabar com pilares fundamentais do serviço público, privatizando e terceirizando tudo, ela coloca na pauta o próprio fim do serviço público gratuito e universal, colocando em risco a imensa maioria da população e a própria democracia!

Conclusão: A PEC dos negócios particulares

A modificação na concepção do Estado trazida pela PEC 32 tende a ampliar brutalmente a participação do setor privado, que obviamente visa lucro e cobra caro pelos serviços prestados à população. Além disso, o setor privado exige a cobertura de todos os vultosos custos dos investimentos e exige altos retornos para seus acionistas, e, quando surge algum problema, o Estado ainda é chamado a cobrir rombos, corrigir erros e até assumir os serviços que o setor privado deixa de prestar, como mostram várias experiências concretas, a exemplo do recente apagão no Amapá. Esse fato se torna ainda mais grave em um país tão desigual como o Brasil, no qual a maioria da população vive na pobreza e até na miséria!

A PEC 32 é a PEC dos negócios particulares que essa dita “nova administração” promete, criando inúmeras oportunidades para favorecimentos escusos, para as famosas “rachadinhas” e para a corrupção!

Com o apoio de mais de 120 entidades, a Auditoria Cidadã da Dívida já enviou, via Cartório de Títulos e Documentos, interpelação extrajudicial detalhada e fundamentada a todos os líderes partidários na Câmara dos Deputados e Senado, alertando sobre a imensa responsabilidade que assumem ao votar essa nociva proposta. Esperamos que a maioria vote contra os favorecimentos escusos, as famosas “rachadinhas” e a corrupção.

capitalismo carestia privatização bancos indig

 

21
Jan21

Dois anos de desgoverno – três vezes destruição

Talis Andrade

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Neoliberalismo, fascismo cultural e pandemia sem controle, em síntese trágica, devastam o país
 
por Leda Paulani
 

A eleição de Jair Bolsonaro, em 2018, para ocupar o cargo mais alto da República nos quatro anos seguintes ainda será tema de debate, discussão e pesquisa por muito tempo. Teses e mais teses haverão de surgir, quiçá por décadas, na busca de encontrar a explicação mais consistente para a tragédia nacional. É inegável a complexidade do fenômeno.

São inúmeros e de variada ordem os elementos que devem ser considerados para compreendê-la: do golpe jurídico-midiático-parlamentar de 2016 à propagação indiscriminada de fake news; do desconforto dos estratos superiores com a circulação de pretos e pobres em espaços antes a eles interditados à armação jurídico-institucional impedindo Lula de concorrer às eleições; do generalizado sentimento antissistema que se difundiu a partir de 2013 à ininterrupta ascensão das igrejas neopentecostais, com seus valores fortemente conservadores; do ódio ao PT, cuidadosamente cultivado, a partir da operação Lava Jato, pela grande imprensa e redes sociais, à indiferença das massas frente ao impeachment, à prisão de Lula e mesmo à sistemática retirada dos direitos dos trabalhadores desde o golpe.

Neoliberalismo: a primeira destruição

Contudo, o conjunto enorme de fatores talvez não tivesse sido suficiente para produzir o nefasto resultado se as forças que há muito tempo estão no comando do andamento material do país não tivessem visto, naquele indicado para chefiar a economia, a expressão maior de seus sonhos de ultraliberalismo. Já que o candidato preferido, tucano, fora barrado pelas urnas, a elite econômica (entenda-se o grande capital, os mercados financeiros e a riqueza financeira que operam) fechou com o capitão “antissistema”.

Agiu assim, mesmo sabendo que se tratava de fraude encarnada a bandeira da anticorrupção nas mãos de família farta e documentadamente corrupta há 30 anos, e que se corria o risco, dado o claro apoio militar à candidatura e o grosseiro perfil autoritário do personagem, de rifar de vez a já frágil democracia brasileira. A presença de Paulo Guedes na equipe de Bolsonaro, ainda por cima anunciado como superministro, tornou perfeitamente palatável um candidato, sob qualquer outro aspecto, até para uma elite estreita como a nossa, abaixo de qualquer crítica.

É verdade que o ataque neoliberal à possibilidade de construir por aqui alguma coisa minimamente parecida com uma Nação – o que se vislumbrou com a promulgação da Constituição de 1988 – não começou com o atual desgoverno. Desde os primeiros dias de sua existência, a efetividade da nova Carta Magna foi colocada em dúvida: não cabia no Estado, tornaria o país ingovernável etc. Turbinado pelo permanente terrorismo econômico que se forjou na esteira do trauma inflacionário, o discurso econômico convencional, de matriz ortodoxa e liberal, dominou todos os espaços, dos negócios à política, da mídia à academia.

Os resultados concretos desse levante não tardaram a aparecer. Estabilizada monetariamente desde o Plano Real, a economia brasileira foi se ajustando pari passu ao traje novo requerido pelo ambiente financeirizado global, elevando as garantias dos credores e rentistas, isentando-os de tributos, dando-lhes toda a liberdade possível de movimentação, abrindo-lhes novos mercados, adequando a política macroeconômica aos seus interesses, assegurando-lhes, quase sempre, os maiores ganhos do mundo, inclusive em moeda forte, etc.

Com exceção de uma ou outra medida, o movimento de adequação não cessou nem mesmo com a ascensão do Partido dos Trabalhadores ao governo federal. Uma boa medida das consequências desse rearranjo institucional da economia brasileira é a taxa macroeconômica de financeirização, entendida como a relação entre a oferta total de ativos financeiros não monetários e a oferta total de capital fixo.[1] Essa taxa passa de 0,16 em 1994 para 0,24 em 2002 e 0,55 em 2014, estando hoje (dado de 2019) em 0,65.

Como subproduto do processo, tivemos a reprimarização da pauta de exportações, a desindustrialização do país (a participação da indústria de transformação no PIB, que tinha ultrapassado os 35% em meados dos anos 1980, caiu a 11% em 2018) e seu total desacoplamento do processo de evolução tecnológica em pleno crescimento das exigências impostas pelo progressivo desequilíbrio ambiental e em plena maré montante da indústria 4.0.

O ultraliberalismo porém vai bem além disso. Trata-se, sem meias palavras, de um projeto de destruição. O mundo dos sonhos dos ultraliberais (e do nosso pesadelo) é um mundo onde o mercado domina todo o espaço social e o Estado não passa de avalista das regras do jogo econômico e financeiro. A essência do projeto neoliberal de Hayek não é outra: devolver ao mercado aquilo que por direito lhe pertence e está sendo indevidamente surrupiado.

No imediato pós-guerra, quando as ideias neoliberais são alinhavadas, a necessidade desse resgate decorria das medidas implantadas ao longo dos anos 1930 para enfrentar a crise econômica e a própria situação bélica (New Deal como paradigma). Três décadas depois, do ponto de vista dessa ideologia, realizar a tarefa vai se mostrar ainda mais imperativo, em razão da hegemonia das práticas keynesianas de gestão econômica, da construção do Estado do bem-estar social (Welfare State) nos países avançados e do fortalecimento do Estado empresarial no nacional-desenvolvimentismo do Terceiro Mundo.

A necessidade de demolir tudo isso para restabelecer o protagonismo do mercado era evidente. O forte descenso cíclico que resultou dos “anos de ouro” (do pós-guerra a meados dos anos 1970), a sobreacumulação de capital que despontava e o crescimento da riqueza financeira, começando a acelerar nos anos 1970, iriam fornecer o substrato material-estrutural para que a pregação, entoada solitariamente pelos membros da seita ultraliberal por quase 30 anos, ganhasse o proscênio e passasse, desde o início da década de 1980, a conquistar corações e mentes e governos em todo o planeta.

O que se convencionou chamar de neoliberalismo é tal projeto de destruição do Estado social. Por isso, quando se criticam as medidas de política econômica associadas ao neoliberalismo por seus pífios resultados, recorrentes são as queixas de que as receitas não foram aplicadas corretamente, ou na sua totalidade, ou na intensidade necessária. Louve-se pelo menos a coerência do queixume: enquanto a destruição não se completar e o mercado não tiver subsumido a sociedade, a tarefa não estará terminada.

Para além das querelas político-partidárias, o golpe de 2016 tinha objetivo claro: completar o trabalho que começara no Brasil no início dos anos 1990 e teria ficado a meio caminho. A Ponte para o Futuro, do conspirador e traidor Michel Temer, é um programa neoliberal puro-sangue (nos dois sentidos, nota meu marido, com e sem hífen), ou seja, sem os atenuantes sociais dos governos do PT. A inquietação que cozinhava em fogo brando desde as manifestações de 2013 escancarou o espaço político, no início de 2016, para pôr ponto final a esta sorte de “neoliberalismo progressista de Estado” (com perdão da heterodoxia),[2] que estava no poder desde 2003.[3]

A marcha acelerada da destruição constava ponto por ponto do programa de Temer: o teto de gastos, o fim das vinculações constitucionais de educação e saúde, a livre negociação trabalhista, a terceirização total, o endurecimento de regras e capitalização da previdência, a privatização sem peias, a liberdade comercial plena (fazendo tábula rasa de Mercosul, BRICS, etc.).

Fascismo cultural: a segunda destruição

Em jantar com lideranças conservadoras em Washington (EUA) em março de 2019, Bolsonaro assumiu: “O Brasil não é um terreno aberto onde nós pretendemos construir coisas para o povo. Nós temos é que desconstruir muita coisa.” O enunciado da frase poderia levar a pensar que Paulo Guedes, com seu ultraliberalismo descabelado, servira como luva ao capitão, já que os dois falavam a mesma língua. A interpretação porém não se sustenta.

De origem militar, Bolsonaro, ao contrário, fora sempre um defensor do nacionalismo estatista da época dos generais. Deputado federal nos anos 1990, votou, por exemplo, contra a privatização das telecomunicações e da gigante Vale do Rio Doce. A “desconstrução” que o motiva provém de outra esfera da vida social, é moral e ideológica. Anticomunista doente, racista, machista, homofóbico, misógino e tirano, ou seja, um digno representante do “fascismo cultural”, viu como consumação de seus piores pesadelos as últimas décadas no país, com a liberação de costumes, a desvalorização da heteronormatividade e o avanço de direitos e oportunidades de não brancos. Era essa sociedade que ele tinha que destruir, já que tudo isso seria produto do domínio do marxismo cultural. Na mesma reunião, afirmou que sempre sonhara “em libertar o Brasil da ideologia nefasta da esquerda”, que nosso país “caminhava para o comunismo” e que ele ficaria feliz de “ser um ponto de inflexão” no processo.

Bolsonaro alardeava alto e bom som que não entendia nada de economia. Como não tinha projeto na área, entrou no bonde que estava passando, o da demolição (paradoxo à parte) de A Ponte para o Futuro, que corria em marcha acelerada desde o golpe. Paulo Guedes foi quem se apresentou para conduzir o bonde e os assessores de Bolsonaro certamente sopraram-lhe ao ouvido que o nome contava com o apoio da elite financista do país, ou seja, “o mercado”. Estavam certos: nossa elite rentista, globalista e vulgarmente refinada, embora torcendo um pouco o nariz aos modos grosseiros do capitão, ficou maravilhada com a possibilidade Guedes. Foi assim que a candidatura Bolsonaro ganhou um “programa econômico” e os dois projetos de destruição se encontraram.

É deste ângulo, portanto, que seria legítimo fazer um balanço da primeira metade de seu mandato e é justamente o tipo de análise que vem fazendo a mídia corporativa. É evidente que não perguntam se a destruição está sendo bem ou mal sucedida, mas os órgãos dos grandes conglomerados estão no momento engasgados de matérias recriminando Guedes por não ter entregue o que prometeu: a reforma administrativa está empacada, as privatizações não saem do papel, os trâmites para  a efetivação da carteira verde e amarela não andam e a capitalização da previdência também não saiu, apesar de aprovada a reforma.

Não faz sentido avaliar o “programa econômico” de Bolsonaro em matéria de crescimento, de emprego, de redução da miséria, porque não são esses seus objetivos. Neste particular, só para registrar, o resultado do PIB havia sido desprezível em 2019 (crescimento de 1,1%) e já estava negativo (-0,3%) no primeiro trimestre de 2020, ainda antes de a pandemia poder ser apontada como variável determinante do fracasso. Outro dado no mesmo sentido é que o número de pessoas desocupadas, estimado pela PNAD Contínua do IBGE, já era de 12,3 milhões em fevereiro de 2020, antes de qualquer efeito da crise sanitária sobre a variável (hoje, o número é de 14,1 milhões – dado de outubro/2020).

Pandemia sem controle: a terceira destruição

É o caso de perguntar que efeitos teve o advento do novo coronavírus sobre o funesto encontro dos dois projetos de destruição que as eleições de 2018 ensejaram. O primeiro ponto a destacar é que a pandemia, a terceira destruição, se sobrepôs a uma economia já combalida por seis anos de recessão e baixo crescimento (o valor real do PIB no acumulado em 12 meses do primeiro trimestre de 2020 era ainda 3,7% menor do que o do segundo trimestre de 2014, ponto a partir do qual começou efetivamente a queda do produto).

As medidas imprescindíveis para minorar os efeitos da difusão do vírus afetam necessariamente o ritmo do desempenho econômico (em especial no setor de serviços, hoje responsável por cerca de 60% do produto), pois inviabilizam uma série de atividades, reduzem drasticamente o consumo e desestimulam completamente o investimento.

Num governo responsável, sem ultraliberalismo e, portanto, sem terrorismo fiscal com seu teto de gastos criminoso, era evidente que o único meio de fazer frente à catástrofe sanitária seria aumentando os gastos do governo, principalmente por meio de transferências diretas de renda monetária àqueles diretamente afetados (como feito, aliás, em praticamente todo o mundo). No Brasil isso parecia impossível, porque Guedes ainda não entregara o prometido zeramento do déficit primário e a vigência do teto de gastos implicava redução dos gastos públicos, não sua elevação. Ademais, as medidas exigidas pelas autoridades e órgãos internacionais de saúde batiam no muro do negacionismo presidencial, postura não surpreendente para um terraplanista que busca destruir um mundo onde a ciência tem valor central.

A despeito de todos os entraves, o ano de 2020 acabou sendo, do ponto de vista econômico, muito menos drástico do que se imaginava. Respondendo à enorme pressão social, o Congresso votou, ao final de março, o estado de calamidade e a PEC do orçamento de guerra, fazendo milagrosamente aparecer o dinheiro que não existia (quem naturaliza teoricamente a forma social dinheiro é que tem que explicar esse milagre). Assim, a pressão da sociedade civil ressoando no Poder Legislativo levou o governo de Bolsonaro, antes absolutamente arisco a qualquer medida dessa ordem, a implantar um dos mais robustos programas de auxílio emergencial do planeta.

Para se ter uma ideia, desde quando foi criado, em 2004, o Programa Bolsa Família (BF) desembolsou, em valores de hoje, cerca de R$ 450 bilhões, enquanto o Auxílio Emergencial (AE) vai somar R$ 300 bilhões.[4] Assim, por conta do AE, em apenas nove meses de um único ano se gastou com programas de renda compensatória dois terços de tudo que foi gasto em mais de 15 anos de Bolsa Família. Estudo do IPEA divulgado em agosto[5] mostra, ainda, que, para os domicílios de mais baixa renda, o AE elevou em 24% os rendimentos que eles teriam com as fontes habituais.

Os efeitos de tal massa monetária sobre uma população com múltiplas carências e enorme demanda reprimida não demoraram a se fazer sentir. Para algumas regiões do país em particular, foi possível com essa renda, como demonstram algumas pesquisas qualitativas, pensar até em “comprar um barraco”. Graças ao Auxílio Emergencial, a queda prevista para o PIB em 2020 não foi tão aguda quanto inicialmente se previa. Tendo chegado próximas a 8% negativos, e, para alguns, a 10%, as expectativas rondam hoje em torno de uma queda menor do que 5%.

Ainda será necessária muita pesquisa para afirmar que foi esse o fator determinante do aumento de popularidade de Bolsonaro nas pesquisas de opinião em meados do ano. É difícil, contudo, não levá-lo em consideração. A partir daí, o presidente passou a buscar, do jeito que fosse possível, uma forma de continuar a se beneficiar da popularidade conquistada via auxílio. Mas até agora, início de 2021, o imbroglio não foi resolvido (as alternativas até o momento sugeridas, não por acaso, saqueiam direitos e garantias que ainda restam: mexer nos recursos do FUNDEB, congelar o valor do salário mínimo, não reajustar aposentadorias etc.).

Tudo indica, portanto, que o advento da terceira destruição provocou uma desordem no bom andamento da combinação das duas outras destruições. Contudo, o desejo de Bolsonaro de ampliar os gastos do governo para dar continuidade ao robusto programa de transferência de renda monetária aos de baixo, mesmo isso implicando revogar, por exemplo, o teto de gastos, é só um dos aspectos da questão. Na realidade, o surgimento da pandemia porta potencial para provocar vários estragos nessa parceria até então mais ou menos “feliz”.

O combate ao vírus só é efetivo, como se sabe, se for coletivo, o que acaba por colocar em cena modos de agir, princípios e necessidades que se opõem aos valores entranhados tanto no conservadorismo cultural de traço fascista professado pelo presidente quanto no ultraliberalismo de seu ministro da Economia. Não se ganha tamanha batalha sem solidariedade, consciência coletiva, ciência presente e atuante, sistema público de saúde, Estado grande e forte.

Auxílio à parte, por obra maior da sociedade civil, cujos reclamos foram ouvidos pelo Congresso, o governo de Bolsonaro, exceção feita ao eleitoreiro interesse na prorrogação da medida emergencial, mobilizou o diabo para transformar a pandemia numa máquina de destruição muito mais letal do que normalmente já seria, pois tudo mais que deveria funcionar para minorar os terríveis impactos humanos não funcionou. O deboche renitente e criminoso do presidente, suas persistentes chacotas com relação às vacinas—elaboradas em tempo recorde, diga-se—, as campanhas oficiais em favor de tratamento precoce sem eficácia, a displicência e incompetência do ministro da Saúde na viabilização e logística da vacinação (o general não era especialista em logística?), o permanente descaso com as vítimas fatais, a mortandade obscena no Amazonas, por asfixia e sufocação, nestes primeiros idos de 2021, tudo isso fala por si, dispensando comentário.

Três destruições e o Estado demolido

Cabe, porém, dizer ainda alguma coisa sobre o encontro das três destruições, suas presumidas contradições e suas afinidades eletivas. A análise pode nos mostrar com mais clareza o que está por trás dos resultados funestos que observamos no Brasil. Vejamos inicialmente a relação entre as duas primeiras destruições.

A violência fundadora do sistema capitalista, consistindo na expropriação de trabalho não pago, precisa ser posta como lei para conseguir operar. O Estado como portador das garantias jurídicas é, portanto, fundamental. Ele põe na aparência a igualdade dos contratantes, para que a desigualdade essencial funcione. O mundo ideal do ultraliberalismo colocaria aí o ponto final da atuação do Estado. A impossibilidade de que esse ideal se concretize radica no fato de que o Estado, ao atuar dessa forma, encarna a comunidade ilusória pressuposta aos agentes que trocam. Assim, para que desempenhe bem o seu papel, o Estado precisa ser capaz de conferir a essa coletividade imaginária o seu momento de verdade, ou a ilusão se desnudará.

Essa “verdade”, fundamental à ilusão de comunidade, implica que o Estado possa, por um lado, corrigir minimamente as diferenças sociais, e, por outro, atuar como força de equilíbrio do sistema.[6] Os ultraliberais podem até concordar com a primeira dessas tarefas (a ideia de uma renda mínima aos mais pobres, só para lembrar, é de Milton Friedman, o famoso economista americano e um dos porta-vozes mais conhecidos do pensamento liberal radical), mas desde que sirva pra eximi-lo de quaisquer outras ações e instituições, deixando à provisão do mercado todos os elementos fundamentais à vida humana: saúde, educação, habitação, cultura, lazer, transporte, alimentação etc. Acresça-se ainda que, em tempos de sobreacumulação de capital como os que vivemos, “enxugar” o Estado (como candidamente se afirma) é absolutamente funcional, pois ajuda a encontrar novos ativos a partir dos quais o capital possa se valorizar.

Mas, para cumprir a segunda tarefa, ou seja, atuar como força de equilíbrio do sistema, o Estado não pode se restringir a transferir tostões às massas miseráveis perpetuamente produzidas. Ele tem que dispor de uma caixa de instrumentos muito mais apetrechada. Precisa de sistemas públicos de saúde e seguridade social, educação e cultura, pesquisa e tecnologia, ou seja, precisa de muitos respiros de não mercadoria (ou de “antivalor”, nas palavras do mestre Chico de Oliveira).

Precisa também fazer investimentos públicos, controlar a demanda efetiva e planejar a participação do país na divisão internacional do trabalho. Esse mundo de direitos e garantias, incluindo a segurança de que não haverá ondas devastadoras de desemprego, implica um sistema tributário robusto e saudável (leia-se, progressivo) e um enorme poder de intervenção do Estado, o que é absolutamente incompatível com o ideal de mundo do ultraliberalismo. É a partir daqui que vamos poder perceber que os dois primeiros projetos de destruição podem ser distintos em seu escopo, mas não estranhos um ao outro.

Ao longo das quatro últimas décadas, difundiu-se em todo o planeta, quase que em ritmo de fake news, uma ideologia devastadora: a de que a liberdade plena dos mercados e seu crescente domínio das atividades humanas constituiriam uma sorte de condição sine qua non do sistema democrático. E o colapso do mundo soviético no final da década de 1980, passando por triunfo do mundo capitalista, tornou ainda mais verossímil o engodo, favorecendo  o ambiente ideológico para sua difusão. Assim, dado o fundo autoritário do pensamento conservador, poderíamos ser levados a pensar que existiria certa incompatibilidade de berço entre o ultraliberalismo de Guedes e o despotismo (longe de esclarecido) de Bolsonaro. Mas as afinidades entre os dois conjuntos de crenças são maiores do que as incongruências propagandeadas pelo citado embuste global e neoliberal.

Se olharmos para trás, poderemos lembrar a exaltação que faz Ludwig von Mises, no final dos anos 1920, às virtudes de Mussolini, pelo resgate que providenciara o fascista italiano do princípio da propriedade privada;[7] ou a defesa levada a cabo por Hayek de um regime autoritário que suprimisse o sufrágio popular, se necessário para preservar a “liberdade”, ou, ainda, sua aprovação do governo sanguinário de Pinochet, a primeira experiência de destruição neoliberal da América Latina.

Olhando para frente, veremos que a referida conformidade não vai se restringir a elementos episódicos e vai ganhar um caráter sistemático.

Não são poucos os autores que vêm chamando a atenção para o sucesso da estratégia de longo prazo do neoliberalismo no plano ideológico. Lembro aqui de Wendy Brown, de Pierre Dardot e Christian Laval, e de Nancy Fraser,[8] entre tantos outros. O denominador comum é que a vitória dos princípios liberais e a criação do sujeito liberal, acima e aquém das classes, foram expulsando de cena os valores da cooperação, do comum, do coletivo, do solidário, do público.

Os valores antípodas sempre estiveram no comando da sociedade capitalista, é verdade, mas depois de quatro décadas de avalanche da razão liberal, a hegemonia sem concorrência beira o totalitarismo. O Estado talvez nem precise mais encarnar uma comunidade ilusória. Prevalece o entendimento liberal-individualista de progresso, que, década a década, veio descendo às camadas mais baixas, carreado pelo trabalho infatigável da grande mídia e sustentado pela precarização e informalidade crescentes, e, ultimamente, também pela chamada uberização da força de trabalho.

Não custa lembrar que também ajudou aqui a difusão do evangelho divino do neopentecostalismo, valorizando a manifestação da graça via prosperidade individual, perfeitamente congruente, pois, com o fundamentalismo secular e midiático do ultraliberalismo. Tudo somado, temos que o pleno domínio do mercado transformou-se, em vez de avalista, qual pregava o Evangelho Segundo São Hayek, no coveiro da democracia.

Quais as consequências disso para um território periférico como o nosso?

No Brasil, o assalto continuado da razão liberal levou de embrulho o apreço pela construção da Nação, da “comunidade imaginada” que sonhávamos (no dizer de Benedict Anderson) e, pior ainda, também as condições objetivas de fazê-lo. As três décadas consecutivas de persistentes aplicações das prescrições neoliberais, radicalizadas pelo golpe de 2016 e perpetuadas por Temer e Bolsonaro, resultaram não só no desmonte do Estado brasileiro, hoje em situação quase terminal, mas também na enorme redução da possibilidade de, mesmo sem dispormos de uma moeda forte, sermos menos dependentes, termos mais autonomia, participarmos do progresso tecnológico.

Para isso é preciso, de um lado, investimento público continuado em educação, ciência básica e pesquisa e, de outro, indústria, dois elementos em adiantado processo de decomposição. O conservadorismo e o autoritarismo do presidente e da trupe que comanda o país, com destaque para os militares, não fizeram mais do que intensificar e tornar mais letal a vocação ultraliberal de destruir o Estado. Não é por acaso que o nacionalismo bolsonarista, tacanho e caricato, porta a infame divisa: o Brasil acima de tudo! (E abaixo dos Estados Unidos trumpistas! Melhor dizendo, debaixo…).

Mas vamos encontrar aqui, no elemento Nação, um segundo fator a considerar nesta análise dos entrecruzamentos das três destruições, envolvendo agora a terceira delas, a pandemia. Como dito, o potencial para provocar estragos na parceria das duas primeiras destruições tomou forma objetiva no auxílio emergencial, que o governo de Bolsonaro foi obrigado a implantar (gerando um quiproquó até agora sem solução). Ressalvada a exceção, a gestão da pandemia pelo atual desgoverno exponencia o caráter naturalmente destrutivo de uma crise sanitária desse porte, mal se distinguindo de fato de gestão da morte. O negacionismo do capitão, além do desprezo pelos fracos, característico das posições fascistas, explica a catástrofe, mas não a passividade da sociedade, indicando que sua atitude genocida prosperou em terreno fértil.

De um lado, a experiência da morte violenta é contingência desde sempre presente no cotidiano dos segmentos populares no Brasil, repleto de brutalidade policial e violência criminal, por parte de traficantes e/ou milicianos. Quando Bolsonaro reage à pandemia com o discurso do “e daí?”, do “todo mundo morre um dia”, está ressoando a dura experiência presente no dia a dia de parte significativa da população, em regra pobre e negra.[9] De outro, tamanha aberração sofre permanente processo de normalização, o qual, além de atualmente estimulado pelo sucesso da pregação neoliberal, tem raízes profundas nas peculiaridades de nosso processo de formação.[10]

Os fundamentos constitutivos do país como nação, como se sabe, nunca foram muito firmes por aqui, a começar da longa escravidão que nos marca até hoje histórica e politicamente. A normalização das mortes é consequência da normalização da desigualdade social abissal e da normalização do racismo estrutural — tudo isso se combinando em favor da política genocida de Bolsonaro, ele mesmo racista etc. etc.

Em palestra de 1967, Adorno ponderou que a democracia, enquanto continuasse a trair suas promessas, permaneceria gerando ressentimentos e despertando anseios por soluções extrassistêmicas. O autoritarismo fascista não seria, pois, mal exógeno e sim mal latente da própria modernidade burguesa. Para o filósofo, o principal responsável por tal atributo era o irrefreável processo de concentração de capital, aumentando permanentemente a desigualdade, degradando camadas sociais antes mais ou menos bem postadas na hierarquia social capitalista.[11] Pensando na Alemanha do pós-guerra, sentenciou em palestra de 1959: “Considero a sobrevivência do nacional-socialismo dentro da democracia (o grifo é meu) potencialmente mais ameaçadora do que a sobrevivência das tendências fascistas contra a democracia”.[12]

Adorno não podia prever o levante neoliberal iniciado nos anos 1980, tampouco quão gritantemente verdadeiras se tornariam suas palavras. Ao potencial demolidor dos anseios democráticos inerente à acumulação de capital enfatizado pelo pensador alemão, o levante das elites, com o totalitarismo da razão e dos princípios liberais que daí resultou, agregou elemento ainda mais pernicioso, pois normalizou a iniquidade social, destronando os valores que sustentam a luta pela democracia. Resultado do processo de destruição de longo prazo do ultraliberalismo, não é de causar espanto que, num país como o Brasil, com a Nação inacabada e à deriva depois do golpe de 2016, ele se combinasse com o desgoverno conservador de um presidente de vocação fascista, e com a normalização da morte de pobres e pretos, há muito tempo construída, para produzir o cenário devastador que ora nos rodeia.

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Notas


[1] Me beneficio aqui de artigo escrito com Miguel A. P. Bruno, ainda inédito, “Developmentalist policies in financialized economies: contradicitions and impasses of the Brazilian case”. A metodologia de cálculo da taxa é de Miguel Bruno e Ricardo Caffé e os dados são de fontes oficiais: IBGE, IPEA.

[2] Me aproprio aqui, livremente, de termo difundido por Nancy Fraser e que alude à captura pelo capitalismo financeiro e cognitivo (conglomerados de tecnologia de informação e comunicação) das lutas progressistas de movimentos sociais como o feminismo, o antirracismo e os direitos LGBTQ.

[3]Em reunião no Council of the Americas em Nova York no final de setembro de 2016, um Temer já presidente admitiu, com todas as letras, que Dilma sofreu impeachment por não ter concordado com a aplicação do citado programa: https://exame.com/brasil/dilma-caiu-por-nao-apoiar-ponte-para-o-futuro-diz-temer/

[4] O valor total com o AE, incluindo-se a prorrogação de R$ 300,00 pagos de setembro a dezembro, vai chegar a R$ 322 bilhões, sendo que, desses, R$ 300 bilhões foram pagos em 2020, ficando restos a pagar de R$ 22 bilhões para 2021. Um outro montante de valor semelhante ao do AE foi gasto pelo governo com outros programas de auxílio, como a ajuda a estados e municípios e o benefício para a manutenção do emprego.

[5] Disponível em: https://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/conjuntura/200826_cc48_resultados_pnda_julho.pdf (acessado em 16 janeiro 2021)

[6] Nestas reflexões sobre o papel do Estado, baseio-me, até aqui, nas ponderações feitas por Ruy Fausto no ensaio quarto de seu Marx: Lógica & Política – volume II (São Paulo, Brasiliense, 1987).

[7]A informação está  no artigo sobre Hayek do livro de Perry Anderson, Afinidades Eletivas (São Paulo, Boitempo, 2002).

[8] Veja-se, por exemplo, A Nova Razão do Mundo, de Pierre Dardot e Christian Laval (São Paulo, Boitempo, 2016), Nas Ruínas do Neoliberalismo, de Wendy Brown (São Paulo, Editora Filosófica Politeia, 2019) e O velho está morrendo e o novo não pode nascer, de Nancy Fraser (São Paulo, Autonomia Literária, 2019).

[9] Até aqui, neste parágrafo, reproduzi considerações de artigo coletivamente construído, com André Singer, Christian Dunker, Cícero Araújo, Felipe Loureiro, Laura Carvalho, Ruy Braga, Silvio Almeida e Vladimir Safatle, e publicado na Ilustríssima (on line) da Folha de S. Paulo em 28/10/2020. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2020/10/forca-da-narrativa-de-bolsonaro-sobre-covid-19-indica-que-tormento-nao-vai-passar-tao-cedo.shtml?utm_source=whatsapp&utm_medium=social&utm_campaign=compwa

[10] Como sempre lembra Airton Paschoa, com carradas de razão, penso eu, a pandemia veio se juntar a nosso famigerado fatalismo…

[11] A transcrição na íntegra da palestra de Adorno de 1967 foi publicada em português do Brasil pela Editora Unesp sob o título Aspectos do Novo Radicalismo de Direita.

[12] A palestra de Adorno de 1959 é mencionada em artigo de Peter E. Gordon publicada no site A Terra é Redondahttps://aterraeredonda.com.br/adorno-e-o-neofascismo/

Publicado in A Terra É Redonda e Jornalistas Livres 

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Out20

Os intocáveis: MP e judiciário concentram as maiores remunerações do serviço público

Talis Andrade

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Poupados da reforma administrativa, juízes e promotores públicos gozam das maiores regalias salariais, com direito a auxílios, subsídios e privilégios
 
 
Por Marcelo Menna Barreto / Extra Classe
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Especialmente quatro castas estão sendo poupadas pela equipe econômica do governo Bolsonaro em sua proposta de Reforma Administrativa: magistrados, promotores públicos, militares e parlamentares. Entre elas, membros do Judiciário e do Ministério Público concentram as maiores regalias salariais.

A justificativa para não mexer no “vespeiro” é que o presidente da República não pode definir normas específicas para membros dos poderes Legislativo e Judiciário e que militares têm características diferenciadas e não podem ser equiparados ao conjunto do funcionalismo. Analistas, no entanto, discordam das justificativas.

Apenas um exemplo já expõe a contradição. Enquanto juízes, promotores e parlamentares estão entre os intocáveis, os servidores desses poderes serão atingidos junto com o restante do funcionalismo das três esferas da União (governo federal, estados e municípios).A reforma administrativa não trata especificamente da estrutura do MP e judiciário, aponta Carazza, do Ibmec

A reforma administrativa não trata especificamente da estrutura do MP e judiciário, aponta Carazza, do Ibmec. Foto: Leonor Calasans/IEA-USP

 

Para o professor do Ibmec, Bruno Carazza, o governo não quis comprar briga com os outros poderes. “A reforma administrativa não trata especificamente da estrutura de cada um desses poderes. Ela está tratando de um regime dos servidores de uma forma geral”, diz.

Da mesma forma, para Carazza, que é jurista e economista, não existe um argumento legal para que militares fiquem de fora da proposição de Bolsonaro. “A própria PEC apresenta dispositivos relativos aos militares ao falar de acúmulo de cargos”, aponta a incoerência.

Professor da Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas da Fundação Getúlio Vargas (Ebape/FGV), Luiz Alberto dos Santos entende que existem, sim, distorções no serviço público nacional. “Elas refletem a desigualdade que existe no Brasil e o governo não quer mexer nisso”.

Para Santos, “o governo pode e deveria regulamentar a questão do teto salarial dos servidores públicos, que é o de um ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), acabando com os subsídios, ‘penduricalhos’, que elevam significativamente os recebimentos de uma elite que penaliza os demais servidores”.

Assim, segundo ele, o máximo a ser recebido por um funcionário do Estado seria R$ 39,29 mil e não, como se vê muitas vezes contracheques de R$ 100 mil, R$ 200 mil para um juiz, por exemplo, fulmina.Para Santos, da FGV, distorções salariais no serviço público refletem a desigualdade do país: “governo não quer mexer nisso”

Para Santos, da FGV, distorções salariais no serviço público refletem a desigualdade do país: “governo não quer mexer nisso”

Dos 11 ministros do STF, só três recebem abaixo do teto

Folha do judiciário cresceu 94% em dez anos

Para se ter uma ideia do apontado pelo professor da FGV, enquanto dados do próprio governo federal registram que as despesas de pessoal com o serviço público entre 2009 e 2019 cresceram mais no Poder Judiciário (94,2%) e no Ministério Público (114%), no Executivo, o índice ficou em 75%.

A discrepância se torna mais visível quando a média de salário de um juiz de tribunal estadual (R$ 33,4 mil) é o equivalente ao que recebem doze auxiliares de enfermagem que estão na ponta do serviço público, atendendo a população mais carente.

Uma média de valores que, na ponta do lápis, ao incluir indenizações, encargos sociais, previdenciários, Imposto de Renda e despesas com viagens chega a R$ 52,4 mil. É mais do que a média dos tribunais superiores, onde a cifra é R$ 51 mil gastos por magistrado.

Os dados são do relatório Justiça em Números de 2019 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Os valores dispendidos com o STF não são apresentados, pois a corte não é submetida ao CNJ.

No entanto, o site do próprio STF mostra que em março somente os ministros nomeados mais recentemente para a suprema corte, Dias Toffoli, Luiz Fachin e Alexande de Moraes tiveram seus recebimentos brutos no teto constitucional. Os demais, receberam R$ 45.856,13.

Salários acima de R$ 100 mil

Médias à parte, após 2017, quando se tornou obrigatório o envio das folhas salariais de todos os tribunais abaixo do STF ao CNJ, um número chamou a atenção: até abril passado, mais de 8 mil juízes receberam acima de R$ 100 mil mensais ao menos uma vez desde então. Isso faz com que 55,7% das remunerações da magistratura ultrapasse o teto constitucional.

Outro dado oriundo das planilhas enviadas ao CNJ é que 95,79% dos magistrados já receberam ao menos um salário acima do máximo permitido.

Concretamente, foram realizados, ao todo, 13.595 pagamentos além dos R$ 100 mil – houve casos de magistrados que receberam em mais de uma ocasião. No mesmo período, 507 juízes tiveram vencimentos acima de R$ 200 mil, pagos 565 vezes.

Em um universo de 18.091 togados em atividade, integrando as cortes brasileiras, o número é significativo. A explicação para esses supersalários está na concessão de verbas indenizatórias, vantagens eventuais e auxílios. O acúmulo de funções, como a cobertura de férias de um colega, também eleva a remuneração.

Mais uma vez, a distorção está mais concentrada na Justiça dos estados, onde, muitas vezes, benefícios e auxílios são criados pelos próprios tribunais ou em negociações políticas entre com os poderes locais.

Regalias para promotores e juízes estaduais

A mesma lógica em que se encontram os membros do judiciário se reproduz entre procuradores da República, integrantes do Ministério Público Federal (MPF) e promotores públicos, nos estados.

Por equivalência, procuradores e promotores recebem as gratificações, remunerações temporárias, verbas retroativas, vantagens, abonos de permanência e benefícios concedidos pelos próprios órgãos e autorizados pela Lei Orgânica da Magistratura, a Loman.

Assim, os 12.915 integrantes do Ministério Público brasileiro, tanto na União, quanto nos estados, certamente recebem bem mais do que a última média verificada, de R$ 37 mil.

Da mesma forma, na magistratura dos estados se verificam as maiores discrepâncias. Um exemplo: em 2016, o auxílio-alimentação para promotores do Maranhão chegou a R$ 3.047 mensais. Em 2018, outro escândalo no estado envolvendo o mesmo benefício, só que para a magistratura: o corregedor nacional de Justiça, Humberto Martins, liberou o Tribunal de Justiça do Maranhão para pagar até R$ 3.546 por mês aos juízes estaduais a título de auxílio-alimentação.

Outro exemplo se verificou em Minas Gerais, quando viralizou a reclamação do procurador Leonardo Azeredo daquele estado, chamando de “miserê” seu salário de R$ 24 mil. Na realidade, com todas suas vantagens, Azeredo ganhou, em média, R$ 60 mil líquidos por mês em 2019. As informações são do Portal da Transparência do Ministério Público de Minas Gerais.

Em 2018, o corregedor de Justiça, Humberto Martins, liberou o TJ para pagar até R$ 3,5 mil de auxílio alimentação para juízes estaduais

Em 2018, o corregedor de Justiça, Humberto Martins, liberou o TJ para pagar até R$ 3,5 mil de auxílio alimentação para juízes estaduais. Foto: José Cruz/ Agência Brasil

 

Estabilidade, prestígio, subsídios e salários de executivos

O resumo da história é que membros do Judiciário e do Ministério Público nacional, além de sua estabilidade, poder e prestígio social, recebem remunerações equivalentes aos de executivos da iniciativa privada.

Aos seus salários, chamados de subsídios básicos, no entanto, soma-se um pacote de benefícios que não são tributados em seu Imposto de Renda e praticamente são impensáveis para a maioria das empresas privadas.

Eles usufruem de dois meses de férias anuais, além de um recesso de 14 a 30 dias; não são obrigados a um horário fixo, ganham auxílios para alimentação, transporte, plano de saúde, verbas para livros e computadores, dispensa remunerada para cursos no Brasil e exterior e ajuda até para pagar a escola particular de seus filhos.

Tudo isso faz com que o famoso auxílio-moradia de quase R$ 5 mil, mantido quatro anos por uma liminar do atual presidente do STF, Luiz Fux, seja uma gota no oceano que se encerrou em 2018 com um reajuste concedido nos subsídios pelo governo Temer.O procurador Azeredo de MG, que reclamou em uma rede social do salário “miserê”. Em 2019, ele embolsou em média R$ 60 mil líquidos por mês

O procurador Azeredo de MG, que reclamou em uma rede social do salário “miserê”. Em 2019, ele embolsou em média R$ 60 mil líquidos por mêsOs vencimentos do procurador Leonardo Azeredo em 2019, segundo o MPMG

Os vencimentos do procurador Leonardo Azeredo em 2019, segundo o MPMG

Fonte: MPMG
04
Set20

Reforma administrativa não atinge militares, juízes, promotores e parlamentares: servidores comuns pagarão a conta

Talis Andrade

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A reforma administrativa não atinge quem investiga, fiscaliza, multa, prende e condena. Não é cousa para mexer na casa-grande. A reforma administrativa é para quem trabalha, para quem sobrevive na senzala. 

A proposta enviada pelo governo de Jair Bolsonaro ao Congresso nesta quinta-feira (3), não abrange parlamentares, magistrados e promotores. Restará aos servidores comuns pagarem a conta. De acordo com o governo, esses são membros de poderes e têm regras diferentes dos servidores comuns. A reforma também não valerá para militares, que também seguem normas distintas. A informação é o portal G1. 

"No Judiciário, os membros do poder são os que integram a magistratura, juízes, desembargadores, ministros dos tribunais superiores. No Ministério Público, são os promotores, procuradores. No Legislativo, são os parlamentares. Esses são membros do poder que são regidos por estatuto próprio. O que estamos apresentado na PEC é o que é aplicado a servidores dos poderes executivos, legislativos, judiciário da União, estados e municípios", afirmou o secretário-adjunto de Desburocratização do Ministério da Economia, Gleisson Rubin.

A reportagem também informa que a reforma administrativa foi enviada ao Congresso em forma da proposta de emenda à Constituição (PEC). Para virar lei de fato, precisará ser aprovada em dois turnos de votação na Câmara e no Senado.

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03
Set20

Como o serviço público reproduz a desigualdade no Brasil

Talis Andrade

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Olhar detalhado sobre o funcionalismo público, que emprega 11,4 milhões de pessoas, revela um universo tão discrepante como o próprio país. Padrão salarial desigual aparece entre os níveis da federação e os três poderes

 

por Bruno Lupion/ DW

O governo federal apresentou ao Congresso nesta quinta-feira (03/09) sua proposta de reforma administrativa, com novas regras para contratar, remunerar e promover servidores públicos. Nesse debate, uma posição aparece com frequência: a de que servidores no Brasil ganham demais e têm privilégios.

O argumento já foi usado pelo próprio ministro da Economia, Paulo Guedes. Em fevereiro, durante uma palestra, ele comparou os servidores a "parasitas" que se aproveitavam do Estado, o "hospedeiro". Após a reação de funcionários públicos, ele pediu desculpas e disse que havia se expressado mal.

É verdade que há servidores, como alguns juízes e membros do Ministério Público, que conseguem ter holerites de mais de R$ 100 mil por mês, acima do teto constitucional. E que, em média, um servidor do governo federal ganha bem mais do que um trabalhador semelhante na iniciativa privada.

Mas um olhar detalhado sobre o funcionalismo público, que emprega 11,4 milhões de pessoas, revela um universo tão discrepante como o próprio Brasil — um dos países mais desiguais do mundo.

Uma maneira de medir essa desigualdade é comparar o salário médio dos servidores de cada um dos três poderes. O holerite médio de um servidor do Executivo é de R$ 3,9 mil, equivalente a 65% do salário médio de R$ 6 mil de um funcionário do Legislativo, que por sua vez é metade do salário médio de R$ 12 mil de um servidor do Judiciário.

O desequilíbrio também se expressa entre os níveis da federação: servidores municipais têm salário médio de R$ 2,9 mil, 57% do holerite de R$ 5 mil de um servidor estadual, que por sua vez equivale a 55% do salário médio de R$ 9,2 mil de um servidor federal.

Os dados são de 2017 e foram organizados pelo Atlas do Estado Brasileiro, feito pelo Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada).

Também há desigualdade entre gêneros, com mulheres ocupando postos de menor salário que os homens. E desigualdades dentro de um mesmo órgão, com servidores com o mesmo tempo de casa e desempenhando funções semelhantes ganhando salários diferentes, devido a falhas no desenho e gestão das carreiras.

"O Estado representa a sociedade, e em qualquer lugar do mundo é difícil ter uma administração pública distinta da sociedade", afirma à DW Brasil a professora Gabriela Lotta, coordenadora do Núcleo de Estudos da Burocracia da FGV.

O tamanho de cada faixa salarial

No Executivo, por exemplo, 48% dos funcionários públicos ganham até R$ 2,5 mil por mês, enquanto no Judiciário 4,2% recebem mais de R$ 30 mil. No nível municipal, 61% dos servidores estão na faixa salarial de até R$ 2,5 mil.

Em 2017, mulheres tinham uma remuneração em média 14% menor do que os homens no Executivo federal civil e no Legislativo, e 7% menor no Judiciário.

Nas funções de confiança do governo federal, conhecidas pela sigla DAS, mulheres ocupavam naquele ano apenas 16,7% dos cargos de nível mais alto, os DAS-6, e 24% do segundo nível mais alto, o DAS-5.

"As mulheres estão no executivo municipal, trabalhando com saúde e educação, onde se ganha menos. E os homens no Judiciário e no Legislativo federal. Há várias camadas da desigualdade", diz Lotta.

Felix Lopez, pesquisador do Ipea e coordenador do Atlas do Estado Brasileiro, afirma que a disparidade salarial entre os dois gêneros se manteve praticamente estável de 1986 a 2018 no funcionalismo.

Motivos da desigualdade

O padrão salarial discrepante entre os níveis da federação e os três poderes é resultado de fatores históricos e econômicos, além da influência política de cada categoria para conquistar aumentos.

Getúlio Vargas, que presidiu o Brasil por 18 anos entre as décadas de 1930 a 1950, foi quem decidiu criar ilhas de excelência no serviço público federal, contratando pessoas com altos salários, um modelo que se mantém até hoje, segundo Lotta. "Há uma tendência de a burocracia de querer se reproduzir, como um ciclo que se autoalimenta", diz.

Decisões políticas mais recentes reforçaram esse quadro. No primeiro governo de Luiz Inácio Lula da Silva, decidiu-se estruturar um quadro de gestores públicos muito qualificados. A remuneração dessa categoria foi elevada de, em média, R$ 4 mil, para quase R$ 20 mil, e novos concursos abertos para prover os cargos.

"Temos cerca de mil gestores nessa categoria, que são ótimos, mas são só mil. Não se resolvem os problemas criando uma ou duas categorias sem pensar num sistema mais geral para melhorar a burocracia. Não adianta ter metade dos servidores ganhando muito mal e meia dúzia de iluminados. Não vão conseguir mudar", afirma.

A capacidade financeira de cada ente federativo também importa. Na divisão dos tributos arrecadados em todo o país, a máquina federal fica com a maior parte, o que permite a ela pagar salários mais altos. Já os municípios têm menos recursos para se manter e pagar servidores.

Como resultado, há carreiras semelhantes com salários díspares. Um gestor público do governo de São Paulo recebe em torno de R$ 6 mil, enquanto um gestor público do governo federal pode ganhar mais de R$ 25 mil, diz Lotta.

Apesar de pagar os piores salários, foi nos municípios que houve a maior expansão da burocracia nos últimos anos, "principalmente para expandir os serviços de educação, saúde e assistência social e prover direitos previstos na Constituição", afirma Lopez, do Ipea.

Entre os poderes, o Judiciário é o que teve os maiores ganhos nos últimos 30 anos. Em 1992, a remuneração média de um servidor da Justiça era apenas 5% superior à de um funcionário do Executivo. Em 2017, era o dobro.

"O Judiciário é composto por um grupo social com muito poder, uma elite financeira, intelectual e política, que consegue mais espaço para barganhar e reivindicar. Na disputa para aumentar seus salários, quem tem poder ganha", afirma Lotta. Às vezes usando estratégias "problemáticas", como o pagamento de auxílio moradia para quem já tem casa própria, complementa a pesquisadora da FGV.

"Somos uma sociedade que aceita muito a desigualdade, e o problema é que se naturalizam essas diferenças como se fossem devido a mérito, o que é falacioso”, afirma.

Já a desigualdade de gênero e racial no serviço público está ligada ao modelo de seleção, diz a professora da FGV. Concursos baseados somente no mérito são um "processo desigual de acesso", diz.

"É a mesma lógica do vestibular. As pessoas carregam desigualdades prévias, a menos que haja políticas afirmativas", afirma, lembrando que houve esforços recentes para adotar cotas em concursos.

A diferença salarial entre os servidores públicos e os funcionários da iniciativa privada, já levando em conta fatores como educação, gênero, local e função, também varia entre os entes da federação, segundo cálculo do Banco Mundial.

Para os servidores municipais, não há praticamente nenhuma diferença salarial em relação aos trabalhadores da iniciativa privada. Já os servidores estaduais ganham em média 36% a mais do que os funcionários de empresas privadas, enquanto os servidores federais têm um prêmio salarial de 96%.

Em média, o servidor brasileiro ganha 19% a mais que um trabalhador da iniciativa privada, diferença abaixo da média de 53 países pesquisados pelo Banco Mundial.

Reformas para melhorar a distribuição

Uma proposta de fácil execução para reduzir a desigualdade entre os servidores seria aplicar o teto constitucional a todos eles, que é a remuneração dos ministros do Supremo Tribunal Federal, hoje em R$ 39,2 mil. A regra está prevista na Constituição, mas ainda não foi regulamentada.

"Seria uma medida simples e bastante saneadora. Transformaria como se vê a remuneração do setor público", diz Lopez.

Daniel Ortega, especialista em setor público do Banco Mundial e autor do estudo da instituição sobre o Brasil, considera importante também reduzir o número de carreiras na burocracia — apenas no governo federal, são mais de 300 variações, o que prejudica a gestão de recursos humanos e a equivalência salarial entre pessoas que executam trabalho semelhante.

Ele também propõe reduzir os salários iniciais de entrada no serviço público federal, para permitir que a progressão na carreira ocorra de forma mais lenta e premie os que apresentarem melhor desempenho. E dar atenção às diferenças salariais entre diferentes níveis federal, estadual e municipal.

"É importante ter cuidado com as caracterizações. Essa é uma reforma fundamental que teria impacto não só fiscal, mas, se for bem feita, também na qualidade do serviço público", diz.

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31
Ago20

Guedes, o incrível contador de histórias

Talis Andrade

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Ontem, na Folha, um grupo de 8 acadêmicos se juntou para uma antologia dos maiores “causos” de Guedes. Apenas um poderia ter compilado seus feitos

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