Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

O CORRESPONDENTE

Os melhores textos dos jornalistas livres do Brasil. As melhores charges. Compartilhe

Os melhores textos dos jornalistas livres do Brasil. As melhores charges. Compartilhe

O CORRESPONDENTE

30
Nov22

Riocentro 1981 é aqui e agora: legado de Jair Bolsonaro é o retorno dos atentados terroristas

Talis Andrade

bolsonaro-riocentro-terrorismo-extrema-direita

Atentado no Riocentro durante a ditadura militar, em 30 de abril 1981.

 

 

 

 

Uma extrema direita de intricadas conexões com o aparato estatal de segurança pública volta a promover ataques como não se via há quase 40 anos

 

 
 

MADRUGADA DE SEGUNDA-FEIRA, 28 de novembro: quatro tiros de calibre 38 são disparados contra as portas de um bar – àquela altura fechado – na Asa Norte, Plano Piloto de Brasília. Alguns dias antes, o nome da Casa MimoBar figurou em uma lista de estabelecimentos a serem boicotados por “patriotas” na capital.

Outro estabelecimento brasiliense, um café chamado Objeto Encontrado, vem sofrendo ataques de vandalismo sistemáticos após o segundo turno das eleições. Suas portas passaram a amanhecer cobertas de fezes humanas – o carro de uma funcionária também foi emporcalhado. Na madrugada de domingo, dia 27, câmeras instaladas após a onda de ataques flagraram um homem urinando na porta do café, fechado naquele momento. Uma escolha não usual, uma vez que a área que circunda o local é toda gramada e arborizada – e menos iluminada.

Em comum, os dois bares têm, além da presença na lista dos patriotas, um público majoritariamente progressista e LGBTQIA+ – e a vizinhança de blocos residenciais habitados por oficiais da ativa e da reserva do Exército.

Em 1º de novembro, véspera dos primeiros protestos golpistas de inconformados com a vitória eleitoral de Luiz Inácio Lula da Silva e Geraldo Alckmin, tiros atingiram um escritório do Partido dos Trabalhadores em Pontal do Paraná, litoral do estado. Como nos casos em Brasília, escolheu-se um horário em que não havia ninguém no local: a ideia era – ao menos por ora – assustar. Meter medo. Intimidar.

São três entre tantos casos registrados nos últimos dias que trazem à lembrança um modus operandi que o Brasil não via desde a virada de 1979 para 1980. Naquela época, os alvos eram bancas que vendiam jornais alternativos que denunciavam a já então moribunda ditadura militar. Os ataques ocorriam quase sempre de madrugada: usando bombas ou simplesmente ateando fogo, os terroristas passavam o recado de que os jornaleiros não deveriam “colaborar com o comunismo” (soa familiar?). Só em São Paulo, a ditadura atacou 30 bancas naquele período. E houve ataques por todo o país e também a locais como escolas de samba, sindicatos, teatros, livrarias.

Naquele início dos anos 1980, os atentados eram obra de militares da linha dura inconformados com a abertura “lenta, gradual e segura” admitida por Ernesto Geisel e Golbery do Couto e Silva. Ocorriam sob o olhar complacente das polícias estaduais – que, o mundo descobriria anos depois, eram cúmplices de torturas e assassinatos nos porões da ditadura. E culminaram, em 30 de abril 1981, no atentado no Riocentro. O Exército (com auxílio da polícia fluminense) criou uma farsa para causar terror entre os quase 10 mil presentes em um show que comemorava o dia do trabalhador: buscava-se colocar a culpa em movimentos de esquerda e justificar uma nova guinada autoritária.

Mas a bomba explodiu antes da hora no colo de um sargento, estripou o capitão sentado ao lado dele no carro estacionado no Riocentro e expôs também a canalhice que se armara. Após o episódio, o governo do último ditador militar, João Baptista Figueiredo (avô de um patético comentarista da rádio Jovem Pan), tombou para nunca mais se levantar. Os terroristas de extrema direita, por prudência, acharam melhor se retirar para a sarjeta mais próxima.

Banca de jornal da rua Joaquim Floriano destruída por um incêndio na madrugada. A banca foi alvo de um atentado a bomba menos de um mês após sua arrendatária, Maria Teresa de Paula Lou, ter recebido um panfleto apócrifo com ameaças por vender publicações da imprensa "alternativa" e "comunista". No contexto de abertura política, atentados foram realizados por todo país por radicais.

Em 1980, os terroristas de extrema direita queimavam bancas de jornal, como esta em São Paulo. Agora, chutam repórteres. Foto: Folhapress

 

Ao menos desde 2018 (quando uma caravana liderada por Lula foi alvejada a tiros em Laranjeiras do Sul, no Paraná, num caso que a polícia e o Ministério Público locais jamais se deram ao trabalho de esclarecer), a tigrada tem se sentido à vontade para voltar a dar as caras. Novamente, trata-se de inconformados com a derrota – desta vez, nas urnas – de um governo militar, truculento e obcecado por pintar seus adversários como “comunistas”, como se isso legitimasse qualquer que seja a estratégia usada para derrotá-los.

Não há, até o momento, indícios, informações ou testemunhas que liguem o aparato estatal – ou militares da reserva – a ataques como os relatados na abertura deste texto. Por outro lado, estamos, em 2022, mergulhados num caldeirão muito mais complexo que o de 1980. Basta pensar no papel das redes sociais e dos fóruns hospedados na deep web – os chans – em um outro ato de terrorismo de extrema direita, que matou quatro pessoas e feriu 12, cometido por um jovem nazista na semana passada em Aracruz, Espírito Santo.

Isso não significa, entretanto, que se deva eximir de culpa autoridades que até agora foram – no mínimo – lenientes com os atos golpistas. Nem é o caso de falarmos de Jair Bolsonaro: como dizia o Barão de Itararé, de onde menos se espera é que não vem nada mesmo. Mas olhemos para quem tem a si mesmo na conta de gente séria: o caricatural ministro da Defesa e general do Exército Paulo Sérgio Nogueira de Oliveira e os comandantes das Forças Armadas – Marco Antônio Freire Gomes, do Exército; Almir Garnier Santos, da Marinha; e Carlos de Almeida Baptista Junior, da Aeronáutica.

Paulo Sérgio, o ministro, topou ser o Sargento Pincel de Bolsonaro na esquete de humor chinfrim montada pelos fardados para dar ao presidente e “mau militar” – palavras de Ernesto Geisel – a chance de não reconhecer uma derrota eleitoral legítima. Freire Gomes, Garnier e Baptista Junior não se saíram melhor: publicaram uma carta em que arvoram para as forças que comandam o papel de “moderadoras nos mais importantes momentos de nossa história”. É até possível ser mais golpista que isso. Mas não é fácil.

Ao mesmo tempo que requerem para si um papel que a Constituição que juram defender não prevê, os três chefes militares – notadamente Freire Gomes – assistem bovinamente ao desfile de golpismo diante de seus gabinetes. Em Brasília, o comandante do Exército beberica cafezinhos tendo entre si e o pôr do sol faixas que pedem a dissolução do Supremo Tribunal Federal e do Tribunal Superior Eleitoral e desafiam a posse de Lula (“não sobe a rampa”). Na lorota contada pelos militares, é apenas uma “manifestação pacífica e crítica aos poderes constitucionais e à atividade jornalística”. Falando em jornalistas, houve mais de 60 ataques contra profissionais da imprensa nos atos golpistas. Em 1980, queimavam bancas. Agora, chutam repórteres.

 

            Estamos num caldeirão muito mais complexo que o de 1980 – basta pensar no papel das redes e dos chans
 
 

Fico curioso ao imaginar qual seria a reação de Freire Gomes e seus pares caso algum gaiato resolvesse montar acampamento na Praça dos Cristais, em frente ao Quartel General, com faixas berrando pedidos pela dissolução imediata do Alto Comando do Exército. Ou, mais modestamente, pela prisão do general da reserva Eduardo Pazuello pelo trágico comando do Ministério da Saúde durante o auge da pandemia de covid-19. Não creio que haveria tempo para estrear a barraca.

Por que, então, a complacência com gente que transformou o Setor Militar Urbano de Brasília num imenso lamaçal coalhado de barracas e centenas de carros, camionetes e caminhões semi-atolados, como num delírio febril de um festival de Woodstock em que a Banda dos Corações Golpistas do Clube Militar é headliner e as drogas bateram muito, mas muito mal? Não consigo pensar num único motivo que tenha a boa fé e o cumprimento estrito dos deveres militares como ingredientes.

Vem mais por aí: falta pouco mais de um mês para a posse de Lula e Alckmin. É razoável supor que a militância petista, habitualmente numerosa e organizada, irá se deslocar maciçamente a Brasília – fala-se em 150 mil pessoas, multidão semelhante à presente no ato golpista de 7 de setembro de 2021. Muitos virão de ônibus, em caravanas que partirão de quase todos os cantos do país. E precisarão atravessar estradas que, até há pouco, estavam bloqueadas por manifestantes golpistas acobertados pela Polícia Rodoviária Federal.

A PRF, aliás, já mandou avisar seu estafe que irá faltar dinheiro para a manutenção de viaturas. No governo de transição, a história foi lida como uma desculpa para que a corporação liderada pelo bolsonarista declarado Silvinei Vasques – investigado por prevaricação e violência eleitoral e réu em processo por improbidade administrativa – possa fazer corpo mole nos dias que antecedem a passagem da faixa presidencial. A equipe de Lula detectou que também falta dinheiro para pagar as diárias de policiais federais que, em eventos como a posse presidencial, são deslocados para atuar em Brasília. Na PF, não há grana sequer para a emissão de passaportes.

Pelo que se viu até agora, é razoável imaginar que o Exército seguirá a não fazer nada para retirar da porta de suas instalações a turba sequiosa por um golpe de estado e uma ditadura. É provável que vários entre eles estejam armados. Ainda que venham a ser impedidos, como prometem as autoridades, de chegar à Esplanada dos Ministérios em 1o de janeiro, nada garante que não estarão no caminho dos lulistas que rumam a Brasília – seja já na capital ou em estradas pelo país. E aí, quem irá intervir? A PRF, de Silvinei Vasques? Ou as polícias militares, boa parte delas comandadas por gente como o infame Hudson Leôncio Teixeira, que admitiu no Paraná que prevaricou em favor dos golpistas?

O último legado do governo de Jair Bolsonaro e seus cafajestes é a volta ao Brasil de um terrorismo da extrema direita de intricadas e insondáveis conexões com o aparato estatal de segurança pública.

Que estejamos atentos para prevenir o novo Riocentro.

30
Out22

GENTE LICENCIADO DA ABIN QUE ASSESSORA TARCÍSIO DE FREITAS MANDOU APAGAR VÍDEO DE TIROTEIO

Talis Andrade

tarcisio-de-freitas-abin-agente-paraisopolis-print

À esquerda, o agente licenciado da Abin Fabrício Cardoso de Paiva, assessor da campanha a governador de Tarcísio, à direita.

 

 

Fabrício Cardoso de Paiva é assessor da campanha do ex-ministro general em São Paulo e teve cargo de nomeação política no governo Bolsonaro

 

FABRÍCIO CARDOSO DE PAIVA, um agente licenciado da Agência Brasileira de Inteligência, a Abin, foi quem mandou um cinegrafista apagar as imagens de um tiroteio em Paraisópolis, favela na zona oeste de São Paulo, na semana passada. Paiva é atualmente assessor da campanha a governador do ex-ministro Tarcísio Gomes de Freitas, do Republicanos. Ele também ocupou cargo de nomeação política, a convite de Tarcísio, no Ministério da Infraestrutura desde o início do governo Bolsonaro.

A identificação foi confirmada ao Intercept por uma fonte que trabalha no governo. A voz de Paiva também foi reconhecida por ex-colegas de trabalho. As fontes terão os nomes mantidos em sigilo para evitar retaliações. A Abin, respondendo a perguntas que enviamos, “esclarece que apenas um servidor da agência, que no momento está de licença não remunerada para tratar de interesses particulares, acompanha o candidato Tarcísio de Freitas na campanha eleitoral”. Trata-se, justamente, de Paiva.

A existência do áudio foi revelada em uma reportagem da Folha na última terça-feira, 25 de outubro. Na gravação, é possível ouvir Paiva dizendo ao cinegrafista da TV Jovem Pan, que é alinhada ao bolsonarismo: “Você tem que apagar”.

No currículo apresentado ao Ministério da Infraestrutura, Paiva informa ter se formado na Academia Militar das Agulhas Negras, a Aman, e atuado como oficial de artilharia do Exército entre 1996 e 2009, ano em que se tornou servidor na Abin. Em junho de 2019, foi nomeado gerente de projetos da Subsecretaria de Governança e Integridade do Ministério da Infraestrutura por Tarcísio.

Em dezembro de 2021, Paiva foi agraciado com a Medalha do Mérito Mauá, entregue pelo governo federal como “reconhecimento à contribuição ao desenvolvimento e progresso do setor de transportes”. A escolha, feita pelo próprio Tarcísio, foi chancelada por Bolsonaro.

 

‘Você filmou os policiais atirando?’

O agente licenciado da Abin Fabrício Cardoso de Paiva (à esquerda) mandou cinegrafista apagar imagens do tiroteio. Ele é assessor de Tarcísio de Freitas (centro).

O agente licenciado da Abin Fabrício Cardoso de Paiva (à esquerda) mandou cinegrafista apagar imagens do tiroteio. Ele é assessor de Tarcísio de Freitas (centro).

 
 

A Folha noticiou ontem que um integrante da campanha de Tarcísio mandou o cinegrafista da Jovem Pan apagar as imagens do tiroteio que terminou com um suspeito morto e interrompeu uma atividade de campanha do candidato bolsonarista em Paraisópolis no último dia 17.

Segundo o jornal, o assessor de Tarcísio – que é Fabrício de Paiva – perguntou ao cinegrafista: “Você filmou os policiais atirando?”. “Não, trocando tiro efetivamente, não. Tenho tiro da PM para cima dos caras”, respondeu o profissional. “Você tem que apagar”, ordenou Paiva.

As circunstâncias da troca de tiros e os autores dos disparos não foram esclarecidas até o momento. Logo após o ocorrido, as campanhas de Tarcísio e Bolsonaro tentaram vender a narrativa de que os tiros haviam sido um atentado contra o candidato a governador. Depois, voltaram atrás.

Em entrevista horas após o caso, o secretário de Segurança Pública de São Paulo, João Camilo Pires, afirmou ser “prematuro falar que ocorreu um atentado”, mas que “nenhuma hipótese seria descartada” nas investigações. Pires é um general de quatro estrelas da reserva do Exército. Ele se formou na Aman em 1976. Como Paiva e Bolsonaro, também escolheu a artilharia.

Três colegas de turma de Pires – os generais de quatro estrelas Fernando Azevedo e Silva, Manoel Luiz Narvaz Pafiadache e Guilherme Cals Teophilo Oliveira – tiveram cargos de nomeação política no governo Bolsonaro. O grupo, inclusive Pires, fazia parte do Alto-Comando do Exército, que foi consultado sobre o tuíte do general Eduardo Villas Bôas que ameaçou o Supremo Tribunal Federal antes da votação de um habeas corpus que permitiria a Luiz Inácio Lula da Silva disputar as eleições de 2018.

Por fim, presidente Bolsonaro se formou na Aman em 1977 – ele e Pires foram, portanto, contemporâneos na academia. As relações criadas nos tempos da Aman costumam acompanhar os oficiais do Exército ao longo da vida.

Procurada para comentar o caso, a Abin confirmou que um servidor dela, licenciado, participa da campanha de Tarcísio. “O trabalho atual deste servidor não é desempenhado em nome da agência, a qual não tem qualquer ingerência sobre a segurança da campanha do candidato. A Abin reitera que não há nenhum servidor em exercício na Agência exercendo a função de segurança de candidatos a governos estaduais”, afirmou.

A agência disse, ainda, que “o policial citado nas reportagens [da Folha] sobre o caso de Paraisópolis, apontado como autor dos disparos, não faz parte do quadro de pessoal”. A Abin é subordinada ao Gabinete de Segurança Institucional, comandada pelo general da reserva Augusto Heleno, um dos mais radicais militares de pijama que servem ao bolsonarismo.

Também procuramos a campanha de Tarcísio, que em nota disse que “as contratações [de assessores] foram feitas por escolha da campanha, que tem a premissa de selecionar todos os prestadores de serviço desde que sejam seguidos todos os ritos estabelecidos pela lei eleitoral, bem como a devida prestação de contas ao TSE [Tribunal Superior Eleitoral]”. “O servidor da Abin que acompanha Tarcísio está em licença não remunerada, portanto, não exerce nenhuma atividade em nome da agência”, acrescentou a nota.

A campanha afirmou ainda que o pedido de apagamento das imagens foi feito “para não expor as pessoas que estavam lá” no local do tiroteio e que ele “foi feito em frente a todos que lá estavam, incluindo jornalistas de outras emissoras”. “Diversos representantes da imprensa que estavam presentes fizeram imagens da situação ocorrida e as colocaram no ar. Nunca houve nenhum impedimento por parte da campanha em relação a isso. Qualquer afirmação que questione isso é uma mentira”, argumentou a campanha de Tarcísio.

Pedimos à campanha um contato para ouvirmos Fabrício Cardoso de Paiva, mas não fomos atendidos. O espaço está aberto para a manifestação dele.

 

27
Mai22

AQUI ESTÃO OS NOMES DOS AGENTES DA PRF QUE ADMITEM TER DETIDO GENIVALDO, ASFIXIADO EM VIATURA

Talis Andrade

 

Clenilson, Paulo, Adeilton, William e Kleber assinam o boletim de ocorrência em que a morte de Genivaldo de Jesus Santos é tratada como ‘fatalidade desvinculada da ação policial’ 

 

02
Nov21

‘NÃO TEM CORRUPÇÃO’: COMO A LAVA JATO (AINDA) AJUDA NA POPULARIDADE DE BOLSONARO

Talis Andrade

-Ricardo-Welbert-sobre-o-juiz-Sérgio-Moro-ter-ac

 

 

A operação cimentou a ideia que tudo mais é aceitável se não houver corrupção. Bolsonaro segue usando a máxima para manter fiel esse eleitor de visão estreita

 

“DOIS ANOS E MEIO sem acusação de corrupção é uma coisa fantástica”, mentiu Jair Bolsonaro, dias atrás, se referindo ao próprio governo. Expor mais uma mentira do presidente não é o objetivo deste texto (mas, se você quiser, basta clicar aquiaqui ou aqui). O que pretendo é chamar a atenção para o que está oculto na fala: tudo mais é aceitável se não houver desvio de dinheiro público. E que tal percepção sustenta os índices de aprovação –  altos, em face de tudo o que assistimos diariamente – do governo Bolsonaro.

Acha que estou exagerando?

Está saindo do forno uma pesquisa qualitativa com eleitores de Jair Bolsonaro de seis capitais das cinco regiões do país. É o maior levantamento do tipo já realizado. O que os pesquisadores buscaram descobrir é que razões esses eleitores exibem para manter o apoio ao presidente apesar das mais de 600 mil mortes por covid-19, do desrespeito à dor dos familiares, da destruição da Amazônia e do patrimônio cultural brasileiro.

Uma das conclusões: a percepção de que, apesar de tudo, ele não é corrupto. “O que ouvimos [dos pesquisados] é que, se Bolsonaro for envolvido diretamente em caso de corrupção, seu apoio desmorona”, me disse o professor João Feres Júnior, um dos autores da pesquisa produzida pelo Laboratório de Estudos da Mídia e Esfera Pública da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, a Uerj, em parceria com o Instituto para Reforma das Relações entre Estado e Empresa. Mesmo as lambanças de Flávio, o 01, em parceria com o primeiro-amigo Fabrício Queiroz, não afetam a fé em Bolsonaro. O pai não é culpado pelos pecados do filho, ouviram os pesquisadores.

Feres não é o único pesquisador a se espantar com isso. “Um paradoxo chega a reger a relação entre a opinião pública e o bolsonarismo: ao mesmo tempo que o cidadão não aprova o desempenho do capitão negacionista na pandemia e não se mostra disposto a votar nos candidatos indicados por ele, parte substancial da cidadania continua aprovando seu governo”, escreveu o cientista político Leonardo Avritzer, professor titular da Universidade Federal de Minas Gerais, no primeiro capítulo de “Governo Bolsonaro: Retrocesso Democrático e Degradação Política” (Autêntica, 2021), uma coletânea de artigos organizada por ele, Fábio Kerche e Marjorie Marona.

Tão importante quanto essa constatação é ponderar sobre o que consolidou na sociedade brasileira a ideia de que o roubo de dinheiro público é o pecado capital, o único delito que não merece perdão. A resposta parece óbvia: a Lava Jato.

Tão logo a operação que começou mirando doleiros que atuavam a partir de um posto de gasolina em Brasília foi ganhando espaço, seus personagens – tendo à frente um procurador com cara de adolescente nerd, uma visão de mundo simplória e um carregado sotaque curitibano – aproveitaram para passar o recado.

Quem rouba milhões mata milhões“, “O Brasil não é propriedade de corruptos“. “A corrupção desvia R$ 200 bilhões por ano“. A cada ação ostensiva semanal da Lava Jato, Deltan Dallagnol aproveitava para pregar contra o que considerava o mal maior da República. Ninguém se lembrou de pedir que o imberbe procurador comprovasse suas hipérboles. As manchetes estavam garantidas, afinal. E Dallagnol tinha até a solução para o problema que diagnosticava: “Precisamos de uma reforma política, da aprovação de medidas contra a corrupção e a impunidade”.

A cada ação da Lava Jato, Dallagnol pregava contra o que considerava o mal maior da República: a corrupção. Na foto de Heuler Andrey/AFP com Pedro Parente. Os dois criaram a Fundação Lava Jato, com um capital inicial de 2 bilhões e 500 milhões desviados da Petrobras. Uma dinheirama ao deus-dará 

 

O roteiro é conhecido. O consórcio entre juízes de primeira e segunda instância e o Ministério Público Federal personificou na figura de Lula todo o mal que diagnosticou e condenou o ex-presidente a tempo de retirá-lo das eleições de 2018. Sergio Moro deu uma força extra ao mandar prender o petista e – para garantir que não desse chabu – tornar pública a delação premiada de Antonio Palocci que para os procuradores não valia um centavo. Bolsonaro foi eleito, Moro pegou o primeiro avião para o Rio de Janeiro e, ansioso feito criança em loja de brinquedos, anunciou que seria ministro da extrema direita antes mesmo de recolocar os pés em Curitiba. “O Brasil está mudando”, regozijou-se Dallagnol um tempo depois.

“O repúdio à corrupção, inflado pelo lavajatismo, foi o cimento que conectou evangélicos, conservadores e militaristas no bolsonarismo em 2018″, falou João Feres, a partir dos resultados da pesquisa que realizou.

Voltamos a 2021. Jair Bolsonaro anunciou a recondução de Augusto Aras ao cargo de procurador-geral da República. Amigo do peito do presidente, Aras entregou a Bolsonaro o que ele precisava: um Ministério Público em parte amordaçado, em outra acovardado o suficiente para que operações como a Lava Jato, a Greenfield e a Satiagraha sumissem do noticiário. Foi um serviço tão bem feito, o de Aras, que sequer foi preciso que a fração de procuradores e promotores dispostos a colaborar abertamente com a extrema direita, liderada por Ailton Benedito, ganhasse protagonismo.

12
Nov20

Sergio Moro teve almoço secreto com Luciano Huck dias após prender Lula em 2018

Talis Andrade

 

Encontro sigiloso ocorreu a três dias da data final para que apresentador decidisse ser candidato a presidente

25
Out20

Dallagnol interferiu para colocar juiz-laranja no lugar de Sergio Moro

Talis Andrade

Humor Político on Twitter: "Joker por Gilmar Machado #Joker #Coringa  #JokerMovie #cartoon #humor #charge… "

‘PRECISAMOS DE UM CORINGA’

 

Os procuradores da Lava Jato no Paraná atuaram nos bastidores para interferir na sucessão do ex-juiz Sergio Moro nos processos da operação em primeira instância. A força-tarefa do Ministério Público Federal fez lobby num outro poder, o Judiciário, para garantir que o novo escolhido para a cadeira do então recém-nomeado ministro do governo de Jair Bolsonaro fosse alguém que agradasse aos investigadores.

As articulações estão explícitas em duas mensagens de áudio do então coordenador da força-tarefa, o procurador Deltan Dallagnol. Nelas e em várias mensagens de texto trocadas pelo Telegram em janeiro de 2019, ele elenca os principais candidatos à vaga de Moro, elege os preferidos da força-tarefa e esboça o plano em andamento para afastar quem poderia “destruir a Lava Jato”, na opinião dele.

Quando Moro abandonou a carreira de juiz, em novembro de 2018, logo após a eleição de Bolsonaro, deixou vaga a cadeira de responsável por julgar os processos da Lava Jato na primeira instância. A sucessão ou substituição de um magistrado é um processo comum no poder Judiciário, que tem autonomia para decidir – obedecendo a um regimento interno.

O que é no mínimo incomum, nesse caso, é a pressão e a interferência de um órgão externo, o Ministério Público Federal. Em mensagens de texto e áudio, Dallagnol também pede a colegas familiarizados com o presidente do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, o TRF4, responsável pela Justiça Federal do Paraná, que tentassem “advogar” junto a ele por uma solução que agradava à força-tarefa.

A ideia compartilhada por Dallagnol e por juízes federais do Paraná era colocar três magistrados na posição de assessores de um quarto, o veterano Luiz Antônio Bonat, num esforço para convencê-lo a disputar a vaga de Moro. “Ele colocou ali o nome dele por amor à camisa”, narrou Dallagnol. “Então a gente tem que conseguir um apoio. A ideia talvez seria de ter juízes assessores ali designados junto a ele”.

A Lava Jato considerava que Bonat, um juiz com 64 anos e de perfil extremamente discreto (jamais deu palestras ou entrevistas desde que assumiu o comando da operação, há quase dois anos), precisaria de ajuda para dar conta das dezenas de processos que corriam no Paraná. Assim, Dallagnol e equipe buscaram uma forma de garantir que nem todo o trabalho da operação cairia sobre ele.

12
Set20

Lavajatismo alçou extrema direita ao poder e gerou desgaste da imagem do próprio MPF

Talis Andrade

 

II - Lava Jato e Ministério Público Federal são responsáveis pela fragilidade das instituições 

Rafael Moro Martins entrevista Wilson Rocha

 

Intercept – O Ministério Público nasceu como um garantidor de direitos mas, desde os anos 1990, vem se tornando progressivamente uma instituição policial, que mede a eficiência de seu trabalho na medida em que prende e condena gente. Como essa transformação aconteceu? Como o “braço policial” ganhou o protagonismo do MP?

Wilson Rocha – O protagonismo do que você chama de “braço policial” do Ministério Público é decorrente da busca de protagonismo da instituição frente às demais do estado brasileiro e da própria sociedade. A ação penal é o instrumento mais poderoso à disposição do Ministério Público. Era até certo ponto previsível que a instituição lançasse mão desse instrumento na busca por protagonismo. É algo preocupante, que merece reflexão crítica da sociedade, mas principalmente do próprio Ministério Público. É uma estratégia que gera problemas como o encarceramento [em massa], que a sociedade brasileira precisa enfrentar, refletir se é um caminho adequado para punição e repressão de crimes e a construção de uma sociedade mais justa. Também gerou um atrito muito forte com os outros atores institucionais da República, uma crise aguda entre instituições para qual a gente ainda não enxerga uma solução a curto prazo.

O que me causa mais preocupação, do ponto de vista de funcionamento das instituições políticas do país, é a criminalização da atividade política que a gente viu pelo menos a partir do mensalão e, com muita intensidade, a partir da Lava Jato. É o enfrentamento pelo direito penal dos problemas decorrentes do nosso sistema eleitoral. Esse é um nó que desestabiliza o funcionamento do conjunto das instituições do país e que precisa ser repensado, não só pelo MPF, mas pelo conjunto das instituições do país e pela sociedade, que deve opinar a respeito de qual modelo ela entende adequado. A política tem os seus problemas, o sistema eleitoral tem os seus problemas, e isso é indiscutível. Mas precisamos refletir se é o direito penal o caminho para resolvê-los.

 

Qual seria o melhor caminho?

O protagonismo que o MPF busca cabe à sociedade. Acredito que a via democrática, ainda que mais lenta, é o caminho adequado para resolver esses problemas. Acredito em um protagonismo dos movimentos sociais, da sociedade civil, na correção desses problemas que a gente identifica no sistema político. O Ministério Público pode, sim, caminhar ao lado da sociedade, mas sempre respeitando o protagonismo do cidadão. Um momento muito claro em que o MPF passou o carro na frente dos bois foi no pacote das dez medidas contra a corrupção. Aquilo foi um projeto de lei que foi apresentado à sociedade como de iniciativa popular, mas todo mundo sabia que havia sido gestado e era patrocinado pelo MPF, inclusive com a utilização de banco de horas de servidores para colher assinaturas e dinheiro de publicidade oficial. O MPF claramente confundiu o seu papel institucional com o protagonismo que a sociedade deveria ter em um projeto de iniciativa popular, como o próprio nome diz.

 

A proposta de emenda constitucional 37, que pretendia impedir promotores e procuradores de investigar, se tornou um dos grandes alvos das hoje célebres jornadas 2013. Olhando retrospectivamente, rejeitar a PEC 37 foi um erro, desbalanceou o equilíbrio entre os poderes?  

A PEC 37 era muito complicada. Pretendia que a investigação criminal ficasse concentrada na polícia. Não pode haver monopólio do poder de investigar ilícitos. Isso é atribuir a uma única instituição um poder descomunal. Ela iria fortalecer muito o aparato policial, e eu acredito que poderíamos ter um agravamento do quadro que tivemos. Há um conjunto de instituições que lidam com repressão a crimes e que devem atuar de forma firme, mas sempre dentro da legalidade: a Receita Federal, nos órgãos de controle internos do Poder Executivo, as Controladorias da União, dos estados, o Banco Central. Esse conjunto de instituições deve zelar pela integridade do funcionamento do estado, todos eles têm e devem exercer o poder de investigar. De modo algum isso poderia ficar na mão de uma só corporação, seja o Ministério Público, a polícia ou qualquer outra.

 

É razoável dizer que operações como a Lava Jato, que acorrentou pelos pés o ex-governador Sérgio Cabral Filho ao prendê-lo pela segunda vez, transportou para as elites a realidade policial que se vive nas periferias, com truculência e prisões arbitrárias?

O episódio de Sérgio Cabral demonstra a tentativa de fazer isso, ainda que simbolicamente. E esse é o trunfo da Lava Jato: dizer que finalmente a punição, a repressão penal de crimes chegava à elite, alcançava os crimes de colarinho branco. Era uma cena mais simbólica, retórica, do que real. A gente sabe que, num plano mais profundo, a Lava Jato agravou os problemas de corrupção no Brasil. Basta ver a realidade do país hoje, a gravidade das investigações que alcançam o presidente da República. A realidade é muito mais complexa. E o caminho para resolver os problemas, aprimorar as instituições, passa não só pelo Ministério Público Federal ou a Polícia Federal, mas pela democratização do conjunto das instituições do país. Passa por uma sociedade mais autônoma, inclusive em relação às instituições, com capacidade para reivindicar seus direitos de forma mais efetiva, controlar o gasto público de forma mais efetiva. O controle social da probidade administrativa é algo que se discute muito pouco no Brasil. É um caminho mais difícil, mais lento, que não dá protagonismo às instituições, que não transforma nenhum agente estatal em herói. Por isso, talvez ele seja um caminho menos tentado. E a triste história desse país nosso é construir esses falsos heróis que surgem e desaparecem do dia pra noite, enquanto a realidade das pessoas continua, infelizmente, muito ruim.

 

A Lava Jato fez de Lula um alvo, o colocou no centro de um esquema de corrupção na Petrobras (o que ele nega) e se esforçou para condená-lo. Sergio Moro colaborou com os procuradores na acusação, condenou Lula, ajudando a tirá-lo da eleição presidencial, e depois foi ser ministro de Jair Bolsonaro. Depois de serem traídos pelo bolsonarismo, força-tarefa e Moro negam ter ajudado a eleger Bolsonaro. Qual a responsabilidade deles no atual estado de coisas? A história cobrará a Lava Jato por nos ter legado um presidente de extrema direita com arroubos autoritários?

Antes de ser procurador da República, eu fui professor de história por sete anos. Isso talvez me ajude a ter mais visão de longo prazo do que a maioria dos meus colegas. Essa fatura já chegou, na verdade. O momento trágico dessa aliança do lavajatismo com o bolsonarismo foi a ida do Moro ao governo Bolsonaro. Antes desse gesto do juiz da operação, a gente iria ficar discutindo isso [a parcialidade da operação] a vida inteira e não iria chegar a uma conclusão. De um lado, os que defendem a operação dizendo que não havia predileção política. De outro, os críticos afirmando que a aliança existia e tirou o único partido que podia de fato ameaçar esse projeto de poder que hoje controla o país. Mas, no momento em que Moro abandona a toga e vai ser ministro da Justiça do governo Bolsonaro, eu acho que não há mais espaço para discussão nenhuma. Os fatos estão aí, e contra os fatos é difícil brigar. E há outros episódios: o já aposentado membro da operação…

 

…Carlos Fernando dos Santos Lima.

O procurador geral da república Carlos Fernando disse, em entrevista pública, que a operação tinha sua predileção política e era o Bolsonaro. Os equívocos já estão aí, são explícitos. A fatura já chegou pra instituição. Há internamente uma discussão muito intensa sobre a defasagem salarial no MPF, cujos membros há muito tem reajustes muito abaixo dos níveis da inflação. Entre os colegas, há quase um consenso sobre o fato de que isso é uma retaliação da classe política, atingida pelo trabalho do MPF. Fazendo uma análise menos condescendente e mais crítica, eu penso que isso é uma resposta aos desequilíbrios institucionais gerados por determinadas atuações do MPF.

 

Você falou de retaliações. É razoável dizer que vemos hoje, sob o governo Bolsonaro e com Augusto Aras no comando, o Ministério Público Federal na sua maior crise desde 1988? 

O conjunto das instituições sofre os reflexos do momento político que a gente vive. Eu trabalho muito próximo à questão indígena, à questão ambiental, e o desmonte da Funai, do Ibama, é muito evidente, assim como a fragilização das leis, das normas que protegem os direitos coletivos, é enorme. Eu acho que todas as instituições estão fragilizadas hoje, mas nem todas tiveram responsabilidade pela situação. Mas, em relação ao MPF, essa responsabilidade existe. Eu acho que a instituição errou muito, em vários momentos, ao pretender ter um protagonismo que não deveria, ao não construir uma relação com as demais instituições de uma forma mais horizontal, menos arrogante. Isso atraiu uma má vontade em relação às demandas e às reais necessidades da instituição.

Acredito que tudo isso é decorrência de erros que a instituição teve na condução do seu trabalho. A gente atritou em momentos em que não precisava, houve vazamentos seletivos [na Lava Jato] em momentos sensíveis da vida política do país. Isso tudo hoje é visto de forma muito crítica, e é claro que há uma fatura a ser saldada aí. Há também uma insatisfação muito grande de atores muito poderosos da vida política em razão do trabalho bem feito que o Ministério Público Federal fez. A questão indígena, por exemplo, gera atritos políticos muito sérios dentro do Congresso.Se, nesse caso, as retaliações que o MPF sofre são injustas, há também um desequilíbrio da nossa atuação em outros casos. E aí há em alguma medida uma tentativa de devolver a instituição aos seus limites constitucionais e institucionais. A gente é cobrado, e às vezes de forma dura. Ninguém está aí no cenário político brincando, não é? Ninguém é denunciado e volta pra casa sorrindo, não é? Tem que haver uma responsabilidade muito grande, que em algum momento não foi levada à sério como deveria. A gente tem que ter muito cuidado com entrevistas logo após deflagração de operações [um hábito da Lava Jato mantido até recentemente]. A apresentação do PowerPoint foi um erro crítico que, na minha opinião, gerou um desgaste totalmente desnecessário, criando um personagem político que, goste-se ou não, tem sua importância.

Eu proponho que a gente seja uma instituição com um perfil mais baixo, mais low profile, que a gente faça o nosso trabalho de uma forma mais discreta. E compreensiva. E não falo de compreensão com a instituição, mas com os limites históricos com que todo país é obrigado a lidar. Para quem tem um martelo na mão, tudo vira prego. O martelo na mão do MPF é a ação penal. Mas esse martelo não serve pra resolver qualquer coisa, qualquer problema.

 

Às vezes a martelada quebra as coisas…

Sim. E tem coisas que não se arrumam com martelo, não se arrumam via ação penal. A gente deve ser capaz de construir soluções mais complexas para problemas que são complexos. Pensar o nosso sistema político, os problemas que ele tem, é algo muito complexo. O MPF pode, sim, construir um diálogo respeitoso com as instituições e com a sociedade. Mas eu vejo com muito ceticismo a nossa capacidade de reduzir isso a denúncias e imputação criminal, pelo menos segundo a boa dogmática política, dentro dos trilhos das garantias constitucionais que a gente deveria seguir.

 

O procurador Deltan Dallagnol ponderou longamente sobre uma candidatura ao Senado, que não descarta para 2022, e disse achar necessário “um candidato do MPF por estado”. Qual sua impressão sobre essa politização do MPF e da transformação de uma operação contra a corrupção em partido político? Quão danoso é isso para a independência do MPF? 

Não vou comentar as supostas pretensões políticas do colega, reveladas pela Vaza Jato. Limito-me a considerar que é um grave problema que procuradores e promotores tentem capitalizar politicamente a partir dos trabalhos realizados no MPF. Qualquer que seja o membro do Ministério Público que esteja fazendo isso deve ter acompanhamento da corregedoria, vai precisar se afastar da carreira e construir a sua candidatura pelas vias ordinárias, se filiar a um partido político, construir uma base eleitoral para ser eleito.

Nenhum problema quanto a isso. O problema é tentar viabilizar esse projeto pessoal, de um grupo de colegas, por meio do trabalho da instituição. Isso daí ameaça a credibilidade do Ministério Público, põe a perder um capital institucional enorme que foi angariado graças a um trabalho excepcional de tantos grandes e bons colegas pelo menos a partir de 1988. É um problema muito grande. O membro do MPF não pode ter filiação partidária, um indicativo claro de que o nosso trabalho não deve servir a interesses político-eleitorais de um membro. É um problema que eu acho que deve ser tratado no âmbito correcional.

 

Você tem um histórico de atuação em defesa dos indígenas brasileiros. O governo Bolsonaro é composto por gente que “odeia o termo povos indígenas”, e estamos vendo o impacto disso na prática. O MPF está sendo capaz de agir com ênfase suficiente para impedir um massacre? Ou os excessos da Lava Jato hoje o colocam em uma posição mais frágil para atuar?

O Ministério Público Federal, desde 1988 pelo menos, mas especialmente a partir da autonomia que conquista com o procurador-geral Claudio Fonteles, vinha contribuindo de forma decisiva para o avanço das instituições, o fortalecimento da sociedade, da luta dos povos indígenas, a própria proteção ambiental. Se fazia isso a partir de um determinado contexto: havia uma atuação conjunta de instituições que permitiam que esses resultados fossem alcançados, com o Ibama, na área ambiental, e a Funai, na questão indígena.

Na cúpula poucas pessoas estão dispostas a fazer uma autocrítica, a avaliar se ultrapassamos a linha na nossa relação com as demais instituições

Com a Lava Jato e a ascensão da extrema direita, essa harmonia se perdeu e várias instituições passaram a ter ressalvas em relação ao Ministério Público. Eu teria hoje uma dificuldade muito grande de dialogar com a Funai para viabilizar direitos indígenas, tendo em vista várias declarações do governo federal a respeito disso e o histórico do próprio presidente da Funai. Então, como você conversa com a Funai para garantir direitos ou demarcação de terras de uma comunidade indígena? Da mesma forma, os avanços na área ambiental eram muito significativos. Ao longo dos anos, foi criado o sistema de satélites que monitora em tempo real o desmatamento. Essas informações chegavam até o Ministério Público Federal, e havia a possibilidade de ajuizar de ações públicas contra os responsáveis. O MPF sempre precisou das demais instituições para trabalhar bem. As condições para um bom trabalho do Ministério Público Federal estão sendo destruídas. Então, o MPF vai devolver menos resultados para a sociedade em razão desse desmoronamento institucional que o país sofre.

 

Você falou que existe hoje uma autocrítica, um debate interno sobre os excessos do lavajatismo. Mas o quão majoritário ainda é o lavajatismo dentro do MPF? Já existe uma corrente disposta a colocar isso em perspectiva na instituição?

Acho que é amplamente majoritário o apoio à Lava Jato e ao projeto de protagonismo institucional que a operação traz dentro de si. Os colegas ainda veem pouco problema nisso, na série de reportagens que o Intercept realizou. Tenho visto um debate interno, mas grupos críticos ainda são bastante minoritários e enfrentam dificuldades para explicar suas críticas sem que isso seja levado como ataques pessoais.

Na cúpula da instituição poucas pessoas estão dispostas a fazer uma autocrítica, a avaliar se ultrapassamos um pouco a linha na nossa relação com as demais instituições, se a gente poderia ter respeitado de forma mais concreta a autonomia dos agentes políticos, que nem todos os problemas do sistema eleitoral poderiam ser tratados por meio da ação penal, e que nem tudo nos cabe na solução dos problemas do país. Uma parcela muito significativa desses problemas deve ser objeto de um debate social amplo, que passa pelo Ministério Público, mas a palavra final em relação a eles está longe de caber a ele. A instituição precisa amadurecer, encarar com mais tranquilidade críticas à operação Lava Jato e ao modelo de combate à corrupção que vem sendo implantado já há algum tempo. Não é só a Lava Jato, há várias outras operações que repetem as mesmas estratégias e que vão aprofundando esse fosso entre o MPF e as demais instituições, e a classe política.

Organizações muito importantes da sociedade civil hoje olham para nós com desconfiança

Acho que a gente precisa de uma inteligência que vá para além do campo meramente dogmático, penal, jurídico. O MPF precisa se posicionar no campo político com uma sensibilidade maior para a história, a ciência política, a sociologia, a antropologia do país. A gente precisa de uma estratégia de comunicação social que vá muito além da divulgação da última operação, sem a pretensão de o MPF dar as respostas, mas que mas construa reflexões. A comunicação do MPF poderia discutir racismo, que é uma discussão central para os problemas que o Brasil enfrenta hoje.

 

Dá pra dizer que de certa forma a Lava Jato “sequestrou” o Ministério Público, porque hoje em dia não se vê falar da instituição sem que seja na atuação criminal. Várias outras áreas de atuação ficaram eclipsadas, como direitos humanos, meio ambiente…

É isso mesmo. Ofícios que eram dedicados a essas áreas foram extintos em algumas unidades para privilegiar as ações de combate à corrupção. As pessoas que se dedicam à tutela coletiva no MPF têm hoje um espaço institucional menor. Os recursos, acho que diminuíram mais para nós do que para a Lava Jato, por exemplo. Os colegas têm muita dificuldade hoje para fazer uma diligência a uma terra indígena – isso antes da pandemia –, conseguir uma perícia a respeito de problemas ambientais. Há uma fila enorme de perícias pendentes nessas áreas de tutela coletiva que são importantes para o trabalho do MPF, e a gente não consegue dar vazão a elas. Não acredito que haja as mesmas dificuldades nessa área que se chama de combate à corrupção. Então houve, sim, uma diminuição do espaço institucional dos direitos humanos, da tutela coletiva, para favorecer essa vertente, que é majoritária, do combate à corrupção.

 

Qual vai ser, em sua opinião a longo prazo para a imagem do MPF, a herança do lavajatismo, da fúria persecutória da Lava Jato? Vai ficar uma chaga semelhante à da ditadura militar é para as Forças Armadas?

O Ministério Público é uma instituição muito mais complexa do que as Forças Armadas. Não tem hierarquia, uma voz única que fala pelo Ministério Público como há nas Forças Armadas. Eu acho que há uma corrosão da necessidade social do Ministério Público. Por exemplo, anos atrás o MPF reconstruiu um foro, um espaço para discutir violência no campo e realização de direitos de que eu participei. Algumas instituições sociais muito importantes na luta pela reforma agrária não estavam dispostas a sentar na mesa para conversar com o MPF. Organizações muito importantes da sociedade civil hoje olham para nós com desconfiança, especialmente as do campo da esquerda. Isso demonstra a corrosão da legitimidade, do capital institucional enorme que o MPF ainda tem, acredito eu, junto à sociedade. Acho que a Lava Jato e esse modelo de combate à corrupção que a instituição promove hoje põem em risco esse capital institucional. Não sei se no futuro o juízo que se fará do Ministério Público será tão duro quanto aquele que se faz hoje das Forças Armadas em relação à ditadura militar. Mas com certeza [a Lava Jato] arranha a imagem do Ministério Público. E aponta uma dificuldade, que acho que é a reflexão que vai haver daqui para frente: saber uma mesma instituição comporta a tutela penal e a tutela de direitos difusos coletivos.

 

São coisas antagônicas.

Pois é. Isso é uma jabuticaba do sistema político brasileiro. Não há Ministério Público no mundo com esse perfil, o de uma instituição que é titular da ação penal e, ao mesmo tempo, tem instrumentos poderosos para a tutela de direitos difusos coletivos. Eu acho que a Lava Jato e esse modelo de combate à corrupção mostram o colapso dessa arquitetura institucional. Eu particularmente hoje defenderia [a existência de] instituições diferentes, em que essas duas funções estivessem separadas. Na América Latina, existe a Defensoría del Pueblo, que não é como a nossa defensoria pública, que é uma advocacia para pessoas pobres. A Defensoría del Pueblo faz a tutela de direitos difusos coletivos que hoje cabe ao MPF fazer. Então, eu acho que esse modelo do restante da América Latina talvez seja mais adequado. Porque ele previa esse risco, que a legitimidade angariada pelo Ministério Público graças à tutela de direitos difusos coletivos fosse instrumentalizada [por operações como a Lava Jato brasileira] dentro da ação penal. E aí [temos] o órgão penal excessivamente forte face a face com uma defesa fragilizada, que não consegue fazer valer as garantias do réu. Isso mostra um esgotamento desse modelo. Não sei em que momento, mas o Brasil vai passar por uma assembleia constituinte. Diante desse colapso que a gente vê cotidianamente, dessa briga sem solução de Congresso com STF, com PGR, com Poder Executivo, [a situação institucional] está ruim, não funciona bem. Acho que isso vai demorar, não é para agora. Mas, nesse momento, eu defendo um modelo de Ministério Público distinto do que temos hoje.

 

Beneficiado por decisões judiciais, Deltan Dallagnol mais uma vez escapou de um julgamento no Conselho Nacional do Ministério Público. O chefe da Lava Jato viu na decisão uma vitória da liberdade de expressão. Você pode receber uma moção de censura do mesmo conselho por ter criticado o que Jair Bolsonaro disse sobre o pai do presidente da OAB, Fernando Santa Cruz, desaparecido político. Como entender e explicar isso?

Em relação ao que acontece com o processo do colega, eu não sei absolutamente nada. Eu não sei por onde passam as medidas que são tomadas para adiar tantas vezes esses casos. O que posso é falar em relação ao meu caso. Eu não criei e não pretendo criar em nenhum momento qualquer embaraço às ações da corregedoria do CNMP ou da corregedoria do Ministério Público Federal. Eu acho que tudo que a gente faz está sob escrutínio da corregedoria, e mais que isso, da sociedade. Acreditamos que as instituições vão levar em conta nossos argumentos, que a defesa vai ser efetiva. No meu caso, até agora não consegui êxito, o relatório da comissão processante quer a censura. Tenho a consciência muito tranquila. A comissão foi instaurada de ofício, não entendi muito bem por quê. Há milhares de membros do Ministério Público no Brasil, algumas centenas deles com uma presença muito forte no Twitter, e não tenho conhecimento de que a corregedoria esteja avaliando não só aquilo que os colegas escrevem, mas também o que eles curtem ou compartilham. Eu estou respondendo por uma curtida em um tuíte. Eu não tenho conhecimento de que outro membro do Ministério Público esteja respondendo por isso. Da minha parte, eu deixo o processo correr. A estratégia é fazer a defesa dentro daquilo que a legislação nos permite, exercer a defesa na maior amplitude possível, mas sem medidas protelatórias. Não espero ser absolvido por prescrição. Espero ser absolvido porque eu de fato não vejo nenhum problema naquilo que escrevi porque considero completamente absurda a minha responsabilização pelo compartilhamento de pensamentos de terceiros ou, pior ainda, por curtidas em mensagens de terceiros.

08
Set20

‘Lava Jato e Ministério Público Federal são responsáveis pela fragilidade das instituições’,

Talis Andrade

Para Wilson Rocha, lavajatismo alçou extrema direita ao poder e gerou desgaste da imagem do próprio MPF

 

Os excessos cometidos por operações como a Lava Jato minaram a credibilidade do Ministério Público Federal, o MPF, e colocam em xeque o modelo que a Constituição de 1988 definiu para a instituição, afirma o procurador da República Wilson Rocha em entrevista ao Intercept.

“Com a Lava Jato e a ascensão da extrema direita no Brasil, essa harmonia se perdeu. Várias instituições passaram a ter ressalvas em relação ao Ministério Público”, afirmou. “Organizações muito importantes da sociedade civil hoje olham para nós com desconfiança, especialmente as do campo da esquerda”.

“Isso demonstra a corrosão da legitimidade, do capital institucional enorme que o MPF ainda tem, acredito eu, junto à sociedade. Acho que a Lava Jato e esse modelo de combate à corrupção que a instituição promove hoje põem em risco esse capital”, me disse Rocha durante uma conversa de 50 minutos por telefone.

Os constituintes brasileiros projetaram o Ministério Público como um órgão garantidor de direitos, com atenção especial aos direitos difusos e coletivos – aqueles que pertencem à toda a sociedade, sem terem um dono específico, como por exemplos os do consumidor ou o direito à preservação do meio ambiente.

Progressivamente, porém, a instituição vem privilegiando sua face policial, óbvia em operações como a Lava Jato, que hoje são seu cartão de visitas. Um caminho errado, inclusive, para o combate à corrupção, acredita o procurador.

“Para quem tem um martelo na mão, tudo vira prego. O martelo na mão do MPF é a ação penal. E tem coisas que não se arrumam com ação penal”, argumentou. Entre elas, os crônicos problemas dos sistemas político e eleitoral brasileiros.

Para Rocha, a solução deles “passa por uma sociedade mais autônoma, inclusive em relação às instituições, com capacidade para reivindicar seus direitos de forma mais efetiva, controlar o gasto público de forma mais efetiva. O controle social da probidade administrativa é algo que se discute muito pouco no Brasil. É um caminho mais difícil, mais lento, que não dá protagonismo às instituições, que não transforma nenhum agente estatal em herói”.

Pior, a ânsia por protagonismo político personalizada em figuras como Deltan Dallagnol, Roberson Pozzobon, Carlos Fernando dos Santos Lima e Diogo Castor de Mattos – figuras mais vistosas e vaidosas da Lava Jato no MPF – coloca em xeque o próprio desenho institucional do órgão. O mesmo Ministério Público que persegue e expõe acusados em ações midiáticas é o responsável por garantir o acesso a todos os direitos previstos na Constituição. Como, por exemplo, à ampla defesa em processos criminais.

“Não há Ministério Público no mundo com esse perfil, o de uma instituição que é titular da ação penal e, ao mesmo tempo, tem instrumentos poderosos para a tutela de direitos difusos coletivos”, Rocha observou. “Eu acho que a Lava Jato e esse modelo de combate à corrupção mostram o colapso dessa arquitetura institucional. Eu particularmente hoje defenderia [a existência de] instituições diferentes, em que essas duas funções estivessem separadas”.

Talvez nada simbolize tão bem o desprezo da geração de procuradores e juízes alçada ao estrelato pela Lava Jato pelos direitos coletivos e difusos quanto o desdém demonstrado pelo então ministro Sergio Moro pela Funai. O retorno da subordinação da Funai ao Ministério da Justiça era reivindicação do movimento indígena – no governo Bolsonaro, a fundação fora colocada sob o ministério de Damares Alves. Ela acabou ocorrendo, mas sob protestos de Moro – como se coubesse a um servidor público escolher do que quer e do que não quer cuidar.

É justamente na defesa de indígenas, meio ambiente e direitos humanos que Wilson Rocha Fernandes Assis, 39 anos, especializou-se no Ministério Público Federal. Mestre em Direito Constitucional pela Universidade de Sevilha, Espanha, ele cursou especialização e mestrado em História na Federal de Goiás – chegou a lecionar a disciplina para alunos do ensino médio. Atualmente, ele é procurador da República em Itumbiara, interior do estado.

Rocha atuou em casos notórios, como o que garantiu a kayapós uma indenização pela queda de um avião da Gol na terra indígena Capoto Jarina, em 2006, e a força-tarefa Araguaia, que trabalhou no cumprimento da sentença emitida pela Corte Interamericana de Direitos Humanos no caso Gomes Lund.

Representou o MPF no Conselho Nacional de Povos e Comunidades Tradicionais de 2011 a 2020 e ocupa o assento da instituição no Conselho de Gestão do Patrimônio Genético, que regula o acesso a conhecimentos de povos tradicionais associados para pesquisa científica, bioprospecção ou desenvolvimento tecnológico. Também é membro professo da Ordem Franciscana Secular.

Conversei com Wilson Rocha na véspera de mais um julgamento no Conselho Nacional do Ministério Público que Deltan Dallagnol conseguiu adiar (ele acabaria absolvido, em outro caso, na semana seguinte, graças a dezenas de postergações obtidas pela defesa). Rocha é, ele mesmo, processado no CNMP por uma postagem no Twitter, além de outras duas que curtiu e compartilhou, respectivamente, e que foram consideradas ofensivas ao presidente Jair Bolsonaro.

“A indignidade do presidente já é de conhecimento público. Resta-nos lembrar a indignidade dos que o apoiam, especialmente o alto oficialato das Forças Armadas que compõe seu governo e o séquito de @SF_Moro na Lava Jato”, escreveu, após Bolsonaro sugerir que sabia o que ocorrera com Fernando Augusto de Santa Cruz Oliveira, desaparecido na ditadura militar e pai do presidente da Ordem dos Advogados do Brasil, Felipe Santa Cruz. O presidente, como de hábito, recuou sem se desculpar.

“Não espero ser absolvido por prescrição. Espero ser absolvido porque eu de fato não vejo nenhum problema naquilo que escrevi”, ele me disse. O julgamento está marcado para amanhã, 8 de setembro. (Continua)

06
Ago20

No caso Palocci, Fachin fez defesa de Moro que nem a Lava Jato foi capaz de fazer

Talis Andrade

 

fachin verme.png

 

Em reportagem especial publicada no Intercept, o jornalista Rafael Moro Martins demonstra que o ministro Edson Fachin foi mais lavajatista do que a própria Lava Jato, ao defender a legalidade da delação de Antônio Palocci, num voto em que foi derrotado por Gilmar Mendes e Ricardo Lewandowski.

"O episódio está registrado nos arquivos da segunda turma do STF, que deliberava sobre a retirada da delação do ex-ministro Antonio Palocci de um processo da Lava Jato contra o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Fachin votou a favor do consórcio apelidado de Lava Jato, e contra a exclusão. E foi voto vencido: os ministros optaram por limar a delação de Palocci da acusação contra Lula por 2 votos a 1. Fachin registrou em seu voto que não seria possível provar que houve atuação irregular de Moro ao anexar a delação faltando seis dias para o primeiro turno de 2018. A delação abasteceu capas de jornais, revistas e portais de notícias e movimentou as redes de WhatsApp da extrema direita às vésperas da eleição", aponta a reportagem.

"Quem discorda de Fachin é o próprio Deltan Dallagnol. Ele se debruçou sobre o caso com o procurador Roberson Pozzobon, colega de Lava Jato, e a conclusão de ambos foi de que Moro ultrapassou, sim, os limites", prossegue o jornalista. Leia a íntegra no Intercept

As mentiras de Palocci são tão exageradas que foram recusadas pela Lava Jato. Em uma reportagem de capa com foto montagem, a revista Veja mente descaradamente:

“Em 2002 Kadafi enviou secretamente ao Brasil 1 milhão de dólares para financiar a campanha eleitoral do então candidato Lula”.

khadafi-e-Lula-e-Evo-Moraes.jpg

Veja-capa- palocci.jpg

A Baixaria da revista Istoé não ficou atrás:Image

REVISTAS SEMANAIS: Veja os destaques de capa das revistas ...

A delação de Palocci, vazada por Sérgio Moro, recusada pelo ministério público, e negociada com a Polícia Federal, "para ferir de morte a candidatura de Lula", confessa a revista Época na chamada de capa. 

09
Jun20

Um ano depois, Demori conta os bastidores da Vaza Jato

Talis Andrade

As mensagens secretas da Lava JatoEquipe do Intercept Brasil na redação, em 9 de junho de 2019.

Equipe do Intercept Brasil na redação, em 9 de junho de 2019. Foto: Christian Braga para o Intercept Brasil

 

Por Leandro Demori

Intercept Brasil

Um ano atrás eu estava fazendo as malas para uma viagem mais ou menos longa quando meu telefone tocou. Era o Glenn. Fazia algum tempo que não conversávamos – ele não trabalha fisicamente no site e não temos a convivência comum das redações. “Você está sentado?”, ele me perguntou.

Sentei, e, em poucos minutos, Glenn me contou o motivo da ligação: ele havia recebido um material explosivo de interesse público evidente. Foi a primeira vez que eu soube do conjunto de conversas no Telegram que mais tarde nós batizaríamos de Vaza Jato. Desliguei e imediatamente acionei nossos editores Alexandre de Santi e Rafael Moro Martins para que começassem a analisar o material. Nossa primeira preocupação era checar a autenticidade do arquivo. Não demorou muito para entendermos que as mensagens trocadas pelos procuradores da Lava Jato e pelo ex-juiz e ex-ministro Sergio Moro eram autênticas – e uma bomba na República.

Semanas depois, mais exatamente no dia 9 de junho, publicamos as três primeiras reportagens, traduzidas assim no editorial que assinamos naquele mesmo dia:

“As reportagens de hoje mostram, entre outros elementos, que os procuradores da Lava Jato falavam abertamente sobre seu desejo de impedir a vitória eleitoral do PT e tomaram atitudes para atingir esse objetivo; e que o juiz Sergio Moro colaborou de forma secreta e antiética com os procuradores da operação para ajudar a montar a acusação contra Lula. Tudo isso apesar das sérias dúvidas internas sobre as provas que fundamentaram essas acusações e enquanto o juiz continuava a fingir ser o árbitro neutro neste jogo.”

A Vaza Jato faz um ano hoje. Foram quase 100 reportagens publicadas – um dos casos jornalísticos mais extensos da história, e isso não é exagero. Parte dos nossos leitores nos pergunta com alguma frequência quais foram os efeitos da série de reportagens. É uma pergunta legítima. Afinal de contas, jornalismo só serve para alguma coisa se tem impacto real na sociedade. Mas, fora a visível e naturalmente midiática soltura do ex-presidente Lula, quais foram os impactos da Vaza Jato?

A mudança sobre a prisão em segunda instância, que acabou por soltar Lula, não foi o único movimento do STF pós-Vaza Jato. Teve também o entendimento de que réus delatados precisam falar por último nos processos. Antes, o réu delatado fazia suas alegações finais ao mesmo tempo que o delator – o princípio da ampla defesa determina que o acusado sempre fale sempre por último no processo. Foi uma aberração que perdurou por muito tempo graças à guerra santa de Moro e seus comandados, que pressionavam o Supremo a condenar pessoas na base do custe o que custar. Graças à Vaza Jato, agora o acusado deve ser o último a fazer sua defesa, depois de todos os delatores. Parece elementar, não? Pois é, mas precisou que o jornalismo mostrasse o caminho.

Quando chegou ao governo, Sergio Moro era o homem mais popular de Brasília. Seu “projeto anticrime”, ninguém duvidava, seria aprovado pelo Congresso com um pé nas costas. E o que tinha naquele projeto? Um mecanismo chamado “excludente de ilicitude”, que basicamente autorizava que as forças de ordem cometessem crimes e que não fossem punidas caso estivessem sob “escusável medo, surpresa ou violenta emoção”. Uma licença para matar em forma de lei. Com as revelações do Intercept e de nossos parceiros, a imagem de Moro e da Lava Jato sofreu abalos inéditos, e deputados puderam alterar o projeto com apoio público. O excludente de ilicitude caiu.

Outra briga comprada pelo ex-ministro de Bolsonaro e pelos procuradores foi o combate à Lei de Abuso de Autoridade. Uma lei que diz, basicamente, que quem abusa de sua autoridade precisa ser punido. Quem era contra ela? Quem provavelmente acha que autoridades podem fazer o que quiserem, ao arrepio da lei. Moro & cia fizeram campanha pública contra o mecanismo e perderam: ela foi aprovada e começou a valer este ano.

Aconteceu o mesmo na disputa sobre o juiz de garantias, uma figura que busca dar mais imparcialidade ao sistema. Ele evitaria, por exemplo, que Moro, depois de ter feito parceria com a acusação, julgasse os casos que ele próprio ajudara a construir. O ex-juiz foi contra, claro. E perdeu mais uma. O juiz de garantias foi criado em dezembro do ano passado, mas sua aplicação está suspensa por uma liminar do juiz do STF Luiz Fux (nele they trust, vocês sabem).

Quando participei de uma reunião com 40 advogados que ofereceram solidariedade ao nosso trabalho, ouvi de muitos deles que a Lava Jato estava destruindo o direito de defesa no Brasil e que nosso jornalismo aparecia como uma luz brilhante no fim de um túnel que antes parecia não ter fim. Os impactos da Vaza Jato, alguns me disseram, seriam mais profundos do que nós mesmos havíamos imaginado. Naquele momento, nenhuma das mudanças que acabei de elencar acima tinha acontecido. Quando as pessoas me paravam em locais públicos para comentar sobre o Intercept, muita gente perguntava quando Moro iria cair, quando Deltan seria afastado, quando Lula seria solto. Eu não tinha essas respostas. O público se acostumou a encarar esse tipo de coisa como o único impacto possível do jornalismo. Hoje, percebemos que a influência do nosso trabalho foi muito além de derrubar um ministro – que, desgastado, caiu de todo modo.

No editorial que publicamos junto às três primeiras reportagens da série, escrevemos no parágrafo final: 

“Tendo em vista o imenso poder dos envolvidos e o grau de sigilo com que eles operam – até agora –, a transparência é crucial para que o Brasil tenha um entendimento claro do que eles realmente fizeram. A liberdade de imprensa existe para jogar luz sobre aquilo que as figuras mais poderosas de nossa sociedade fazem às sombras”.

Relendo hoje aquele texto, recitei em voz alta a última frase: “A liberdade de imprensa existe para jogar luz sobre aquilo que as figuras mais poderosas de nossa sociedade fazem às sombras”. Cada vez mais.

PS: o 9 de junho de 2019 foi um dia intenso para nós. Confira fotos inéditas dos bastidores daquele dia.

 

Mais sobre mim

foto do autor

Subscrever por e-mail

A subscrição é anónima e gera, no máximo, um e-mail por dia.

Arquivo

  1. 2023
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D
  14. 2022
  15. J
  16. F
  17. M
  18. A
  19. M
  20. J
  21. J
  22. A
  23. S
  24. O
  25. N
  26. D
  27. 2021
  28. J
  29. F
  30. M
  31. A
  32. M
  33. J
  34. J
  35. A
  36. S
  37. O
  38. N
  39. D
  40. 2020
  41. J
  42. F
  43. M
  44. A
  45. M
  46. J
  47. J
  48. A
  49. S
  50. O
  51. N
  52. D
  53. 2019
  54. J
  55. F
  56. M
  57. A
  58. M
  59. J
  60. J
  61. A
  62. S
  63. O
  64. N
  65. D
  66. 2018
  67. J
  68. F
  69. M
  70. A
  71. M
  72. J
  73. J
  74. A
  75. S
  76. O
  77. N
  78. D
  79. 2017
  80. J
  81. F
  82. M
  83. A
  84. M
  85. J
  86. J
  87. A
  88. S
  89. O
  90. N
  91. D
Em destaque no SAPO Blogs
pub