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O CORRESPONDENTE

Os melhores textos dos jornalistas livres do Brasil. As melhores charges. Compartilhe

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O CORRESPONDENTE

30
Set22

'Diziam que eu não era cristão de verdade': os evangélicos que mudaram de igreja por causa do bolsonarismo

Talis Andrade

Diziam que eu não era cristão de verdade': os evangélicos que mudaram de  igreja por causa do bolsonarismo - BBC News Brasil

Como jovem negro, Rafael se incomodava principalmente com a 'vista grossa' de membros da igreja ao racismo

por Letícia Mori /BBC News

Rafael*, de 30 anos, frequentou a mesma igreja batista na zona sul de São Paulo durante toda a sua vida. Seus pais frequentavam o local quando ele nasceu.

Foi ali que Rafael cresceu e aprendeu tudo o que sabe sobre fé e cristianismo. Tinha amigos na comunidade religiosa, trabalhava na congregação e estudava para se tornar pastor.

"A igreja era todo meu projeto de vida. Você acha que vai se casar, vai ver seus filhos crescerem ali", conta ele à BBC News Brasil.

Foi por isso que, quando decidiu deixar de frequentar aquela igreja, o que passou foi "como se fosse um luto"

Os evangélicos que mudaram de igreja por causa do bolsonarismo

"Tive que passar por muita terapia porque foi algo bem complexo", diz Rafael. "Você não rompe só com a comunidade, você rompe com o futuro (que tinha planejado)."

 

O motivo do rompimento? Política. Mais especificamente, o fato que a orientação política da comunidade estava ficando cada vez mais "reacionária e agressiva" e o fato da igreja dar cada vez mais espaço para candidatos políticos de partidos de direita.

"Era muito bizarro. No começo, o tom de 'orar pelos que são da comunidade e estão se candidatando'", conta Rafael. "Mas só alguns políticos tinham esse espaço, se você defende qualquer tipo de obra social ou tem qualquer viés de esquerda, já não teria."

Ao mesmo tempo em que políticos ganhavam espaço, questões sociais como o racismo não eram discutidas, diz ele. "Vivenciei casos de racismo fora da igreja, na vida, mas nunca houve espaço para conversar sobre isso e discutir a questão lá dentro."

Como um jovem negro, era especialmente dolorido para Rafael ver fiéis e membros da direção da igreja se tornando militaristas. "Sempre existiu muita condescendência (entre os religiosos da sua comunidade) com as atitudes racistas da Polícia Militar", conta ele. "Defendia-se as Forças Armadas, a PM, sem espaço para discutir questões como a morte de jovens negros pela polícia."

O bolsonarismo se enraizou na comunidade, diz ele, com parte dos fiéis se tornando defensores tão aguerridos do presidente Jair Bolsonaro (PL) que chegavam a atacar Rafael verbalmente.

"Chegou em um ponto em que se tornou impossível se relacionar. Me chamavam de burro, diziam que eu defendia ladrão, que eu defendia o uso de drogas. Duvidavam se eu era crente mesmo, diziam que não sabiam se eu ia pro céu, que eu não era cristão de verdade, que eu era comunista", conta. "Eu dizia, 'gente, pelo amor de Deus, eu só não vou votar no Bolsonaro'."

Um episódio que o marcou foi quando uma pessoa próxima da igreja disse que "o nordeste tinha que se separar do Brasil" porque o Partido dos Trabalhadores tem votação expressiva na região.

O religioso conta que não escondeu seu desapontamento. "Meu pai é baiano. Quer dizer então que as pessoas da família do meu pai não mereciam votar só porque não votaram no mesmo candidato que você?"

"Chegou uma hora que (se não mudasse de igreja) ou entraria numa depressão ou teria que mudar o que eu acredito", afirma ele, que hoje está em uma igreja presbiteriana que não dá espaço para política partidária.

"Mudar de igreja é um caminho muito doloroso. Não me arrependo, mas deixei de lado uma parte da minha história, tive que ressignificar essa parte da minha vida"

Os evangélicos que mudaram de igreja por causa do bolsonarismo

Igrejas evangélicas são uma das bases de sustentação do bolsonarismo, diz pastor e teólogo Valdinei Ferreira

 

Represálias

 

Rafael não é o único fiel passando por esse caminho. Com igrejas evangélicas se tornando a principal base de apoio de Bolsonaro, diversos religiosos que não concordam com a defesa do presidente nas suas igrejas têm procurado outras congregações.

"É muito comum", conta à BBC News Brasil o pastor Valdinei Ferreira, professor de teologia e pastor titular da Catedral Evangélica de São Paulo, uma igreja presbiteriana independente no centro da capital. "Sempre aparece alguém vindo (de outras igrejas) com algum tipo de discordância política, principalmente nos últimos anos."

De acordo com uma pesquisa do Datafolha divulgada em 2 de setembro, cerca de 31% dos evangélicos discordam que "política e valores religiosos devem andar sempre juntos para que o Brasil possa prosperar".

Ferreira não se considera progressista — muito pelo contrário, é conservador. Mas é abertamente crítico a Bolsonaro, já que, segundo ele, o presidente não representa os valores cristãos. O pastor não fala de política partidária no púlpito, não defende candidatos, mas prega a favor de valores como a defesa da democracia e dos direitos humanos.

"Quero resguardar a missão da igreja como um espaço plural. Não podemos deixar de defender a democracia quando se usa um discurso pseudo-conservador para atacar o sistema eleitoral e os direitos humanos", afirma Ferreira. "Houve um sequestro do conservadorismo pelo reacionarismo autoritário."

A postura de Ferreira não vem sem riscos. Outros líderes críticos ao presidente ou que defendem outros candidatos têm sido hostilizados por seus pares.

O pastor Alexandre Gonçalves, de Santa Catarina, sofre ataques diários nas redes sociais por ter declarado voto em Ciro Gomes (PDT) — ele lidera um grupo de cristãos que apoiam o candidato.

Já Sergio Dusilek, pastor do Rio de Janeiro, teve que renunciar à presidência da Convenção Batista Carioca após sofrer ataques de outros líderes por ter participado de um ato político-partidário, de apoio à candidatura de Lula.

Em sua carta de renúncia, Dusilek lembrou que diversos pastores batistas têm defendido Bolsonaro abertamente sem sofrer nenhuma reprimenda.

"Ao longo dos últimos doze anos, os batistas convencionais não condenaram os pronunciamentos contra alguns partidos políticos e seus quadros, antes permitiram acenos ao espectro político mais à direita, tolerando inclusive a fala presidencial em assembleia. Tampouco condenaram o apoio de líderes denominacionais à candidatos", escreveu.

"Não contaminei o espaço religioso: o templo. Não profanei o sagrado: o culto. Tampouco violei a consciência de qualquer congregação", continuou ele. "Falei de Justiça Social. Denunciei a mendicância que violenta nossos compatriotas e avilta a Deus."

A postura hostil a quem demonstra discordância política atinge também os fiéis, diz o pastor Valdinei Ferreira. Muitas pessoas que se mudaram para a congregação de Ferreira até tentaram dialogar em suas comunidades antes, diz ele, mas trocam de igreja por não receberem "nenhum tipo de acolhida".

"Quando não são hostilizados, recebem um 'gelo'", afirma. "O que é muito doloroso. Tem famílias que estão há duas, três, quatro gerações na mesma comunidade."

E além de toda a dinâmica local ser diferente em uma nova igreja, há também a questão denominacional: existem diferenças teológicas e no estilo de culto entre igrejas evangélicas de diferentes vertentes.

 

Luto

 

A palavra "luto" foi usada por diversos evangélicos que trocaram de igreja e conversaram com a BBC. Gabriel*, de 26 anos, conta que foi exatamente isso que sentiu quando deixou de participar dos cultos da Assembleia de Deus na zona oeste de São Paulo que frequentava desde que se mudou para a cidade, alguns anos atrás.

"Foi um sentimento de luto, de me entristecer. Foi muito difícil", diz ele à BBC News Brasil.

Formado em história, o jovem hoje faz segunda graduação em teologia — e pediu para não ter o nome divulgado com receio de ter problemas políticos na instituição onde faz o curso.

Gabriel conta que teve uma "formação democrática" e já se incomodava com algumas posturas da igreja desde que começou a frequentá-la — como o apoio ao impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff.

"Passei a ter um pensamento mais crítico ao perceber que certos posicionamentos não eram uma defesa de valores e pautas, mas uma abordagem eleitoreira e partidária", diz ele à BBC News Brasil.

Mas o apoio aberto a Bolsonaro — principalmente durante a pandemia — foi o que fez o jovem de fato querer se afastar da congregação. A gota d'água, diz ele, foi neste ano, com a participação do presidente em um podcast da igreja.

"Depois disso eu não pretendo voltar lá", afirma. "Na maioria das vezes o apoio não é no púlpito, isso acontece, mas em geral o culto em si não tem apelo político. Esse apoio é principalmente em outras mídias, no dia a dia, nos momentos de conversa. Mas hoje em dia não é uma coisa que dá para separar."

Gabriel diz que "Bolsonaro é uma das páginas mais sombrias do cristianismo evangélico no Brasil".

"Ele pega algumas pautas, usa uma linguagem bíblica, uma preocupação bíblica e distorce para servir ao seu projeto de poder", diz o estudante de teologia.

E posturas do presidente que são diretamente opostas a valores cristãos, diz ele, como a linguagem violenta e a cultura de morte, são ignoradas por essas lideranças.

"Ninguém que conhece Bolsonaro pode dizer que ele é um homem piedoso. Essa aproximação com ele envolve esses apagamentos, silenciamentos sobre a trajetória dele.

Diziam que eu não era cristão de verdade': os evangélicos que mudaram de  igreja por causa do bolsonarismo

O pastor Valdinei Ferreira diz que o conservadorismo 'sequestrado' pelo 'reacionarismo autoritário'; ele recebe diversos fieis que deixaram de congregações bolsonaristas

 

Medo

 

Assim como Gabriel e os outros entrevistados pela BBC, o fotógrafo e técnico de som Leonardo*, de 36 anos, pediu para não ter seu nome verdadeiro divulgado.

Seu receio, diz ele, não é nem menosprezado pelos membros da sua igreja — da qual ele está saindo — mas sofrer ataques violentos de bolsonaristas ao revelar seu apoio a Lula.

"A galera da igreja eu discuto e 'já era'", diz ele, "mas os malucos soltos e armados por ai... Sem contar militantes na internet invadindo contas das pessoas etc."

A violência política que ele teme é bem real. No início de setembro, o fiel Davi Augusto de Souza foi baleado dentro de uma igreja da Congregação Cristã do Brasil em Goiânia. O tiro, que atingiu suas pernas, foi disparado por um policial militar à paisana por causa de desavenças políticas entre um pastor da igreja e o irmão de Davi.

Leonardo frequenta a mesma igreja batista, na zona oeste de São Paulo, há 30 anos. Seus pais, sua esposa e a família dela fazem parte da congregação. Ali também fez amigos e ganhou habilidades que depois transformou em uma carreira. Seu descontentamento, embora tenha se agravado nos últimos anos, é "um desgosto de longo prazo".

"Desde moleque, cantei, atuei, me tornei técnico de som, liderei equipe de som. Toquei em orquestra, fiz parte do ministério de dança. Minha esposa também nasceu na igreja, a gente tem foto junto no berçário", conta.

"Eu realmente me vi como parte da igreja por 3 décadas. Minha igreja é uma comunidade com quase 100 anos. Tem um peso aí, um orgulho de ter sido parte disso. Mas de repente você não se sente mais parte disso. Porque teus valores são outros."

Leonardo diz que na comunidade "não se fala abertamente de partido A ou B" mas existe um apoio velado à direita. O religioso conta que notícias falsas contra candidatos de esquerda se espalham "que nem fogo no palheiro" nos grupos de WhatsApp da comunidade.

Ele enumera outras discordâncias: "Temos uma gestão majoritariamente branca e pouco voltada de fato para a realidade da comunidade. A postura das lideranças femininas ainda frisa a ideia de submissão da mulher e coloca o homem como provedor da casa, algo que na periferia é totalmente desconectado da realidade, as famílias são chefiadas e sustentadas por mulheres."

Leonardo conta que já viu de um pastor convidado posições que enxergam o ensino superior como "uma influência negativa" na fé do jovem.

"Do tipo, de ir pra faculdade e se desviar da igreja. Isso chama atenção porque as igrejas batistas sempre foram mais voltadas para uma linha racional que preza o estudo, a academia. E de certa forma é até elitista por conta disso. Mas nos últimos anos (a igreja batista) vem se desfigurando", afirma.

Seu irmão, que é gay, já saiu da igreja há muitos anos. Mas Leonardo ainda procura uma outra congregação — ele não quer abandonar a religião.Eleições 2022: 'Evangélica de berço, minha mãe de 70 anos agora pensa em  ter arma' - BBC News Brasil

O rompimento com a igreja significa abrir mão de toda uma comunidade

 

Indignação

 

O advogado Felipe*, de 26 anos, que trocou uma igreja da Assembleia de Deus na zona leste de São Paulo por uma congregação presbiteriana na mesma região, diz que viu uma lenta entrada da política no púlpito culminando em apoio explícito a Bolsonaro — que, para ele, foi decisivo para o rompimento com a comunidade.

"Era uma coisa um pouco velada até virar uma coisa muito explícita. Em 2010 eles já diziam em quem não votar — em candidatos de esquerda", conta ele.

No começo, diz, suas divergências eram "sanáveis". Mas quando o bolsonarismo se infiltrou no meio evangélico, se tornou impossível continuar.

"Foi um show de horror a adesão da igreja evangélica como um todo ao Bolsonaro. Não só não só da Assembleia de Deus, mas batistas, presbiterianas. Foi um ponto de muita ruptura", conta.

"Eu ficava duplamente ofendido. Sentia muita raiva e indignação com o uso do púlpito para finalidades que ele não tem — ele não é o espaço para política partidária. E também sentia que a igreja não me aceitava ali", diz ele, que diz que tornou sua revolta bastante pública.

"Um dia um pastor subiu no púlpito e começou a falar que Deus tinha eleito Bolsonaro e a esquerda era nojenta. Eu saí do culto — eu tocava na igreja, então estava em um lugar bem visível — e as pessoas perceberam", conta Felipe.

O advogado também acabou entrando em muitas discussões com os irmãos de igreja nas redes sociais que foram esgarçando sua relação com a comunidade.

"A última gota foi em 2020 quando o Bolsonaro foi na minha igreja, no auge da pandemia, a gente estava vivendo toda aquela desgraça, e fizeram uma entrada triunfal pra ele", recorda.

Ele diz que trocar de igreja não foi uma decisão fácil — e foi um processo longo até que finalmente encontrou, neste ano, um lugar em que ficou feliz em servir. Sua igreja hoje está longe de ser progressista.

"Mas a gente consegue ser uma comunidade independentemente do posicionamento político que as pessoas têm ali", afirma.

 

Suporte

 

Apesar de todas as dificuldades emocionais que uma pessoa de classe média passa ao trocar de congregação, a possibilidade de mudar de igreja ainda é, de certa forma, um privilégio, diz o cientista político Vinicius do Valle, que realiza pesquisas no meio evangélico há mais de dez anos.

Isso porque, para pessoas mais pobres, a comunidade religiosa da qual fazem parte é a "coluna de sustentação" de ainda mais aspectos de suas vidas.

Além da fé e da religiosidade, a igreja na periferia traz uma série de apoios "muito palpáveis", explica o pesquisador, que é autor do livro Entre a Religião e o Lulismo.Entre a religião e o Lulismo - Vinicius do Valle

 

"Envolve uma série de bens, ajuda mútua e sustentação para a vida. Para saber de vagas de trabalho, por exemplo. Para quem precisa alugar um lugar para morar e não tem fiador, para quem precisa de um lugar para deixar os filhos — boa parte está aberta o tempo todo", afirma.

"Quem tem uma rede de apoio ampla percebe que esse tipo de ajuda e contato acontece toda hora. Mas para muitas pessoas que são pobres, sozinhas, que vêm para São Paulo de outros lugares, essa rede só existe na igreja", diz o pesquisador.

São comunidades religiosas que oferecem serviços e ocupam espaços onde o Estado falta, segundo Valle. "Em muitos lugares você tem só a igreja, por isso que ela acaba tomando esse tamanho. Se o pastor diz que um candidato vai dificultar a ação das igrejas, mesmo que não seja verdade, isso gera um medo muito grande."

Ele explica que na periferia, as igrejas funcionam como espaço educativos e formativos. "Na escola bíblica se melhora a leitura, se dá um recurso pedagógico a mais. Além disso, elas viraram centros culturais: têm peças de teatro, grupos musicais, congressos de homens, congressos de mulheres, apresentações de crianças."

Segundo Valle, todos esses recursos fazem com que um rompimento com a comunidade por divergências políticas seja ainda mais doloroso e difícil, pois significa abandonar essa rede que proporciona segurança — e não há garantia de encontrá-la em outra congregação.

Isso também torna mais difícil que a pessoa manifeste uma opinião que não seja majoritária na comunidade por medo do isolamento.

"Existem muitos evangélicos que discordam do apoio a Bolsonaro. Mas muitas vezes eles simplesmente se calam", diz.

*os nomes foram alterados a pedido dos entrevistados

 

05
Set22

Evangélicos lançam agenda que contrapõe candidaturas fundamentalistas

Talis Andrade

Uma agenda evangélica antifundamentalista é criada para orientar candidaturas evangélicas que pretendem se afirmar como democráticas nestas eleições

A agenda foi lançada no dia 8 de agosto, no Rio de Janeiro. Foto: Mayara Benatti/Atômica Lab

 

Por Mauro Utida

Defesa da democracia e das instituições; antirracismo; combate à fome e à miséria; meio ambiente e clima; além dos direitos da população LGBTQIAP+, são temas que fazem parte de uma agenda evangélica antifundamentalista e que os idealizadores consideram indispensáveis às candidaturas evangélicas que pretendem se afirmar como democráticas nestas eleições.

A proposta é do coletivo carioca ‘Novas Narrativas Evangélicas’ que realiza ações com “posicionamentos democráticos, plurais e inclusivos”, que constratem aos grandes líderes evangélicos midiáticos que “na prática não representam de fato o nosso povo crente”, declara Daniel Wanderley, advogado e um dos idealizadores do movimento.

“Nossa iniciativa foi propor uma agenda para que candidaturas alinhadas a esses valores se comprometam com os principais desafios que temos para construir uma sociedade mais democrática e justa, à luz do Evangelho”, declarou.

O Novas Narrativas ressalta o apoio do coletivo aos movimentos que estão ocorrendo em todo o país em defesa da democracia e à lisura do processo eleitoral”, destaca o documento.

 

Eixos temáticos

Foto: Mayara Benatti/Atômica Lab

 

O documento reúne uma série de eixos temáticos que o movimento considera fundamental para uma candidatura cristã.

O racismo, conforme apresentao no eixo antirracismo, é um dos pecados mais ignorados pela igreja evangélica brasileira, e a pauta ainda é tratada de maneira tímida e superficial pelas comunidades do país.No Movimento Negro Evangélico, a gente trabalha com a Teologia Negra da Libertação, uma teologia em que Paulo Freire e James Cone dialogavam sobre uma educação libertadora. Precisamos estar infiltrados em todos os lugares, porque a teologia tem um propósito”, destacou Rakell Mattoso, do Movimento Negro Evangélico (MNE).

Desastres ambientais e climáticos também ganham destaque no documento e alerta que estas catástrofes afetam principalmente a população preta, pobre e periférica.

É um papel cristão se mobilizar para impedir que o meio ambiente e os ecossistemas continuem sendo destruídos”, destacou Thuane Nascimento, do Movimento PerifaConnection e Amanda Costa, da Perifa Sustentável.

“É necessário princípios, diretrizes e menções explícitas à adaptação e mitigação que promovam a resiliência do clima, algo que não foi desenvolvido de forma plural e participativa nos últimos anos”, destacam as autoras do eixo Meio Ambiente e Clima.

Foto: Mayara Benatti/Atômica Lab

 

Sobre o eixo de combate à fome e à miséria, o grupo destaca que o direito à moradia e o acesso à renda básica não são garantidos para grande parte da população brasileira. Débora Amorim, do Movimenta Caxias e Nós em Movimento, lembra que o Brasil voltou ao mapa da fome em 2021, além disso a pandemia e a crise econômica agravaram ainda mais a segurança alimentar no país.

As palavras do nosso mestre Jesus foram ‘tive fome e me destes de comer’, e esse é o desafio histórico, do nosso tempo, da nossa geração”, afirmou Débora.

Em relação aos direitos da População LGBTQIAP+, o documento destaca que o Brasil é o mais violento em quantidade de crimes de ódio contra este grupo e o risco de suicídio para pessoas LGBTI+ é seis vezes maior do que para pessoas heterossexuais.

Alan Di Assis, homem negro, gay e um dos diretores do Evangelicxs pela Diversidade afirmou que não dá mais para o evangélico fazer mea-culpa e vista grossa à temática LGBT. “É necessário se posicionar. Tem pessoas morrendo por causa desses discursos ditos cristãos e isso é urgente”, disse.

Falar de LGBTI+ não significa abrir as portas para receber essas pessoas, mas reconhecer a dignidade e humanidade desses membros que já estão dentro das igrejas, em todas elas”, completou Alan.

O lançamento da Agenda Evangélica Antifundamentalista aconteceu no dia 8 de agosto, no Rio de Janeiro. O documento é público e está disponível neste link.

04
Set22

Oficiais de Tribunal Militar: “PM branco pisou no pescoço de mulher negra por desgaste emocional”

Talis Andrade

ImageFoto: Reprodução/ TV Globo Justiça de SP absolve PM que pisou no pescoço de mulher negraAbsolvição de PM que pisou em pescoço de mulher negra é "aberração", diz  advogado | Revista Fórum

Crueldade, humilhação, fúria assassina, PM pisa no pescoço de mulher negra, comerciante em SP

 

 

Dupla de capitães votou por absolvição de soldado carrasco em caso de comerciante negra que teve fratura exposta por chute de policial e depois foi pisoteada. Agente chega a ficar em pé e jogar todo o peso do corpo no pescoço da vítima

 

Por Henrique Rodrigues /Revista Forum

Dois capitães da Polícia Militar de São Paulo que compõem um Tribunal da Justiça Militar, e que votaram pela absolvição do soldado João Paulo Servato, filmado pisando no pescoço de uma comerciante negra deitada no chão e que momentos antes sofreu uma fratura exposta na perna em decorrência de um chute dado por um dos agentes, numa ocorrência de maio de 2020, disseram nas suas decisões que livraram o colega pelo ato selvagem por ele estar sofrendo com “desgaste físico e emocional”.

O caso, ocorrido no início da pandemia, diz respeito a um chamado feito ao 190 informando sobre o funcionamento de um bar na Zona Sul da capital paulista, o que estava proibido por conta das restrições sanitárias para conter a Covid-19. A vítima, Elizabete Teixeira da Silva, 53 anos, era proprietária do estabelecimento e saiu em testemunho de defesa de um amigo que estava sendo agredido pelos PMs. Ela recebe um chute brutal na altura da canela, que se fraturou na hora, cai no chão e então Servato passa a pisar em seu pescoço, com a mulher aparentemente desmaiada. Ele chega a jogar todo o peso do corpo na perna que pisoteava, esgoelava, asfixiava.

Os votos pela absolvição do réu foram obtidos pela reportagem da Folha de S.Paulo e neles, Alisson Bordwell da Silva e Marcelo Medina, os capitães do Tribunal Militar, embora classifiquem a cena como “fortes, impactantes e lamentáveis”, dizem que “apenas” 1 minuto e 30 segundos de gravação “pode induzir ao erro quem assiste às cenas”, já que ali estaria sendo mostrado “apenas 10% ou 15%” do que aconteceu na ocorrência.

Para piorar o absurdo da decisão tomada pelos dois oficiais, eles argumentam que aquela “foi a forma que, em virtude de um desgaste físico e emocional, apresentou-se para o policial cumprir a sua missão” de levar Elizabete à delegacia.

O advogado da vítima, Felipe Morandi, considerou a desculpa usada no julgamento com estapafúrdia e anunciou que recorrerá do veredito.

“O policial é, ou deveria ser, treinado física e psicologicamente para lidar com situações de enfrentamento que envolvam qualquer que seja. Não podem usar um suposto desgaste físico para praticar uma brutalidade como aquela, sem qualquer necessidade ou razão aparente”, disse Morandi à Folha.Image

Já o advogado de defesa dos policiais, João Carlos Campanini, alegou que Servato não pisou sobre o pescoço de Elizabeth, mas “no final das costas. Próximo ao início do pescoço”, e que a ação se deu em legítima defesa.

 

01
Set22

Brasil registra média de 200 desaparecidos por dia, diz Anuário Brasileiro de Segurança Pública

Talis Andrade

Lucineide e o cartaz de busca por seu filho, Felipe — Foto: Cíntia Acayaba/G1

Lucineide e o cartaz de busca por seu filho, Felipe — Foto: Cíntia Acayaba/G1

 

por Cíntia Acayaba, g1 SP

 

Lucineide Damasceno, 55 anos, mãe do menino que estampa a fotografia símbolo dos desaparecimentos na Zona Sul São Paulo, atende ao telefone do g1 dizendo que se esgotaram as possibilidades de encontrar seu filho, desaparecido há 13 anos e 8 meses.

"Nós estamos esquecidos como os nossos desaparecidos", disse Lucineide que há seis anos havia afirmado ao g1 seguir confiante na empreitada de encontrar Felipe Damasceno, que desapareceu em 2008, aos 17 anos. Mas mesmo com as possibilidades esgotadas, "as buscas continuam de alguma forma", diz tentando se convencer.

Por tantos anos nessa "função de investigadora de desaparecimentos", ela virou um norte para outras mães e familiares que querem saber como buscar seus parentes. São cerca de 18 mil registros de desaparecidos todos os anos só no estado de São Paulo.

No ano passado, o Brasil registrou 65.225 pessoas desaparecidas, aumento de 3,2% em relação a 2020, segundo dados do 16ª Anuário Brasileiro de Segurança Pública divulgados nesta terça-feira (28). A taxa é de 30,7 por 100 mil habitantes. Nos últimos cinco anos, ao menos 369.737 registros de pessoas desaparecidas foram feitos no Brasil, uma média de 203 casos diários. O Distrito Federal tem a maior taxa, o Amapá a menor, e Roraima não apresentou números 

Para a promotora Eliana Vendramini, coordenadora do Programa de Localização e Identificação de Desaparecidos do Ministério Público do Estado de São Paulo (Plid), a pandemia de Covid-19 agravou os problemas de registros de desaparecimentos.

Como em 2020, por conta do maior isolamento social para conter a disseminação do coronavírus, menos pessoas saíram de casa para registrar desaparecimentos ou tiveram acesso a ferramentas online, já em 2021, os registros aumentaram.

Além disso, a pandemia acentuou o problema de identificação de pacientes nos hospitais.

"Nesse momento o que se viu foi como a ausência de um serviço público poderia colaborar com um desaparecimento. Tínhamos desde 2015 uma lei estadual exigindo que o hospital quando recebesse pessoas não identificadas nominalmente, mas que tem identificação por demais dados corporais, e não acompanhadas, devessem informar as delegacias de pessoas desaparecidas sobre dados desses pacientes. Essa forma de atender já não vinha acontecendo e, com a pandemia, aumentou a demanda", afirmou.

 

Muitas dessas pessoas não identificadas, a contento, e não fazendo um trabalho em rede com a delegacia, passaram a ser enterradas como não identificadas, e não reclamadas em terreno público, que em tempo de pandemia, por autorização uma portaria do Ministério Público com o CNJ passou a permitir a incineração de corpos e ossadas. Permitimos o desaparecimento eterno da pessoa", completou.

 

Segundo Vendramini, até o Conselho Regional de Medicina (Cremesp) passou a exigir um fluxograma de pacientes não identificados para não permitir que o próprio poder público desapareça ou "redesapareça" com uma pessoa.

A promotora também vê que a crise econômica brasileira pode ter empurrado ainda mais os adolescentes, principalmente homens, a saírem de casa e, muitas vezes desaparecerem.

"Famílias que precisam estar fora trabalhando, também fizeram toda uma movimentação na pandemia. Isso sempre influencia no desaparecimento, principalmente do adolescente, porque ele é naturalmente empurrado para fora de casa, ainda que seja na calçada, mas ele fica sob os olhares da violência urbana, e, com isso, aumenta o desaparecimento", diz.

 

Registros de desaparecimentos

 

Os números divulgados não correspondem ao total de pessoas desaparecidas: uma pessoa pode ter mais de um registro de desaparecimento, feito por diferentes familiares, assim como em um boletim de ocorrência pode constar mais de uma pessoa desaparecida.

O Fórum Brasileiro de Segurança Pública divulga dados de desaparecidos em seus anuários desde 2017, mas estimar o número de pessoas que desaparecem anualmente segue sendo um desafio no Brasil, visto que o governo federal ou os estados não publicam estatísticas sobre o tema.

Embora a lei que cria o cadastro nacional de pessoas desaparecidas já tenha mais de três anos, até hoje o site do Ministério da Justiça informa que o sistema “está em construção” .

Como o desaparecimento não é considerado crime, é feito apenas o boletim de ocorrência e não há investigação até haver a suspeita de um crime --um homicídio ou um sequestro, por exemplo. A lei também obriga que o desaparecimento de crianças e adolescentes até 18 anos seja investigado, bem como o de pessoas com transtorno mental, mas, segundo a promotora Eliana Vendramini, apenas o desaparecimento de crianças até 12 anos é investigado no país.

Dia Internacional das Crianças Desaparecidas - Colegiado Nacional de  Gestores Municipais de Assistência Social

“A pessoa precisa fazer o boletim de ocorrência por desaparecimento logo nas primeiras horas que percebeu isso. Precisamos acabar com o mito do registro após 48 horas. A chance de encontrar uma criança logo após o desaparecimento é maior”, diz.

Segundo dados da promotora, o principal perfil da vítima de desaparecimento em São Paulo é: adolescente, negro e de periferia, o que coincide com o perfil da vítima de homicídio.

“A pesquisa [do MP] mostra o desaparecimento com pico aos 15 anos, cedendo aos 28 anos. A estatística está voltada para os adolescentes, mas o estado não quer investir como eles sendo vulneráveis”, diz

.Desaparecidos: não perca tempo, comunique imediatamente a Polícia – Governo  do Estado do Ceará

Os desaparecidos são sempre jovens. Jovens favelados negros e pobres. Que a pobreza e a favela têm cor.

O genocídio de jovens negros, alvos das racistas abordagens da polícia. A polícia das chacinas. 

 

O desaparecimento é considerado multicausal e pode ser:

 

  • Voluntário – quando a pessoa se afasta por vontade própria e sem avisar, o que pode acontecer por diversos motivos: desentendimento, medo, aflição, choque de visões, planos de vida diferentes.
  • Involuntário – quando a pessoa é afastada do cotidiano por um evento sobre o qual não tem controle, como um acidente, um problema de saúde, um desastre natural.
  • Forçado – quando outras pessoas provocam o afastamento, sem a concordância da pessoa. Como um sequestro ou a ação do próprio estado.

 

 

Favelados desaparecem nas abordagens policiais

 

Vendramini afirma que a lei 13.812, de 2019, que instituiu a Política Nacional de Busca de Pessoas Desaparecidas levou ao Ministério da Justiça a organizar grupos sobre o tema, mas o cuidado ainda é voltado para as crianças e, para ela, é "importante zelar pelo adulto da periferia masculino, vitima da violência urbana, da violência policial e do crime organizado".

Além disso, nos últimos anos, a Rede Integrada de de Bancos de Perfis Genéticos chamou famílias de desaparecidos, como no caso de Lucineide, para fornecer material genético para um confronto nacional.

"Fico analisando tudo, se deixei alguma ponta solta que não consegui enxergar [nesses 13 anos de buscas pelo filho] . Agora é a esperança com esse DNA. Tantos cemitérios clandestinos foram encontrados nos últimos anos. Esperamos que identifiquem", diz Lucineide.

Mas para Vendramini ainda é preciso criar um banco nacional de dados de desaparecidos para que as pontas soltas sejam encontradas

"O que falta é um banco nacional integrado. Ainda temos essa dificuldade de intercomunicação, enquanto não houver intercomunicação de dados, muitos serão os redesaparecimentos. O MP criou o Sistema Nacional de Localização de Desaparecidos (Sinalid) e ofereceu ao governo federal para acabar com essa interconexão de dados. O governo não pode banalizar a dor da ausência do luto", afirma.

 

Dia Internacional das Vítimas de Desaparecimentos Forçados | Secretaria  Municipal de Direitos Humanos e Cidadania | Prefeitura da Cidade de São  Paulo
 

Uma em cada quatro pessoas desaparecidas durante a ditadura militar era de São Paulo

 
 

 
10
Ago22

Janja defende Lula após ataque de Michelle Bolsonaro: 'Deus é amor e respeito'

Talis Andrade

O namoro e o futuro casamento foram anunciados pelo petista em um palanque montado por militantes assim que deixou a Polícia Federal em Curitiba, em 2019

 

A socióloga Rosângela Silva, a Janja, esposa do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) rebateu nesta terça-feira (9) o ataque da primeira-dama Michelle Bolsonaro ao petista.

Michelle compartilhou um vídeo em que Lula recebia a homenagem de um banho de pipoca, na Assembleia Legislativa da Bahia, e escreveu na legenda: “Isso pode, né? Eu falar de Deus não”.

No Twitter, mas sem citar nomes, Janja disse que Deus é “sinônimo de amor, compaixão e, sobretudo, de paz e respeito”.

Michelle ofendeu e jogou nas trevas milhões de brasileiros.

O filósofo João de Freitas informa:

O censo demográfico realizado em 2000, pelo IBGE, apontou a seguinte composição religiosa no Brasil:

* 73,8% dos brasileiros (cerca de 125 milhões) declaram-se católicos;
* 15,4% (cerca de 26,2 milhões) declaram-se evangélicos (evangélicos tradicionais, pentecostais e neopentecostais);
*
7,4% (cerca de 12,5 milhões) declaram-se sem religião, podendo ser agnósticos, ateus ou deístas;
* 1,3% (cerca de 2,3 milhões) declaram-se espíritas;
* 0,3% declaram-se seguidores de religiões tradicionais africanas tais como o Candomblé, o Tambor-de-mina, além da Umbanda;
* 1,8% declaram-se seguidores de outras religiões, tais como: as testemunhas de Jeová (1,1 milhão), os budistas (215 mil), os santos dos Últimos Dias ou mórmons (200 mil), os messiânicos (109 mil), os judeus (87 mil), os esotéricos (58 mil), os muçulmanos (27 mil) e os espiritualistas (26 mil).

Exaltemos a Cruz feita de um madeiro de Amor! | Padretojo.Net

“Eu aprendi que Deus é sinônimo de amor, compaixão e, sobretudo, de paz e de respeito. Não importa qual a religião e qual o credo. A minha vida e a do meu marido sempre foram e sempre serão pautadas por esses princípios”, declarou a socióloga Rosângela Silva.

De acordo com o portal Poder 360, a assessoria de Lula afirmou, por meio de nota, que o ex-presidente respeita as religiões e sua liberdade de culto e não hostiliza manifestações religiosas.

As religiões afro-brasileiras sob o arbítrio das autoridades

por Fernando Perez da Cunha Lima /Nexo

Esta dissertação de mestrado, realizada na USP (Universidade de São Paulo), detalha as estratégias de negociação com as autoridades empregadas por religiões afro-brasileiras no século 19, de modo a sobreviver a ataques num período em que suas práticas não contavam com ampla proteção legal — eram apenas permitidas.

Essa permissão era, entretanto, frágil e condicionada pela vontade dos inspetores de quarteirão e da polícia, que, por sua vez, sofriam pressões de setores intolerantes da sociedade. A repressão era justificada por argumentos que perduram até hoje: tentativas de negar o caráter religioso das cerimônias, acusações de feitiçaria e charlatanismo contra pais e mães de santo, e reclamações sobre o ruído dos atabaques.

1 A qual pergunta a pesquisa responde?

A dissertação objetivou, por meio da análise de reportagens, colunas, artigos, anúncios e folhetins, descobrir alguns vestígios dos fenômenos religiosos afro-brasileiros do século 19. As Constituições de 1824 e de 1891 asseguravam a liberdade de culto e crença (a primeira somente do culto doméstico), e os códigos criminais da época não proibiam as práticas religiosas afro-brasileiras. Todavia, os cultos dessas religiões eram os alvos preferenciais das ações repressivas da polícia e das campanhas difamatórias encampadas pelos periódicos, refletindo o pensamento social dominante. Contudo, alguns cultos, por meio de políticas de negociação, conseguiram evitar a repressão policial, e os seus sacerdotes ganharam fama, notoriedade e a proteção — ainda que precária — de membros da elite branca senhorial. Intentou-se compreender, de um lado, como se dava a permissão para a realização dos cultos e quais eram permitidos; de outro, quais não eram e quais acusações eram feitas aos partícipes e sacerdotes.

2 Por que isso é relevante?

A relevância do trabalho está no fato de muitas das justificativas utilizadas à época para perseguir e não permitir o livre desenvolvimento dos cultos afro-brasileiros serem utilizadas até os dias de hoje. Exemplos disso incluem as tentativas de negar o caráter religioso dessas manifestações, as acusações de feitiçaria e charlatanismo contra pais e mães de santo e as reclamações sobre o ruído dos atabaques usadas como fundamento para impedir cerimônias. Ainda, o trabalho proporciona um melhor entendimento das políticas de negociação que permitiram com que as religiões afro-brasileiras resistissem à escravidão e à repressão.

3 Resumo da pesquisa

A pesquisa buscou compreender a relação entre direito e as religiosidades afro-brasileiras no século 19. Para isso, os primeiros capítulos tratam de termos associados a essas práticas, como “batuques”, “zungus”, “casas de dar fortuna”, “candombes” e “candomblés” — buscou-se mapear em quais contextos e de quais formas essas expressões eram usadas para fazer referência a manifestações religiosas.

Por meio da análise de relatos sobre os objetos encontrados nessas localidades — como os manipansos, búzios, ervas, imagens de santos católicos, alguidares e utensílios de uso ritual —, visou-se traçar paralelos e aproximações entre as práticas religiosas afro-brasileiras da época e as atuais. As histórias de sacerdotes de cultos de origem africana foram usadas como meio de se vislumbrar como eram as cerimônias, bem como de entender como se davam as relações de negociação e acordo que permitiam que os cultos sobrevivessem, alçando à notoriedade alguns dos feiticeiros, curandeiros, ou sacerdotes, e lhes possibilitando galgar relativo sucesso econômico. Por fim, discutiu-se acerca da fragilidade dessa dinâmica e das razões que levaram a maior perseguição dos fenômenos religiosos afro-brasileiros no final do século 19.

4 Quais foram as conclusões?

Concluiu-se que, em que pese as práticas religiosas afro-brasileiras não serem expressamente proibidas pela legislação à época, tampouco eram inseridas na categoria de direito, a despeito dos dispositivos constitucionais. Não eram totalmente proibidas e não eram integralmente autorizadas. As formas da religiosidade afro-brasileira no século 19 eram apenas permitidas.

Havia, pois, um complicado equilíbrio de acordos e negociações para que as práticas fossem permitidas. Para que as cerimônias pudessem ser realizadas, contava-se com a anuência dos inspetores de quarteirão, que conferiam espécie de licença informal aos cultos. Isso fazia com que aqueles contrários às práticas religiosas recorressem aos escalões mais elevados da polícia, lançando mão de campanhas midiáticas para pressionar as autoridades. Dessa forma, a permissão podia ser revogada a qualquer tempo, bastando para isso uma simples mudança de conduta do inspetor, do delegado ou de seus superiores. O exercício de liberdades constitucionais ficava então condicionado ao arbítrio desses agentes, sujeitos a todo tipo de pressão popular.

Logrou-se comprovar que alguns feiticeiros, curandeiros e outras formas de denominação de sacerdotes de cultos afro-brasileiros conseguiram manter suas práticas e casas ativas durante largo período de tempo, com pouca ou nenhuma importunação da polícia — obtendo, inclusive, relativo sucesso financeiro e popularidade. A resistência cotidiana às imposições da sociedade escravocrata, manifestada aqui pela manutenção das práticas religiosas, fez com que os cultos de origem africana sobrevivessem à diáspora, se reinventassem no Brasil como cultos afro-brasileiros e se perpetuassem até os dias atuais.

5 Quem deveria conhecer seus resultados?

Todos que se interessem pela relação do direito com a intolerância às religiões afro-brasileiras ou pela história de resistência à escravidão que nos é contada por tantos pais e mães de santo.

Fernando Perez da Cunha Lima é mestre em filosofia e teoria geral do direito pela FD-USP (Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo), bacharel em direito pela mesma instituição.

Referências:

  • CHALHOUB, Sidney. A força da escravidão: ilegalidade e costume no Brasil oitocentista. 1ª edição. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.
  • SAMPAIO, Gabriela dos Reis. A história do feiticeiro Juca Rosa: cultura e relações sociais no Rio de Janeiro imperial. Campinas, 2000. Tese (Doutorado em História) - Departamento de História da Unicamp, Universidade Estadual de Campinas, 2000.
  • SOUZA, Rafael Pereira de. “Batuque na cozinha, sinhá não quer!”. Repressão e resistência cultural dos cultos afro-brasileiros no Rio de Janeiro (1870-1890).2010. 139 f. Dissertação de Mestrado, Instituto de Ciências Humanas e Filosofia da Universidade Federal Fluminense, Rio de Janeiro, 2010.
  • POSSIDONIO, Eduardo. Entre ngangas e Manipansos: a religiosidade centro-africana nas freguesias urbanas do Rio de Janeiro de fins do Oitocentos (1870-1900). Dissertação de Mestrado, Universidade Salgado de Oliveira. Rio de Janeiro, 2015.
  • REIS, João José. Domingos Sodré, um sacerdote africano: escravidão, liberdade e candomblé na Bahia do século XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.

 

Encontro de Lula com o Movimento Social Negro da Bahia

27
Jul22

Homens, negros e de favela são os principais alvos nas abordagens policiais, diz pesquisa

Talis Andrade
 
Foto: Bruno Itan
Foto: Bruno Itan

 

A segunda edição do relatório “Elemento Suspeito”, do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania, aponta que 63% dos enquadros são em pessoas afrodescendentes
 
23
Jul22

O que pode e o que não pode na pré-campanha. Episódio de hoje: chacina

Talis Andrade

Deputado Federal Carlos Jordy - Portal da Câmara dos Deputados

Carlos Jordy bolsonarista aprova sangreira de negro pobre

 

Deputado bolsonarista Carlos Jordy, que é ligado ao Bope do Rio, não exatamente se fez de rogado para esfregar na cara do Ministério Público, STF, TSE e favelas cariocas (“serve de aviso”) o que foi que aconteceu no Alemão.

 

por Hugo Souza

Antes do massacre no Complexo do Alemão, na Zona Norte do Rio de Janeiro, neste ano de 2022, a chacina mais recente que tinha sido promovida pelo Bope no Alemão também aconteceu em ano eleitoral, em 2020.

Na época, o site Ponte chamou atenção para que o Bope produzira 13 mortos para apreender oito fuzis. Nesta quinta, no mesmo Alemão, foram uma metralhadora, duas pistolas e quatro fuzis apreendidos e 19 cadáveres no chão – ainda contando, incluindo um policial e igualando o número de mortos da tragicamente emblemática chacina policial no Alemão durante os jogos Pan-Americanos de 2007.

Quando aconteceu a chacina de 2020, Wilson “mirar na cabecinha” Witzel ainda era governador. Hoje, Marcelo Freixo é pré-candidato, e forte, ao governo do estado do Rio, e seu principal adversário é Claudio Castro, o ex-vice de Witzel que agora tenta a reeleição.

Com tantos crimes a serem apurados na comarca fluminense, os Bolsonaro não gostariam nada de ver Marcelo Freixo eleito governador.

Nesta quinta, enquanto corpos ainda esfriavam em caçambas, o deputado federal

Nesta quinta, enquanto corpos ainda esfriavam em caçambas, o deputado federal bolsonarista Carlos Jordy, que é ligado aos Bolsonaro e ao Bope do Rio, não exatamente se fez de rogado para esfregar na cara do Ministério Público, STF, TSE e favelas cariocas (“serve de aviso”) o que foi que aconteceu no Alemão, além de chacina: um ato de campanha, estadual e nacional.

Jordy jamais condenou o genocídio da pandemia, a estratégia de propagação, para obter a imunidade de rebanho, vide o atraso na vacinação e o morticínio de Manaus, e o kit cloroquina me engana. 

Jordy jamais condenou o genocídio de jovens negros. O racismo policial contra pobres, negros, favelados. Sempre condenou as câmaras de filmagem acopladas aos uniforme dos militares em serviço. 

Jordy jamais condenou o genocídio dos povos indígenas, as terras invadidas pelos grileiros, madeireiros, garimpeiros, caçadores, pescadores, a Amazônia sem lei dos traficantes nacionais e internacionais. 

 

É piada de mau gosto Freixo querer ser Governador do RJ sendo do partido q acionou o STF p/ impedir operações policiais contra o tráfico. O confronto no Complexo do Alemão serve de aviso: quanto menos operações, mais os criminosos se estruturam. Freixo e Lula têm o mesmo projeto!

— Carlos Jordy (@carlosjordy) July 21, 2022

, que é ligado aos Bolsonaro e ao Bope do Rio, não exatamente se fez de rogado para esfregar na cara do Ministério Público, STF, TSE e favelas cariocas (“serve de aviso”) o que foi que aconteceu no Alemão, além de chacina: um ato de campanha, estadual e nacional.

É piada de mau gosto Freixo querer ser Governador do RJ sendo do partido q acionou o STF p/ impedir operações policiais contra o tráfico. O confronto no Complexo do Alemão serve de aviso: quanto menos operações, mais os criminosos se estruturam. Freixo e Lula têm o mesmo projeto!

— Carlos Jordy (@carlosjordy) July 21, 2022

Jordy é uma piada. Jamais condenou o tráfico de armas, de ouro, de pedras preciosas, de dinheiro (os doleiros), de madeira nobre, de produtos florestais, de minérios estratégicos, principalente o nióbio. Jamais condenou o desmatamento da Amazônia, pela grilagem de terra. Jamais condenou o tráfico internacional de coca, que passa pelo Vale do Javari, terra indígena, supostamente protegida pela Funai, tríplice fronteira abandonada pela Polícia Federal e pelas forças armadas. 

Um povo que aprova chacina, em um país que não existe pena de morte, é um povo cruel, que aplaude assassinatos quando praticados por ricos,  pelos militares, pelos policiais como acontecia no Coliseu dos imperadores romanos. Um povo que se alegra com a morte no circo eleitoral (panem et circum)

17
Jun22

Aline Midlej e o assassinato de Genivaldo de Jesus Santos

Talis Andrade

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Da esquerda pra direita: prints da Folha de S. Paulo (online), Portal G1/SE e Portal NE10 (Recife): títulos que vão da omissão, confusão até a precisão. "O que temos ali é um camburão da polícia brasileira, transformado em câmara de gás, asfixiando mais um cidadão negro deste país, indefeso, desarmado" (Aline Midlej).

 

por Samuel Pantoja Lima /objETHOS

- - -

Final da manhã de 25 de maio, em Umbaúba, litoral de Sergipe, às margens da BR-101 (km 180). O Estado mata, após brutal sessão de tortura, o cidadão brasileiro Genivaldo de Jesus Santos, 38 anos, negro, casado, pai de dois filhos, portador de esquizofrenia, na frente de várias pessoas. As imagens gravadas pelos celulares das testemunhas são chocantes: Genivaldo é jogado violentamente no chão, amarrado (pés e mãos), estava sozinho, desarmado, portanto, sem oferecer perigo algum aos policiais rodoviários federais, todos armados. Seu crime: transitava pela rodovia federal numa moto, sem capacete.

Os cinco agentes da Polícia Rodoviária Federal (PRF), que atuavam com a legitimidade do Estado, representando a sociedade brasileira, passaram de agentes da lei a criminosos, em pouco mais de 30 minutos. Ali mesmo, à luz do dia e em frente a dezenas de testemunhas, iniciaram uma sessão de tortura com uma “câmara de gás (pimenta e lacrimogêneo)”, no porta-malas do carro da polícia, fechando-o sobre as pernas de Genivaldo. Os dois policiais que o jogaram no porta-malas ignoraram a informação de Walissom de Jesus, um sobrinho, de que o tio era cardíaco e portador de esquizofrenia. O laudo do Instituto Médico Legal de Sergipe não deixou a menor sombra de dúvida: Genivaldo morreu “por insuficiência aguda provocada por asfixia mecânica”.

 

A posição da imprensa hegemônica

 

Como reagiu a mídia hegemônica e os projetos independentes diante de crime tão bárbaro – mais um – contra pessoas negras?

Entre a indiferença da “objetividade” (“isenção”, “neutralidade”), o jornalismo hegemônico (representado pelas empresas do mainstream) capricharam em títulos e manchetes que foram do nada a lugar nenhum. Vejamos alguns exemplos: “Homem morre asfixiado após ser trancado em viatura por agentes da Polícia Rodoviária Federal em SE” (Folha de S. Paulo, online – versão que ficou no ar por mais de uma semana); “Homem é morto após ser trancado com gás em viatura da PRF, em Sergipe” (O Estado de S. Paulo); “Homem morre após ser abordado e colocado em viatura da PRF em Sergipe; veículo estava tomado por fumaça” (Portal G1/SE); e um dos jornais mais tradicionais do Nordeste, o Diário de Pernambuco, assim noticiou o crime: “Homem morre após abordagem policial violenta em Sergipe”. Na mídia profissional independente, o fato assim foi noticiado: “Familiares pedem justiça pela morte de Genivaldo de Jesus” (Nexo Jornal); “Aqui estão os nomes dos agentes da PRF que admitem ter detido Genivaldo, asfixiado em viatura” (The Intercept Brasil, já no dia 26/06).

Os enquadramentos, títulos e lides foram cuidadosamente editados para evitar uma descrição rigorosa, que em princípio apontasse como crime uma ação de Estado, contra um cidadão negro, desarmado, à vista de tantas testemunhas, com imagens gravadas por celulares, que foram veiculadas na imprensa internacional – imediatamente sendo comparadas ao caso George Floyd (EUA, maio de 2020). Faltou apuração? Muito provavelmente, não. Prisioneiro de valores seculares que não consegue mais responder à contundência dos fatos – tal como o que ora discutimos neste texto – o jornalismo hegemônico (monopólio de mídia) zanza pelo labirinto da falsa equivalência, à busca de uma “objetividade” que o afasta das vivências diárias da maioria da sociedade, que enfrenta no seu cotidiano as consequências da desumana e abjeta desigualdade social, a violência policial contra mulheres, negros, imigrantes, comunidade LGBTQIA+ e os chamados “setores vulneráveis” da população. Para estes milhões de brasileiros e brasileiras (dos quais, mais de 33 milhões passam fome, na mesma situação dos anos 1990), o monopólio da mídia jornalística comercial responde com indiferença, falta de empatia, passividade e desfaçatez.

Desta breve pesquisa, destaco que somente o Portal UOL, reproduzindo reportagem publicada em site parceiro (NE10 – do grupo Jornal do Commercio de Comunicação), descreveu precisamente a verdade factual, que gritava nas imagens, rasgadas pelos gritos de pavor de Genivaldo: “Assassinado em câmara de gás da PRF, Genivaldo de Jesus morreu exatamente 2 anos após o caso George Floyd”. O NE10 manteve a mesma linha, no dia seguinte, com extremo rigor, o conteúdo singular dos fatos: “Homem desarmado grita até a morte em ‘câmara de gás’ provocada pela polícia”.

Somente cinco dias após o crime, a revista eletrônica Fantástico confirmou “os nomes dos três policiais rodoviários federais envolvidos na ação que provocou o sufocamento com gás lacrimogêneo de Genivaldo de Jesus Santos na última quarta-feira (25), em Sergipe: Kleber Nascimento Freitas, Paulo Rodolpho Lima Nascimento e William de Barros Noia. Eles foram afastados pela PRF e estão sendo investigados em um procedimento administrativo disciplinar”. Na mídia independente, os nomes dos cinco agentes envolvidos no assassinato já tinham sido publicados, após simples apuração no Boletim de Ocorrência (BO), pelo site The Intercept Brasil, no dia seguinte (26/05): “Os cinco agentes que registraram boletim de ocorrência policial pela detenção que resultou na morte de Genivaldo de Jesus Santos numa viatura da Polícia Rodoviária Federal são Clenilson José dos Santos, Paulo Rodolpho Lima Nascimento, Adeilton dos Santos Nunes, William de Barros Noia e Kleber Nascimento Freitas”.

 

Uma voz dissonante

 

Considerando o peso dos telejornais no cardápio noticioso da sociedade, observamos dois exemplos da mesma emissora – o Grupo Globo. Na edição de 26/05, do Jornal das 10 (J10), da GloboNews, a jornalista Aline Midlej assumiu uma posição sem meias palavras, chamou pelo nome o crime e demonstrou de que lado o Jornalismo deveria estar quando o Estado se transforma em assassino. Empatia, respeito à objetividade dos fatos, indignação e um posicionamento jornalístico digno da profissão.

Aline usou sua prerrogativa de âncora e analisou o fato: “A cada massacre, morremos mais um pouco como humanidade. E seguimos morrendo, asfixiados. O que temos ali é um camburão da polícia brasileira, transformado em câmara de gás, asfixiando mais um cidadão negro deste país, indefeso, desarmado. Asfixiados, de novo. A consciência pesa, a indiferença oficial, violenta; falta ar”, disse Aline, visivelmente tocada pelo crime hediondo. A jornalista é uma profissional de destaque da nova geração, pessoa negra, que tem se notabilizado pela capacidade de análise dos fatos, especialmente nas pautas sobre violência do Estado contra os grupos sociais vulneráveis, no geral. Ela tem indicado, com firmeza, empatia, precisão e rigor, um caminho de “resistência para não banalizar a barbárie e a calamidade” – como intitulou sua “Crônica da Semana”.

O assassinato de Genivaldo foi apresentado por outro nome no principal espaço do jornalismo brasileiro, na abertura do Jornal Nacional (edição de 26/05/22), durante mais de 4min. Na “escalada”, o apresentador William Bonner destaca a reportagem projetando as imagens do assassinato, mas chama de outro nome, ‘abordagem’: “A Polícia Federal abre inquérito sobre a morte de um homem abordado por policiais rodoviários federais, em Sergipe”. A narrativa factual tropeça nas palavras, e mais adiante o âncora do JN repete ao chamar a reportagem: “A Polícia Federal abriu inquérito para investigar uma abordagem da Polícia Rodoviária Federal, que terminou em morte em Sergipe” (grifos meus). Sob a capa da suposta “objetividade”, segue a narrativa contra as imagens, sem perplexidade, espanto, indignação ou qualquer resquício de empatia com o cidadão brasileiro assassinado pelo Estado. Na reportagem, uma mulher negra denuncia: “Foi um assassinato, uma grande covardia”, mas para a PRF, tratou-se apenas de um gesto de “contenção” de Genivaldo – que, segundo os policiais, estava muito “agitado”.

Na longa reprodução da nota oficial da PRF, a narrativa do JN (repórter local), contemplou a mentira do agente de Estado: a versão de que a caminho da delegacia, o “conduzido” passou mal e foi levado ao hospital, “onde possivelmente devido a um mal súbito o indivíduo veio a óbito”. A jornalista Carla Suzanne entra, neste momento, para fechar a reportagem: “o Instituto Médico Legal (IML) de Sergipe informou que a causa da morte de Genivaldo foi insuficiência respiratório aguda e asfixia”. Qual o sentido de veicular a nota (com destaque e recorte na tela) com a informação falsa da Polícia Rodoviária Federal sobre a causa mortis do cidadão sergipano? Exercício de “doisladismo”? Mas, novamente, a PRF ganha destaque final na voz do próprio William Bonner: “A Polícia Rodoviária Federal declarou que está comprometida com a apuração do caso, instaurou processo disciplinar e afastou os envolvidos” (grifos meus). Ou seja, a corporação que agiu em nome do Estado e assassinou um cidadão brasileiro se diz “comprometida” com a “apuração do caso”. Caso? Outro sinônimo inadequado, um eufemismo comum no discurso da mídia corporativa: ao invés de dizer que fulano é “racista” eu digo que ele é “supremacista branco”. Neste caso, ao invés de escrever que o Estado (por meio da barbárie cometida por esses agentes) praticou um “crime” as notícias trazem a expressão “abordagem” e o sujeito da ação é seu próprio algoz – “Homem morre…”. O núcleo duro da singularidade noticiosa é a morte de Genivaldo (e suas circunstâncias), e não as “notas oficiais” da PRF, que ocuparam mais de 30% do tempo dedicado à pauta pelo JN.

O jornalista José Henrique Mariante (ombudsman da Folha de S. Paulo) criticou a forma e conteúdo da notícia publicada pelo jornal, em sua coluna (edição 28/05/22). Num intertítulo “Matar ou morrer”, ele escreveu: “‘Homem morre asfixiado após ser trancado em viatura por agentes da Polícia Federal em SE’. ‘Polícia mata homem por asfixia com gás em Sergipe’. Entre o primeiro título, no site, e o último, na Primeira Página do impresso, a Folha mudou o sujeito e o verbo da notícia. É uma diferença importante, mas o leitor atento pergunta se o primeiro enunciado já não deveria ter ido direto ao ponto. Talvez faltasse apuração para tanto na hora da publicação, mas, com ela realizada, não era o caso de ajustar o título inicial?”. Naquela altura dos acontecimentos, passados mais de um dia do assassinato, com tantas testemunhas e imagens circulando intensamente, não faltavam elementos de apuração.

Em última análise, é possível afirmar que a noção enviesada e rasa de “democracia”, defendida pelas empresas que compõem o monopólio de mídia no país, aparece com força nesse tipo de crime. É um tal de “passar pano”, dar “notas oficiais”, chamar crime de “abordagem”, “câmara de gás” como “viatura” etc. Resta uma dúvida final: o fio condutor desse tipo de cobertura é resultado de simples mimetização de valores seculares passados (objetividade, neutralidade, isenção), que não mais respondem aos desafios do tempo presente, neste contexto social cada vez mais desigual, em todo o mundo, ou uma envergonhada adesão ao projeto de poder ora representado por este governo de extrema-direita? A ver os desdobramentos dos casos de violência que o cenário eleitoral de 2022 vai, inevitavelmente, gerar.

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