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O CORRESPONDENTE

Os melhores textos dos jornalistas livres do Brasil. As melhores charges. Compartilhe

Os melhores textos dos jornalistas livres do Brasil. As melhores charges. Compartilhe

O CORRESPONDENTE

21
Nov23

Dia da Consciência Negra: pra quem serve?

Talis Andrade
 
25
Set23

Mãe Bernadete e a luta quilombola censurada pelo juiz George Alves de Assis

Talis Andrade
 

Quem mandou matar mãe Bernadete deseja a posse da ilha quilombola de Boipeba na Bahia

 

Em nova decisão, o juiz George Alves de Assis impôs outra censura ao Intercept. Agora, não podemos falar nada a respeito da luta de Mãe Bernadete.

Flavio VM Costa

A luta pela liberdade de imprensa nunca termina. E nossa trincheira agora é na justiça da Bahia.

O juiz George Alves de Assis impôs nova censura ao Intercept, em mais uma decisão que viola a Constituição vigente no país. 

Neste texto, que você agora não pode ler, nós informamos a censura anterior imposta pelo mesmo juiz nos autos do processo 8120612-07.2023.8.05.0001, que corre na 7ª Vara Cível e Comercial de Salvador. É uma censura em dobro!

12
Jun23

Silvio Almeida fala ao Barão e às mídias independentes [vídeos]

Talis Andrade

 

 

Em encontro remoto na tarde desta terça-feira (6), o ministro dos Direitos Humanos e da Cidadania, Silvio Almeida, participou de coletiva com mídias independentes na qual tratou dos desafios da pasta - em especial, a luta de ideias para que a sociedade entenda a sua importância.

No encontro promovido pelo Centro de Estudos da Mídia Alternativa Barão de Itararé, 10 jornalistas tiveram a oportunidade de dirigir perguntas ao ministro, que transitaram entre temas como a atenção às comunidades indígenas e populações periféricas; os esforços por memória, verdade e justiça em relação à ditadura; a punição aos responsáveis pela tentativa de golpe do dia 8 de janeiro de 2023; dentre outros.

Segundo o ministro, advogado, filósofo e professor acadêmico, há uma disputa ideológica em torno do tema. "Parcela expressiva da população sente ódio dos Direitos Humanos, com uma noção equivocada do que significam". "Há uma manipulação do discurso sobre o tema sobre como se fosse uma licença para retirar das pessoas a sua segurança", complementa Almeida, "confundindo a defesa dos Direitos Humanos como se fosse a defesa do crime".

Autor de "Racismo estrutural", uma das obras que balizam o debate antirracista no país hoje, o ministro avalia que os direitos humanos devem perpassar todas as políticas públicas, inclusive a economia. "É preciso transformar o tema em debate sobre economia política. Precisamos conquistar corações e mentes, estabelecendo os Direitos Humanos como parte fundamental da nossa experiência vital, do nosso modo de vida no Brasil". Assista na íntegra ao papo e inscreva-se no #canaldobarão!

SOBRE O ENTREVISTADO

Silvio Almeida é advogado, professor e escritor, e atualmente ocupa o cargo de Ministro de Estado dos Direitos Humanos e da Cidadania do Brasil. É doutor em direito pelo departamento de filosofia e teoria geral do direito da Universidade de São Paulo, com pesquisas de pós-doutoramento em direito e em economia. É professor da faculdade de direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie, tanto na graduação como no programa de pós-graduação Stricto Sensu. Também é professor das escolas de administração e de direito da Fundação Getúlio Vargas. Em 2020, foi professor visitante no Centro de Estudos Latino-Americanos e Caribenhos da Universidade de Duke (EUA), e em 2022 foi professor do Instituto de Estudos Latino-Americanos da Universidade de Columbia na Cidade de Nova York (EUA). Silvio destacou-se por sua atuação à frente do Instituto Luiz Gama, organização da sociedade civil que visa à inclusão de minorias e à promoção de uma educação antirracista. Nos últimos anos proferiu palestras e nacionais e internacionais sobre temas relacionados ao direito, à filosofia, à economia política, aos direitos humanos e às relações raciais.

SOBRE O BARÃO DE ITARARÉ

Fundado em maio de 2010, O Centro de Estudos da Mídia Alternativa Barão de Itararé consolidou-se como um dos espaços mais vibrantes da luta pela democratização da comunicação no país. Em seus 13 anos de atuação, o Barão apostou na promoção de atividades que investem na formação de comunicadores - debates, seminários, cursos e palestra sobre mídia, democracia, liberdade de expressão, políticas públicas de comunicação e temas correlatos - e também na criação e fortalecimento de fóruns de debate e ação sobre a agenda em torno desses temas.

A organização também funciona como um selo editorial através do qual publica livros, como "Direitos negados – Um retrato da luta pela democratização da comunicação" (2015), "A mídia descontrolada - episódios da luta contra o pensamento único" (2019) e "Democratizar a comunicação: teoria política, sociedade civil e políticas públicas" (2022). Além de sua coordenação executiva, que reúne nomes bastante representativos de entidades do movimento social brasileiro, a entidade conta com um extenso conselho consultivo, no qual figuram importantes nomes da academia, do jornalismo, da comunicação, da cultura e dos movimentos populares do país.

Organização suprapartidária, o Barão notabilizou-se como a casa das mídias alternativas, independentes e populares, transcendendo matizes partidárias e abraçando todo o campo progressista na missão de tratar a comunicação como campo estratégico e decisivo para garantir um Brasil mais justo, democrático e plural. Até por isso, a entidade é conhecida pelo seu espírito de “unidade na diversidade”. O nome “Barão de Itararé” é uma homenagem ao jornalista Aparício Torelli (1895-1971), considerado um dos fundadores da imprensa alternativa no país e o pai do humorismo político no Brasil.

07
Jun23

Quem defende a infância indígena?

Talis Andrade
 

MÁRCIA VAICOMEM VEI-TCHÁ TEIÊ COM A FILHA SOFHYA KOZIKLA PRIPRA, EM FRENTE À RÉPLICA DA CASA SUBTERRÂNEA USADA ANTIGAMENTE PELOS XOKLENG PARA SUPORTAR O FRIO NA ALDEIA BUGIO, EM JOSÉ BOITEUX. FOTO: DANIEL CONZI/SUMAÚMA

 

Diário de Guerra

O marco temporal: das crianças espetadas em facas ao racismo do governo de Santa Catarina -II

 

POR ÂNGELA BASTOS /SUMAÚMA

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(Continuação) A tensão que antecede o julgamento do marco temporal no Supremo atinge até a comunidade escolar. A preocupação cresceu depois que circulou um vídeo protagonizado por lideranças políticas e agricultores da região que falam em “banho de sangue” e “guerra civil” caso os “capas pretas” (os ministros do Supremo) só olhem para os interesses dos indígenas. Narrado pelo deputado federal Rafael Pezenti (MDB-SC), o vídeo ressalta a importância da “propriedade privada” e das escrituras emitidas a quem comprou a terra, dizendo ser “muito ruim quando a história da gente é jogada na lata de lixo”. O deputado em nenhum momento menciona o que foi feito com o passado ancestral dos Xokleng e a relação deles com a terra, alguns milênios antes da vinda dos imigrantes europeus. Ele encerra afirmando que, se o STF cometer essa “injustiça” (contra o marco temporal), isso será corrigido com “sangue derramado”.

 Terrorismo golpista e racista, Pezenti ameaça derramar sangue indígena

 

Para não espalhar o pânico, as lideranças pediram aos indígenas que não compartilhassem o conteúdo. Mesmo assim, muitos tiveram acesso a ele. Os professores temem represálias e cogitam a antecipação para 5 de julho das férias marcadas para o dia 15 de julho.

Preocupa especialmente a situação dos alunos da educação infantil, que precisam sair dos limites da terra indígena. Todos os dias, a partir das 6 horas, o ônibus com os alunos percorre a estrada que passa por área de agricultores em conflito. Com a invasão de uma creche em Blumenau, em 5 de abril, e o assassinato de quatro crianças, a segurança foi reforçada nas escolas da rede pública estadual. Esse é o caso da Escola Indígena de Educação Básica Laklãnõ, na aldeia Plipatõl, onde vigias se revezam e cones foram colocados no acesso principal. Ninguém entra sem ser identificado.

Mesmo assim, os educadores indígenas estão com medo. “A nossa briga não é contra os agricultores, que também são vítimas do Estado, que vendeu terras que não eram dele, mas a gente sabe que em situações assim as crianças ficam sempre mais vulneráveis”, diz a vice-cacica Jussara Reis dos Santos, 37 anos, filha de mãe Xokleng e de pai descendente de imigrante europeu.

Entre as mulheres, especialmente, a preocupação é maior. Assustadas, algumas pedem para não ser identificadas. “No campo, todo mundo tem arma em casa. A gente sempre enfrentou preconceito pela nossa condição de vida, mas a relação com os vizinhos era normal”, conta uma Xokleng. “Com o marco temporal ficou pior, e nós, as mães, temos medo porque tem muito registro [de armas] de caçadores [Colecionadores, Atiradores desportivos e Caçadores, os CACs].” A fala reflete o temor das mulheres às consequências da política do governo Bolsonaro de incentivo ao porte de armas em todo o Brasil.

AULAS DE ARTESANATO NA ESCOLA INDÍGENA ALDEIA BUGIO, EM DR. PEDRINHO. FOTO: DANIEL CONZI/SUMAÚMA

 

Pelos menos 150 Xokleng devem acompanhar a votação nesta quarta-feira em Brasília. Um quarto ônibus parte de Florianópolis com estudantes indígenas da Universidade Federal de Santa Catarina. Nas aldeias, a vontade de participar desse momento histórico é grande. Tanto que cada um dos nove caciques teve que indicar quem faria parte da comitiva. De acordo com Tucum Gakran, cacique-presidente, a incerteza sobre o que vai acontecer em 7 de junho foi considerada. “Não se pode deixar a comunidade desguarnecida, e isso pode acontecer caso a votação se prolongue por alguns dias. Nós encaminhamos ofício ao Ministério Público Federal e ao Ministério dos Povos Indígenas pedindo o envio de policiais federais”, explica ele, que é morador da aldeia Coqueiro. Com relação à antecipação das férias escolares, o cacique disse que a ideia não deve avançar, pois seria necessário encaminhar um pedido formal à Secretaria de Estado da Educação. “O governo de Santa Catarina não está do nosso lado. Além da ação que deu origem ao marco temporal, o atual governador, Jorginho Mello [PL], tem feito forte pressão em Brasília contra a causa Xokleng. Temos professores concursados e tememos que também sofram alguma perseguição”, prevê Tucum.

20
Mai23

Consciência negra

Talis Andrade

 

Foto de Christiana Carvalho
 
 

Em vias públicas, mãos, fuzis e revólveres policiais levam a cabo a perfuração que verte o sangue negro no asfalto quente, em becos e vielas nos quais jorram a vida preta entre os ralos da miséria e do esquecimento

 

por Diego dos Santos Reis /A Terra É Redonda

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Passadas as celebrações do novembro negro e do mês que, em nome de Zumbi e Dandara dos Palmares, rememora, denuncia e exige reparações históricas à população negra brasileira, parece vigorar certo silêncio após a efeméride, no que diz respeito à (in)consciência negra nacional. Reinam, todavia, as imagens associadas à violência, ao genocídio, ao caos e aos casos nunca isolados de racismo que, de norte a sul, cortam o território amefricano. Casos que dilaceram famílias e comunidades, aniquilam sujeitos e arrasam possibilidades de vida plena e digna, tal como garantido na Carta Constitucional brasileira.

Imagens de controle, como enunciadas por Patricia Hill Collins, que reforçam práticas de dominação, criminalização e violência, física e simbólica, voltadas à estigmatização e à legitimação de suas próprias operações de morte. Se a morte ocupa um lugar fundamental nessa produção imagética é na medida em que se constitui como ponto de partida, sob a perspectiva do supremacismo branco, do que seja o destino natural e original do corpo negro, que da morte-em-vida à morte factual passaria de um estado de não-ser ao desaparecer, como o desvanecer da imagem de um fantasma – entre mundos, medos e modos de ser pautados pelo negativo.

Em vida, porém, a consciência retinta de ser, de viver e a teimosia tomam forma, rosto, nome e figura do que, sendo, insiste em desarticular os mundos de morte da branquitude e seus mecanismos de sufocamento, acionados por vias diversas. Em vias públicas, mãos, fuzis e revólveres policiais levam a cabo a perfuração que verte o sangue negro no asfalto quente, em becos e vielas nos quais jorram a vida preta entre os ralos da miséria e do esquecimento; em vias privadas, pelas mãos de algozes e feitores que chamam de amor (?) a doença que extirpa, subjuga e liquida as vidas de mulheres, sobretudo negras, encontradas em sacos pretos, rios, azulejos frios, imobilizadas em fotos que estampam, cotidianamente, pequenos retângulos de jornais sanguinolentos (até quando?).

Ceifadas, entre promessas de amor eterno e o eterno pedido de desculpas das forças policiais e chefes de Estado, desaparecem, em preto e branco, histórias, narrativas e memórias daquelas que, chacinadas, são condenadas sem inquérito, enquanto co-mandantes são condecorados em cerimônias oficias e oficiosas.

Penso nesses rostos enquanto escrevo e vejo o sorriso, os sulcos da pele, as marcas e linhas longas da vida – interrompidas. Penso nas vidas negras que importam, dizem, e, todavia, seguem conscientemente exterminadas por mãos apocalípticas enquanto, nas escolas, tentamos fazer valer a lei da vida, a lei da justiça e do ensino de história e cultura daquelas que, antes de nós, em diáspora, fizeram valer com seu suor a contra-lei do mundo dos homens injustos.

Passados 20 anos de promulgação da Lei 10.639/03, silentes ou complacentes, a conveniência segue esbranquiçando itinerários formativos. Mas o poder do brado negro desafia o silêncio reinante. Peleja, retumba, sacoleja e desarranja os ritos (fúnebres) de histórias lineares, pomposas e heroicas que não mencionam Dandara, Aqualtune, Marielle, Lélia e Sueli, porque, ali, o pacto sa(n)grado é branco, no masculino.

A consciência nossa é ciência, suor e roda. É repente, desafio e capoeira, ginga com os arranjos, institucionais ou não, há séculos organizados para transportar os corpos em tumbeiros, caveirões e rabecões, para quem a morte passa a ser pena capital e não parte da existência e do mundo compartilhado com a ancestralidade. Até a morte foi saqueada. E soterrada em covas rasas, sem nome, placa ou documento de identificação, para que a indigência devorasse, com o bico afiado, a carne putrefata de quem sonhava com casa própria, formatura e família grande, como Kethlen Romeu e seu filho, assassinado no ventre.

Vingar ainda é desafio na diáspora. Vingar até a última gota de vida, o desafio nas 52 semanas e 1 dia de consciência negra, que perfazem um ano. Nele, todos os dias são voltados ao desfazimento do pacto funesto. Todos os dias são voltados à lembrança do que, recalcado, não pode contentar-se com um único dia ou mês do ano. Emerge, dia a dia, porque nascido em zona de emergência. Contra a virulência, insurgente, gesta resistência na negra consciência da luta pelo que é, foi e será. Todos os dias do ano.

 

27
Abr23

#ToComMST vai aos trends após CPI que tenta criminalizar trabalhadores Sem Terra

Talis Andrade

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“Mata, mata os baiano!”: notas sobre o regime escravocrata no Rio Grande do Sul

 

247 - Após o anúncio da criação de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) para investigar as atividades do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), as redes sociais foram tomadas por manifestações virtuais de apoio ao movimento nesta quinta-feira (27), identificadas com a hashtag #ToComMST.

Apesar das tentativas da direita de demonizar e criminalizar o MST, alegando que o movimento comete invasões rurais ilegais sem propósito, os internautas ressaltaram a importância dos avanços promovidos pelo mesmo, como a democratização da produção e distribuição de alimentos, a luta pela Reforma Agrária e o desenvolvimento de Cooperativas e agroindústrias no país, entre outros.

Valmir Assunção
@DepValmir
 Defender o é lutar contra a fome, contra as desigualdades sociais e visualizar o trabalho cooperativo. Apoiar o MST é apoiar mais de 160 Cooperativas, 120 agroindústrias, 1900 associações e principalmente às mais 450 mil famílias assentadas. #TôComMST
Imagem
 
por Pedro Marchioro
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Entre 2013 e 2016, fui membro do Núcleo de Estudos do Polo Naval, grupo interdisciplinar que buscava abarcar as várias dimensões do fenômeno do Polo Naval de Rio Grande, cidade ao sul do Estado. Era quase impossível não estudar o quadro digno de filme: uma cidade tranquila que dispunha de um ritmo modesto em sua dinâmica comercial, com menos de 100 mil habitantes voltados a uma cultura semi-comunitária; economia apoiada nos serviços, no pequeno comércio, na pesca, o fator que a predispunha diretamente ao mundo era o antigo porto (desde finais do século XIX) e a Universidade de Rio Grande ainda recente em seu território.

 Como descrevi no livro Das migrações: processos culturais e construção da identidade no sul do Rio Grande do Sul, meu problema era um conflito pitoresco que se desenrolava entre os habitantes locais “gaúchos” e os “baianos”. À primeira impressão, um conflito entre aspas, sempre contado em tom de piada, como algo não sério, um resmungo dos gaúchos quase folclóricos, aquela figura que eles mesmos descrevem como bairrista, rude e grosseiro, incomodados com o jeito extrovertido dos “baianos”. O “baiano” era um mal-estar trazido com o polo, o movimento desestabilizante do cotidiano, os novos transeuntes, vizinhos, personagens do transporte público; eram as novas referências no real, as oscilações nos preços dos produtos básicos, a nova riqueza que a cidade prometia, a disputa por postos de trabalho com melhores condições. Em suma, como é frequente em contextos de mudança social, de entrada de novos atores (migrantes) em cena, a realidade escapava do controle dos nativos e os obrigava se movimentar, reajustar-se e isso causava reação e incômodo.

 O Rio Grande do Sul é (ou era) o estado com maior população proporcional de adeptos declarados das religiões afro no país, quase cinco vezes o número de praticantes na Bahia (IBGE, 2010). Essa é uma interpretação corrente na opinião pública, do “Rio Grande do Sul como o Estado dos extremos religiosos. Estão em território gaúcho o município mais católico, o mais evangélico, o mais umbandista, o mais islâmico e o mais mórmon do país”1. Pude perceber já nos primeiros dias de minha estada em Pelotas os sons, as cores e cheiros dessas manifestações. Em uma casa azul na esquina de uma rua de fluxo constante, ocorriam cerimonias umbandistas. Geralmente terças e quintas feiras, ouvíamos o batuque forte que alcançava as ruas, assim como os cheiros de velas, incensos e de gente reunida. Na calçada frente da casa, esbarrávamos com gente pintada, com saias coloridas, chapéus, braceletes e tornozeleiras instrumentais. Era um ambiente sedutor porque alegre, vibrante e sensual nas danças de mulheres lindas, homens fortes e drags ou homens com roupas e acessórios “de mulher” e assim por diante. Nessas noites, dormíamos embalados pelos tambores e cantos das vinhanças. Era um pequeno carnaval. E este terreiro em especial, que depois vim a frequentar, ficava exatamente na frente de uma grande igreja católica, na esquina contrária. Depois, frequentando a igreja, descobri que era tocada pela esposa do pai de santo do terreiro ao lado. Eis a manifestação concreta do sincretismo. 

Em período coincidente com o aumento do neopentecostalismo, dos casos de intolerância religiosa, e porque não da ascensão da extrema direita nacional com repercussões significativas no Rio Grande do Sul, também as instituições afros recuaram (ou se extinguiram). A Casa Azul, como chamávamos aquele terreiro, deixou de funcionar ali e, ao que fui informado, funcionava agora em Três Vendas ou Navegantes, bairros mais distantes do centro. Em 2005 e 2016, últimos anos em que vivi em Pelotas, já não se ouviam tambores pela noite, tampouco quaisquer elementos afros podiam ser vistos facilmente como antes. 

 Com a operação Lava Jato e a desnutrição do Polo, Rio Grande voltou à sua fisionomia anterior, apenas com esqueletos e ruínas do antigo “sonho do Eldorado”. Havia um sentimento de saudosista e mesmo de arrependimento dos bons tempos em que o problema era “os baianos”, aqueles que, de uma forma ou de outra, chegaram e foram embora junto com bonança. “Eles não eram tudo aquilo que falavam… Eu tinha muitos amigos baianos, cariocas, cearenses. Não tinha esse preconceito”, passei a ouvir junto a trabalhadores do polo ou dos serviços. Tudo parecia ter sido um mal entendido, uma briga de crianças que no fundo se gostavam. Essa era a impressão que pairava no deserto do pós-Polo naval. Mas, alguns anos depois o fantasma do “baiano” reapareceria e, acompanhando a tendência nacional, em piores condições.

 O ano é 2023, marca a derrota de Bolsonaro e início do terceiro mandato de Lula. As instituições engatinham ao retorno de suas funções normais após a destruição deliberada do estado social iniciada com o golpe de estado de 2016. Todos órgãos, sobretudo os da mão esquerda do Estado, para usar um conceito de Bourdieu, ou seja, as instituições destinadas ao cuidado, educação, saúde, proteção e seguridade social -, foram imediatamente atacadas. Tiveram suas razões invertidas: o Ibama desmatava e motivava o garimpo ilegal, a Funai e o Incra desmatava e dava o passe livre para o extermínio de indígenas, o Ministério da Educação negava a educação, desprezava a pesquisa, a pós-graduação, sabotava o ENEM, dava tiros no aeroporto, trocava emendas parlamentares por barras de ouro, forjava diplomas. A Fundação Zumbi dos Palmares foi chefiada por um racista puro sangue; o Ministério do Trabalho precarizava o trabalho, subsidiava o trabalho escravo.  

 O Ministério dos direitos humanos perseguia menores de idade vítimas de estupro que optavam pela interrupção da gravidez, censurava “desenhos gays”, definia cores adequadas a cada sexo, produzia informações falsas sobre povos indígenas – como vídeos em que pedia aos próprios indígenas que encenassem o enterro de crianças para depois apresentá-los como fato e evidência do infanticídio bárbaro e da necessidade de perda de guarda e adoção de suas crianças -, enfim, transformou-se em polícia do sexo, como sugere o próprio nome: Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos. O Ministério da Saúde… Bem, esse foi o principal órgão publicitário da cloroquina, o responsável pelo título de “genocida” ao então presidente, por uma população desconfiada das vacinas, viciada e padecente dos efeitos colaterais do kit Covid, verdadeira panaceia desvairada: mistura de cloroquina, ivermectina, ozônio, contaminação de rebanho, religião e politica publica do mercado2. Por fim o Ministério da Justiça foi inicialmente ocupado por um dos principais personagens do golpe de 2016 e, em nosso caso em especial, que desmantelou as politicas industriais nacionais, as empresas de engenharia ligadas ao setor petroquímico e portanto ao Polo Naval3. E assim seguiu a descida ao inferno até a derrota daquela ingerência pelas forças populares.

 Nessa simples retomada da razão de ser das instituições em que ainda e nos encontramos  nesse primeiro ano de governo, descobrimos diariamente o lamaçal em que nos estávamos. O pouco que ainda restava de pé agonizava. Ao reanimar a fiscalização do trabalho veríamos em um prazo de três meses foram quase mil trabalhadores resgatados de cativeiros em situações degradantes análogas à escravidão, superando todos aos anos anteriores (no mesmo período) perdendo apenas para 2008. Os cativeiros eram propriedades diretas ou indiretas empresários diretamente ligados ao governo Bolsonaro. Os casos mais chocantes diziam respeito à situação degradante dos trabalhadores no Rio Grande do Sul. Quem eram? Os “baianos”, com aspas mais uma vez.  

 As denúncias de trabalho escravo em 2023 também se assemelham aos anos recordes de 2008, 2007, 2005 e 20034 nas regiões e segmentos do emprego forçado dessa mão de obra. Vê-se um padrão: estão vinculados a agropecuária, minério, aos setores sucroalcooleiros (cana de açúcar, etanol) e desmatamento. Em 2008, ano recorde de todo o histórico, a maioria dos casos denunciados estavam vinculados à pecuária (134). Em segundo lugar aparece o ramo de carvão (47). Já entre as libertações, o setor sucroalcooleiro liderou o ranking em 2008, com 2.553 trabalhadores que deixaram a condição análoga à escravidão, conforme registra a Comissão Pastoral da Terra5. Houve ainda sete casos compilados que uniram trabalho escravo e desmatamento – seis deles foram fiscalizados, com 83 trabalhadores libertados.  

 Até 2008, dentre os estados com maior concentração de flagrantes segundo a série histórica da CPT estão na região da Amazônia ligados ao desmatamento (Pará, Mato Grosso), Paraná, Santa Catarina, Maranhão, Goiás, Alagoas. Rio grande do sul não se destacava entre estes estados mas já estava ligado historicamente às atividades ligadas ao agronegócio desde as frutas – uvas, pêssegos, maçãs – até as vinícolas e arrozais historicamente presentes na região sul.

 Dos cerca de mil trabalhadores escravizados resgatados nos primeiros tres meses de 2023, 207 deles foram encontrados ainda em fevereiro, dia 22, por uma operação conjunta entre o Ministério do Trabalho e do Emprego, a Polícia Federal e a Polícia Rodoviária Federal (PRF) em Bento Gonçalves, na Serra do RS. Região celebre pelo passeio de trem com degustação de vinhos, pelas festas envolvendo os temas, ela representa o universo de reprodução dessa instituição histórica, para a maioria já superada, em condições atuais. Os trabalhadores, a maioria baianos mas contavam alguns gaúchos e argentinos, inclusive menores de idade, partilhavam de experiência próxima aquela dos escravos das plantations ou das charqueadas, o “inferno dos negros” para evocar o imaginário gaúcho6.  

 Os relatos se reforçam quanto à descrição do trato com os empregados das vinícolas: trabalhavam das 5h às 20 horas sem descanso, sem finais de semana. Eram obrigados a pousar no local mas deviam saldar suas dívidas por todos os acessórios utilizados (botas, roupa, lenços, panela). Comiam comida estragada, dormiam em alojamentos precários e insalubres, não dispunham de liberdade para ir embora, ou seja, eram obrigados a ficar sobre o risco de tortura: espancamentos, choques elétricos, spray de pimenta, ameaças de morte, tortura psicológica. Nas denúncias recebidas pelo Ministério Público do Trabalho, os trabalhadores gaúchos relataram que “apenas os baianos eram submetidos a torturas, choques e espancamentos”7. Um desses trabalhadores conseguiu fazer um vídeo mostrando marcas de tortura em si e nos colegas. O vídeo foi disparado nas redes sociais e resultou no fim de contrato de alguns clientes com a empresa beneficiaria do trabalho escravo. Eles foi trancado em uma sala e espancado por horas. Durante os golpes, os capangas gritavam: “mata, mata esse baiano! Vamos acabar com a raça dele. Ele tentou acabar com a nossa!”.

  Mas observemos a realidade social desse universo que consubstanciava de sentido - normal e positivo, aceitável e até defensável - esse tipo de prática. Alguns dias depois da publicização do resgate, no dia 27 de fevereiro, o Centro da Indústria, Comércio e Serviços de Bento Gonçalves (CIC-BG), emitiu uma “Nota de Posicionamento8”. De início, faz uma rápida concordância com o apoio à fiscalização e punição “para com os responsáveis por tais práticas inaceitáveis”, para avançar em seguida em seu porém-todavia, e aqui estão os pontos de compreensão daquela realidade: “é fundamental resguardar a idoneidade9 do setor vinícola, importantíssima força econômica de toda microrregião.” As vinícolas são, “todas elas, sabidamente, empresas com fundamental participação na comunidade e reconhecidas pela preocupação com o bem-estar de seus colaboradores/cooperativados por oferecerem muito boas condições de trabalho, inclusive igualmente estendidas a seus funcionários terceirizados”.  

 Assim a nota finaliza com sua casuística real do trabalho escravo, “há muito tempo objeto de preocupação das empresas e do poder local”, qual seja: a submissão ao trabalho escravo pelo empregador é consequência da “falta de mão de obra e da necessidade de investir em projetos e iniciativas  (leia-se: por parte do poder público) que permitam minimizar este grande problema”. Pois “há uma larga parcela da população com plenas condições produtivas e que, mesmo assim, encontra-se inativa, sobrevivendo através de um sistema assistencialista que nada tem de salutar para a sociedade”. E a cereja do bolo, a solução apresentada:  “É tempo de trabalhar em projetos e iniciativas que permitam suprir de forma adequada a carência de mão de obra, oferecendo às empresas de toda microrregião condições de pleno desenvolvimento dentro de seus já conceituados modelos de trabalho ético, responsável e sustentável”.

  E essa é sua nota oficial de defesa e esclarecimento! O trabalho escravo é fruto da falta de mão de obra motivada pelo assistencialismo vicia os preguiçosos e parasitas do trabalho alheio, e que não deixa escolhas aos empregadores senão a de escravizar. Aparentemente não há aí nenhum sentido lógico. Como se segue da falta de mão de obra para a necessidade de escravização das poucas que sobrariam no mercado? Assim, a condenação maior é ao Estado (social, não-punitivo), que além de não ter projetos que supram essa carência de mão de obra, ainda erra em conceder benefícios e auxílios aos pobres. Resta, outrossim, uma defesa aberta, ainda que torta, do próprio direito de escravizar os pobres preguiçosos e parasitas em beneficio da sociedade.  

 Mas existe um fundo lógico que possibilita esses discursos. Entre o final dos anos 1980 e início dos 1990, no bojo do neoliberalismo, os projetos de “tolerância zero” que implica na criminalização da pobreza como “classe de parasitas que nos ameaça e vivem nas nossas costas”, como declarou uma autoridade dos Estados Unidos, “o Estado-providência deve ser arquivado a fim de salvar a sociedade da underclass, que já semeia a ruína social e a desolação moral das cidades […]”. E o alinhamento com o CIC de Bento Gonçalves é quase perfeito quando Lawrence Mead, um dos principais idealistas do Estado (social) mínimo descreveu em tom pseudocientífico, em colóquio na Inglaterra, que “o Estado deve evitar ajudar materialmente os pobres, deve todavia sustentá-los moralmente obrigando-os a trabalhar” (WACQUANT, 2001, p. 42-43).

 O presidente Clinton adotou como corretas, por exemplo, as análises segundo as quais “as uniões ilegitimas e as famílias monoparentais seriam a causa da pobreza e do crime”, e “a taxa das famílias monoparentais aumenta rapidamente; à medida que os orçamentos das ajudas crescem”. O mesmo palavrório que temos escutados no Brasil sobre o Bolsa Família e as mãe que teriam mais filhos só para se pendurar no auxílio. E é claro que os destinados a tais hostilidades eram pobres negros, sendo esta a raça, a substância e a pobreza e suas consequências (promiscuidade sexual, inclinação ao crime e à vadiagem) os predicados.  

 De forma mais espontânea, é Sandro Fantinel, um vereador de Caxias do Sul, cidade vizinha de Bento Gonçalves, então do partido Patriotas, que dá consistência e acabamento ao sentido daquele universo. Em sua fala, ao contrário do não estranhamento aparente da entidade representante dos acusados, o vereador estranha o oposto, estranha o espanto da sociedade com o que se passava nas vinícolas:  

Agricultores, produtores [rurais], empresas agrícolas que estão nesse momento me acompanhando, eu vou dar um conselho para vocês: não contratem mais aquela gente lá de cima. Todos os agricultores que têm argentinos trabalhando hoje só batem palma. São limpos, trabalhadores, corretos, cumprem o horário, mantêm a casa limpa e no dia de ir embora ainda agradecem ao patrão pelo serviço prestado e pelo dinheiro que receberam. Agora, com os baianos, que a única cultura que eles têm é viver na praia tocando tambor, era normal que se fosse ter esse tipo de problema. Deixem de lado aquele povo que é acostumado com Carnaval e festa para vocês não se incomodarem novamente. Que isso sirva de lição, Se estava tão ruim a escravidão, como alguns do grupo não quiseram ir embora?”10

Para concluir, e em auto-análise, entendo que um sentido evolucionista da história restava em nós, pesquisadores e sujeitos políticos, entre um pessimismo diário e um otimismo a longo prazo, e que foi arrebentado, destruído. As representações icônicas do Brasil colonial que guardávamos em casa ganharam novo sentido, aproximaram-se no tempo, no ontem, no logo ali. Debret e Rugendas estavam agora mais humanos, mais como nós.  

 O trecho da fala do vereador poderia ser transportado ao século XVII ou XVIII sem grandes modificações para o seu ajuste no caderno de caixa de um traficante de escravos ou senhor de fazendas. Mas a fala se produziu em 2023, e ganhou sentido em sua difusão, mesmo aos conscientes de seu deslocamento no tempo espaço. Mesmo estes, nós, acostumamo-nos com essas afirmações nos últimos anos no Brasil e no Mundo. A abundância de barbaridades nos embotou em alguma medida. A pergunta com que finalizo é de ordem tanto politica quanto científica: como foi possível esse reaparecimento de relações cujos sentidos, há alguns anos, parecia completamente absurdas e superadas? Um bug na realidade, a fratura no espaço-tempo em que fomos lançado ao passado pitoresco? Ou o presente velado que se desvelou.

Ps: Este artigo pode ser encontrado em versão expandida e detalhada na Revista Plurais, 2023, da UFPR.

 Ver link: https://gauchazh.clicrbs.com.br/geral/noticia/2012/06/dados-do-ibge-colocam-municipios-do-estado-como-campeoes-em-credos-3806966.html#:~:text=Apesar%20de%20ser%20o%20segundo,vezes%20%20percentual%20da%20Bahia.  

 2  Sobre o tema, publiquei um artigo na imprensa detalhando os embates e as primeiras politicas de saúde em relação à pandemia da Covid-19. Ver: https://www.brasil247.com/blog/5-razoes-para-a-des-politizacao-do-virus-chines  

 3  Publiquei um artigo sobre a Lava Jato como projeto de destruição da industria nacional de ponta. Ver: https://www.brasil247.com/blog/para-uma-hermeneutica-da-tagarelice-a-lava-jato-a-odebrecht-e-o-bale-imperialista 

 4  Segundo relatórios da Comissão Pastoral da Terra elaborado desde 1985.

 5  Ver link: https://reporterbrasil.org.br/2009/05/denuncias-sobre-trabalho-escravo-atingem-recorde-em-2008/ 

 6  A lenda popular do negrinho pastoreio é síntese desse inferno e é muito replicada no folclore riograndense.

 7  https://www.sinprodf.org.br/vereador-gaucho-faz-discurso-xenofobo-e-e-expulso-de-seu-partido/ 

 8  http://www.cicbg.com.br/noticia/nota-de-posicionamento/1699 

 9  Itálicos são meus

 10 https://www.cartacapital.com.br/sociedade/policia-abre-inquerito-para-apurar-declaracoes-xenofobicas-de-vereador-no-rs/ 

02
Mar23

Reinaldo Azevedo entrevista Lula hoje n'O é da coisa'

Talis Andrade
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Reinaldo Azevedo no Twitter
 
 

Entrevisto o presidente Lula na manhã desta quinta. A conversa vai ao ar, na própria 5ª, no programa 'O É da Coisa', na BandNews FM, na Band, na BandNews TV e nas plataformas do grupo Bandeirantes.

Ministério Público de SP tem de abrir uma investigação. Prefeito de S.Sebastião, numa entrevista-chilique à BandNews FM, deixou escapar que empresários com casas em Maresias impediram a construção de 400 habitações populares. Quem são? O que fizeram? Por que a Prefeitura cedeu?

Entidade empresarial de Bento Gonçalves culpa o Bolsa Família por trabalho escravo. Nunca mais nem uma taça de vinho dessa gente!!! E qualquer pessoa decente fará o mesmo enquanto esses caras não pedirem desculpas e não assumirem a sua culpa. ELITE LIXO!
@VaccariMarcio
 
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@reinaldoazevedo
É inacreditável! Esta nota é a cloaca de certa elite brasileira, que se revela, cada vez mais, a pior do mundo.
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Cálice

Pai, afasta de mim esse cálice

Pai, afasta de mim esse cálice

Pai, afasta de mim esse cálice

De vinho tinto de sangue

O vereador Sandro Fantinel (Patriotas), de Caxias do Sul, já sabe a quem culpar pelo trabalho escravo nas vinícolas: os baianos, q seriam sujos. O vereador é um criminoso, segundo a Constituição e a Lei 7.716. Ministério Público vai atuar?

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09
Ago22

Michelle Bolsonaro diz em culto que Planalto já foi 'consagrado a demônios'

Talis Andrade

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A primeira-dama Michelle Bolsonaro afirmou hoje, em um culto evangélico em Belo Horizonte, que o Planalto já foi "consagrado a demônios".

Pareceu um ataque a um aliado de Bolsonaro: Rosane Collor conta que o marido, "para se defender de inimigos políticos, o então presidente Fernando Collor participava de sessões de magia negra".  Leia reportagem de Renata Ceribelli.

"Podem me chamar de louca, podem me chamar de fanática, eu vou continuar louvando nosso Deus, vou continuar orando", disse Michelle, ao lado do presidente e candidato à reeleição, Jair Bolsonaro (PL), na Igreja Batista Lagoinha, na capital mineira, em um evento em comemoração ao Jubileu de Ouro do pastor Márcio Valadão.

Michelle disse ainda estar em um momento de guerra. "É um momento muito difícil, não tem sido fácil. É uma guerra do bem contra o mal, mas creio que nós vamos vencer".

Esse dualismo é demonstrado in Reportagem do Metrópoles: "Michele do Bolsonaro. A face de um Brasil de extremos. 

Como a história familiar da primeira-dama ajuda a explicar a realidade do país. Ela superou a pobreza, escapou da violência e de um ambiente de criminalidade. Em movimento improvável, ascendeu ao topo do poder. Muitos de seus parentes, no entanto, se somam a milhares de brasileiros presentes nas estatísticas dos marginalizados"

Nesta terça-feira (9), a primeira-dama Michelle Bolsonaro usou seu perfil no Instagram para atacar o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e religiões de matriz africana como o Candomblé.

Michelle compartilhou um vídeo em que Lula recebe um banho de pipoca de uma religiosa. As imagens foram filmadas no ano passado em um evento que ocorreu na Assembleia Legislativa da Bahia, em Salvador.

“Isso pode, né! Eu falar de Deus, não”, escreveu a primeira-dama. A publicação original foi feita por uma vereadora bolsonarista de São Paulo.

“Lula já entregou a sua alma para vencer essa eleição. Não lutamos contra a carne e nem o sangue, mas contra os principados e potestades das trevas. O cristão tem que ter a coragem de falar de política hoje para não ser proibido de falar de Jesus amanhã”, diz a legenda da postagem.

Michelle sabe ser terrivelmente evangélica, terrivelmente fria e distante dos parentes que não são chamados por Deus, não são convidados da primeira-dama para orar no Palácio do Planalto de madrugada, acompanhados de cantores e pastores.

Nas imagens que divulga, Michelle anda pelos principais pontos do Palácio espantando os demônios.

 

Michelle Bolsonaro: A face de um Brasil de extremos

 

Em 15 de agosto de 2019, Ary Filgueira e Mirelle Pinheiro escreveram no Metrópoles: Sábado 10 de agosto de 2019, "o Brasil tomou conhecimento de que a avó materna da primeira-dama Michelle Bolsonaro aguardava cirurgia acomodada em um corredor do Hospital Regional de Ceilândia (HRC), na periferia do Distrito Federal. A notícia correu rapidamente pelas redes sociais. Em poucas horas, a idosa foi transferida e operada em outra unidade do governo, desta vez com toda assistência.

Para os tribunais do senso comum, no entanto, o desfecho médico não encerra o assunto. Desde que Michelle subiu a rampa do Planalto ao lado do marido, Jair Bolsonaro (PSL), muitos brasileiros passaram a reparar na distância que a primeira-dama mantém de alguns de seus consanguíneos.

Embora esteja a meia hora do gabinete presidencial, boa parte do núcleo familiar de Michelle de Paula Firmo Reinaldo Bolsonaro não testemunhou o dia em que o marido dela tomou posse na Praça dos Três Poderes.

Desde então, as pessoas levantam hipóteses, julgam e, por vezes, condenam a atitude da primeira-dama. No último fim de semana, as redes sociais exibiram milhares de veredictos dos que se valem das aparências para sentenciar.

Qualquer família guarda seus segredos, tem suas graças e desgraças. A de Michelle não é diferente. Por ser pessoa pública, a curiosidade pelas origens dessa mulher é inevitável. A patrulha aumenta por causa da retórica de valorização da família, presente nas falas de Bolsonaro.

O que, até agora, não foi noticiado é a complexidade da história de Michelle. Ao sair de Ceilândia, ela deixou para trás um cenário de violência, sofrimento e criminalidade.

Dois tios maternos da primeira-dama do Brasil enfrentam problemas com a polícia. Um dos irmãos de sua mãe foi condenado por estupro, em 2018, a 14 anos de prisão. O outro encontra-se preso preventivamente por suposto envolvimento com a milícia.

Na década de 1980, a mãe de Michelle foi indiciada por falsificação de documento. Atualmente, está inscrita em programa habitacional do Governo do Distrito Federal com um RG emitido em Goiás que contém informações adulteradas.

Já nos anos de 1990, a avó materna da mulher de Bolsonaro cumpriu pena por tráfico de drogas – a mesma idosa que há alguns dias foi internada em hospital público do DF.

montagem fotos

Foram duas sobrinhas do tio de Michelle que o denunciaram por estupro sofrido quando ainda eram crianças. Em 2015, o avô materno da primeira-dama morreu assassinado de forma brutal, fato que os investigadores concluíram ter sido latrocínio.

Vivendo em um contexto de carências, a família de Michelle também se tornou vítima da violência, um resumo do que é a realidade nas periferias desassistidas do Brasil.

Em Brasília, o descaso do governador bolsonarista Ibaneis Rocha, e a carência de políticas públicas do governo federal, o governo que é "o negócio do Jair",  considerado o pior presidente do Brasil. 

AVÓ:

POBREZA, CADEIA E SOLIDÃO

 

A avó materna de Michelle Bolsonaro se acidentou em 8 de agosto e está internada no Hospital de Base

 

Maria Aparecida Firmo Ferreira, 78 anos, costumava tomar banho de sol na esquina da Chácara 85 do Setor Habitacional Sol Nascente sempre por volta das 15h. Junto à comunidade do Pôr do Sol, a região reúne 140 mil habitantes e ostenta a qualificação de maior favela da América Latina, já quase na divisa com Águas Lindas de Goiás.

O Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) da região fica abaixo da linha da pobreza. Lá concentra-se boa parte de todos os problemas sociais de Ceilândia. Apenas 24% das ruas têm rede de águas pluviais e somente 30% são asfaltadas. Mas os moradores se queixam principalmente da violência. O tipo de crime mais comum na região administrativa é o tráfico de drogas. Em 2018, foram realizadas 1,2 mil apreensões pelas polícias Militar e Civil.

Deficiente física, Aparecida caminha com dificuldade e precisa de muletas. Passa muitas horas do dia na porta de casa observando quem entra e quem sai de uma das localidades mais perigosas de Ceilândia. Para os vizinhos, a rotina é motivada pela expectativa de receber visitas.

 

Maria Aparecida foi condenada por tráfico de drogas e passou dois anos na cadeia, no fim dos anos 1990

 

A aposentada se desequilibrou em 8 de agosto e caiu de costas no chão. Maria Aparecida fraturou o quadril e acabou sendo internada no Hospital Regional de Ceilândia. Depois de dois dias aguardando por uma cirurgia em maca improvisada nos corredores da instituição, ela foi transferida para o Hospital de Base e realizou o procedimento no dia 11 de agosto. A idosa recebeu alta da unidade de terapia intensiva (UTI), na terça-feira (13/08/2019), e foi encaminhada para a enfermaria.

Maria Aparecida é avó de Michelle e tem oito filhos. Mora apenas com Gilberto Firmo Ferreira, que é surdo. Por causa da perda de audição do tio, a primeira-dama especializou-se na Linguagem Brasileira de Sinais.

Mãe e filho residem em uma casa simples, localizada em rua de terra batida paralela e a 10 metros de distância da via principal, asfaltada. O imóvel foi adquirido depois da venda de uma propriedade no centro de Ceilândia.

Fachada da casa de Maria Aparecida, ela mora apenas com um de seus filhos, Gilberto Firmo Ferreira, que é surdo
Fachada da casa de Maria Aparecida, ela mora apenas com um de seus filhos, Gilberto Firmo Ferreira, que é surdo (que ensinou a língua de Libras à Michelle
 
 

Com o dinheiro, a avó de Michelle comprou uma chácara de 15 hectares e a repartiu em frações para cada um dos filhos. O terreno não possui escritura, como todos os do Sol Nascente. Alguns venderam as terras presenteadas pela mãe, outros perderam as parcelas para invasores.

No passado, Maria Aparecida esteve confinada na Colmeia – penitenciária feminina de Brasília – por tráfico de drogas. O caso ocorreu em 1997. Aos 57 anos, ela já tinha netos. Michelle, na época, estava com 15 anos.

Maria Aparecida era dona de casa quando foi flagrada com entorpecentes. Sustentou que a droga não a pertencia. Segundo a versão que contou, um vizinho teria pedido para ela guardar alguns pertences.

A explicação não convenceu os policiais da 1ª Delegacia de Polícia (Asa Sul), responsáveis pela prisão. Aparecida foi julgada e condenada. Ficou presa durante dois anos. Em 1999 ganhou liberdade.

 

O terreno onde Maria Aparecida mora não possui escritura, como todos os do Sol Nascente

O terreno onde Maria Aparecida mora não possui escritura, como todos os do Sol Nascente. O que comprova que na maior favela da América Latina não existe Deus nem governo. 

 

MÃE:

MARIA DAS GRAÇAS OU 

MIRELE DAS GRAÇAS?

 

Michelle não mantém contato frequente com a mãe, Maria das Graças

Michelle não mantém contato frequente com a mãe, Maria das Graças

 

Em 1988, o delegado Durval Barbosa, que naquela época chefiava a Delegacia de Falsificações e Defraudações, indiciou Maria das Graças Firmo Ferreira, a mãe de Michelle, pela tentativa de tirar documento com o uso de uma certidão falsa. Duas décadas depois, Durval ficaria conhecido em todo o país ao se tornar o delator da Caixa de Pandora, maior esquema de corrupção já desvelado na capital da República. O escândalo, de 2009, desmantelou o governo de José Roberto Arruda.

No inquérito, Barbosa relata que a Certidão de Nascimento nº 10.751 expedida em Planaltina de Goiás e apresentada por Maria das Graças continha dado inverídico. O documento informava que a mulher era 9 anos mais nova do que sua idade biológica. Além disso, omitia o nome do pai dela, Ibraim Firmo Ferreira.

Segundo a polícia, a farsa foi descoberta quando os peritos encontraram uma homônima de Maria das Graças no banco de dados do Instituto de Identificação do DF. Ao comparar a foto recente dela com a antiga, desconfiaram que se tratava da mesma pessoa.

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Maria das Graças foi conduzida coercitivamente para a delegacia, onde confessou a fraude que caracteriza o crime de falsidade ideológica. O processo, no entanto, acabou prescrevendo em 11 de março de 1994. Na ocasião, o juiz substituto Sandoval Gomes de Oliveira, ao analisar o caso, concluiu que a ação do Estado seria inócua em razão do tempo transcorrido.arte

 

Mas Maria das Graças não desistiu. Em Goiás, conseguiu registrar nova identidade com dados falsos. Na carteira adulterada, trocou de nome: Mirele das Graças Firmo Ferreira. Manteve o nome do pai, Ibraim Firmo Ferreira, e voltou a informar idade com defasagem. Desta vez de 11 anos. Maria das Graças nasceu em 11 de junho de 1959, em Presidente Olegário, Minas Gerais. O Metrópoles teve acesso ao RG alterado. A reportagem, no entanto, não vai expor a documentação para preservar o sigilo da fonte.

Segundo familiares, a mãe de Michelle teria mudado o ano de nascimento por vaidade. Com o documento modificado, registrou os três irmãos de Michelle: Suyane Lanuze Ferreira Lima, 27 anos, Geovanna Kathleen Ferreira Lima, 20 anos, e Yuri Daniel Ferreira Lima, 15 anos. Na certidão de nascimento de Michelle, no entanto, consta o nome de batismo da mãe, Maria das Graças.

 

Certidão Michelle

 

O surpreendente é que, usando uma identidade com dados forjados, “Mirele”, a Maria das Graças, mãe da hoje primeira-dama conseguiu se tornar beneficiária do programa habitacional Morar Bem, inaugurado na gestão do petista Agnelo Queiroz. O auxílio prevê a candidatos de baixa renda condições facilitadas de pagamento da casa própria

 

 

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Na visão de alguns dos familiares de Michelle Bolsonaro, esse passado problemático seria um dos motivos para ela não manter uma convivência mais frequente com a mãe. No caso dos irmãos, no entanto, a primeira-dama cultiva boa relação.

 

Além do documento com o nome de batismo, a mãe de Michelle Bolsonaro tem um RG em nome de Mirele
Além do documento com o nome de batismo, a mãe de Michelle Bolsonaro tem um RG em nome de Mirele

 

Em nome de Mirele das Graças Firmo Ferreira, consta uma ocorrência de lesão corporal registrada em 2007. O documento descreve que ela teria desferido vários golpes com uma pedra na cabeça de José Ribamar dos Santos, à época um senhor de 62 anos. Questionada pela polícia, “Mirele” (a Maria das Graças) contou que era inquilina do homem e estava com aluguel atrasado. Saiu de carro com o locador para tentar encontrar um parente que emprestaria dinheiro para ela quitar a dívida.

Porém, no caminho, Ribamar teria desviado o veículo para um matagal e tentado violentá-la. Nessas circunstâncias, “Mirele” o teria agredido. No local, a polícia chegou a encontrar pertences do homem em um saco plástico com gasolina. Mas a pista não chegou a ser investigada e, por isso, a situação não foi esclarecida.

 

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A sogra do presidente da República leva uma vida humilde. Tem o hábito de passar as manhãs em casa e à tarde sai para para tomar sol e conversar com os vizinhos. Na época das eleições de 2018, ela foi vista fazendo campanha para Bolsonaro, apesar do distanciamento que mantém do genro.

No programa eleitoral de Jair Bolsonaro transmitido pela TV no dia 25 de outubro de 2018, as vésperas do segundo turno, Michelle revelou que a influência para fazer caridade começou com o tio materno e a mãe. “Ela sempre me ensinou que a gente não deve negar água nem comida para ninguém”, disse. Em seguida, falou sobre a convivência com Gilberto, que é surdo: “Ele plantou uma sementinha na minha vida e despertou meu amor pela Libras”, concluiu. Na época, essas declarações não chamaram atenção.

“Mirele”, Maria das Graças, Gracinha, mãe da primeira-dama e sogra do presidente da República do Brasil é uma típica brasileira marginalizada. Nem os supostos crimes que cometeu, nem as violências que sofreu foram enxergadas pelas instituições. [É uma cidadã abandonada, uma sofredora no pior país para o trabalhador. Transcrevi trechos. Leia mais]

27
Jul22

Homens, negros e de favela são os principais alvos nas abordagens policiais, diz pesquisa

Talis Andrade
 
Foto: Bruno Itan
Foto: Bruno Itan

 

A segunda edição do relatório “Elemento Suspeito”, do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania, aponta que 63% dos enquadros são em pessoas afrodescendentes
 
17
Jun22

Aline Midlej e o assassinato de Genivaldo de Jesus Santos

Talis Andrade

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Da esquerda pra direita: prints da Folha de S. Paulo (online), Portal G1/SE e Portal NE10 (Recife): títulos que vão da omissão, confusão até a precisão. "O que temos ali é um camburão da polícia brasileira, transformado em câmara de gás, asfixiando mais um cidadão negro deste país, indefeso, desarmado" (Aline Midlej).

 

por Samuel Pantoja Lima /objETHOS

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Final da manhã de 25 de maio, em Umbaúba, litoral de Sergipe, às margens da BR-101 (km 180). O Estado mata, após brutal sessão de tortura, o cidadão brasileiro Genivaldo de Jesus Santos, 38 anos, negro, casado, pai de dois filhos, portador de esquizofrenia, na frente de várias pessoas. As imagens gravadas pelos celulares das testemunhas são chocantes: Genivaldo é jogado violentamente no chão, amarrado (pés e mãos), estava sozinho, desarmado, portanto, sem oferecer perigo algum aos policiais rodoviários federais, todos armados. Seu crime: transitava pela rodovia federal numa moto, sem capacete.

Os cinco agentes da Polícia Rodoviária Federal (PRF), que atuavam com a legitimidade do Estado, representando a sociedade brasileira, passaram de agentes da lei a criminosos, em pouco mais de 30 minutos. Ali mesmo, à luz do dia e em frente a dezenas de testemunhas, iniciaram uma sessão de tortura com uma “câmara de gás (pimenta e lacrimogêneo)”, no porta-malas do carro da polícia, fechando-o sobre as pernas de Genivaldo. Os dois policiais que o jogaram no porta-malas ignoraram a informação de Walissom de Jesus, um sobrinho, de que o tio era cardíaco e portador de esquizofrenia. O laudo do Instituto Médico Legal de Sergipe não deixou a menor sombra de dúvida: Genivaldo morreu “por insuficiência aguda provocada por asfixia mecânica”.

 

A posição da imprensa hegemônica

 

Como reagiu a mídia hegemônica e os projetos independentes diante de crime tão bárbaro – mais um – contra pessoas negras?

Entre a indiferença da “objetividade” (“isenção”, “neutralidade”), o jornalismo hegemônico (representado pelas empresas do mainstream) capricharam em títulos e manchetes que foram do nada a lugar nenhum. Vejamos alguns exemplos: “Homem morre asfixiado após ser trancado em viatura por agentes da Polícia Rodoviária Federal em SE” (Folha de S. Paulo, online – versão que ficou no ar por mais de uma semana); “Homem é morto após ser trancado com gás em viatura da PRF, em Sergipe” (O Estado de S. Paulo); “Homem morre após ser abordado e colocado em viatura da PRF em Sergipe; veículo estava tomado por fumaça” (Portal G1/SE); e um dos jornais mais tradicionais do Nordeste, o Diário de Pernambuco, assim noticiou o crime: “Homem morre após abordagem policial violenta em Sergipe”. Na mídia profissional independente, o fato assim foi noticiado: “Familiares pedem justiça pela morte de Genivaldo de Jesus” (Nexo Jornal); “Aqui estão os nomes dos agentes da PRF que admitem ter detido Genivaldo, asfixiado em viatura” (The Intercept Brasil, já no dia 26/06).

Os enquadramentos, títulos e lides foram cuidadosamente editados para evitar uma descrição rigorosa, que em princípio apontasse como crime uma ação de Estado, contra um cidadão negro, desarmado, à vista de tantas testemunhas, com imagens gravadas por celulares, que foram veiculadas na imprensa internacional – imediatamente sendo comparadas ao caso George Floyd (EUA, maio de 2020). Faltou apuração? Muito provavelmente, não. Prisioneiro de valores seculares que não consegue mais responder à contundência dos fatos – tal como o que ora discutimos neste texto – o jornalismo hegemônico (monopólio de mídia) zanza pelo labirinto da falsa equivalência, à busca de uma “objetividade” que o afasta das vivências diárias da maioria da sociedade, que enfrenta no seu cotidiano as consequências da desumana e abjeta desigualdade social, a violência policial contra mulheres, negros, imigrantes, comunidade LGBTQIA+ e os chamados “setores vulneráveis” da população. Para estes milhões de brasileiros e brasileiras (dos quais, mais de 33 milhões passam fome, na mesma situação dos anos 1990), o monopólio da mídia jornalística comercial responde com indiferença, falta de empatia, passividade e desfaçatez.

Desta breve pesquisa, destaco que somente o Portal UOL, reproduzindo reportagem publicada em site parceiro (NE10 – do grupo Jornal do Commercio de Comunicação), descreveu precisamente a verdade factual, que gritava nas imagens, rasgadas pelos gritos de pavor de Genivaldo: “Assassinado em câmara de gás da PRF, Genivaldo de Jesus morreu exatamente 2 anos após o caso George Floyd”. O NE10 manteve a mesma linha, no dia seguinte, com extremo rigor, o conteúdo singular dos fatos: “Homem desarmado grita até a morte em ‘câmara de gás’ provocada pela polícia”.

Somente cinco dias após o crime, a revista eletrônica Fantástico confirmou “os nomes dos três policiais rodoviários federais envolvidos na ação que provocou o sufocamento com gás lacrimogêneo de Genivaldo de Jesus Santos na última quarta-feira (25), em Sergipe: Kleber Nascimento Freitas, Paulo Rodolpho Lima Nascimento e William de Barros Noia. Eles foram afastados pela PRF e estão sendo investigados em um procedimento administrativo disciplinar”. Na mídia independente, os nomes dos cinco agentes envolvidos no assassinato já tinham sido publicados, após simples apuração no Boletim de Ocorrência (BO), pelo site The Intercept Brasil, no dia seguinte (26/05): “Os cinco agentes que registraram boletim de ocorrência policial pela detenção que resultou na morte de Genivaldo de Jesus Santos numa viatura da Polícia Rodoviária Federal são Clenilson José dos Santos, Paulo Rodolpho Lima Nascimento, Adeilton dos Santos Nunes, William de Barros Noia e Kleber Nascimento Freitas”.

 

Uma voz dissonante

 

Considerando o peso dos telejornais no cardápio noticioso da sociedade, observamos dois exemplos da mesma emissora – o Grupo Globo. Na edição de 26/05, do Jornal das 10 (J10), da GloboNews, a jornalista Aline Midlej assumiu uma posição sem meias palavras, chamou pelo nome o crime e demonstrou de que lado o Jornalismo deveria estar quando o Estado se transforma em assassino. Empatia, respeito à objetividade dos fatos, indignação e um posicionamento jornalístico digno da profissão.

Aline usou sua prerrogativa de âncora e analisou o fato: “A cada massacre, morremos mais um pouco como humanidade. E seguimos morrendo, asfixiados. O que temos ali é um camburão da polícia brasileira, transformado em câmara de gás, asfixiando mais um cidadão negro deste país, indefeso, desarmado. Asfixiados, de novo. A consciência pesa, a indiferença oficial, violenta; falta ar”, disse Aline, visivelmente tocada pelo crime hediondo. A jornalista é uma profissional de destaque da nova geração, pessoa negra, que tem se notabilizado pela capacidade de análise dos fatos, especialmente nas pautas sobre violência do Estado contra os grupos sociais vulneráveis, no geral. Ela tem indicado, com firmeza, empatia, precisão e rigor, um caminho de “resistência para não banalizar a barbárie e a calamidade” – como intitulou sua “Crônica da Semana”.

O assassinato de Genivaldo foi apresentado por outro nome no principal espaço do jornalismo brasileiro, na abertura do Jornal Nacional (edição de 26/05/22), durante mais de 4min. Na “escalada”, o apresentador William Bonner destaca a reportagem projetando as imagens do assassinato, mas chama de outro nome, ‘abordagem’: “A Polícia Federal abre inquérito sobre a morte de um homem abordado por policiais rodoviários federais, em Sergipe”. A narrativa factual tropeça nas palavras, e mais adiante o âncora do JN repete ao chamar a reportagem: “A Polícia Federal abriu inquérito para investigar uma abordagem da Polícia Rodoviária Federal, que terminou em morte em Sergipe” (grifos meus). Sob a capa da suposta “objetividade”, segue a narrativa contra as imagens, sem perplexidade, espanto, indignação ou qualquer resquício de empatia com o cidadão brasileiro assassinado pelo Estado. Na reportagem, uma mulher negra denuncia: “Foi um assassinato, uma grande covardia”, mas para a PRF, tratou-se apenas de um gesto de “contenção” de Genivaldo – que, segundo os policiais, estava muito “agitado”.

Na longa reprodução da nota oficial da PRF, a narrativa do JN (repórter local), contemplou a mentira do agente de Estado: a versão de que a caminho da delegacia, o “conduzido” passou mal e foi levado ao hospital, “onde possivelmente devido a um mal súbito o indivíduo veio a óbito”. A jornalista Carla Suzanne entra, neste momento, para fechar a reportagem: “o Instituto Médico Legal (IML) de Sergipe informou que a causa da morte de Genivaldo foi insuficiência respiratório aguda e asfixia”. Qual o sentido de veicular a nota (com destaque e recorte na tela) com a informação falsa da Polícia Rodoviária Federal sobre a causa mortis do cidadão sergipano? Exercício de “doisladismo”? Mas, novamente, a PRF ganha destaque final na voz do próprio William Bonner: “A Polícia Rodoviária Federal declarou que está comprometida com a apuração do caso, instaurou processo disciplinar e afastou os envolvidos” (grifos meus). Ou seja, a corporação que agiu em nome do Estado e assassinou um cidadão brasileiro se diz “comprometida” com a “apuração do caso”. Caso? Outro sinônimo inadequado, um eufemismo comum no discurso da mídia corporativa: ao invés de dizer que fulano é “racista” eu digo que ele é “supremacista branco”. Neste caso, ao invés de escrever que o Estado (por meio da barbárie cometida por esses agentes) praticou um “crime” as notícias trazem a expressão “abordagem” e o sujeito da ação é seu próprio algoz – “Homem morre…”. O núcleo duro da singularidade noticiosa é a morte de Genivaldo (e suas circunstâncias), e não as “notas oficiais” da PRF, que ocuparam mais de 30% do tempo dedicado à pauta pelo JN.

O jornalista José Henrique Mariante (ombudsman da Folha de S. Paulo) criticou a forma e conteúdo da notícia publicada pelo jornal, em sua coluna (edição 28/05/22). Num intertítulo “Matar ou morrer”, ele escreveu: “‘Homem morre asfixiado após ser trancado em viatura por agentes da Polícia Federal em SE’. ‘Polícia mata homem por asfixia com gás em Sergipe’. Entre o primeiro título, no site, e o último, na Primeira Página do impresso, a Folha mudou o sujeito e o verbo da notícia. É uma diferença importante, mas o leitor atento pergunta se o primeiro enunciado já não deveria ter ido direto ao ponto. Talvez faltasse apuração para tanto na hora da publicação, mas, com ela realizada, não era o caso de ajustar o título inicial?”. Naquela altura dos acontecimentos, passados mais de um dia do assassinato, com tantas testemunhas e imagens circulando intensamente, não faltavam elementos de apuração.

Em última análise, é possível afirmar que a noção enviesada e rasa de “democracia”, defendida pelas empresas que compõem o monopólio de mídia no país, aparece com força nesse tipo de crime. É um tal de “passar pano”, dar “notas oficiais”, chamar crime de “abordagem”, “câmara de gás” como “viatura” etc. Resta uma dúvida final: o fio condutor desse tipo de cobertura é resultado de simples mimetização de valores seculares passados (objetividade, neutralidade, isenção), que não mais respondem aos desafios do tempo presente, neste contexto social cada vez mais desigual, em todo o mundo, ou uma envergonhada adesão ao projeto de poder ora representado por este governo de extrema-direita? A ver os desdobramentos dos casos de violência que o cenário eleitoral de 2022 vai, inevitavelmente, gerar.

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