Mas não deve haver ilusões: o país enfrenta nitidamente uma conspiração com participação de think tanks, pastores evangélicos, agentes infiltrados nas corporações públicas, inclusive no Exército, estimulando teorias conspiratórias
Como entender o que se passa hoje no país, com multidões de zumbis, repetindo teorias conspiratórias das mais amalucadas, e acampando em frente aos quartéis?
Trata-se de um xadrez complexo, que envolve muitos personagens, um clima de mal-estar generalizado em relação às limitações do modelo democrático liberal, em cima dos quais atuam ideólogos e agentes provocadores, invocando vários instrumentos do fascismo histórico.
Um dos principais sociólogos contemporâneos, Manuel Castells faz uma boa síntese dos tempos atuais (vídeo aqui)
Peça 1 – como ocorrem os golpes civis
Nas duas últimas décadas multiplicaram-se os chamados golpes civis, sem o velho modelo de intervenção militar, mas com uso intensivo das redes sociais, insuflando a revolta popular. Foram batizados de “revoluções coloridas”, ou “primaveras”.
Não é um fenômeno simples e individual, como um golpe militar. Há a necessidade de uma insatisfação mais disseminada, que se espraia por vários grupos e organizações. É nesse caldeirão que atuam os demais personagens: os agentes ideológicos, os financiadores e a malta propriamente dita. alimentada por teorias conspiratórias.
Isso porque havia o movimento de uma rapaziada em torno da bandeira do passe-livre, provavelmente nascido espontaneamente do ativismo digital. Havia (e há) um caldeirão de insatisfações diversas, no qual se movem estruturas organizadas para dirigir o movimento de manada para os jogos políticos.
Em 2015, o livro “Guerras Híbridas: Das Revoluções Coloridas aos Golpes”, de Andrew Korybko, traduzido para o português pela Expressão Popular, sistematizou os pontos em comum entre as diversas “revoluções coloridas”.
Um dos diagramas mostra o funcionamento desses movimentos.
No comando da organização, há os ideólogos fornecendo o cimento que juntará todos os tijolos. Abaixo deles, os financiadores e o social – os institutos e ONGs que passaram a organizar movimentos jovens por vários países.
Essas ONGs, das quais a mais notória é a Atlas Network, monta treinamentos para jovens atuarem politicamente nas redes sociais e na vida real. A partir daí geram um conjunto de informações, fatos e teorias conspiratórias que alimentam a mídia.
O símbolo de punho cerrado remete ao movimento original, que forneceu o know how e a inspiração para os demais: o Otpor, sobre o qual se falará mais abaixo.
Cada um desses núcleos possui um patrocinador. No caso brasileiro, em geral organizações norte-americanas. Depois, os chamados Tenentes/Assistentes – os movimentos tipo Vem Pra Rua, MBL, Passe Livre etc. Finalmente, os civis/simpatizante, na sua versão atual infestando as portas dos quartéis.
Se o Ministério Público Federal quiser sucesso em sua empreitada de investigar os sediciosos, tem que identificar os ideólogos (que articulam todas as peças do jogo) e os financiadores.
Peça 2 – a criação da tecnologia do golpe
A tecnologia das chamadas “revoluções coloridas” veio da Sérvia, no levante de 2000. Depois, houve a Revolução das Rosas, na Geórgia, em 2003; a Revolução Laranja, na Ucrânia, em 2004, e a Revolução das Tulipas, no Quirguistão, em 2005, todas elas no rastro do desmanche do império soviético.
Conforme trabalho de 2009 (quatro anos antes das manifestações brasileiras) por Felipe Afonso Ortega, na tese de mestrado de relações internacionais “Cores da Mudança? As Revoluções Coloridas e seus reflexos em política externa” pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, havia um padrão comum a todos esses movimentos.
Participação direta dos Estados Unidos, através do Departamento de Estado ou think tanks. Há uma divergência menor: se o apoio norte-americano (e europeu) foi essencial para o movimento, ou apenas ajudou a turbinar um descontentamento que já mobilizava a população.
Adesão dos revoltosos aos Estados Unidos, Europa e OTAN.
Ligações transnacionais entre todos esses movimentos.
A utilização de eleições (nem sempre presidenciais) para contestar abertamente o governo e/ou o regime vigente.
Uma grande participação popular, não apenas durante as eleições, mas também antes e, se necessário, após os processos de votação, para contestar possíveis fraudes.
E uma mudança significativa de governo, às vezes acompanhada por mudança de regime.
O episódio brasileiro mais revelador foi a própria eleição de Bolsonaro. Nos primeiros meses de governo, além de um lambe-botas humilhante em relação aos Estados Unidos, vendeu a ideia da entrada do Brasil na OCDE (o grupo de países desenvolvidos), embora provavelmente não tivesse a menor ideia sobre o seu significado.
“O governo Americano gastou 65 milhões de dólares promovendo a democracia na Ucrânia nos anos imediatamente precedentes à Revolução Laranja. Em maio de 2005, Bush viajou para Tbilisi, onde caracterizou a Revolução das Rosas como um exemplo a ser seguido por todo o Cáucaso e pela Ásia Central. Sob a influência das comunidades da sociedade civil que elas servem e de seus financiadores governamentais (…), um grande número de ONGs americanas (Freedom House, National Endowment for Democracy, National Democratic Institute, International Republican Institute e a Fundação Soros) silenciosamente passaram a adotar modos mais confrontacionais de promover mudanças”.
Peça 3 – os think tanks no Brasil
Todas essas revoluções – incluindo as manifestações de 2013 no Brasil – tiveram apoio ostensivo de Institutos e ONGs norte-americanos.
Não significa necessariamente que o grupo original do Passe Livre tenha sido pau-mandado de ONGs externas. Mas, a partir de determinado momento, houve o apoio direto de agências de publicidade ligadas ao Partido Democrata e que se especializaram em aporte operacional a movimentos dessa ordem.
Antes mesmo de 2013, houve os primeiros ensaios, como o Movimento Cívico pelo Direito dos Brasileiros, conhecido como Cansei, organizado pelo então empresário João Dória Jr. Ou o Dia do Basta, em 2013.
A organização com maior penetração no país foi a Atlas Network, uma rede de think tanks americana canalizando recursos públicos do Departamento de Estado Norte-Americano e do National Endowment for Democracy (Fundação Nacional para a Democracia – NED) para estruturar, financiar e dar treinamento a uma série de afiliadas pelo mundo.
Os braços da Atlas Network no Brasil
No Brasil, o principal ativista e o ponto de contato com esses think tanks é Winston Ling, herdeiro do grupo Olvebra, de uma família ligada a Chiang Kai-shek, um dos governos mais corruptos da história, derrubado por Mao Tse Tung. Com a queda, famílias como a Ling e a família Pih fugiram para o Brasil com parte do patrimônio acumulado.
Ling não se envolve diretamente nos negócios da família, é considerado um bon vivant. Seu feito empresarial mais conhecido foi ter adquirido os direitos do concurso Miss Brasil.
Ele vive em Hong Kong, onde dirige a Ouray Iniciative, de defesa da autonomia da região.
Jair Krischke é ativista dos direitos humanos no Brasil, Argentina, Uruguai, Chile e Paraguai. Em 1979, fundou o Movimento de Justiça e Direitos Humanos do Rio Grande do Sul, a principal organização não governamental ligada aos direitos humanos da região sul do Brasil.
IHU On-Line — Quais são suas lembranças do dia 13 de dezembro de 1968, quando Arthur da Costa e Silva emitiu o AI-5?
Jair Krischke — Tudo começou um pouco antes. Nós que participávamos daquilo que veio a ser depois o Movimento de Justiça e Direitos Humanos, imaginamos que o AI-5 era um golpe a mais, que era mais uma das tantas quarteladas que aconteciam na América Latina. Porém fomos surpreendidos, pois se tratava de um golpe baseado em uma doutrina de segurança nacional, que viria para ficar por muito tempo. Nós do Movimento de Justiça e Direitos Humanos já estávamos envolvidos em retirar brasileiros perseguidos do Brasil e em levá-los para o Uruguai e a Argentina, mas em 1968 já começávamos a sentir a falta de esperança em relação à redemocratização e então começamos as articulações para enfrentar a ditadura, especialmente no terreno político.
Antes do AI-5 foi criada a Frente Ampla, que reuniu três figuras políticas de grande importância no Brasil, Juscelino Kubitschek, João Goulart e Carlos Lacerda; algo inimaginável. Essa Frente Ampla estava se articulando para politicamente fazer frente à ditadura, quando o grupo da chamada “linha dura”, pretendendo se eternizar no poder, lançou o AI-5. Nessa época eu estava em Porto Alegre, envolvido em retirar do Brasil companheiros sindicalistas, líderes estudantis e políticos e levá-los para o refúgio.
Meses antes da instituição do AI-5, o então deputado Márcio Moreira Alves, do MDB, fez um discurso na Câmara dos Deputados, em setembro, recomendando às moças e às senhoras que se recusassem a sair com oficiais do Exército e que, inclusive, no baile de Sete de Setembro não dançassem com eles. Esse discurso foi tomado pelos militares, especialmente pelo então ministro do Exército, o General Costa e Silva, como uma ofensa aos militares, que solicitaram a cassação de Márcio Moreira Alves. No dia 12 de dezembro, o Congresso recusou a cassação, com uma diferença de 75 votos, e mesmo a Arena, partido da ditadura, votou contra a cassação dele. No dia seguinte, 13 de dezembro, fomos surpreendidos com o AI-5. Somente depois — a história não pode ser avaliada no tempo em que está ocorrendo — nos demos conta de que esse AI-5 era um golpe dentro do golpe, era um endurecimento daquilo tudo que a ditadura já havia feito.
Com a instituição do AI-5, o setor mais reacionário das Forças Armadas decidiu terminar com as mínimas garantias com as quais a cidadania ainda contava, e deu poderes extraordinários à ditadura. Isto é, o presidente da República passou a ter um poder que não requisitava apreciação judicial para fazer aquilo que bem entendesse em termos não só da União Federal, mas dos estados e municípios. Além disso, o presidente tinha poder para intervir no Congresso Nacional, e mais tarde o fechou, como fechou também as Assembleias Legislativas dos estados e as Câmaras de Vereadores. Além disso, o AI-5 estabeleceu a censura prévia a tudo que se possa imaginar: a censura foi estabelecida não só na comunicação social — jornais, rádios e TV —, mas também em todas as expressões artísticas. Isso deu vigência plena à doutrina de Segurança Nacional.
Depois daquele discurso de Márcio Moreira Alves, nós já estávamos esperando que alguma coisa iria acontecer, mas não imaginávamos que seria algo com a gravidade que aconteceu, de forma tão radical. Com o AI-5, a repressão voltou forte e com requintes de uma crueldade que antes não havia acontecido. Tivemos que tirar muitas pessoas do país, porque a perseguição começou a se dar de uma forma indiscriminada: se suspeitassem que alguém tivesse feito isso ou aquilo, já era razão suficiente para a perseguição. O AI-5 estabeleceu uma possibilidade de prisão sem fundamentação jurídica, sem direito a acesso a advogado ou aos familiares. Para temas de “crimes políticos” não havia possibilidade de habeas corpus, que também foi suspenso com o AI-5.
Foi difícil dar conta de proteger todos aqueles que novamente vieram a ser perseguidos. Lembro disso muito bem, porque isso foi gerando consequências. Como a repressão endureceu muito, começamos a perceber que os serviços de inteligência do exército, da marinha, da aviação, da polícia federal e militar, começaram a agir de forma desenfreada, nos dando um trabalho imenso.
IHU On-Line — Como o AI-5 interferiu na sua atividade de retirar pessoas do país naquele momento?
Jair Krischke — Passamos a viver com muita cautela e cuidado, porque sabíamos que a repressão estava aí, que éramos vigiados e que a qualquer momento um de nós poderia ser preso. Por exemplo, mesmo nas nossas reuniões, quando uma pessoa na qual não confiávamos muito estava presente, para não tocar em assuntos delicados sobre a segurança de outras pessoas, tínhamos uma norma: qualquer um de nós, ao perceber que a presença de alguém era problemática, perguntava “que horas são?”; esse era o nosso sinal de alerta.
IHU On-Line – Isso acontecia com muita frequência?
Jair Krischke — Não com muita frequência, mas acontecia. Assuntos sensíveis eram compartimentados e o próprio processo para retirar pessoas do Brasil passou a ser bastante compartimentado: quando alguém saía de São Paulo e ia até o Paraná, não sabia quem seria o responsável pelo trecho que o levaria do Paraná até Santa Catarina, que por sua vez não sabia quem seria o responsável pelo trecho de Santa Catarina até o Rio Grande do Sul. Se informava apenas que uma pessoa estaria no tal local, com uma camisa branca e com um exemplar do jornal Correio do Povo embaixo do braço, ou que uma moça com um lenço branco amarrado na bolsa estaria em tal local. Não se informava quem eram essas pessoas, mas se davam sinais de como encontrá-las.
Eu tomei uma decisão nesse momento: todas as manhãs quando despertava, prometia a mim mesmo “hoje não vou ficar paranoico”. Isso valia por 24 horas. Quando você se envolve nesse tipo de atividade e sabe que há uma repressão muito forte, que qualquer descuido vai impactar a vida de alguém, a tendência à paranoia aumenta.
Nós passamos a ser seguidos e tivemos que aprender a evitar o seguimento. De repente estávamos circulando de automóvel e achávamos que o carro de trás estava nos seguindo. Nessa situação, tentávamos atrair o carro para uma sinaleira que estivesse fechando e tratávamos de cruzar no último momento. Se o carro que vinha atrás também cruzava, era porque estava nos seguindo. Então, várias vezes eu e meus companheiros fazíamos esse teste e muitas vezes o carro seguia mesmo e tínhamos que dar um jeito de mudar o trajeto ou mudar de carro, e fizemos isso muitas vezes.
IHU On-Line — Como o senhor e outros se articularam para fazer frente ao AI-5? Houve essa possibilidade?
Jair Krischke — Nós lutávamos contra um poder realmente imenso e não podíamos ser tolos a ponto de achar que poderíamos enfrentar as Forças Armadas no seu terreno; sabíamos que deveríamos enfrentá-la com inteligência. E isso nos levou a criar mecanismos de defesa, como aquele da pergunta “que horas são?” ou mesmo esses testes para ver se estávamos sendo seguidos, ou seja, desenvolvemos uma série de mecanismos de defesa porque começamos a entender como o aparelho repressivo passou a funcionar depois do AI-5.
Nós não tínhamos como reagir e não tínhamos como enfrentar os militares no campo da força. Tivemos que estudar o inimigo, ver suas fraquezas e explorá-las. Aqueles grupos que resolveram enfrentá-los, o fizeram com a maior generosidade que se pode imaginar, e aqueles jovens que ingressaram na luta armada para ir para o enfrentamento pagaram um preço altíssimo. Nós do Movimento de Justiça e Direitos Humanos fizemos uma avaliação do que poderia ser feito. A nossa primeira avaliação foi a de que nenhum de nós iria sair do país. A segunda avaliação foi examinar quais eram as condições para operar salvando pessoas. Decidimos, então, estudar como os militares agiam, nos prevenir e fazer aquilo que achávamos que tínhamos que fazer. O nosso maior prejuízo foi em novembro de 1969, quando vários companheiros foram presos.
Nessa época, em novembro de 1969, o aparelho repressivo já estava bastante azeitado, funcionando a mil, e montou o assassinato de Carlos Marighella. Os militares dizem que foi um enfrentamento, mas foi uma execução. Nessa ocasião também foram presos os dominicanos, entre eles o Frei Betto. Em decorrência disso, muitos companheiros nossos foram presos.
IHU On-Line – Esse foi o período mais tenso de toda a ditadura para o senhor?
Jair Krischke — Sim, foi o mais tenso porque toda essa estrutura repressiva agia por sua própria conta, praticando barbaridades, sem freio ético e moral. O grande comandante desse período foi o famoso delegado Sérgio Paranhos Fleury, e se deve a ele todas as barbaridades que se possa imaginar, como o Esquadrão da Morte.
Em novembro de 1969 eu passei todo o mês esperando ser preso, porque tive que “colocar a cabeça para fora” para tirar os companheiros que estavam presos no Departamento de Ordem Política e Social - DOPS, mas não fui preso. Essa é uma outra história.
Alguns militares chamavam a ditadura de guerra psicológica, porque também era uma guerra psicológica. O Brasil, comparado com outros países da região, não teve tantos mortos e desaparecidos. Em termos proporcionais, a Argentina, que tinha à época 40 milhões de pessoas, teve 30 mil desaparecidos na sua ditadura, e o Brasil, que à época tinha 90 milhões de pessoas, não chegou a registrar 500 mortos e desaparecidos. Por quê? Por ser uma ditadura branda? Não, porque a ditadura foi uma repressão seletiva e feita com o objetivo de criar terror e pavor na sociedade brasileira. E ela criou um pavor tão grande, que nós ainda hoje não discutimos os assuntos relativos ao aparelho repressivo.
Há uma negativa porque à época as pessoas tinham medo de falar sobre isso. As pessoas viviam a sensação de terror de que a qualquer momento poderia acontecer alguma coisa com elas. Isso porque, quando se estabelece um regime de exceção, pode acontecer de tudo, como aconteceu. Pessoas que não tinham nada a ver com a contestação da ditadura foram presas. Aqueles que foram presos e que não tinham nada que ver foram os mais torturados, porque os repressores imaginavam que estavam diante de um durão que não queria contar o que sabia e o torturavam mais.
IHU On-Line — Qual foi a sua reação quando o AI-5 foi revogado?
Jair Krischke — Nós do grupo Movimento de Justiça e Direitos Humanos estávamos esperando que isso acontecesse. Então, quando começaram a anunciar que possivelmente o AI-5 deixaria de existir em 31 de dezembro de 1978, já começamos a projetar uma série de reuniões para tornar o Movimento de Justiça e Direitos Humanos oficial. Assim, em janeiro de 1979 conseguimos reunir, uma vez por semana, umas 30, 40 pessoas para tratar da organização do Seminário de Justiça e Direitos Humanos. Ao final do seminário foi proposta a criação do Movimento, oferecemos um estatuto que foi aprovado e elegemos a primeira diretoria. Desde outubro de 1978 já tínhamos claro que, ao cessar a vigência do AI-5, tínhamos que “pendurar o bilhete no pescoço do tigre”.
Cumprimos as exigências legais para oficializar o Movimento e fomos ao cartório para registrá-lo. Eu conhecia o oficial do cartório, mas ele não quis registrar o Movimento. Deixei o documento lá e voltei depois de uns dez dias, mas o oficial já estava com a negativa pronta e assinada. Como ele negou o registro por escrito, nós recorremos, entramos com uma ação na Justiça e, por sentença judicial, o Movimento foi registrado em agosto de 1980. Então, quem era o apavorado nessa história toda? Era alguém que tinha posse de direito. Resumindo, quando a imprensa noticiava que o Geisel iria anunciar o fim do AI-5, nós aproveitamos para estabelecer o Movimento.
IHU On-Line — Retrospectivamente, 50 anos depois, que avaliação faz da instituição do AI-5 no Brasil? Quais foram os impactos políticos do AI-5 para o país e como o senhor lembra desse momento da história brasileira, do qual participou?
Jair Krischke — O AI-5 produziu um retrocesso brutal na sociedade brasileira, porque se estabeleceu um autoritarismo muito maior do que o do golpe de 64. Esse é um militarismo que vigorou de 1968 a 1978, por dez anos, mas com tal violência que isso ficou inculcado nos brasileiros. Se observarmos, sociologicamente, não nos livramos ainda desse autoritarismo, pois ele conseguiu ingressar na epiderme do brasileiro.
IHU On-Line — Que comportamentos e ações indicam isso?
Jair Krischke — As violações aos direitos humanos. Quem viola os direitos humanos no Brasil? O Estado brasileiro, e isso tem a ver com esse autoritarismo: se “a autoridade decidiu, está decidido”, mesmo se for uma ilegalidade e mesmo que sejam atos nada republicanos. Lamentavelmente, muitas pessoas, por ignorância, entendem que é assim mesmo. Conversando com um rapaz de aproximadamente 23 anos que foi barbaramente agredido pela polícia, disse a ele que a agressão era um absurdo, e ele me perguntou se a polícia não poderia bater nele. Isso acontece porque o autoritarismo acabou indo para o DNA das pessoas e se acha que a tal autoridade “pode tudo”. Isso atingiu profundamente o povo brasileiro e ainda não conseguimos nos livrar dessa aceitação do autoritarismo.
IHU On-Line — Que questões centrais precisam ser tratadas no país para repensarmos o papel autoritário do Estado brasileiro, 50 anos depois do AI-5?
Jair Krischke — Em primeiríssimo lugar, a plenitude do exercício da cidadania. Isto é, o Estado brasileiro precisa entender que o cidadão tem direito a ter direitos e o Estado tem que ser o primeiro a garantir esse direito. O Estado tem que ser o garantidor de direitos e nós precisamos avançar quanto a isso; é um exercício da cidadania. Se formos ao Uruguai, veremos que o povo uruguaio tem uma consciência muitíssimo maior do que a nossa em termos de cidadania, em não admitir que seus direitos sejam desrespeitados. Isso é sensível a qualquer pessoa. Qualquer pessoa do povo tem muito claro que, como cidadão, tem direitos.
Isso é interessante porque, no Brasil, costuma-se dizer que os defensores dos direitos humanos “são só defensores de bandidos”; nos acusam de mil coisas. No Uruguai, na Argentina, no Chile ou no pequeno Paraguai, quem lida com direitos humanos é respeitado, até o Estado respeita. No Brasil isso não ocorre e é assim por consequência da ditadura, porque quem enfrentava os milicos como exercício da cidadania, quem cobrava do Estado, éramos nós. Por isso, passamos a ser os inconvenientes para a ditadura. E essa ditadura acabou criando uma guerra psicológica, induzindo as pessoas a fazerem a leitura de que quem os denunciava era amigo de bandido, porque quem lutou contra a ditadura era chamado de terrorista. Veja, chamar alguém de terrorista tem como implicação que a pessoa tenha praticado um ato terrorista, logo, não era verdade.
As pessoas que foram vítimas da ditadura nunca mais esquecem: o sono não é tranquilo, volta e meia todo aquele terror do qual você foi vítima te assalta de novo. As pessoas que foram vítimas dessa truculência nunca mais puderam dormir tranquilas, e nós vamos carregando essa cruz.
IHU On-Line — O senhor também tem esse tipo de sentimentos ao lembrar do passado?
Jair Krischke — Tenho companheiros que trabalham comigo, especialmente aqueles que foram presos mais jovens, que não se livram disso. Tenho colegas que até hoje fazem tratamento psiquiátrico por terem a síndrome do pânico e não conseguirem sair de casa. Por exemplo, tenho uma amiga que ainda está trabalhando, mas tem dias que seu marido vai levá-la para o trabalho e, quando vai se aproximando do local do trabalho, ela começa a tremer, suar e tem que voltar para casa. Isso fica!
Como todos os dias eu fazia o exercício de dizer para mim mesmo “hoje não vou ficar aloprado”, isso me defendeu, claro que me defendeu muito; eu procurei criar um antídoto. Mas, é evidente, há situações que lembram claramente, por exemplo, quando a sua vida era posta em risco. Essas coisas são muito gozadas porque, de repente, lá adiante, é que isso vai aparecer: andamos pela vida bastante tempo e de repente aquelas coisas do passado começam a te fustigar. Digo isso por companheiros meus que, 30 anos depois, começaram a sentir problemas. Isso o doutor Freud deve explicar.
No segundo programa da série sobre os 50 anos do Golpe Militar, o Observatório da Imprensa examina as reações dos jornais à quartelada e a mudança de posição de algumas publicações logo após o Golpe. O programa relembra o impacto do AI-5 e mostra como os jornalistas driblaram a censura. Com a mídia convencional amordaçada, nasceram os jornais alternativos, bravos adversários da ditadura
Vamos relembrar a trajetória de importantes jornais que foram sufocados pelos anos de chumbo, como o Correio da Manhã, primeiro a se levantar contra o golpe, e a Ultima Hora, antiga aliada do ex-presidente João Goulart. Já combalida nos primeiros anos pós 64, a imprensa é golpeada definitivamente com a promulgação do AI-5, em 1968.
Neste programa, vamos mostrar as estratégias dos jornais e revistas para driblar a censura e a consequência da autocensura, logo adotada pelas publicações.
No rastro do AI-5 nasce a imprensa alternativa, refúgio de jovens jornalistas e também de profissionais já consagrados. E mesmo as publicações nanicas sofreram com a censura e precisaram se adaptar ao controle dos militares.
Observatório da Imprensa relembra o período mais sombrio da história da República brasileira pela ótica da mídia: uma das protagonistas do golpe, logo convertida em vítima do regime de exceção. O programa entrevistou 35 personagens, entre jornalistas, historiadores, ex-guerrilheiros e famílias de vítimas da ditadura. A série mostra porque grande parte da imprensa, apavorada com a guinada à esquerda do país, conspirou para a queda do presidente João Goulart e apoiou a tomada do poder pelos militares.
Editorial História Continuada
Tragédias não têm aniversários, lembrar a dor independe de calendários, luto é uma coisa íntima, não se ostenta, carrega-se no coração. No ano passado, 2014, por força da data redonda, 50 anos, meio século, o Brasil reuniu-se para rememorar o início de um capítulo sombrio da nossa história: o golpe militar de 1964. Seus contemporâneos reforçaram suas memórias e as novas gerações descobriram de repente que o passado não deve ser esquecido, a não ser quando não se teme repeti-lo.
As revelações e vinculações levantadas em março e abril não podem esperar até a próxima efeméride, mesmo porque ao longo do ano passado produziram-se fatos novos; a história é um processo dinâmico, continuamente amarrado e atualizado. Sobretudo porque, no intervalo, as avaliações e conclusões da Comissão Nacional da Verdade pedem contextualizações e continuidade.
A série “Chumbo Quente”, reformatada e ampliada, embute dentro dela a proposta da história continuada, história viva, principalmente porque a imprensa, cujo papel desgraçadamente foi tão relevante para o golpe e a ditadura, também é um organismo vivo e como tal precisa ser permanentemente observado.
Mas por que “Chumbo Quente”?
Com uma liga de chumbo Gutenberg fez os primeiros tipos móveis. Com chumbo, fundiam-se letras, palavras e ideias e também faziam balas, projéteis. Seu peso converteu o chumbo em sinônimo de opressão. Os 21 Anos de Chumbo não podem ser separados dos Anos de Chumbo Quente, a aviltante censura que tantas deformações produziu em nossa sociedade.
A mais grave dessas deformações é a ojeriza à diversidade, o horror ao pluralismo. A unanimidade além de burra foi a causadora desta tragédia. Vamos tentar entender por quê.
Linha dura
Onde é que a imprensa errou?
Errou ao ignorar que estávamos diante de uma crise política. Errou ao submeter-se a um cronograma militar sem dar chance para recuos, ajustes e negociações. João Goulart tinha ao seu lado vozes e forças moderadas. A pressa e o engajamento não deixaram que fossem ouvidas. A grande imprensa impregnou-se com o clima do manda brasa, que tanto criticava nos radicais próximos ao presidente. Os dois editoriais na capa do Correio da Manhã, que sinalizaram o início da operação militar, foram disparados por quem não entende de política ou não entende de jornalismo. Antes do ultimatum, entre o “basta” e o “fora”, não se ofereceram opções. E em seguida, quando o Correio da Manhã deu a entender que não concordava com a violência e não admitia uma ditadura, o mínimo de solidariedade corporativa teria abortado o ímpeto da linha dura comandada por Costa e Silva.
Com hipóteses, não se faz história, nem se evitam tragédias. No próximo episódio, chumbo ainda mais quente. (Alberto Dines)
No dia em que o golpe militar de 1964 completa 50 anos, o Observatório da Imprensa exibido pela TV Brasil levou ao ar o primeiro episódio da série “Chumbo Quente”. Na terça-feira (1/4), o programa examinou o papel da mídia na queda do presidente João Goulart e na instalação do regime de exceção. A imprensa foi uma das protagonistas daquele que se converteu em um dos mais dramáticos e conturbados períodos da história brasileira. Nos pouco mais de 30 meses de governo Jango, grande parte dos jornais cuspiu fogo contra o presidente enquanto poucos serviram de sustentação à política reformista. Nas bancas de jornal de todo o Brasil, em preto no branco, as várias faces da mesma realidade. Retrato de uma imprensa ainda em processo de profissionalização, as publicações dos anos 1960 não escondiam sua ideologia e seguiam a corrente política de seu proprietário. Mesmo que o preço fosse a imparcialidade.
O programa entrevistou uma série de testemunhas daquele período e especialistas no golpe militar, a saber:
>> Alzira Abreu – coordenadora do Dicionário Histórico Biográfico Brasileiro do Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil (CPDOC) da Fundação Getúlio Vargas (FGV).
>> Ana Arruda Callado – jornalista e viúva do escritor Antônio Callado. Trabalhava no jornal Panfleto, de Leonel Brizola.
>> Carlos Chagas – comentarista político. Era repórter em O Globo.
>> Carlos Fico – professor de História do Brasil da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
>> Carlos Heitor Cony – escritor. Era editorialista e colunista do Correio da Manhã.
>> Daniel Aarão Reis – professor de História do Brasil da Universidade Federal Fluminense (UFF).
>> Ferreira Gullar – poeta. Era copidesque na sucursal carioca de O Estado de S.Paulo e presidente do Centro Popular de Cultura da UNE.
>> Fuad Atala – jornalista, autor de Réquiem para um leão indomado, sobre o Correio da Manhã, onde trabalhava na época do golpe.
>> Hélio Fernandes – diretor-responsável do jornal Tribuna da Imprensa.
>> Gilles Lapouge – correspondente de O Estado de S.Paulo em Paris há mais de seis décadas.
>> José Maria Mayrink – repórter especial de O Estado de S.Paulo. Trabalhava em O Globo.
>> Marco Antônio Coelho – em 1964 era dirigente do Partido Comunista Brasileiro e deputado federal.
>> Maria Celina D'Araújo – professora de Ciência Política da PUC-Rio.
>> Milton Coelho da Graça– jornalista, foi diretor de Redação da Última Hora.
>> Milton Temer– jornalista e político, oficial da Marinha cassado em 1964.
>> Moniz Bandeira – cientista político e escritor. Foi asilado no Uruguai, onde conviveu com João Goulart por conta de sua atividade política.
>> Pinheiro Júnior – era repórter da Última Hora e acompanhou a movimentação das tropas de Minas Gerais para o Rio de Janeiro.
>> Wilson Figueredo – era editorialista e chefe de Redação do Jornal do Brasil.
A transcrição integral do programa
Alberto Dines – Bem-vindos ao Observatório da Imprensa. Com uma liga de chumbo, Gutenberg fez os primeiros tipos móveis e, nos cinco séculos seguintes, o chumbo derretido foi a matéria-prima da tipografia, o antigo sistema de impressão. Com chumbo, fundiam-se letras, palavras, ideias e também se faziam balas, projéteis. Seu peso converteu o chumbo em sinônimo de opressão. Para lembrar os 21 anos de chumbo da ditadura militar e a aviltante censura por ela instaurada, trazemos a imagem do chumbo quente, o perigo liquefeito, enganosamente molhado, mortal. No início, todos os golpes se parecem. Como já acontecera três vezes antes, o golpe de 1964 começou como uma quartelada para depor um legítimo chefe de Estado e, poucos dias depois, já era uma ditadura: acanhada nas primeiras horas, logo ostensiva e em seguida esticada ao longo de 21 anos.
Alberto Dines: Um golpe preparado e apoiado majoritariamente pela imprensa
Este golpe diferencia-se dos anteriores porque ocorreu em plena era da informação – ou da desinformação – foi um golpe preparado e apoiado majoritariamente pela imprensa, logo depois transformada em sua vítima e dócil escrava. Quando, no ano passado, o jornal O Globo surpreendeu a sociedade brasileira ao reconhecer como equivocado o apoio ao golpe de 1964, admitia implicitamente que grande parte da imprensa brasileira, além de apoiar a derrubada do presidente João Goulart, apoiou a ditadura nela incubada. Gesto ímpar, infelizmente sem seguidores, que, no entanto, poderá inaugurar o capítulo da diversidade na história da nossa imprensa.
A unanimidade, além de burra, foi a causadora desta tragédia. Estas edições especiais sobre o golpe de 1964 tentam o modelo de história oral, cruzamento de depoimentos pessoais para reconstituir um período em que a imprensa, além de testemunha, foi também participante.
Ferreira Gullar– Tem que apurar o que aconteceu e fazer parte da história do Brasil para as gerações que vêm aí [conhecerem] a verdade desse regime abominável.
Maria Celina D’Araújo– As Forças Armadas ficaram com essa mancha, com esse estigma de que assassinaram e torturaram pessoas em nome de alguns ideais políticos.
Carlos Fico– O golpe não previa a ditadura militar, mas houve um processo que transformou o golpe em ditadura.
A história política do Brasil se confunde com a história militar. E ambas atropelam a história da imprensa. Até mesmo a Independência tem sido fantasiada como façanha de soldados e o resultado é um tripé desigual, capenga. Incluindo a Proclamação da República até 1964, temos um total de 12 motins, vetos dos quartéis, golpes, contragolpes com quatro derrubadas de chefes de Estado. A imprensa sempre tomou partido, sempre participou e sempre foi punida com empastelamentos, atentados e censura. Nunca havia conspirado. Então veio 1964. Herdeiro do getulismo, João Goulart tem a imagem atrelada às reivindicações sociais e sindicais. Enquanto foi vice de JK, Jango sempre se relacionou bem com jornalistas e donos dos jornais. Quando Jânio Quadros renuncia, em agosto de 1961, Jango está em viagem à China.
Wilson Figueiredo – Nem o próprio Jânio Quadros contava que ia renunciar. Ele renunciou por uma distração. Um ato de distração. Acreditou que ninguém ia acreditar, todo mundo acreditou, levou ao pé da letra e o resultado foi o que se viu.
A presidência da República é ocupada pelo presidente da Câmara dos Deputados. Instala-se uma crise política porque os ministros militares são contrários à posse do vice.
Wilson Figueiredo – O Jango não era da corrente que ganhou a eleição, pelo contrário, ele era o perdedor. Então, essa inversão súbita abalou o país e o país ficou meio sem saber o que fazer, qual era o caminho.
Diante da perplexidade que toma o país após a renúncia de Jânio Quadros, a maior parte da imprensa defende o respeito à Constituição e endossa a posse do vice.
Fuad Atala – O Correio da Manhã tomou a posição, defendeu a legalidade da posse e assim permaneceu até, realmente, se concretizar. Acompanhou todo o processo daquela viagem que ele fez da China e para o Uruguai, até que ele entrou no Brasil. E o Correio da Manhã sempre defendendo a posse legal.
O Globo pede ao povo que aguarde tranquilamente a normalização da vida republicana e assegura que as Forças Armadas têm a situação sob controle. Abertamente anticomunista, o jornal em pouco tempo começará a questionar se Jango representa uma ameaça. O Diário de Notícias, com enorme penetração no meio militar, também levanta a bandeira da Constituição, mas desconfia da capacidade de governo de Jango. O Estado de S.Paulo é mais radical: contrário à posse de Jango, pede a convocação das Forças Armadas para evitar possíveis golpes subversivos.
Carlos Fico– Em 1961, a própria Rede da Legalidade, gerada pelo Leonel Brizola, tinha esse argumento fundamental, que era um argumento que demonstrava a absoluta inconstitucionalidade, a ilegalidade da ação dos ministros militares, porque se o presidente renuncia, assume o vice e ponto final, não há como discutir isso.
O Congresso aprova uma emenda que garante a posse de Goulart sob a condição de que o regime passe a ser parlamentarista. A imprensa vê a solução como uma demonstração de maturidade da democracia brasileira, mas alguns jornais são contrários ao novo sistema. Jango é empossado com poderes limitados. Vai fazer tudo para recuperar o poder total e o plebiscito de 1963 para a escolha do regime de governo será o seu primeiro desafio.
Jango sabe explorar as razões da inoperância do Executivo, o argumento convence a grande imprensa que logo esquece o charme do parlamentarismo e embarca num retorno ao presidencialismo. Um dos maiores presentes oferecidos a João Goulart naquele momento foi a oportunidade de calar Carlos Lacerda, governador da Guanabara.
Alberto Dines – Neste velho sobrado construído na Rua do Lavradio estava a Tribuna da Imprensa. Fui testemunha e mensageiro de um significativo presente oferecido pela grande imprensa ao presidente Jango: diante da difícil situação financeira em que se encontrava, o Jornal do Brasil comprou de Carlos Lacerda a sua fogosa Tribuna da Imprensa. Fui incumbido pelos donos do JB a fazer a transição entre a equipe que tocava o jornal e a nova. Recomendação expressa: o habitual ataque de Carlos Lacerda não poderia ser publicado. Em junho de 1962 vim a este prédio para iniciar a transição. Só houve um problema: o artigo de Lacerda com o habitual petardo contra Jango. Fui ao diretor do jornal, Sérgio Lacerda, e lhe passei a recomendação dos novos proprietários: “Lacerda, não”. Mas a “nova” Tribuna sem Lacerda não deu certo e o JB revendeu-a a Hélio Fernandes.
João Goulart tem a aprovação da maior parte dos jornais durante os primeiros meses do mandato. Até mesmo críticos da política de Getúlio Vargas, como o Diário Carioca e o Diário de Notícias, mudam de tom e apoiam Jango.
Alzira Abreu– A gente devia lembrar que os jornais tinham uma isenção fiscal de praticamente 70% na importação de papel, e o Jânio Quadros tinha cortado essa isenção. Então os jornais tiveram prejuízos enormes, tiveram que assumir esses 70% a mais para comprar papel no exterior. E o Diário Carioca apoiou João Goulart, inclusive como uma forma para obter recursos do Banco do Brasil para se manter. Da mesma forma, o Diário de Notícias também foi um jornal que apoiou Goulart quase até o final do seu governo.
A mais importante bandeira do governo é o projeto das Reformas de Base, que causa desconforto nas classes dominantes. O carro-chefe é a reforma agrária, que os jornais simpatizantes não engolem. Cresce o medo de que o Brasil siga o exemplo de Cuba e se torne comunista. Recuperado o poder, Jango não consegue exercê-lo, pressionado pelos setores mais radicais.
Maria Celina – A partir do momento que o João Goulart passa a concentrar poderes de um presidente, de chefe de Estado e de chefe de governo, ele se torna um alvo muito maior das críticas, da oposição e, ao mesmo tempo, a gente vai ter algumas dificuldades econômicas, de crescimento, de inflação, e que vão ser atribuídas, obviamente, a ele.
A radicalização política é agravada em setembro de 1963, com a Revolta dos Sargentos, em Brasília. O movimento reivindica o direito de sargentos, suboficiais e cabos exercerem mandato parlamentar, o que contraria a Constituição. Para a oposição, o presidente não é suficientemente firme ao enfrentar a revolta. A trégua na Tribuna da Imprensa dura pouco. O jornal volta a ser o adversário mais combativo de João Goulart. No início de outubro, Jango é convencido a calar o governador da Guanabara, Carlos Lacerda. Malogrado o plano de prendê-lo, Jango tenta intervir no Estado da Guanabara, impondo o estado de sítio. Não encontra respaldo nem no seu próprio partido, o PTB.
Daniel Aarão – E o Jango, sentindo que ia ser derrotado, se retirou. Retirou a proposta. Mas ali ficou muito evidente que ele namorava a hipótese da permanência no poder com instrumentos de exceção.
Confronto aberto, ostensivo. A imprensa está alinhada contra o governo.
Moniz Bandeira – Tinha jornalistas, não vou citar os nomes deles, mas que eu sei que recebiam dinheiro, que eram agentes. E sei da influência que era exercida através das agências de notícias, das agências de publicidade.
A Última Hora é a última trincheira pró-Jango e dá amplo espaço aos seus projetos. Reforça o apoio popular às mudanças e denuncia a movimentação da oposição para derrubar o presidente antes que as reformas fossem executadas.
Pinheiro Jr. – Samuel Wainer era visto como uma espécie de eminência parda do governo do Jango. Portanto, tudo que o Jango queira fazer, inclusive as Reformas de Base, que são vistas como as verdadeiras causas desencadeadoras do golpe, a Última Hora deu o mais completo apoio possível.
O Diário Carioca centra a cobertura nos benefícios das reformas e no esforço do Executivo para promover as alterações constitucionais que viabilizam o projeto. Não há jornais moderados, tentando esvaziar a radicalização. Não acalma os ânimos a ideia do governo de iniciar uma série de grandes manifestações populares em vários pontos do país para forçar a aprovação das reformas de base. O primeiro comício será na Central do Brasil, coração do Estado da Guanabara, onde Jango pouco antes tentara intervir.
Wilson Figueiredo – Eu me lembro, na Avenida Rio Branco, no dia do comício, 13 de março, aquela multidão compacta que passava rumo à Central do Brasil onde ia haver o comício. Passavam uma agressividade terrível. Acenando para o Jornal do Brasil com ameaças – o que era natural: o clima político estava exaltado.
A Tribuna da Imprensa denuncia a convulsão das massas durante o discurso na Central do Brasil e acusa o presidente de querer se reeleger. Partidário da reforma agrária, o Correio da Manhã critica a radicalização tanto da direita quanto da esquerda. Defende as Reformas de Base, mas diz que o governo promove intranquilidade institucional ao agir de forma leviana e demagógica.
Fuad Atala– O Correio da Manhã chegou inclusive a apoiar as reformas de base que ele anunciou no início, mas foi chegando o momento em que começou a se radicalizar e perder um pouco o rumo do controle do governo. Aquele ambiente, realmente convulsionado, assustou o Correio da Manhã. O Correio da Manhã começou a sentir então que o Jango estava perdendo as rédeas do poder.
Daniel Aarão – Havia muito medo de que aquelas reformas, se fossem implementadas, iriam mudar completamente o Brasil. Iam virar o Brasil pelo avesso. Era um conglomerado muito heterogêneo e o que cimentava esse conglomerado da espada, da cruz e do dinheiro e com os esses segmentos populares – as Marchas da Família com Deus pela Liberdade são um grande movimento de massa no Brasil – o que cimentava aquilo tudo era o medo.
Milton Coelho – Olha o nome que eles deram para a marcha: ela botou quinhentas mil pessoas na rua em São Paulo. Se vê que a insatisfação da classe média, especialmente, era muito grande contra o governo do João Goulart.
Daniel Aarão – A imprensa entrou muito porque ela foi contaminada por isso; ela tinha receio, os jornais progressistas acabaram entrando no processo golpista, alguns apoiaram, para logo depois sair fora.
Uma nova revolta nas bases das forças armadas contribui para isolar o governo. Concentrados na sede do Sindicato dos Metalúrgicos do Rio de Janeiro, integrantes da Associação dos Marinheiros e Fuzileiros Navais comemoram o aniversário da entidade, considerada ilegal. Dois mil revoltosos são liderados pelo Cabo Anselmo. Jango se recusa a punir os marinheiros. O Correio da Manhã alerta para a necessidade de acabar com a intranquilidade causada por medidas demagógicas. Pede que as Reformas de Base não sirvam de pretexto para uma série de aventuras que poderão conduzir a quarteladas e à guerra civil.
Milton Temer – Era um embate entre a Última Hora de um lado, O Globo de outro. O Correio da Manhã (era aquele jornal mais intelectualizado) e o Jornal do Brasil eram os jornais que estavam contra o governo, evidentemente, estavam contra o governo Jango, mas não tinham a radicalidade golpista da Marcha com Deus e a Família que O Globo patrocinava. E nem tinham o grau de combatividade, não estavam no contraponto do Última Hora.
A Folha de S.Paulo vê na constante insubordinação das Forças Armadas um fator importante para o agravamento da crise do governo João Goulart. A Tribuna da Imprensa não dá descanso ao governo e explora a quebra de hierarquia nas Forças Armadas e a tensão entre governo e militares. Ninguém estranhou o repentino aparecimento do Cabo Anselmo como líder dos marujos nem as diferenças entre a sua retórica articulada com a dos companheiros marinheiros.
Milton Coelho da Graça – O Cabo Anselmo era claramente uma pessoa infiltrada na Associação de Marinheiros e Fuzileiros. Porque tudo que ele fazia ele radicalizava, era tendente para irritar os militares. Ele esteve lá em Pernambuco e fez uma palestra para todos os funcionários. Modéstia à parte, eu virei para os companheiros e disse: “Esse cara é da polícia”.
A combalida base militar do governo João Goulart rui definitivamente em 30 de março. Como convidado de honra, o presidente vai a uma reunião da Associação dos Sargentos e Suboficiais da Polícia Militar, no Automóvel Clube do Rio de Janeiro. A presença do presidente é vista pela cúpula militar como provocação. Para grande parte da mídia, é o último ato do governo Jango.
Milton Temer – Achar que a mídia tem só um papel de observadora e registra a história é muito difícil de imaginar nos grandes momentos. Porque ela desempenha um papel fundamental sobre o senso comum, que é a maior parte da população, que é aquela que não está no comício, que é aquela que não está na militância, mas é aquela que constitui a massa crítica eleitoral e a massa crítica da base social.
O governo Jango só investe contra a imprensa uma única vez. No dia 31, às vésperas do golpe, o contra-almirante Cândido Aragão tenta intimidar os jornais com a sua habitual truculência. Sem o conhecimento de Jango. Acompanhado por 30 praças, paralisa a redação de O Globo e sitia o prédio. Empunhando uma metralhadora, vai ao gabinete da direção e avisa que suas ordens devem ser cumpridas. O jornal não circula no dia seguinte. Outro grupo toma a Tribuna da Imprensa, onde Aragão passa algumas horas. O Diário de Notícias também recebe a visita do contra-almirante.
Alberto Dines – Aqui na Biblioteca Nacional estão guardadas as coleções do Jornal do Brasil. Na tarde do dia 31, um pelotão de fuzileiros navais, em uniforme de combate e pesadamente armado, chegou ao velho prédio do JB na Avenida Rio Branco e deu alguns tiros para o ar. Queriam os cristais, usados nos transmissores da emissora, para tirar a rádio do ar. Não acharam. Enquanto isso, o Contel [Conselho Nacional de Telecomunicações] informa às rádios e às TVs que o governo federal não admitirá notícias falsas ou alarmistas.
O Correio da Manhã dá um ultimato ao presidente com dois editoriais, publicados na primeira página, que entram para a história política.
Basta! – “Se o Sr. João Goulart não tem a capacidade para exercer a Presidência da República e resolver os problemas da Nação dentro da legalidade constitucional, não lhe resta outra saída senão a de entregar o governo ao seu legítimo sucessor”. (Correio da Manhã, 31/3/1964)
Fora! – “O Sr. João Goulart não pode permanecer na Presidência da República, não só porque se mostrou incapaz de exercê-la, como também conspirou contra ela; como se verificou pelos seus últimos pronunciamentos e seus últimos atos”. (Correio da Manhã, 1/4/1964)
Fuad Atala – Ele se comportou de maneira a encontrar uma saída para o Jango. Concluiu que o Jango não tinha mais condição de governar, então propôs ou a renúncia dele ou que o Congresso fizesse o impeachment dele.
Os contundentes textos são escritos pelo grupo de editorialistas comandados pelo veterano Otto Maria Carpeaux e aprovados pela dona do jornal, Niomar Muniz Bittencourt.
Carlos Heitor Cony – Eu colaborei, colaborei porque o Edmundo Muniz, que estava como redator chefe, me telefonou e disse: “Eu quero ler para você, para você tomar conhecimento”. Ele leu para mim. Eu disse: “Tá, muito bem, concordo, é o espírito do Correio da Manhã, como bateu violentamente em João Goulart”. Então eu tirei duas ou três coisas, mudei uma vírgula, só. O Edmundo Muniz captou a coisa e o tom; o tom, o conteúdo, propriamente dito, veio do Carpeaux. Não foi uma análise política, foi, realmente, panfleto: “Basta!” e “Fora!”.
Na madrugada do dia 31, tropas deixam Minas Gerais em direção ao Rio de Janeiro. A base militar de João Goulart não reage e o presidente é incapaz de articular resistência ao movimento militar. A Câmara dos Deputados declara a Presidência da República vaga.
Ana Arruda– Essa sessão da Câmara foi inesquecível. Porque o Doutel de Andrade, que era um líder do governo, estava discursando, dizendo que esse golpe não ia adiante porque os militares estavam com o Jango. Quando o Adauto Lucio Cardoso pediu um aparte, com aquela elegância do Adauto. “Não dou aparte a udenista nenhum”. O Adauto insistiu. “Meia noite e dois, já estamos em primeiro de abril, pode falar à vontade, deputado”, gozando. Aí o Adauto disse: “Eu queria avisar aos meus colegas da bancada do governo que o general Amauri Kruel já aderiu ao movimento militar e que o presidente João Goulart está saindo do país. Era isso que eu queria dizer, sr. Deputado”. Aí deu aquela loucura. Nós saímos correndo.
Moniz Bandeira– O presidente João Goulart, ao chegar ao Rio Grande do Sul, a Porto Alegre, conversou com o general Ladário Telles, que lhe disse não haver condições de resistência. Ele resistiria, mas não garantia a vitória. Jango tomou um avião, passou por outra fazenda dele e depois foi para o Uruguai. Ele sabia que não adiantava, que o golpe viria. Os americanos iam intervir. Seria uma sangreira, o nome que ele usou. “Não, Moniz, não dava para resistir, seria uma sangreira”. O Brasil seria arrasado, desindustrializado, a mortandade imensa. Os americanos estavam dentro do Brasil.
Marco Antônio Coelho – Nós, o PCB, éramos oposição ao Jango. Eu lutei contra aquilo, mas aquilo dominou o Plenário do Comitê Central. Portanto, mesmo aqueles que combatiam o golpe de Estado não tinham uma posição correta porque naquele instante o que nós deveríamos fazer seria assumir uma posição frontal de defesa do Jango. Mas, não. Surgiram então vários argumentos: “O Jango está conciliando, é um conciliador, ele não é um revolucionário”. Essa ilusão foi o grande erro da esquerda.
A articulação para derrubar o presidente encontra abrigo em um dos jornais mais tradicionais do país, O Estado de S.Paulo.
José Maria Mayrink– Os Mesquita, donos do jornal, conspiraram para derrubar o Jango. Isso começou com o Julio Mesquita Filho, que na época era um dos diretores do jornal. Havia reuniões de civis e militares na casa dele e havia também na casa do Ruy Mesquita.
Alberto Dines – A partir de agosto de 1961, os repórteres que cobriam as forças armadas, sem saber, passaram por um intenso aprendizado técnico. Antes, cobriam as solenidades, discursos. Neste final de março de 1964 já eram experts em questões militares. A movimentação de blindados era crucial, tanques só saíam da Vila Militar quando a situação era grave. Na manhã de 31, todos os indicadores apontavam para o regime de prontidão máxima. Mas quem nos deu a notícia da descida da tropa mineira do general Olímpio Mourão Filho foi o repórter Márcio Moreira Alves, que embora trabalhasse para um concorrente, o Correio da Manhã, era querido por todos. Entrou na Redação excitadíssimo, aos berros: “Titio telefonou, Minas está descendo, já estão em Juiz de Fora!”. O “titio” era Afonso Arinos de Melo Franco, recém-empossado como [secretário] do governo de Minas. Dias depois, quando a quartelada assumiu-se como ditadura, Márcio estava na oposição.
No dia 2 de abril, o país já está mergulhado no regime militar que duraria 21 anos. Em poucos dias, Castelo Branco é eleito pelo Congresso Nacional.
Carlos Fico – Eles aí já tentam levar a cabo seus desígnios através de uma argumentação, supostamente legal, constitucional. E daí toda essa preocupação que houve no golpe de encontrar uma forma aceitável do ponto de vista constitucional. A posse do Ranieri Mazzilli, a eleição pelo Congresso do Castelo Branco, aquele ato institucional com uma aparência de juridicidade, tudo isso denota uma preocupação com o erro que foi cometido em 1961.
Maria Celina – Conseguiu-se atrair para o movimento golpista os principais chefes militares, Castelo Branco, Costa e Silva, enfim, é tomar o poder sabendo que não havia facções militares que competiriam entre si. O que é surpreendente é que o golpe não foi o golpe, o golpe foi o início de um outro governo. A rigor, a ditadura militar não estava contida no golpe.
Com o golpe, os últimos pilares de sustentação do governo Jango são atacados pelas alas mais radicais. Ao som do Hino Nacional, o prédio da União Nacional dos Estudantes é incendiado.
Ferreira Gullar – Eu, naquela época, era presidente do Centro Popular de Cultura da UNE, o CPC. Peguei o telefone e liguei imediatamente para o Vianinha [Oduvaldo Vianna Filho], que era uma das principais figuras do grupo, para ver o que a gente deveria fazer em face daquilo, daquela notícia, que ele apurasse direito. Combinamos que iríamos convocar a intelectualidade de esquerda, os artistas, as várias áreas de música, de teatro, de cinema, para nos reunirmos na sede da UNE, que era onde funcionava o CPC, para discutir o assunto e também tomar uma posição diante do que estava acontecendo.
A redação da Última Hora é depredada. Munidos de pedras e paus grupos antijanguistas tomam a garagem do jornal, disparam tiros e incendeiam carros.
Pinheiro Jr.– Quando eu cheguei na Última Hora, voltando de Juiz de Fora, quem estava no comando era o diretor de Redação Moacyr Werneck de Castro, a quem eu disse: “Estou com um material muito interessante sobre os acontecimentos de Juiz de Fora, o que você quer que eu faça?”. Ele falou: “Olha, você não faz nada não, vai embora para casa porque o Carlos Lacerda está na TV Rio incitando o pessoal a vir quebrar a Última Hora. Escrevi a matéria, juntei o filme e coloquei numa gaveta. Quando eu estava descendo e cheguei à Praça da Bandeira, encontrei com a turma que tinha vindo quebrar a Última Hora.
A Tribuna da Imprensa não esconde seu apoio ao movimento golpista. Comemora a queda de Jango e destaca a atuação do governador do Rio de Janeiro, Carlos Lacerda.
Hélio Fernandes – No começo, a visão de todo mundo, inclusive minha, era deturpada. Realmente eles lançaram a ideia de que o país estava à beira de cair no regime comunista. A edição de 1º de abril, nós ficamos como todo mundo. Nós não sabíamos bem o que era. Ninguém sabia bem o que era. Todo mundo apoiou, não apoiou. Depois, todo mundo ficou contra, não ficou contra. Então, muita gente apoiou depois, muita gente apoiou muito, cresceu muito, enriqueceu muito, ganhou muitos canais de tudo.
O vespertino muda de tom a partir de julho, quando Carlos Lacerda critica a prorrogação do mandato de Castelo Branco e exige eleições para o ano seguinte. A Tribuna diz que o movimento está desmoralizado e se coloca claramente na oposição.
Daniel Aarão Reis– Muita gente, a meu ver, aceitou aquela derrota imaginando que, quando a poeira abaixasse, as coisas se restabeleceriam. Muitos políticos de direita estavam convencidos que as eleições presidenciais de 1965 seriam preservadas. Isso inclusive fez parte do acordo que o Castelo Branco fez com o JK. O JK mobilizava o PSD para apoiar o Castelo com o compromisso da manutenção das eleições em 1965. E muita gente que aceitou a derrota, aceitou “não, não vou lutar porque se eu lutar vou perder, e no final das contas essa coisa toda vai se restabelecer e no ano que vem as coisas voltam à normalidade”.
Alzira Abreu– A imprensa pede a subida dos militares, que os militares venham restabelecer a ordem; mas a imprensa, eu estou falando só da imprensa, mas grande parte da intelectualidade pediu, que eram pessoas mais à direita, pediram a vinda dos militares para restabelecer a ordem, não para impor uma ditadura. Depois que os militares assumiram o poder, eles resolveram permanecer no poder. E começa o período da censura, das prisões arbitrárias, isso vai levando os jornais a se afastarem dos militares.
A Folha de S.Paulo, opositora do presidente desde o impasse da posse, apoia a derrubada de Jango. E relembra que advertiu que a postura do presidente, ao se aproximar dos setores mais radicais, deflagraria uma profunda crise político-militar. O jornal endossa a decretação de um ato institucional. Para o jornal, os militares restabeleceram a ordem e a legalidade.
Editorial – “E isto se fez, note-se, com um mínimo de traumatismo graças ao discernimento das nossas Forças Armadas que agiram prontamente para conter os desmandos de um político que, cercado de assessores comunistas, procurava manobrar o país”. (Folha de S.Paulo, 5/4/1964)
O Globo segue a mesma linha e respira aliviado com a saída de João Goulart. Graças aos militares, o país está a salvo da “comunização”.
Carlos Chagas– O Roberto Marinho, desde de manhã cedo, estava informado de que estava havendo uma revolução. Mas esqueceu-se, ou não quis, falar para os seus repórteres. Ficou fechado lá na sala dele, até que a secretária dele veio na minha mesa e disse: “O que está havendo em Juiz de Fora?”. Eu disse: “Acho que nada, né?”. Ela disse: “Liga o rádio aí porque tem alguma coisa em Juiz de Fora”. E aí é que nós começamos, já ao entardecer, a ligar o rádio e pegar, em ondas curtas, emissoras de Juiz de Fora, que estavam naquela euforia dizendo: “Juiz de Fora, capital revolucionária do Brasil. Os generais Mourão e Guedes estão na rua, estão já descendo sobre o Rio de Janeiro”. Mas foi uma perplexidade geral porque ninguém sabia de nada.
O Globo vê com entusiasmo a rápida vitória do movimento sem derramamento de sangue e diz que a revolução triunfante deve impedir a infiltração de agitadores comunistas na vida pública.
José Maria Mayrink – Eu trabalhava no O Globo. Eu lembro que um colega falou: “Os nossos tanques estão avançando”, eram os tanques que viriam de São Paulo para enfrentar o Jango. E não eram os meus tanques, eu estava torcendo na verdade pelo Jango.
Contrariado por ter um artigo contra Carlos Lacerda vetado, Gilles Lapouge, correspondente de O Estado de S.Paulo em Paris, pede demissão logo depois do golpe. Lacerda é amigo de longa data da família Mesquita. O jornal não aceita a demissão e a celeuma vai parar nas páginas da publicação.
Gilles Lapouge – Carlos Lacerda estava em Roma, voltou por Paris e no aeroporto ele falava com os jornalistas franceses. Então, todo mundo compreendeu muito bem que havia qualquer coisa que está se fazendo lá, uma espécie de golpe. Eu disse ao jornal: “Não vou falar daquela conferência da imprensa do Carlos Lacerda porque, primeiro, não gosto muito daquele personagem”. O jornal me disse: “Mas você tem que fazer isso”. Pouco tempo depois, uns dias apenas, o golpe. Então, amigos do Brasil, do jornal, deram detalhes sobre isso e compreendi que era verdadeiramente um golpe militar de tendência fascista. Ora, isto eu não posso aguentar.
José Maria Mayrink – O Ruy [Mesquita], por consideração a ele, pela amizade que tinha a ele, mandou um telegrama dizendo por que não tinha publicado a entrevista do Lacerda. Aí o Lapouge escreveu uma carta ao Ruy em que dava as razões dele, e o Ruy respondeu com outra.
Gilles Lapouge – Ele me mandou um telegrama para dizer: “A direção não aceita a sua demissão, mas de todo modo você tem que esperar o número de domingo. Vamos responder publicamente à demissão”.
José Maria Mayrink – Os Mesquita defendiam o movimento e falavam que era uma coisa que iria durar pouco.
Gilles Lapouge – Ele fez talvez 10, 15 páginas com grande conceito sobre a revolução, a ideologia, a práxis, o comunismo, coisa assim. No final da carta dele, ele dizia: “Pedimos a você não ficar demitido, mas você tem que saber – aliás você já sabe, porque tem a lembrança da história de O Estado de S. Paulo – que no dia em que [o movimento militar] atacar o direito do homem, o Estado vai passar para a oposição”.
José Maria Mayrink– O Estado rompeu no ano seguinte, em 1965, quando o Castelo Branco, que esperava devolver o poder aos civis com as eleições de 65, então ele se retiraria, e o movimento convocaria eleições diretas para eleger um candidato, certamente de confiança, mas civil.
O Jornal do Brasil não era um jornal de colunistas, era um jornal de informação. Na página de Opinião, três artigos de fundo, sem assinatura, de responsabilidade da direção da empresa. Ao lado, os artigos de Tristão de Athayde e Barbosa Lima Sobrinho, que opuseram-se ao golpe desde os primeiros momentos e jamais foram censurados pela direção. Eram instituições intocáveis. Por isso, em abril de 1965, respondendo a um protesto de Tristão de Athayde, Castelo Branco, já como presidente, telefonou para oferecer satisfações. O pensador agradeceu ao presidente em um bilhete manuscrito.
A extensão da cobertura daqueles 19 dias e a necessidade de oferecer ao leitor uma conexão entre tantos episódios sugeriram um complemento em formato de livro capaz de reproduzir o clima trágico que se prenunciava. O título Os Idos de Março foi emprestado por Shakespeare, com trechos da tragédia inseridos no final. Os relatos vão até 15 de abril, o livro saiu no início de maio. O perfil de Jango escrito por Antônio Callado é arrasador:
“E quando, eventualmente, chegar à Presidência de República um homem de esquerda, Jango talvez reapareça. Como vice”. (Antônio Callado, Os Idos de Março)
Ana Arruda– Eu acho muito severo com o João Goulart. Se a gente ler direito, os pecados do João Goulart eram muitos também. Mas, evidentemente, que apontar pecados do João Goulart não significa querer uma ditadura militar. Longíssimo disso.
Alberto Dines – Onde é que a imprensa errou? Antes de 31 de março, errou ao adotar o uníssono. Errou ao submeter-se a um cronograma militar sem deixar aberturas políticas para recuos, ajustes e negociações. Jango tinha a seu lado vozes e forças moderadas. A pressa não deixou que fossem ouvidas. A grande imprensa impregnou-se com o clima do “manda brasa” que tanto criticava nos radicais próximos ao presidente. Os dois editoriais na capa do Correio da Manhã, que sinalizaram o início da operação militar, foram disparados por quem não entende de política. Ou de jornalismo. Antes do ultimatum, entre o “Basta!” e o “Fora!” não se ofereceram opções. E, em seguida, quando o Correio da Manhã deu a entender que não concordava com a violência e não admitia uma ditadura, um mínimo de solidariedade corporativa teria abortado o ímpeto da linha dura comandada pelo general Costa e Silva.
R$ 1.212 o salário do brasileiro e quase a totalidade das pensões. 14 milhões de trabalhadores estão desempregados. A fome é pior do que a guerra convencional. Idem as pestes do Terceiro Mundo.
Por Ana Eduarda Diehl /Jornal Plural: "O GNV vai bater em oito reais, um monte de gente com fome e diz que a guerra é lá na Ucrânia".
Além da Ucrânia, dezenas de conflitos sangrentos hoje no mundo. Guerras no Iêmen, Etiópia, Mianmar, Síria, Afeganistão, Haiti, Camarões, Mali, Níger, Burquina, Somália, Congo, Moçambique provocam enorme sofrimento humano que a imprensa esconde.
Dinamarca planeja abrigar ucranianos, mas quer saída de sírios."El régimen israelí condena a Rusia" Del artista jordano Emad Hajjaj.
Jaqueline Quiroga
Blog do Noblat
Vejam a mesma cena por outro ângulo. Carlos sentado ao lado do pai em reunião com os russos em Moscou. Atrás deles, sentado, o ministro Augusto Heleno. De pé, encostado na parede, o ministro Luís Eduardo Ramos. Os dois ficaram de fora da mesa principal para dar lugar a Carlos.
Gerardo Santiago
Natália Bonavides
Uma vereadora eleita com quase 50 mil votos na segunda maior cidade do país foi executada a sangue frio. Quatro anos depois, o crime ainda não foi elucidado. Até quando seguiremos sem respostas? #4AnosSemRespostas
Quem mandou o vizinho do Bolsonazi matar Marielle Franco ? Quem estava na casa 58 ? Pq o CARLUXO foi na portaria, mexer no computador ?
Suzanne Bernard
Ivana Emerick
Ajudem a ministra! Compartilhem com seus contatos
Rosa de Luxemburgo
"É preciso fazer uma devassa nas contas desse grupo sinistro chamado MBL", diz Cynara Menezes
Manuela d’Ávila relatou algumas das inúmeras agressões que sofreu especialmente dos milicianos ligados ao MBL: "Ando nas ruas de cabeça erguida porque sei quem sou e o que defendo e sei quem são os mentirosos que me atacam".
Denise Balestra
Eu tenho essa sensação... Será só eu?
Reinaldo Azevedo
Outra novidade que o humanismo ucraniano introduziu na guerra são os “militares estrangeiros”. Antigamente, o nome era “mercenários”. Não paremos de vituperar contra Putin. Sempre será merecido. Mas ñ está faltando um pouco de rigor técnico? Cresce risco de confronto nuclear.
Bolsonaristas estimulam radicalização de policiais, apostam em ruptura e aproveitam para antecipar suas campanhas eleitorais
por RENATO SÉRGIO DE LIMA E MARCO ANTÔNIO CARVALHO TEIXEIRA
A revelação feita pelo repórter Marcelo Godoy, do Estadão, de que o coronel da PM Aleksander Lacerda, responsável pelo Comando de Policiamento do Interior da região de Sorocaba, em São Paulo, compartilhava em sua página pessoal no Facebook conteúdos com ataques antidemocráticos contra autoridades e poderes caiu como uma bomba de gás lacrimogêneo para enevoar a cena política que antecede o próximo Sete de Setembro – data vendida pelo discurso ultrarradical e golpista de apoio ao presidente Bolsonaro como uma “nova libertação do país”.
Um grande temor de que um golpe será tentado no dia 7 tomou conta da mídia e ocupou diversos analistas. E não à toa, pois o episódio do coronel Aleksander Lacerda trouxe um elemento até então menos visível, o fato de o coronel estar na ativa e, por norma, não poder fazer manifestações político-partidárias. Até então os porta-vozes da infiltração bolsonarista nas polícias eram da reserva e/ou estavam em cargos políticos.
Levantamento da consultoria Arquimedes feito a pedido da piauí mostra que na segunda, dia 23, dia da reportagem, as convocatórias para o dia 7 dominaram as redes sociais, e o caso do coronel Aleksander foi vastamente utilizado para criticar o governador João Doria e chamar para os atos programados. Nas postagens, os porta-vozes são, como esperado, da reserva, mas tentam inflar o episódio e destacar o fato de um policial da ativa falar abertamente. Ganhou destaque o chamado para as manifestações feito pelo ex-comandante da Rota Ricardo de Mello Araújo, que hoje preside a Ceagesp e, em 2017, ainda na ativa, disse que “abordagens policiais nos Jardins e na periferia têm de ser diferentes”.
Dois outros oficiais da reserva da Polícia Militar do Estado de São Paulo (PMESP) também tiveram destaque, sendo o primeiro o coronel Homero Cerqueira, que foi presidente do ICMBio durante a gestão de Ricardo Salles, quando a pasta do Meio Ambiente transferiu cerca de 19 milhões de reais para a PMESP oriundos de pagamentos de multas ambientais. Já o segundo, o deputado federal Coronel Tadeu Anhaia, eleito por São Paulo pelo PSL em 2018 com 98.373 votos, anunciou a locação de cinquenta ônibus para policiais se deslocarem do estado todo para a Avenida Paulista.
A partir da movimentação deste último, o roteiro do golpe ficou mais explícito, passando pelo assédio e pela cooptação das forças policiais da ativa. Ou seja, radicalizar posições junto a um eleitorado visto como cativo e se tornar visível faz parte não só do processo de ruptura institucional. Caso ela não ocorra, ajuda na estratégia de fazer frente ao fim das coligações partidárias, tema ainda em discussão no Congresso, e tentar se reeleger em 2022. E isso mostra-se ainda mais forte quando constatamos que, ainda segundo a Arquimedes, das dez postagens das redes sociais sobre o Sete de Setembro que mais geraram engajamento, duas delas eram da deputada Carla Zambelli, também eleita por SP pelo PSL, com 76.306 votos, e uma das mais proeminentes representantes do bolsonarismo radical.
Dito de outra forma, 2018 foi um ano eleitoral muito atípico – e nada disso deve se repetir em 2022. Na última eleição presidencial, o antipetismo turbinou o bolsonarismo e criou um resultado artificial para o repaginado PSL, partido que se propôs a abrigar o capitão. Movidos pelo antipetismo, paulistas e paulistanos deram, somados, quase 3 milhões de votos a Eduardo Bolsonaro e Joice Hasselmann. No total, somando votos nominais e de legenda, o PSL recebeu 20,90% dos votos válidos para deputado federal, mais que o dobro dos 9,80% destinados ao PT, partido com mais de quarenta anos de existência e tido como o preferido dos brasileiros. Foi essa enxurrada de votos que possibilitou a eleição dos peselistas Coronel Anhaia e Carla Zambelli, entre outros, já que sozinhos eles não chegariam nem perto do quociente eleitoral, que, em 2018, foi de 301,9 mil votos.
Além disso, o bolsonarismo está em baixa e, ao invés de atrair apoios fáceis como o Bolsodória em 2018, encontra dificuldades em angariar aliados. O PSL, por sua vez, rachou. Hasselmann é considerada estrela dissidente do bolsonarismo e hoje, junto com outra ex-estrela do PSL, Alexandre Frota, cerra as fileiras dos que pedem o impeachment do presidente. Eduardo Bolsonaro, assim como já aconteceu com Carlos Bolsonaro no Rio de Janeiro em 2020, deverá ver sua votação substancialmente diminuída.
Ou seja, a reeleição dos que permanecem fiéis ao bolsonarismo move a radicalização de seus discursos em busca sobretudo do eleitorado mais fiel ao “mito”. O episódio do coronel Aleksander caiu como uma luva para isso, pois envolveu João Doria, um dos principais antagonistas de Jair Bolsonaro, e um oficial da ativa da PMESP de São Paulo, cujo tamanho e história são chaves para a segurança de todo o país. O risco de esses bolsonaristas fiéis não se reelegerem aumenta exponencialmente o risco de erros de avaliação em relação ao que pode ser feito diante do comprometimento das polícias pelo bolsonarismo.
Na segurança pública, o bolsonarismo não é um pensamento único, mas hoje é a forma hegemônica por meio da qual os policiais compreendem o ser e fazer polícia no Brasil contemporâneo. As tentativas de radicalização e assédio protagonizadas por próceres bolsonaristas buscam criar um clima de mobilização e revolta entre os 650 mil policiais da ativa do país. Lembremo-nos de que o bolsonarismo, enquanto ideologia política, tem raízes históricas muito mais profundas do que a atuação direta do presidente Jair Bolsonaro durante os primeiros anos de sua gestão. Ele atualiza narrativas conservadoras e autoritárias que há séculos informam lugares institucionais, culturas organizacionais e representações sociais sobre como o Estado deve lidar com crime, medo e violência.
Olavo de Carvalho, astrólogo que se declara filósofo e é uma das grandes referências ideológicas da extrema direita brasileira, oferece gratuitamente, desde meados de 2019, seu curso online de filosofia para policiais brasileiros. O vereador no Rio de Janeiro Carlos Bolsonaro, filho do presidente e responsável pela comunicação de Bolsonaro nas redes sociais, reconheceu no seu perfil do Twitter que a oferta gratuita de cursos é uma “excelente estratégia para que as Forças de Segurança Pública possam se dispor a aprender mais sobre a cultura esquerdista maléfica que nos cerca […]”.
Tudo isso sob o aplauso e apoio de parcelas significativas da população. Pesquisa sobre medo da violência e a propensão a valores autoritários, de 2017, com base em um survey nacional que aplicou a famosa Escala F, de Theodor Adorno, calculou que, em uma escala de 1 a 10, o escore médio de apoio a posições autoritárias no país foi de 8,1. Entre as assertivas que mais se destacaram nesse estudo, a que se mostrou mais significativa foi a dimensão originalmente nomeada por Adorno como submissão à autoridade. Bolsonaro moldou-se perfeitamente ao perfil do imaginário social que vê a necessidade nacional de encontrar um “salvador”, que “coloque ordem na casa” e retome a “autoridade” perdida, segundo os discursos de ultradireita, para a agenda de direitos civis, políticos e sociais da Constituição brasileira.
A agenda de direitos foi e é vendida, portanto, como a responsável pela decadência “moral” e “cívica” da nação, não obstante termos visto que ela ainda é um projeto inconcluso no que diz respeito à segurança pública. Direitos coletivos e humanos têm sido associados a criminosos, enquanto são realçadas bandeiras como a defesa irrestrita da ampliação do porte e da posse e a revogação de qualquer política de controle e rastreabilidade de armas de fogo.
Há um reforço em temas morais e de costumes e, na medida em que a garantia da ordem social democrática inaugurada pela Constituição de 1988 é feita pelo Congresso Nacional e pelo STF (Supremo Tribunal Federal), por exemplo, o discurso bolsonarista busca desconstruir a legitimidade de tais poderes da República. Ataques contra integrantes desses poderes passam a ser parte do jogo político. A gravidade do problema aumenta exponencialmente quando esse projeto político e ideológico consegue mobilizar parcelas significativas dos policiais brasileiros a ponto de estes publicarem manifestações antidemocráticas aceitando que instituições da República sejam fechadas e que o presidente Jair Bolsonaro intervenha para romper com a ordem constitucional democrática do Brasil.
Isso é o que revela estudo do FBSP do ano passado, que mostra que o alinhamento ao discurso do bolsonarismo antidemocrático e radicalizado representa ao menos 12% de policiais militares, 7% de policiais civis e 2% de policiais federais que possuem contas nas redes sociais e interagem publicamente em grupos e páginas do Facebook. Se extrapolarmos a amostra do estudo, tais percentuais representam um grupo de aproximadamente 120 mil policiais convertidos para discursos golpistas e autoritários, que aceitariam rupturas institucionais sem maiores constrangimentos éticos ou morais. Tais percentuais não se resumem apenas aos apoiadores de Jair Bolsonaro. Revelam as visões de mundo que regem as representações sociais do conjunto dos policiais acerca de ordem social e pública. Nas redes sociais, apenas 68% dos policiais que criticaram o Congresso e o STF apresentaram interações diretas em ambientes ligados ao bolsonarismo radical. Ou seja, a força do discurso hiperconservador de Bolsonaro nas polícias é bem maior do que o engajamento em si dos policiais a um projeto político específico. Corroborando os números captados nas redes sociais, o instituto de pesquisa de opinião Atlas (2021) aplicou um survey especificamente junto a policiais e apurou que 21% deles (o equivalente a cerca de 140 mil policiais) são a favor da instalação de uma ditadura militar no Brasil.
Mas não é preciso uma ruptura radical para subverter o ordenamento democrático e colocar em risco a capacidade de o estado de direito lidar com suas forças de segurança. No plano do burocrata do nível da rua, a contaminação das tropas é algo já bastante visível, revelada pela quantidade cada vez maior de casos de policiais militares acusados de agir de forma político-partidária contra opositores do governo. Entre janeiro de 2020 e agosto de 2021, foram registrados ao menos dezessete casos de policiais militares atuando para reprimir ou prender adversários de Jair Bolsonaro, segundo levantamento do Estadão e do FBSP. Antes desses episódios, um primeiro caso ocorreu logo no início da gestão do atual presidente, quando a Polícia Militar do Estado de Minas Gerais proibiu um tradicional bloco de Carnaval da cidade de Belo Horizonte de desfilar fazendo críticas a Bolsonaro.
Seja como for, duas pesquisas, com metodologias diferentes (survey e tracking de redes sociais) e feitas por instituições diferentes, estimaram que entre 120 mil e 140 mil policiais aderiram ao discurso bolsonarista mais radical que defende medidas antidemocráticas e fechamento das instituições. Em termos comparativos, esses números representam cerca de 20% das forças policiais brasileiras. Bolsonaro reforçou, ao que tudo indica, uma tendência de conservadorismo dos policiais brasileiros que, associada ao quadro de disjunção política e organizacional da segurança pública do país, acende alertas importantes acerca da capacidade de contenção e/ou mitigação dos riscos de ruptura institucional.
Aquestão, portanto, não é apenas de convergência ideológica dos policiais. Bolsonaro se fortalece no amálgama de condições políticas, ideológicas, jurídicas e institucionais que dão forma ao modelo de ordem social e pública violento e desigual aceito e “naturalizado” pela maioria dos policiais brasileiros. Ao fazer isso, ele estimula que policiais não aceitem questionamentos ao seu projeto político e reprimam manifestações e movimentos sociais de oposição. A oposição passa a ser sinônimo de antipatriotismo, de “mal” e de desordem. Com o enfraquecimento de lideranças policiais tradicionais, que até o início da gestão de Jair Bolsonaro eram capazes de representar os anseios de suas categorias profissionais, os policiais assumem o culto da personalidade e da figura do “mito”, cuidadosamente construída pelos responsáveis pela comunicação do atual mandatário do Brasil. A nosso ver, esse é o principal risco da radicalização policial, o de confundir um líder populista com a própria noção de Estado, de Pátria e de Nação.
Polícias são instituições de Estado. Elas são o braço armado do Estado em tempos de paz e, se não reguladas, viram-se contra, até mesmo, os seus integrantes que destoam do pensamento hegemônico. A população está submetida à incerteza. Diante de tal quadro, o caso do coronel Aleksander serve para mostrar que, mesmo potencializados por políticos bolsonaristas, muitos deles oriundos das polícias, há problemas sérios que exigem a mobilização de governadores, Ministérios Públicos e Judiciário para que possamos interromper as rupturas democráticas já em curso. No planejamento de poder bolsonarista, o Sete de Setembro é só mais um passo para naturalizar a ideia de golpe e de ruptura. Por ele, as polícias são peça-chave mesmo que, ao fim e ao cabo, sejam esses mesmos policiais que, por serem da ativa, poderão ser processados e presos por motim ou revolta caso embarquem no canto da sereia da nau do capitão.
Na Roma antiga existia uma lei segundo a qual nenhum general poderia atravessar, acompanhado das respectivas tropas, o rio Rubicão, que demarcava ao norte a fronteira com a província da Gália, hoje correspondente aos territórios da França, Bélgica, Suíça e de partes da Alemanha e da Itália.
Em 49 a.C., o general romano Júlio César, após derrotar uma encarniçada rebelião de tribos gaulesas chefiadas pelo lendário guerreiro Vercingetórix, ao término de demorada campanha transpôs o referido curso d'água à frente das legiões que comandava, pronunciando a célebre frase: "A sorte está lançada".
A ousadia do gesto pegou seus concidadãos de surpresa, permitindo que Júlio César empalmasse o poder político, instaurando uma ditadura. Cerca de cinco anos depois, foi assassinado a punhaladas por adversários políticos, dentre os quais seu filho adotivo Marco Júnio Bruto, numa cena imortalizada pelo dramaturgo inglês William Shakespeare.
O episódio revela, com exemplar didatismo, que as distintas civilizações sempre adotaram, com maior ou menor sucesso, regras preventivas para impedir a usurpação do poder legítimo pela força, apontando para as severas consequências às quais se sujeitam os transgressores.
No Brasil, como reação ao regime autoritário instalado no passado ainda próximo, a Constituição de 1988 estabeleceu, no capítulo relativo aos direitos e garantias fundamentais, que "constitui crime inafiançável e imprescritível a ação de grupos armados, civis e militares, contra a ordem constitucional e o Estado democrático".
O projeto de lei há pouco aprovado pelo Parlamento brasileiro, que revogou a Lei de Segurança Nacional, desdobrou esse crime em vários delitos autônomos, inserindo-os no Código Penal, com destaque para a conduta de subverter as instituições vigentes, "impedindo ou restringindo o exercício dos poderes constitucionais". Outro comportamento delituoso corresponde ao golpe de Estado, caracterizado como “tentar depor, por meio de violência ou grave ameaça, o governo legitimamente constituído”. Ambos os ilícitos são sancionados com penas severas, agravadas se houver o emprego da violência.
No plano externo, o Tratado de Roma, ao qual o Brasil recentemente aderiu e que criou o Tribunal Penal Internacional, tipificou como crime contra a humanidade, submetido à sua jurisdição, o "ataque, generalizado ou sistemático, contra qualquer população civil", mediante a prática de homicídio, tortura, prisão, desaparecimento forçado ou "outros atos desumanos de caráter semelhante, que causem intencionalmente grande sofrimento, ou afetem gravemente a integridade física ou a saúde física ou mental".
E aqui cumpre registrar que não constitui excludente de culpabilidade a eventual convocação das Forças Armadas e tropas auxiliares, com fundamento no artigo 142 da Lei Maior, para a "defesa da lei e da ordem", quando realizada fora das hipóteses legais, cuja configuração, aliás, pode ser apreciada em momento posterior pelos órgãos competentes.
A propósito, o Código Penal Militar estabelece, no artigo 38, parágrafo 2º, que "se a ordem do superior tem por objeto a prática de ato manifestamente criminoso, ou há excesso nos atos ou na forma da execução, é punível também o inferior".
Esse mesmo entendimento foi incorporado ao direito internacional, a partir dos julgamentos realizados pelo tribunal de Nuremberg, instituído em 1945, para julgar criminosos de guerra. Como se vê, pode ser alto o preço a pagar por aqueles que se dispõem a transpassar o Rubicão.
O ministro Ricardo Lewandowski, do Supremo Tribunal Federal, publica neste domingo um importante alerta para todos aqueles que estejam eventualmente planejando um golpe de estado ou um ataque a outros poderes no dia 7 de setembro. "No Brasil, como reação ao regime autoritário instalado no passado ainda próximo, a Constituição de 1988 estabeleceu, no capítulo relativo aos direitos e garantias fundamentais, que 'constitui crime inafiançável e imprescritível a ação de grupos armados, civis e militares, contra a ordem constitucional e o Estado democrático'”, escreve o ministro, em artigo publicado na Folha.
"O projeto de lei há pouco aprovado pelo Parlamento brasileiro, que revogou a Lei de Segurança Nacional, desdobrou esse crime em vários delitos autônomos, inserindo-os no Código Penal, com destaque para a conduta de subverter as instituições vigentes, 'impedindo ou restringindo o exercício dos poderes constitucionais'. Outro comportamento delituoso corresponde ao golpe de Estado, caracterizado como 'tentar depor, por meio de violência ou grave ameaça, o governo legitimamente constituído'. Ambos os ilícitos são sancionados com penas severas, agravadas se houver o emprego da violência", lembra ainda o ministro.
"E aqui cumpre registrar que não constitui excludente de culpabilidade a eventual convocação das Forças Armadas e tropas auxiliares, com fundamento no artigo 142 da Lei Maior, para a 'defesa da lei e da ordem', quando realizada fora das hipóteses legais, cuja configuração, aliás, pode ser apreciada em momento posterior pelos órgãos competentes", destaca o ministro. "Como se vê, pode ser alto o preço a pagar por aqueles que se dispõem a transpassar o Rubicão", finaliza.
O coronel Aleksander Lacerda era, até esta segunda-feira, comandante de Policiamento do Interior 7 da Polícia Militar de São Paulo. Com isso, comandava uma tropa de uns cinco mil policiais militares espalhados por 78 municípios da região de Sorocaba, no interior, mas próxima da capital.
Foi sumariamente catapultado pelo governador João Dória. A razão para tirar o tal coronel do anonimato: Lacerda convocou pelas redes sociais “amigos” para apoiar os atos programados para o dia 7 de setembro a favor de Jair Messias e seu governo genocida, ineficaz, destruidor do país. Para sua gestão patética e seus seguidores abjetos. Saiu do anonimato e como consequência saiu também do posto de comando que ocupava.
O coronel aproveitou o embalo para criticar Dória, que como governador é seu chefe máximo, e também Rodrigo Maia, que acaba de assumir uma secretaria estadual no governo paulista. O presidente do Congresso, Rodrigo Pacheco, e os integrantes do Supremo Tribunal Federal também foram alvo de Aleksander Lacerda.
Será que o coronel achava que, ao se manifestar politicamente de maneira tão clara e agressiva, atropelando todos os códigos e regras disciplinares, passaria impune? Ou será que quis pôr à prova a lealdade de outros policiais militares diante da punição mais que previsível?
Outro coronel da PM, este já na reserva, Ricardo de Mello Araújo, pediu a todos os “veteranos” que se juntem às manifestações da extrema-direita na avenida Paulista no dia 7 de setembro para apoiar Jair Messias e impedir a volta do “comunismo”.
Com isso, dois policiais militares de alta graduação, um ainda na ativa, outro na reserva, uniram suas vozes convocando convulsões de rua, e isso no mais rico e habitado e supostamente desenvolvido estado brasileiro.
Qual será o clima nas PMs de rincões mais longínquos?
A esta altura do atual governo, já está mais do que claro o que claro sempre foi: desde seus tempos obscuros de deputado Jair Messias conta com apoio de amplos setores das Polícias Militares ao longo e ao largo de todo o país. Esta é justamente uma das bases com as quais pretende levar a cabo o golpe tão sonhado.
E assim ganha ares mais visíveis que o que parecia impossível começa a parecer mais possível. Temos pela frente, então, um quadro tão alucinado como assustador: confrontos de rua, violência desenfreada, motins de policiais militares, presença de milicianos armados nas manifestações do próximo dia 7 e, para conter o caos e a devastação, governadores requisitando a ação das Forças Armadas.
Até aí, os governadores estariam fazendo o previsto pela lei: ao não conseguir controlar suas próprias forças de segurança, não restaria a eles outra saída que pedir ajuda às forças nacionais.
Só que, para seguir de acordo com a lei, é preciso que o comandante máximo das Forças Armadas autorize sua entrada em cena.
E Jair Messias já disse e reiterou à exaustão que jamais mandará o “seu Exército” a agir contra “o povo”. A cada dia que passa fica mais e mais palpável o risco de total descontrole que provocaria um caos de dimensões incalculáveis no Brasil. Em seus delírios demenciais Jair Messias continua na mesma: persevera na crítica ao voto impresso, nas mentiras, nas manipulações – e nas insistentes ameaças.
Não pensa em outra coisa no golpe que, entre outras vantagens, afastaria dele e de seus pimpolhos igualmente demenciais o risco de irem parar na cadeia.
O que se espera é que os que podem pôr um freio nessa sequência formidável de absurdos saiam da toca e tomem medidas concretas para que o impossível continue no campo da impossibilidade. A menos, claro, que estejam, com sua omissão, dispostos à cumplicidade com quem não esconde em nenhum momento o que pretende: um banho de sangue sobre os escombros de um país desmoronado.
O patético desfile de tanques e blindados desta terça-feira (10) não conseguiu intimidar a Câmara Federal – que rejeitou o projeto diversionista do voto impresso –, mas serviu para desmoralizar ainda mais o “capetão” Jair Bolsonaro e os servis generais das Forças Armadas. No mundo inteiro, a “micareta militar” – como já foi batizada na internet – virou chacota.
O renomado jornal britânico The Guardian foi um dos mais ácidos nas críticas. Tratou o triste episódio como uma “parada militar de república das bananas”. Ele ainda ridicularizou aliados do presidente, como o grotesco deputado Otoni de Paula (PSC-RJ), que celebrou o ato com fotos de desfile militar na China, o que aumentou “a sensação de absurdo” do caso.
The Guardian concluiu esculhambando o neofascista tupiniquim. “A parada militar também vem acompanhada de uma sucessão de pronunciamentos incendiários e antidemocráticos do líder brasileiro. Um capitão aposentado do Exército com visão autoritária que afirma que não haverá eleições caso suas propostas não sejam aprovadas”.
Temor de um "cenário a la Trump"
Já o diário francês Le Monde afirmou que "Bolsonaro faz exército desfilar a poucos passos do Congresso, em meio a uma crise com as instituições brasileiras”. Após apontar que “pesquisas preveem uma grande derrota [em 2022] contra o ex-presidente Lula” e que há um temor no Brasil de um “cenário a la Trump”, o jornal afirmou que a democracia corre risco.
Já o Financial Times destacou que o “desfile militar é ‘ataque à democracia’”, informando que “nove partidos de esquerda” rechaçaram a tentativa de intimidação do presidente fascista. E a revista alemã Der Spiegel registrou que “Bolsonaro provoca congressistas com desfile militar" e fustigou: “Pela primeira vez desde a ditadura, tanques rodam pela capital brasileira passando por parlamentares que votam reforma eleitoral”.
Já o jornal estadunidense The New York Times, um dos mais lidos do planeta, não produziu reportagem ou editorial sobre o ridículo desfile, mas divulgou apenas uma charge que mostra Jair Bolsonaro em cima de um tanque com a palavra “ditadura” ao lado. O canhão do blindado vem no formato de uma urna para voto impresso.
Diplomatas estrangeiros temem o pior
Diante da forte repercussão negativa da “micareta”, vários governos estrangeiros reforçaram seus temores com o Brasil, segundo levantamento do jornalista Jamil Chade no site UOL. “Nos organismos internacionais, capitais europeias, nos EUA e mesmo em vizinhos do Brasil, a atitude do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) de questionar a eleição e recorrer de forma constante aos militares tem sido recebida com ‘preocupação’”.
“Se o assunto é considerado como um tema doméstico do país, a instabilidade de uma eventual ruptura democrática no país já passou a entrar no radar de governos estrangeiros e a tendência é de um maior isolamento do presidente no palco internacional, caso mantenha essas atitudes”. Segundo o jornalista, a notícia sobre o desfile militar em Brasília “mobilizou as diplomacias estrangeiras, que informaram suas capitais sobre a ‘crescente tensão’ no país”.
A reportagem ainda alerta sobre o acelerado isolamento do Brasil no cenário mundial. “Na Europa, deputados apontam que as imagens de tanques num desfile em Brasília vão tornar a ratificação do acordo entre Mercosul e UE uma realidade ainda mais distante. ‘Quem é que vai conseguir vender a ideia de que estamos fechando uma aliança com um governo que respeita os valores democráticos?’, questiona um dos parlamentares, na condição de anonimato”.