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O CORRESPONDENTE

Os melhores textos dos jornalistas livres do Brasil. As melhores charges. Compartilhe

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O CORRESPONDENTE

28
Out23

Os dez dedos ou as mãos de Julia Zanatta, a deputada da grinalda nazi

Talis Andrade

 

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Carlos Bolsonaro esteve em clube de tiro da deputada Júlia Zanatta no mesmo período que Adélio Bispo, aquele que esfaqueou seu pai. Nova revelação coloca em xeque inúmeras versões da família Bolsonaro sobre o caso. Atentado foi apontado por especialistas como fundamental para a eleição em 2018 do então desconhecido deputado federal presidente. E eleição de Zanatta da tiara nazista deputada e reeleição de Carlos, o filho Zero Dois, vereador do Rio de Janeiro em 2020

 

Com base em matérias jornalistas e publicações nas redes sociais, um internauta fez uma apuração individual e levantou novos questionamentos sobre o atentado contra Jair Bolsonaro (PSL) durante a campanha eleitoral de 2018.

Algumas informações são tão intrigantes que muita gente custa a crer que possam se tratar de meras “coincidências”. Informa Pragmatismo Político foi constatado, por exemplo, que Adélio Bispo, o homem que esfaqueou Bolsonaro, esteve nos mesmos dias no mesmo clube de tiros que Carlos Bolsonaro, filho do presidente.

Adélio Bispo vivia na cidade de Montes Claros (MG) até 2017, mas em 2018 ele começou a viajar pelo Brasil e chegou até a cidade de São José (SC), Região Metropolitana de Florianópolis.

No dia 5 de julho de 2018, Adélio praticou uma hora de tiro esportivo no clube .38. Dois dias depois Carlos Bolsonaro desembarcou na mesma cidade e passou um final de semana inteiro confinado no mesmo clube de tiro, conforme postado pelo próprio vereador em seu Instagram.

Foi neste mesmo clube, inclusive, que Carlos se refugiou quando brigou com o pai depois que foi obrigado a retirar do canal do YouTube oficial da presidência um vídeo de Olavo de Carvalho.

A imprensa tradicional já havia noticiado, timidamente, que os filhos de Bolsonaro, como Carlos e Eduardo, frequentavam o mesmo clube de tirou que Adélio treinou. A mídia não revelou, porém, que Carlos e Adélio estiveram no mesmo local durante o mesmo período.

“Aqui começa a teoria de fato. Ninguém fica 24 horas dentro de um clube de tiro. Nesses dias, Carlos e Adélio estiveram nos mesmos espaços, possivelmente compartilhando de armas similares e montando um plano. Sim, é esse plano mesmo que você pensou”, publicou o autor do levantamento.

Adélio permaneceu em São José até agosto de 2018. A facada em Juiz de Fora (MG) aconteceu um mês depois, em setembro. Naquela ocasião, Carlos Bolsonaro acompanhava o pai na comitiva, algo que nunca tinha feito antes.

A apuração repercutiu nas redes. “Em alguns anos, quando for tarde demais, esse falso atentado entrará para a história”, escreveu um internauta. “Qualquer ser humano percebe que tem algo errado nessa história. As evidências são no mínimo intrigantes”, observou outro.

Confira aqui o passo a passo da apuração do portal Pragmatismo político. 

 

A mão de Julia Zanatta

Difícil entender que Adélio Bispo aprenda a atirar com Júlia Zanatta, e prefira ficar no meio de uma multidão fanática, com uma faca enfrentar guarda-costas e ferir e tentar matar um candidato a presidente. 

Em 23 de março de 2023 escreveu João Almeida Moreira: 

Brasil continua sobre brasas. Na sexta-feira, 17, a deputada Júlia Zanatta, do PL, partido de Jair Bolsonaro, publicou uma selfie. No punho, uma carabina, no corpo, uma T-shirt com o desenho de uma mão, com quatro dedos, crivada de balas - os quatro dedos aludem, claro, a Lula da Silva, que perdeu o mínimo quando era metalúrgico.

A publicação fez-nos recuar a setembro de 2021, quando o site Brasil 247, simpático ao PT de Lula, lançou um documentário sobre o atentado sofrido por Bolsonaro em Juiz de Fora, um mês antes das Presidenciais de 2018 que o elegeriam. Atingido no abdómen, o então candidato presidencial foi atendido, logo depois, na Santa Casa da Misericórdia da localidade e, mais tarde, no Hospital Albert Einstein, em São Paulo. O autor do atentado, Adélio Bispo, foi preso em flagrante e está, desde 2019, numa prisão de alta segurança em Campo Grande.

Chamado Bolsonaro e Adélio, Uma Fakeada no Coração do Brasil, usando os nomes do agredido e do agressor e um jogo de palavras entre "facada" e "fake", o filme de 1h44m do jornalista Joaquim de Carvalho tenta provar a teoria de conspiração de esquerda de que o atentado foi forjado.

Levanta questões como a dispensa de colete à prova de bala por Bolsonaro, ao contrário do que era hábito, e a presença, incomum, de Carlos Bolsonaro, líder da Comunicação do pai, na comitiva. Além da utilização de uma equipa de segurança diferente da do costume, sendo que quase todos os guarda-costas, apesar de terem cometido falhas gritantes, segundo especialistas, acabaram promovidos por Bolsonaro.

O autor do filme pergunta ainda quem paga os honorários do advogado de Adélio e por que razão a família Bolsonaro não recorreu da decisão de um juiz que considerou o agressor "inimputável" depois de ter publicamente discordado dela.

São revelados também dois vídeos: num, seis meses antes do ataque, Bolsonaro admite ter problemas digestivos e pede orações durante um culto evangélico, com a sua mão e a da mulher Michelle Bolsonaro na região do estômago; noutro, o então candidato toma dois comprimidos horas antes do atentado.

"Bolsonaro forjou a facada e aproveitou para tratar um cancro, benigno, que precisava de operar, juntando a fome à vontade de comer. Foi uma farsa com requintes cinematográficos que levou Bolsonaro de oito segundos de campanha para 24 horas por dia - e assim foi eleito", disse ao DN Alexandre Frota, um ex-aliado do capitão reformado que viveu o atentado por dentro.

Mas jornalistas e críticos, mesmo não-Bolsonaristas, desvalorizaram o filme por não acreditarem que três polícias - Federal, Militar e Civil -, duas equipas médicas - a da Santa Casa e a do Einstein -, e Ministério Público fizessem parte de uma conspiração, afinal de contas, à moda do QAnon e de todas as burradas da extrema-direita americana que a homóloga brasileira adora copiar.

Entretanto, o documentário aborda um detalhe intrigante: dois meses antes do atentado, Carlos Bolsonaro e Adélio coincidiram no mesmo clube de tiro, em Florianópolis, à partida fora do alcance financeiro do agressor, a viver na altura numa pensão sem casa de banho privada a mais de 1000 km de distância. A dona do clube, no entanto, foi perentória ao negar que eles tivessem estado juntos - e a pista perdeu-se.

A dona do clube de tiro era a hoje deputada Júlia Zanatta, cuja participação destaca Clayson Felizola. Vide vídeo:

23
Set21

NAZISMO. Bolsonaro recebe negacionistas alemães em Brasília

Talis Andrade

Jair Bolsonaro dá entrevista a negacionistas alemães

Na entrevista, Bolsonaro repetiu mentiras e teorias conspiratórias

 

Presidente concedeu entrevista para dois propagadores de teorias conspiratórias ligados ao Querdenken, movimento negacionista e antivacinas que está na mira do serviço de inteligência alemão por laços com nazistas

 

 

  • por Jean-Philip Struck /DW

     

    O presidente Jair Bolsonaro se reuniu na primeira quinzena de setembro com dois membros da cena conspiracionista e negacionista da pandemia na Alemanha.

    Bolsonaro concedeu uma entrevista para Vicky Richter e Markus Haintz, ligados ao Querdenken ("pensamento lateral" em alemão), movimento que organizou no último ano protestos contra as medidas do governo alemão para frear a pandemia de covid-19. Em abril, o serviço de inteligência interno alemão colocou setores do movimento sob vigilância nacional por suspeita de "hostilidade à democracia e/ou deslegitimação do Estado que oferece riscos à segurança".

    A entrevista com Bolsonaro, concedida pelo presidente em Brasília, foi publicada em redes sociais ligadas a Richter e Haintz nesta segunda-feira (20/09).

    A dupla alemã também realizou entrevistas com o deputado Eduardo Bolsonaro, filho do presidente, Damares Alves, ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos do governo federal, e a deputada bolsonarista Bia Kicis. Os encontros foram registrados entre os dias 8 e 10 de setembro. A dupla também fez filmagens no ato antidemocrático de 7 de Setembro na Avenida Paulista, em São Paulo, que contou com a participação de Jair Bolsonaro.

    Dupla de conspiracionistas

    Haintz se apresenta como "advogado, jornalista e ativista pela liberdade". Baseado na cidade de Ulm, ele é uma figura proeminente do movimento Querdenken e costuma usar os protestos negacionistas do movimento para discursar contra o governo alemão e medidas de isolamento. Em agosto, ele chegou a ser detido pela polícia durante um protesto em Berlim.

    Várias manifestações do Querdenken no último ano contaram com participação explicita de grupos neonazistas e de extrema de direita, além de seguidores do culto conspiracionista QAnon.

    Em abril, ao colocarem setores do Querdenken sob vigilância, as autoridades alemãs mencionaram que essas alas constituem ameaça por questionarem a legitimidade da democracia e do Estado alemão. As autoridades também citaram ligações entre o movimento Querdenken e os grupos de extrema direita Reichsbürger e Selbstverwalter, que negam a existência do Estado alemão ou não se consideram parte dele. O Facebook também já baniu dezenas de páginas ligadas ao Querdenken.

    Em outubro de 2020, Haintz foi demitido de uma faculdade de Biberach, onde atuava como professor, por causa das suas atividades no Querdenken. Um administrador da instituição afirmou à época da demissão que as declarações de Haintz legitimam a violência e que o advogado deveria "se envergonhar" pelo seu envolvimento no Querdenken.

    Em seus discursos e publicações no Telegram (ele possui 100 mil assinantes), Haintz pinta a Alemanha como "uma ditadura" sob a chanceler federal Angela Merkel. 

    No entanto, Haintz viu sua posição no movimento ser enfraquecida recentemente após alguns rivais internos passarem a espalhar boatos de que ele trabalha como informante do serviço secreto.

    Em uma publicação recente no Telegram, ele afirmou que há "um ataque global contra as liberdades" e que a sua viagem ao Brasil e outros países tinha como objetivo buscar aliados. Nos últimos dias, ele compartilhou no Twitter diversas publicações de Eduardo Bolsonaro e imagens das manifestações antidemocráticas do Sete de Setembro.

    Já Richter se apresenta como uma ex-militar da Bundeswehr (Forças Armadas da Alemanha) e possui vários canais negacionistas no YouTube, Twitter e Telegram, nos quais propaga conteúdo antivacinas e teorias conspiratórias. Em uma publicação no Telegram, ela afirmou que conversou com a ministra Damares Alves sobre "a elite cabalística por trás do tráfico de crianças" no mundo e "estupros rituais em comunidades indígenas", temas que ecoam teorias conspiratórias do culto QAnon.

    Outras publicações ecoam o discurso radical da base bolsonarista e parecem ter a intenção de apresentar o presidente brasileiro para o público extremista alemão. Nessas publicações, Bolsonaro aparece como "perseguido" pelo Judiciário e "boicotado" pela imprensa internacional. "O fato de que ele enfrenta comunistas e globalistas desagrada os poderosos", diz uma publicação.

    Outras mensagens tem teor ainda mais conspiracionista, afirmando falsamente que "sete ministros do STF" chegaram a "fugir temporariamente do país" por medo de serem presos por Bolsonaro. Outros textos elogiam a gestão negacionista de Bolsonaro durante a pandemia.

    A dupla alemã Vicky Richter e Markus Haintz também participou da fundação do partido Die Basis, uma agremiação negacionista da pandemia surgida em 2020 e que afirma ter quase 30 mil membros. A legenda chegou a disputar uma eleição regional em março, mas não obteve votação expressiva. Richter e Haintz deixaram o partido no início de setembro após disputas internas.

Vicky Richter entrevista a ministra Damares Alves

Vicky Richter entrevista a ministra Damares Alves

Palco para negacionismo

Na entrevista com a dupla alemã, que se estendeu por uma hora, Bolsonaro repetiu mentiras e teorias conspiratórias que ele já havia propagado durante o último ano.

Ele afirmou falsamente que hospitais inflacionaram o número de doentes com covid-19 para receber mais dinheiro, atacou a Coronavac – a vacina promovida pelo governo de São Paulo, chefiado pelo seu rival João Doria –, defendeu tratamentos ineficazes e potencialmente perigosos contra a doença – como a cloroquina – e até mesmo chás medicinais.

Ele também sugeriu que a melhor forma de se proteger contra o vírus é ser contaminado, reiterando novamente a tese da imunidade de rebanho pela infecção. "Eu disse para as pessoas não terem medo, que enfrentassem o vírus", disse Bolsonaro. "A liberdade é mais importante que a vida", completou, quando falava sobre sua oposição à vacinação obrigatória.

Bolsonaro também reclamou da TV Globo, se apresentou como "perseguido", defendeu o armamento da população e mentiu sobre não haver escândalos de corrupção em seu governo.

Já na entrevista com Eduardo Bolsonaro, a dupla Haintz-Richter abordou temas como voto impresso e as manifestações antidemocráticas do Sete de Setembro. O deputado aproveitou a oportunidade para espalhar mentiras sobre as urnas eletrônicas, reclamar da imprensa e se queixar da China.

A entrevista de Richter com Damares, por sua vez, abordou inicialmente a biografia da ministra, mas logo passou para temas mais caros a grupos conspiracionistas. Richter parecia especialmente interessada em práticas de povos indígenas. Damares afirmou que alguns indígenas têm práticas de "estupro coletivo como prática cultural" e "estupro como castigo" para mulheres.

Em uma pergunta, Richter afirmou à ministra que há "uma grande cabala" mundial por trás do "tráfico de crianças" e perguntou se Damares não tinha medo de enfrentar esses supostos grupos. "Eu recebo muitas ameaças de morte", respondeu Damares.

O termo cabala era originalmente usado para se referir à mística judaica, mas com o tempo antissemitas passaram a usar o termo como sinônimo para "conspiração" ou "complô". Esse uso de forma derrogatória costuma ser usado tanto por antissemitas quanto por seguidores do culto QAnon. 

A dupla ainda se encontrou com a deputada de extrema direita Bia Kicis, uma aliada próxima de Bolsonaro. Eles discutiram supostos riscos da aplicação de vacinas em grávidas e uso de máscaras. "O uso de máscaras faz você perder sua identidade", disse Kicis, que regularmente publica conteúdo negacionista nas redes. "Eu desejo que os conservadores se aliem e construam uma rede", afirmou a deputada para os alemães. "Precisamos nos manter juntos e lutar contra o comunismo."

Beatrix von Storch ao lado de Jair Bolsonaro e do marido dela

Bolsonaro e deputada de ultradireita Beatrix von Storch em julho

 

Essa não é a primeira vez que Bolsonaro e seu filho Eduardo e a deputada Bia Kicis se reúnem com alemães do espectro político populista e extremista de direita. Em julho, o presidente recebeu no Planalto a deputada alemã de ultradireita Beatrix von Storch. Filiada à AfD, Von Storch é uma figura influente da ala arquiconservadora e cristã do partido Alternativa para a Alemanha (AfD), que tem membros acusados de ligações com neonazistas. Uma organização ligada ao partido também chegou a ser colocada sob vigilância dos serviços de inteligência alemães no início do ano. Neta do antigo ministro das Finanças de Adolf Hitler, Von Storch ficou conhecida na Alemanha por publicações e afirmações xenófobas.

À época, o encontro com a deputada alemã causou ultraje entre organizações judaicas brasileiras.

10
Jan21

Trump, Jair e Tracajá: com o fiofó na mão

Talis Andrade

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por Ribamar Bessa Freire /Taqui Pra Ti

Quase todos os jornalistas da editoria de internacional, nos anos 1930-40, exibiam suas próprias fotos nas colunas portando um indefectível cachimbo na boca ou um charuto, o que lhes dava ar de especialista no assunto. Numa polêmica com um deles, Leon Trotsky ironizou:

– Esse cara, só porque fuma cachimbo, crê que pode explicar o que acontece no mundo.

Não fumo cachimbo, nem charuto. Não sou, portanto, capaz de avaliar a invasão do Congresso dos EUA nesta quarta-feira (6) por uma horda de neofacistas e supremacistas brancos insuflados por Donald Trump. Tentativa de golpe? Terrorismo doméstico? Insurreição? Sei lá. O que sei se limita às contraditórias versões do noticiário televisivo. Confesso que para mim política internacional é como química inorgânica: não entendo bulhufas.  

No entanto, por via das dúvidas, pego o meu petynguá guarani, dou uma baforada e assim me qualifico para tentar entender, pelo menos, por que Trump, sempre tão truculento e arrogante, afinou o bico de quarta para quinta-feira e ficou tão submisso e comedido. Só isso. E não precisa ser comentarista internacional para tal sondagem. Basta recorrer à experiência de vida no bairro de Aparecida, em Manaus, que já viveu tudo o que acontece ou ainda vai acontecer no mundo, como comprova a briga de vizinhos e a mudança súbita do velho Luís Tracajá em processo similar ao de Trump.   

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Mister Tracajá

Deixa-me te apresentar o mister Luís. Alguém deu-lhe o apelido de Tracajá, por causa da cabeça totalmente careca cheia de manchas amarelas idênticas às existentes na carapaça convexa e ovalada do quelônio irmão da tartaruga amazônica – o tracajá – que dá um sarapatel supimpa com sua carne saborosa.

O nosso Luís Tracajá morava na rua Gustavo Sampaio. O quintal do seu vizinho João Barbosa era um pouco mais elevado e quando chovia a água escorria para lá e daí vazava muito devagar para o vizinho do outro lado, o Nardo Treme-Treme, escoando em seguida para o quintal da Leonor e depois para a rua.

Inconformado com o tempo lento de escoamento, Tracajá aproveitou a missa do sétimo dia de morte do velho Barbosa, quando não ficara ninguém na casa vizinha, e convocou o exército que comandava formado por seus filhos Pé-de-pincha, Boca-livre, Pororoca e Pretinho. Ordenou que invadissem o quintal vizinho e bloqueassem com cimento a passagem da água. Na primeira chuva, o lago não drenado adentrou a casa da dona Elisa, que diante da inundação, pegou um cano e abriu furos no muro para facilitar a drenagem.

Armou-se um tremendo bafafá. Tracajá a ameaçou com uma nova obstrução. Ela, valente, contestou:   

– Eu quebro o seu casco se o senhor tapar outra vez – dizia, brandindo o cano de ferro.

– Seu marido era um cachaceiro vagabundo – xingou Tracajá, conhecido por ser supersticioso e por temer as almas do outro mundo, em cuja presença acreditava piamente.  

Foi aí que o filho da dona Elisa, de 14 anos, deu o xeque-mate:

–  Seu Tracajá, a alma do papai vai vir para infernizar sua vida.

Encagaçado e tremebundo, ele recuou:

– Retiro o que disse, vizinho. Retiro o que disse.

Eis o que eu queria dizer: a frase que circula até hoje na família pode explicar o recuo de Trump.

Retiro o que disse

O inquilino da Casa Branca tachou as eleições que o derrotaram de fraudulentas, sem qualquer prova, e empenhou-se em desmoralizar o sistema eleitoral americano, o mesmo que o elegera há quatro anos. Com retórica hostil e falaciosa, usou as redes sociais para açular um bando de delinquentes armados a invadirem o Capitólio, com o objetivo de impedir a certificação da vitória de Biden, numa operação que resultou em cinco mortes, mais de 50 feridos e quebra-quebra generalizado, além de roubo de computadores dos congressistas e apreensão de armas.

No discurso que fez em frente à Casa Branca para uma turba exaltada e armada, além de uma declaração de amor ‘We love you’, buscou cumplicidade com os manifestantes, vaticinando que “nunca concederiam a vitória a Biden”, dando sentido à ação dos depredadores. Entre eles, havia militantes supremacistas brancos armados do grupo Proud Boys e outros vestidos com camisas “Nós somos Qanon”, uma apologia à organização de extrema-direita para quem Trump é o comandante de uma delirante “luta contra uma rede de pedófilos adoradores de Satanás infiltrados na imprensa e no próprio governo”.  

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A insensatez criminosa de Trump foi condenada unanimemente por representantes de diferentes instituições, nacionais e internacionais e até por membros do seu próprio partido, além das redes sociais que bloquearam suas contas. A possibilidade de ser chutado pra fora do poder sem concluir o mandato que se esgota em pouco mais de uma semana, a chance de ser incriminado e processado, inclusive corresponsabilizado por 5 mortes, fizeram com que Trump, com o fiofó na mão, afinasse a sua voz. Depois da merda feita, aconselhado por seus advogados, ele mudou seu discurso radicalmente e abandonou seus apoiadores à própria sorte:  

– Aos que se engajaram em atos de violência e de destruição, eu digo que vocês não representam o nosso país. Para aqueles que desrespeitaram a lei, vocês irão pagar.

É o caso dele, que desrespeitou a lei. Que pague!

Cadê aquele Trump todo poderoso, agressivo e racista, homofóbico e mentiroso? Foi um prazer inenarrável ver aquela petulância derreter.

Trumpinho de igarapé

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A atitude de Trump é o sonho de consumo de Jair, o Trumpinho de igarapé que sempre demonstrou submissão incondicional e vergonhosa ao seu ídolo americano. Por enquanto, ainda rosna aquela retórica falaciosa, jura que a eleição de 2018 na qual foi vitorioso foi fraudada: “Tenho provas em minhas mãos que vou mostrar brevemente” – ele disse num evento em novembro de 2019 em… Miami. Foi o único dirigente de um país que não condenou a invasão ao Capitólio e ainda fez ameaças: “Se o Brasil não voltar ao voto impresso, enfrentará problema pior que nos Estados Unidos”.

Seu ministro de Relações Exteriores, Ernesto Araújo, permaneceu mudo e só muito depois dos acontecimentos, não em nota oficial, mas no twitter, assumiu parcialmente o “retiro o que disse, vizinho”. Declarou que “há que se lamentar e condenar” as manifestações de seus comparsas de extrema direita nos Estados Unidos, mas orientou o FBI a “investigar se houve participação de elementos infiltrados na invasão”. Vai ver, petistas se infiltraram e promoveram o quebra-quebra para culpabilizar Trump.

Bolsonaro e Ernesto Araújo expõem o Brasil ao ridículo no cenário internacional ao seguir caninamente essa eloquência fajuta, fazendo pronunciamentos em nome próprio, que estão muito longe de uma postura republicana.

carro funeraria.jpg

 

Que ninguém se impressione com o discurso do Trumpinho de igarapé. O Brasil, que já ultrapassou 200 mil óbitos, é o segundo país do mundo em número de mortos por Covid: Brasil acima de tudo! Perde apenas para os Estados Unidos – America First – com 370.000 vítimas. As almas de mais de 570 mil mortos irão infernizar a vida dos dois. Todo Trump – ouviu Jair? – tem seu dia de Tracajá.

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11
Out20

Mourão, o vice-presidente “novihistoriador”

Talis Andrade

 

por Pedro Simonard

- - -

Em sua obra 1984, George Orwell aborda o tema de uma sociedade controlada por um governo hiperautoritário que busca reescrever a história. Para isso, desenvolve uma nova língua chamada “novilíngua”.

As autoridades deste estado hiperautoritário não sentiam o menor pudor em mentir, buscando reescrever os fatos históricos, apagando dela fatos e sujeitos históricos. Inimigos do Estado eram apagados da história e tornavam-se “impessoas” ou “despessoas”, deixando de existir e todas as referências a eles eram apagadas de todos os registros históricos.

Na entrevista “’Ustra era homem de honra que respeitava os direitos humanos dos seus subordinados', diz Mourão”, publicada em O Globo, o general Hamilton de Barros Mourão, vice-presidente do governo mais entreguista e antipovo da história do Brasil, está contribuindo para escrever uma “novihistória”. Começa relativizando o conceito “direitos humanos”, alegando que o ex-coronel do exército, Carlos Alberto Brilhante Ustra, um dos personagens mais torpes da história do Brasil, respeitava os direitos humanos de alguns e não de outros. Ustra foi denunciado por atrocidades cometidas enquanto chefiou o DOI-CODI do II Exército (de 1970 a 1974), com sede em São Paulo. Este órgão funcionava como um centro de tortura de opositores à ditadura civil-militar que envergonhou o Brasil durante 21 anos, entre 1964 e 1985. Utilizava o codinome de Dr. Tibiriçá. O herói de Jair Bolsonaro e de Mourão foi reconhecido por vários ex-combatentes de esquerda como aquele que os torturou barbaramente. Ustra foi acusado de inserir ratos em vaginas e torturar crianças diante de seus pais para fazê-los confessar, entre outros crimes.

Contrariando fatos e relatos, Mourão afirma que o coronel torturador era um homem de “honra”. Honra é um conceito antropológico que pode variar bastante. Entretanto, não importa quais princípios rejam a honra, normalmente ela está relacionada à conduta de pessoas consideradas virtuosas, corajosas, honestas, qualidades estas entendidas como virtudes dos seres humanos. Julgar honrado um indivíduo que fez da tortura, da covardia e da violência sua ética de trabalho declara muito a respeito da moral e da ética do vice-presidente.

Mourão prossegue na elaboração da sua “novihistória”. Segundo seu relato “novihistórico”, o governo brasileiro não “simpatiza” com a tortura e que muitas pessoas que participaram da luta contra as guerrilhas urbanas nos anos 1960 e 1970 foram “injustamente acusadas de serem torturadoras”. Este segmento da reportagem possui dois problemas claros. Primeiro, um governo democrático, por obrigação, deve rejeitar, repudiar, combater, denunciar e impedir a tortura. Não é uma questão de simpatia ou de antipatia. Ao utilizar o termo simpatia, o vice-presidente permite àqueles que leem a entrevista deduzirem que o general não rejeita totalmente a tortura como uma abjeção.

Outro problema, talvez mais grave, é desconsiderar as horas e mais horas de depoimentos prestados por cidadãos brasileiros, denunciando a tortura durante o período da ditadura civil-militar. Mais grave ainda é desconsiderar os depoimentos daqueles que foram torturados por Ustra e denunciaram suas práticas desumanas e fascistas. Mourão prossegue afirmando que ainda existem muitos sobreviventes daquele período que querem colocar as coisas “da maneira que viram” (sic). Precisamos completar este raciocínio informando que não só viram como sentiram na pele as torturas e sevícias a que foram submetidos.

Nosso “novihistoriador” prossegue propondo um novo método de investigação histórica segundo o qual “temos que esperar que todos esses atores desapareçam para que a história faça sua parte. E, claro, o que realmente aconteceu durante esse período ... esse período passou"...  mas deixou marcas profundas na sociedade brasileira. Em um ato falho, Mourão declara que “temos que esperar que todos esses atores desapareçam”, utilizando um vocábulo muito caro - juntamente com seus derivados desaparecer, desaparecido, desaparecida, desaparecimento etc. - pelas forças armadas brasileiras, sobretudo a partir de 1964. Diante das manifestações da extrema-direita brasileira, podemos constatar que a lembrança daqueles anos tristes não passou para aqueles que, como Jair Bolsonaro, sua famiglia e boa parte de seus eleitores, continuam a defender, hoje ainda, o uso da tortura contra seus desafetos, bem como a implementação de uma ditadura militar.

Ao afirmar “que a democracia é um dos objetivos nacionais permanentes e que o governo quer tornar o Brasil a ‘democracia mais brilhante do hemisfério Sul’" o “novilinguista” e “novihistoriador” Mourão desenvolve um novo sentido para o conceito democracia. O governo do qual ele é vice-presidente extinguiu ou enfraqueceu diversos conselhos que incentivavam e permitiam a participação popular na elaboração de políticas públicas. Interferiu, de maneira arbitrária, na escolha de gestores das universidades públicas, no desenvolvimento das funções próprias à Polícia Federal, no trabalho da Advocacia Geral da União (AGU), restabeleceu a censura na prática, legitimou as ações do gabinete do ódio. Não conheço nenhum autor que reconheça nesse tipo práticas o exercício da democracia e do estado de direito, salvo o general Hamilton Mourão.

Em outro momento non sense da entrevista, Mourão afirma, sem o menor pudor, “que a participação de Bolsonaro em atos que pediam o fechamento do Congresso e do Supremo também não eram uma ameaça à democracia”. Deve ser tudo uma brincadeira entre amigos, então. Fosse o ex-presidente Lula, a ex-presidenta Dilma ou algum político de esquerda que tivesse feito este tipo de “brincadeira” a imprensa corporativa e os militares, nosso garboso e arguto general em especial, certamente a teriam interpretado de uma maneira diferente.

Este tipo de entrevista e reportagem só é possível e considerada normal em uma conjuntura onde a mentira, a desinformação, a manipulação e as notícias falsas se tornaram o padrão de comportamento de governantes e políticos de extrema-direita como Jair Bolsonaro, Donald Trump e Viktor Orban. Mais ainda em uma circunstância em que as massas de trabalhadores encontram-se bem treinadas e anestesiadas por um discurso fundamentalista cristão, este também calcado na mentira e na manipulação.

E assim caminha a humanidade na atual conjuntura, tangida, que nem gado, pelo QAnon, pelas notícias falsas, pelos algoritmos e pelos “novihistoriadores” e “novilinguistas”.

O mais assustador é que a esmagadora maioria das pessoas acha esse tipo de declaração e entrevistas completamente normais.

 

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