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O CORRESPONDENTE

Os melhores textos dos jornalistas livres do Brasil. As melhores charges. Compartilhe

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O CORRESPONDENTE

10
Nov23

Centro terapêutico em SP prendeu mulheres, torturou, forçou conversão evangélica e pediu apoio a Jair Bolsonaro

Talis Andrade

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Máquina de loucos 1
 
André Uzêda

A série revela como centros terapêuticos lucram com a internação de usuários de drogas sem oferecer um tratamento adequado para a reabilitação. Em alguns casos, há agressão aos internos, tortura, dopagem e prática de intolerância religiosa.


Em 16 de janeiro deste ano, promotores do Ministério Público de São Paulo, acompanhado de agentes da Polícia Civil, foram até um centro terapêutico na cidade de Cajamar, a 29 quilômetros da capital. Eles haviam recebido denúncias anônimas pelo Disque 100. Lá, encontraram 75 pacientes internadas em situação degradante, com “alimentação escassa, assistência médica insuficiente, sem itens de higiene, sofrendo castigos físicos, tortura e ameaças”. 

O MPSP identificou que no local funcionava uma “organização criminosa” com prática de crimes de tortura e cárcere privado – as pacientes não podiam sair, o ambiente era cercado por muros altos e vigiado por câmeras de segurança. Nessa batida policial, o espaço foi fechado, as mulheres retornaram para suas casas e os responsáveis foram presos em flagrante. Depois, em audiência de custódia, as prisões foram convertidas em preventivas. 

O espaço é o Centro de Assistência Social e Apoio Especializado Esdras – uma comunidade terapêutica, fundada em dezembro de 2019 em Cajamar, que aceitava apenas pacientes do sexo feminino. As comunidades terapêuticas são reguladas pela Anvisa e não são consideradas serviços de saúde – o que limita internações compulsórias, e prescrição de medicamentos, focando sobretudo na convivência entre os pares como forma de reabilitação.

O centro Esdras se dedicava à “assistência psicossocial e à saúde de portadores de distúrbios psíquicos, deficiência mental e dependência química”, conforme consta no registro na Receita Federal. O próprio nome, em hebraico, faz referência àquilo que os donos diziam ser a missão do centro: ‘ajuda’, ‘auxílio’. A palavra Esdras, nome de um israelita, aparece citada mais de 30 vezes no Antigo Testamento.

Em contraste com a referência bíblica, a cabeleireira Jackeline Lopes, de 34 anos, diz que, ao se internar no Esdras, “começou meu inferno”. Em entrevista ao Intercept, ela enfatizou que queria contar sua história sem esconder sua identidade.”Quero que eles saibam quem fez a denúncia contra eles na imprensa. Quero que vejam que consegui sobreviver e reunir força para denunciar”, desabafou.

Jackeline Lopes se internou no Esdras no final de 2021, após sofrer uma tentativa de sequestro de um motorista de aplicativo em São Paulo. Isso resultou em uma depressão diagnosticada por sua psicóloga, que imediatamente recomendou a internação voluntária em uma comunidade terapêutica. A cabeleireira, então, fez uma busca no Google e encontrou o anúncio do Esdras.

 “Não fazia ideia onde estava me metendo. Pelo anúncio, parecia um lugar bonito. Espero que um dia consiga me perdoar por ter feito aquela maldita pesquisa”.

Anúncio do Centro Esdras veiculada em redes sociais, como o Instagram.

 

No mesmo dia em que visitou o Esdras, em 20 de novembro, Jackeline Lopes foi internada. Sua mãe assinou um contrato por um período de seis meses, com possibilidade de renovação – o valor total foi de R$ 10 mil. Ainda havia cobrança de taxas extras, com medicamentos, itens de higiene, cigarro e alimentação, tudo previsto em contrato.

“No primeiro dia, já sofri violência física, que eles chamam de contenção. Eles fazem uma revista. Você tem que ficar nua e se agachar. Uma monitora, que também é uma das internas, te dá banho e eles jogam todas as suas roupas fora. Eles dão roupas deles, até as íntimas. Depois disso, eles me colocaram em um quarto e acabei dormindo”, relembrou.

“Quando acordei, tive um momento nervoso e comecei a gritar. Nisso, o coordenador chegou e disse: ‘Você vai para o quarto do meio’. Esse era o quarto do castigo. Ele me deu um copo com um monte de remédio misturado e disse que eu tinha que tomar. No dia seguinte, eu disse que queria ir embora. Ele disse que meu contrato era de seis meses. E ainda falou: ‘Você perdeu. Você é doida’. Tudo isso rindo. Aí eu disse: ‘Como assim, se eu pedi para vir?’ E ele disse que não tinha como sair, só quando completasse meu contrato”, completou Lopes.  

O coordenador a quem a ex-interna se refere é, na verdade, o supervisor Kauê Dias Cercelo. Segundo Lopes, era ele “quem tomava conta de tudo”, incluindo a distribuição e dosagem dos medicamentos, a vigilância das internas, além de fazer as ameaças e provocar as agressões físicas e psicológicas que ela relata ter sofrido.

Cercelo também foi denunciado pelo Ministério Público de São Paulo, mas desde o fechamento do centro não foi localizado – outras monitoras que prestaram serviço no centro Esdras, e a também coordenadora Lidiane Kátia de Carvalho, também foram denunciadas. Dos responsáveis diretos pelo centro, duas pessoas estão presas: a psicóloga Talita Assunção de Paula Santana, umas das sócias do Esdras, e Marcos Gaudêncio Moglia – que, de acordo com o MPSP, usou o nome da esposa Márcia Maria de Aguiar para fazer parte da sociedade.

Marcos Moglia é citado, em depoimento dado por uma das pacientes à delegacia de Cajamar, como responsável por portar arma de fogo, tendo até apontado o armamento para uma das pacientes, fazendo xingamentos e ameaças. É dito também que, para intimidá-las, ele dizia ter atuado na secretaria de Segurança Pública, tendo contato com “policiais e guardas municipais”.

O Ministério Público de São Paulo é categórico em afirmar que Talita Santana e Marcos Moglia montaram uma “organização criminosa”, com o intuito de obter “vantagem econômica”, e os subalternos do centro, orientados pelos donos, atuavam de forma a manter o “terror interno”e a “lucratividade do negócio”.

Denúncia do MPSP que cita o Centro Esdras como uma organização criminosa. (continua)
18
Jul23

O padrão da propaganda fascista

Talis Andrade
 
Imagem: Jose Francisco Fernandez Saura

 

Considerações sobre uma pesquisa de Theodor Adorno

 

por Maurício Vieira Martins 

Cresce no espaço público o debate sobre as razões que levam ao surgimento no mundo contemporâneo de lideranças com características regressivas muito evidentes. E que não se diga que se trata de um fenômeno apenas brasileiro: com diferenças nacionais sem dúvida marcantes, também os países do G7 assistem à emergência de lideranças autoritárias. Nos Estados Unidos, mesmo notórios integrantes do Partido Republicano de Donald Trump se pronunciaram sem maiores rodeios sobre isso: “há um nome para o tipo de política de Trump: neofascismo”.[1]

Por outro lado, o debate sobre as circunstâncias que geram regimes autoritários é muito mais antigo do que se supõe. Abordado já por Espinosa em seu Tratado Teológico-Político – que argutamente lembrava que, permanecendo as causas da tirania, um tirano derrubado logo será substituído por outro –, ele atravessa toda a modernidade até chegar ao século XXI, onde foi retomado por pensadores proeminentes. Dentre eles, há um texto de Theodor Adorno que merece ser destacado. Trata-se de um ensaio de 1951, intitulado A teoria freudiana e o padrão da propaganda fascista.[2]

O texto insere-se num programa de pesquisa mais amplo que Theodor Adorno desenvolveu em diferentes momentos de sua vida (em parceria com Max Horkheimer e outros pesquisadores), programa que gerou também o volumoso livro A personalidade autoritária. Quanto ao referido ensaio, embora conhecido em círculos mais especializados da filosofia e das ciências humanas, ele apresenta a nosso juízo vetores ainda a serem explorados, que chamam a atenção precisamente por sua atualidade. Tal ocorre por se situar num campo de interseção muito fecundo entre a filosofia, as ciências sociais e a psicanálise, mobilizando conceitos que buscam aclarar a complexidade do momento histórico vivido por Theodor Adorno, que apresenta desdobramentos que hoje nos atingem em cheio.

Theodor Adorno inicia seu texto chamando a atenção para a pertinência de algumas categorias desenvolvidas por Freud em 1921 – anteriormente ao apogeu do fascismo, portanto – no livro Psicologia das massas e análise do eu. O hiato de 30 anos que separa o escrito freudiano do ensaio de Theodor Adorno não impediu que este último apontasse com segurança para a produtividade da elaboração do pai da psicanálise.

Resumindo aqui um longo trajeto, Freud se indaga pelos mecanismos que propiciam a forte coesão obtida por um líder entre seus liderados. Sua análise desvela a ligação libidinal existente entre eles,[3]promovendo uma união em torno do mesmo objeto, o próprio líder. Mesmo que dessexualizado, este vínculo fornece o esteio de um certo tipo de laço social onde são secundarizados os traços singulares de cada participante, em nome da coesão do grupo agora formado. Freud destaca em particular a importância dos processos de “identificação” que se dão tanto entre cada um dos liderados e o líder, como também, horizontalmente, entre os que formam aquele grupo.

Momento decisivo no argumento freudiano é quando ele demonstra que o líder passa a ocupar um lugar preciso na economia psíquica de seus liderados. Trata-se do “ideal do eu”, instância psíquica de origem arcaica, relacionada àquilo que formamos como nossos ideais, lugar que nos garante um reconhecimento. Estamos diante de “uma quantidade de indivíduos que puseram um único objeto no lugar de seu ideal do Eu e, em consequência, identificaram-se uns com os outros em seu Eu” (Freud, p. 59).

Consequência disso, acrescentamos, é que a imagem do líder se aloja no psiquismo de seus liderados, tornando-se indiscernível da do próprio seguidor. É esta cola identificatória que permite entender porque mesmo ações gritantemente equivocadas da liderança podem ser endossadas por seus seguidores. E explica também porque as críticas dirigidas a ela são sumariamente rechaçadas: tudo se passa como se os próprios seguidores se sentissem criticados…

De resto, para quem cultiva uma visão idealizada do psiquismo humano, um dos momentos mais desconcertantes do texto freudiano é quando ele sustenta que a qualidade do afeto partilhada pelos liderados não necessita ser positiva: também o ódio é capaz de unir sujeitos distintos (Freud, p. 42). Aqui, o laço social adquire sua feição mais sombria. Ao invés da possibilidade de um projeto civilizatório, entra em ação um grupo com evidentes características destrutivas.

Dada a presença recorrente de categorias freudianas no ensaio de Adorno, poderia-se supor uma quase-identidade entre as posições dos dois autores. Mas esta impressão não é de todo correta. A partir de certo momento de seu texto, Theodor Adorno menciona a necessidade de uma teoria explícita da sociedade para o entendimento da massa fascista que lhe interessa analisar. O leitor presencia então um engenhoso giro argumentativo, que desvela uma nova face do pensamento adorniano: “o fascismo como tal não é uma questão psicológica….Numa sociedade completamente reificada,…, na qual cada pessoa foi reduzida a um átomo social, a uma mera função da coletividade, os processos psicológicos, apesar de persistirem dentro cada indivíduo, deixaram de aparecer como forças determinantes do processo social” (Adorno, 2018).

Assim, o que de início parecia uma restitutio in integrum da teoria freudiana, acaba nela operando uma inflexão que, mantendo sua produtividade, introduz agora determinações societárias decisivas. Dentre estas últimas, surge uma questão central: quem são aqueles, afinal, que caem nas malhas das lideranças fascistas? No segmento final de seu ensaio, sobressai o Adorno estudioso da reificação das relações numa sociedade capitalista: “O segredo da propaganda fascista pode bem ser o fato de que ela simplesmente toma os homens pelo que eles são – os verdadeiros filhos da cultura de massa estandardizada atual, amplamente despojados de autonomia” (Adorno, 2018).

Estamos diante de um peculiar “individualismo sem indivíduo”, momento histórico que ao mesmo tempo em que apregoa a importância da individualidade, na prática esvazia a efetividade de cada indivíduo, tornando-o um joguete de forças impessoais. Neste sentido, o líder fascista responde tanto às instâncias psíquicas de seus liderados como à ausência de horizontes e às profundas cisões de numa sociedade mercantilizada. Nas palavras de Adorno, torna-se por isso um “mandatário de interesses econômicos e políticos poderosos”: agora, o foco da análise incide sobre uma configuração histórica precisa.

Incidentalmente, esta explícita referência aos interesses objetivos presentes no regime fascista permite testar a atualidade do estudo de Theodor Adorno numa aproximação com o Brasil contemporâneo. A produção acadêmica já disponível sobre o governo Jair Bolsonaro (caracterizado por muitos como neofascista) chama a atenção para o fato de que uma análise apenas política do atual regime é insuficiente. Para além das declarações ruidosas do presidente – que ocupam lugar de destaque na mídia – há uma agenda econômica particularmente perversa sendo implementada, que penaliza sobremodo os setores mais vulneráveis da população.

Sobre isso, dentre os vários exemplos disponíveis, citemos aquele escolhido com precisão pelo historiador Marcelo Badaró: a ida de Jair Bolsonaro ao STF em maio de 2020, acompanhado por nada menos do que 15 dirigentes de entidades empresariais, “numa teatral ‘marcha ao Supremo’, com claro objetivo de pressionar o judiciário a abrir mão das garantias constitucionais à vida humana, em nome do ‘salvamento dos CNPJ’”.[4] (E se tomarmos como referência o caso clássico alemão, é bem conhecido o seu financiamento por gigantes como a Krupp e a Siemens).

Retornando a Adorno, cabe lembrar que, como todo autor proeminente que gerou um ciclo interpretativo, existem críticas a seu trabalho que merecem ser conhecidas. Fugiria aos objetivos deste breve escrito enumerar tais críticas. Mencionemos apenas aquela feita pelo filósofo Anselm Jappe que, embora reconhecendo a relevância do projeto de Theodor Adorno, diverge de sua tácita postulação de uma sociedade totalmente administrada, pois ela finda por desconsiderar contradições disruptivas que são próprias a diferentes formações sociais.[5] Este não discernimento das fissuras do capitalismo de seu tempo é paradoxal, se levarmos em conta o fato de que Theodor Adorno era também um estudioso de Hegel, precisamente o pensador que, distanciando-se das filosofias da identidade, ofereceu uma seminal contribuição para o entendimento das contradições.[6]

Isso posto, ainda assim o ensaio A teoria freudiana e o padrão de propaganda fascista se encerra com uma nota otimista. Theodor Adorno sustenta que, embora intenso, o domínio dos liderados por seu líder contém uma artificiosidade que o torna vulnerável à irrupção de um real que insiste em se manifestar. Mesmo os hipnotizados não são alheios às convulsões da realidade. Daí a bela metáfora adorniana que sugere que, corroído o entusiasmo inicial alienante, finalmente “despertarão aqueles que mantêm seus olhos fechados apesar de não estarem mais dormindo”.

Publicado originalmente no Boletim da Anpof [https://anpof.org.br/comunicacoes/coluna-anpof/ao-que-responde-o-lider-fascista-uma-pesquisa-de-th-adorno].

Notas


[1] É o caso de Daniel Pipes: There’s a name for Trump’s brand of politics: neo-fascism. Disponível em: https://www.inquirer.com/philly/news/politics/20160408_Commentary__There_s_a_name_for_Trump_s_brand_of_politics__neo-fascism.html

[2] Há uma tradução brasileira disponível no site da Boitempo Editorial: https://blogdaboitempo.com.br/2018/10/25/adorno-a-psicanalise-da-adesao-ao-fascismo/

[3] Freud, S. Psicologia das massas e análise do eu. Companhia das Letras, p. 44.

[4] Mattos, Marcelo Badaró. Uma história de terror: o Brasil de Bolsonaro e a pandemia. Disponível em: https://www.observatoriodacrise.org/post/uma-hist%C3%B3ria-de-terror-o-brasil-de-bolsonaro-e-a-pandemia

[5] Jappe, Anselm. As aventuras da mercadoria. Ed. Antígona, p. 109.

[6] Desenvolvi com mais vagar a contribuição de Hegel para o estudo das contradições no artigo Hegel, Espinosa e o marxismo: para além de dicotomias. Revista Novos Rumos, v. 57, p. 29-46, 2020.

 

12
Out20

Essas mulheres psicólogas: o cipó e o jerimum

Talis Andrade

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Madame, vous confondez ceinture avec cul et vigne avec citrouille

(Sagesse populaire. Aparecida, quartier de Manaus) 

-

 

por José Ribamar Bessa Freire/ Taquiprati

- - -

Eu não confio em psicóloga mulher. Você confia? Entre um cirurgião e uma cirurgiã, quem você escolheria para te operar?   

A frase contundente, dita em francês pela mãe de uma colega de doutorado na EHESS de Paris, tinha o desplante de cobrar minha cumplicidade na negação da competência feminina em qualquer profissão. Foi em 1982. A filha Louise, envergonhada, se arrependeu de ter me apresentado sua mãe que, se fosse brasileira, votaria em Bolsonaro. Uma pobre coitada! Juro que deu vontade de contra-atacar em português do bairro de Aparecida:

- Minha senhora, não confunda cinto com bunda, nem cipó com jerimum.

Considerando o meu francês macarrônico, o tradutor oficial do Taquiprati, Pascal Foucher, regiamente pago, traduziu assim: 

Madame, vous confondez ceinture avec cul et vigne avec citrouille.  Só não fui grosseiro porque a “salade d’asperges aux pignons” que ela fez estava supimpa e também porque madame havia falhado, felizmente, na educação da filha que era – vejam só! – feminista e militante da Lutte Ouvrière liderada por uma mulher, a sindicalista Arlette Laguiller.

Por que lembrei agora dessa história? É que acabo de ler o belo artigo “Oito de outubro - Dia da psicóloga latino-americana: mulheres na luta” escrito por Ana Jacó, publicado na Rede Iberoamericana de Pesquisadores em História da Psicologia. A data, instituída em 2006 na Assembleia da União Latino-americana de Psicologia, é uma homenagem a Ernesto Che Guevara, assassinado neste dia e que se tornou símbolo da luta pela liberdade e contra o imperialismo.

As torturadas

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No entanto, Ana Jacó, que reverencia o Che, faz uma pergunta inquietante que desconcertaria a mãe da Louise: por que homenagear em pleno séc. XXI um homem, que não é da área de psicologia, numa profissão que é majoritariamente feminina? O próprio homenageado certamente faria o mesmo questionamento.

Diretora do Instituto de Psicologia da Uerj e com pós-doutorado em História e Historiografia da Psicologia na Universidade de Barcelona, Ana Jacó, apoiada em documentos e em uma bibliografia consistente, compõe trajetórias de luta de psicólogas e estudantes de psicologia que enfrentaram as ditaduras em diferentes países latinos, mas permanecem no olvido. Entre elas, as psicólogas brasileiras Iara Iavelberg, Pauline Reichstul e as estudantes de psicologia Marilene Villas-Boas Pinto e Aurora Maria Nascimento Furtado, assassinadas quando tinham pouco mais de vinte anos”.

Na clandestinidade ou na prisão, elas souberam usar o que haviam aprendido na formação profissional. “Lúcia Maria Salvia Coelho (um pouco mais velha, nascida em 1937) realizou acolhimento psicológico de presas que haviam acabado de ser torturadas, isto dentro da cela que dividiam, enquanto ela mesma estava presa”. Outro exemplo foi Iara que “defendeu o cuidado psicológico em relação aos militantes na luta armada” e “sugeriu que a organização criasse um local onde pudessem descansar das tensões a que eram submetidos”.

Não podia ficar de fora da lista a Madre Cristina, pioneira na criação de cursos de especialização para formação de psicólogos, que abrigou perseguidos políticos e apoiou o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra e as Diretas-já. Mas a autora cita ainda profissionais que enfrentaram a repressão em outros países como a argentina Beatriz Perosio, presidente da Associação de Psicólogos de Buenos Aires, sequestrada e “desaparecida” em agosto de 1978. A colombiana Viviana Muñoz Marin, que cuidava da transição à vida civil de ex-combatentes e foi assassinada em 2018.

Urucum e jenipapo

Rede Psicologos Indigenas.png

 

Essa história pode ser enriquecida com a abertura dos arquivos das ditaduras militares no nosso continente. Por isso, o artigo nos convida a lembrar outras mulheres de luta como Cecília Coimbra, doutora em Psicologia pela USP, diretora do Grupo Tortura Nunca Mais e docente da Universidade Federal Fluminense, que batalha pelo acesso à informação negada pelos militares. Se o torturador coronel Ulstra foi mesmo brilhante, um “herói” como quer Bolsonaro, porque não permitir que o povo brasileiro conheça seus feitos?

Cecília Coimbra continua atuante e apesar de ter sido barbaramente torturada não perdeu a alegria de viver. Em depoimento à Comissão da Verdade, ela identificou 11 torturadores que a submeteram a choques elétricos no bico dos seios, na vagina e por todo o corpo, enquanto gritavam palavrões. O delegado Mário Borges do DOPS/RJ berrava: “Fale sua puta comunista, com quantos você trepou”.

Em especial, a tortura perpetrada à mulher é violentamente machista. Inicialmente são os xingamentos, as palavras ofensivas e de baixo calão, ditas agressiva e violentamente como forma de nos anular – disse Cecilia em seu depoimento. Cecilia vive. Borges, que precisava de tratamento, está morto, menos um voto para Bolsonaro.

Por fim cabe destacar a recente criação, em maio de 2020, em plena pandemia, da Articulação Brasileira dos Psicólogos Indígenas (ABIPSI), “que luta por uma psicologia pintada de urucum e jenipapo”. Eles estão buscando “uma nova forma de pensar a psicologia e agir ativamente na construção de políticas públicas”, que levem em conta os códigos culturais indígenas.

Uma das psicólogas da ABIPSI, Itaynara, da etnia Tuxá - um povo com mais de duas mil pessoas que vivem na Bahia, Alagoas e Pernambuco - deu um chega-pra-lá na mãe de Louise ao escrever:

- “A inserção da mulher indígena na história trouxe incômodos ao sistema patriarcal, filho do colonialismo, que de uma forma sistemática e opressora, tenta deslegitimar e inferiorizar esse protagonismo e corpo geopolítico”. 

A psicóloga Tuxá chama ainda atenção para o fato de que a psicologia nasceu no berço do capital cultural monopolizado e construiu suas teorias e práticas a partir de uma realidade que não considerava a diversidade, contribuindo assim para tornar invisível qualquer sujeito que não se enquadrasse nessas exigências sociais.

De fato, não podemos confundir “ceinture avec cul et vigne avec citrouille”. Ofendido pessoalmente por me colocar na pele das minhas nove irmãs, todas elas competentes em suas áreas, respondi à mãe de Louise que conheço psicólogos competentes, incluindo dois sobrinhos, mas competência por competência, fico com as psicólogas, de preferência indígenas. Não entregaria minha alma a qualquer marmanjo.

lucilene.jpg

 

P.S. – Lucilene Marques, professora do Colégio Lato Sensu, de Manaus, morreu de Covid-19, nesta terça (6). Deixou esposo, irmã e sobrinhos. Os professores reivindicam a suspensão das aulas que foram retomadas no dia 6 de julho, de acordo com cronograma determinado pelo Estado. Enquanto isso, a Polícia Federal investiga desvio de recursos destinados ao combate à Covid-19 e superfaturamento de contratos, cujo principal suspeito é o vice-governador Carlos Almeida (PTB vixe vixe). Que sacripantas! O governador Wilson Lima (PSC vixe vixe) também é investigado. O inspirador de todos eles, Amazonino Mendes, que ameaça voltar para a Prefeitura, está garimpando votos entre as Louises de Manaus. Não terá um voto sequer das Lucilenes.

 
10
Jan20

Países como o Brasil não produziram a memória da ditadura justamente para absolver os assassinos, sequestradores e torturadores de Estado

Talis Andrade

OS CÚMPLICES (segunda parte)

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por ELIANE BRUM

El País
 

Géraldine Schwarz escreveu um premiado livro chamado Os amnésicos(Flammarion), infelizmente sem tradução no Brasil. A historiadora, cuja família foi uma dessas que obteve vantagens no nazismo, mas se considerava inocente do Holocausto, deu uma excelente entrevista ao jornalista Fernando Eichenberg, em O Globo. Ela aponta como a adesão aos déspotas do século 21 mantém a estrutura da adesão aos totalitarismos do século 20:

“No imaginário coletivo, temos tendência a dividir a sociedade em três categorias históricas no século 20: heróis, vítimas e carrascos. Na verdade, a maioria da população não se reconhece em nenhuma delas. É a via mais fácil não se incluir em nenhuma das três categorias, mas apenas seguir a corrente. Há o magnífico filme baseado no romance de Alberto Moravia [O conformista, de Bernardo Bertolucci], que mostra muito bem como o conformista acaba aceitando o que antes era inaceitável. No ensino da história, muitas vezes por meio da ficção ou de comemorações, temos uma visão um pouco distorcida do passado. Se tem a impressão de que a população não teve nenhum papel nessa história. E teve, muitas vezes, um papel de pilar e consolidador de ditaduras. É nisso que a democracia tem um papel importante, pois o povo tem os meios de impedir um golpe e a instalação de um regime criminoso. Eleger Bolsonaro, por exemplo, para mim, é brincar com o fogo, pois parece alguém capaz de tudo.”

A historiadora defende a memória como um dos principais instrumentos de defesa da democracia. “O importante é tomar consciência de nossa falibilidade e reconhecer que podemos nos transformar também em um bárbaro”, afirma. "A história não se repete, mas os métodos de manipulação, sim, porque a psicologia humana não muda. Em um contexto de crise, em meio a um grupo, o homem terá reações similares. Um dos métodos é difundir o medo, muitas vezes exagerado em relação à realidade. [...] Trata-se de confundir a fronteira entre o verdadeiro e o falso, desorientando totalmente as pessoas. Perde-se as referências, não se sabe mais no que acreditar. E, como dizia [a filósofa alemã] Hannah Arendt, quem não acredita em mais nada é manipulável à vontade. Ao ponto de inverter seus valores: o que era bom ontem já não o é mais hoje. É o que se observa em várias sociedades do mundo. As pessoas que, hoje, apoiam Jair Bolsonaro, há dez anos provavelmente defendiam os direitos humanos. Por isso que o ensino do Terceiro Reich é capital. Na história há muito poucos exemplos de uma sociedade tão civilizada, moderna, intelectual, que derivou rapidamente para a barbárie. É um ensinamento universal, que serve de alarme a todo mundo.”

O problema é que países como o Brasil não produziram a memória da ditadura justamente para absolver os assassinos, sequestradores e torturadores de Estado. A condição da retomada da democracia foi o perdão ao imperdoável. Essa política de amnésia resultou, em 2018, na eleição de um presidente que tem como herói um torturador e assassino de civis. Diante de uma população desmemoriada, ao final do primeiro ano do governo do déspota eleito vimos um roteiro semelhante se repetir, com as necessárias adaptações a uma época impactada pela Internet. Ainda que a memória no Brasil seja frágil, porém, ela existe. Não há desculpa para omissão. Nem há qualquer inocência no suposto conformismo. [Continua]

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02
Nov19

Pedido de 'impeachment urgente' contra Bolsonaro está no topo do Twitter

Talis Andrade

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Por Pablo Rodrigues
Sputnick
 

Internautas parecem estar dispostos a subir ainda mais uma hashtag contra o presidente do Brasil, Jair Bolsonaro. Trata-se de um pedido de impeachment urgente.

O Brasil já chegou ao décimo mês da presidência de Jair Bolsonaro, que divide a população entre apoiadores, desaprovadores e os que não preferem comentar política.

Pelo visto, esta quarta-feira (9) está sendo o dia dos desaprovadores, que lançaram a hashtag no Twitter #ImpeachmentdoBolsonaroURGENTE. Com rápido crescimento, a tag já conseguiu atingir a primeira posição dos assuntos mais comentados do Twitter de hoje.

veto de Bolsonaro à obrigação de assistências psicológica e social nas redes públicas de educação básica foi acentuado por internauta indignada.

Jandira Feghali
@jandira_feghali
Bolsonaro vetou integralmente, o PL 3.688/00 que obrigava que as redes públicas de educação básica dispusessem de serviços de psicologia e de serviço social. Mais um retrocesso. A luta agora é pela derrubada do veto!

 

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