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O CORRESPONDENTE

Os melhores textos dos jornalistas livres do Brasil. As melhores charges. Compartilhe

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O CORRESPONDENTE

10
Jul23

Juiz das garantias e interpretação desconforme com a Constituição

Talis Andrade

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Por Lenio Luiz Streck

6. Por que a imparcialidade deve ser o modo-de-ser do juiz

(Continuação)  A imparcialidade faz parte do juiz-como-juiz. A coisa como-coisa já deveria trazer a própria desnecessidade do juiz das garantias. E o cenário que o torna necessário é o mesmo cenário que pode vir a torná-lo inútil. Essa é a grande questão.

Sou, portanto, um aliado nessa luta. Insuspeito quanto a isso, acho. Estamos na mesma trincheira. Saúdo o juiz das garantias. Mas quero ir além do JG. Há mais coisas a conquistar. Mas reconheço o jogo difícil.

Insisto que o problema está no modo como concebemos a gestão da prova. Não existe (re)estrutura que supere um universo jurídico que aceita que juiz decide com discricionaridade com o argumento de que "é assim e pronto", "não tem o que fazer".

Não há garantias que sejam garantidas quando até garantistas acreditam em ficções como "o livre convencimento veio pra superar a prova tarifada". Falei (d)isso para o próprio Sergio Moro, em debate em 2015, quando poucos enxergavam que o rei estava nu. Moro me respondeu: "– Tenho livre convencimento". E ainda tentou tirar onda comigo, dizendo "afinal, o livre convencimento veio para superar a prova tarifada"? Respondi: "– Ah sim, obrigado. Eu não 'sabia' (ironia)". E acrescentei que, com juízes como ele, eu preferia um textualista ou até mesmo a própria tarifação — mormente porque a "tarifação" nas constituições garantidoras é benfazeja (ou alguém acha que a própria garantia da imparcialidade pode ser superada por livre convencimento ou uma nulidade da prova pode ser superada por convencimento livre)? E assim a vida continua.

Estou escrevendo um livro sobre isso. Sobre as origens. Com dados empíricos. Onde morou o juiz boca da lei? Ele habitou em algum canto do Direito brasileiro? Onde e como a tal "superação" da prova tarifada ocorreu no Brasil? E se ainda se pode falar em "superação" a um tempo em que temos um elenco de neotarifações riquíssimas como o elenco das garantias do artigo 5º da Constituição. E, mais grave: alguma garantia pode ser superada por livre convencimento?

Enfim, tudo isso torna o juiz das garantias paradoxal. Por paradoxal que possa parecer, paradoxalmente o JG é necessário.

Precisamos do juiz das garantias. Que pena. Mas precisamos.

Só que meu papel, aqui, será o de lembrar que não resolveremos os problemas da crise do Direito no Brasil (que, aliás, vai ao ponto de necessitarmos de um JG) se não superarmos o problema de um ensino jurídico que reproduz o senso comum teórico.

Um bom exemplo é que falamos em "precedentes qualificados" e não resolvemos até hoje o problema sobre o que é um precedente. Abundam os estudos sobre inteligência artificial e até hoje não resolvemos a questão da prova no Brasil.

E aí queremos resolver a livre apreciação com um novo juiz. Quase hobbesianamente. Só que Hobbes sacou, homem de seu tempo, que uma hora isso precisa terminar.

Ao contrário de Hobbes, sou um otimista metodológico.

Por enquanto, sou a favor do juiz das garantias. Claro que sim. Mas meu otimismo também é cauteloso: sou favorável, consciente de que só sairemos dessa quando resolvermos o problema da gestão-compreensão do que é isto — o processo, o que é um precedente e sobre o que é isto — o livre convencimento e a livre apreciação da prova.

Sou a favor do juiz das garantias. Mas vou sempre lembrar que todo juiz deveria ser das garantias.

 

7. O voto do ministro Fux e o conceito de interpretação conforme

Por fim e não menos importante: li o voto do ministro Luiz Fux. Ele legislou. Isso precisa ser dito. Ao fazer interpretação conforme, fez vários novos textos. Reescreveu a lei. E isso é vedado ao Judiciário. Mais grave ainda é fazer interpretação em desconformidade com a lei e com a Constituição.

Interpretação conforme não altera o texto, apenas a norma. Se alterar o texto, o Judiciário legisla. Porque o Judiciário cuida do passado e o Legislativo cuida do futuro. Quem escreve textos é o Legislativo.

Normas — o sentido que é dado ao texto — não podem alterar o próprio texto. Judiciário pode anular textos. Interpretação conforme é dar sentido que conforme a lei (no seu texto) à Constituição, sendo que, para isso, altera-se a norma (que é sempre, conforme nos ensina Müller, o produto da interpretação do texto). Essa é a tradição.

Trago aqui alguns comentários sobre isso. O primeiro, de Canotilho: "o aplicador de uma norma não pode contrariar a letra e o sentido dessa norma através de uma interpretação conforme a constituição, mesmo [que] através desta interpretação consiga uma concordância entre a norma infraconstitucional e as normas constitucionais". O segundo é Luís Roberto Barroso, para quem "não é possível ao intérprete torcer o sentido das palavras nem adulterar a clara intenção do legislador". O terceiro é Gilmar Mendes, para quem, na jurisprudência do STF, os limites à interpretação conforme a constituição resultam tanto da expressão literal da lei quanto da vontade (concepção original) do legislador.

Posso até, no limite dos limites, encontrar guarida em redefinições textuais mínimas — porém, o caso do JG, como posto pelo voto do ministro Fux, refoge a qualquer dessas possibilidades. Vejamos o que dirão os demais ministros.

- - -

[1] No Dicionário de Hermenêutica, discuto os conceitos de livre convencimento e livre apreciação da prova à luz da filosofia e do direito estrangeiro. São dois verbetes que tratam da matéria.

Justiça sentada-por-Sponholz.jpg

26
Mar21

Marisa desistiu de comprar tríplex e valor deve ser integralmente devolvido, diz TJ-SP

Talis Andrade

neto de Lula, Arthur Araújo Lula da Silva, e D.

Parcelas começaram a ser pegas por Marisa em 2005

 

Por Tiago Angelo /ConJur

- - -

A 8ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo ordenou nesta quarta-feira (24/3) que a OAS e a Cooperativa Habitacional dos Bancários (Bancoop) restituam as parcelas pagas pela ex-primeira-dama Marisa Letícia na compra de um apartamento no Guarujá (SP). 

Marisa, que morreu em 2017, adquiriu da Bancoop em 2005 cota-parte do imóvel 141 do então Edifício Navia. Ela acabou desistindo da compra em novembro de 2015, quando pediu a devolução dos valores já pagos. 

À época, a solicitação se deu por dois motivos principais: a entrega do apartamento atrasou e a Bancoop faliu. Com isso, o empreendimento imobiliário foi assumido pela OAS e passou a se chamar Condomínio Solaris. 

A OAS chegou a oferecer opções às pessoas que adquiriram as cotas da Bancoop. Elas poderiam ou ter a devolução de 90% dos valores gastos ou uma unidade no Solaris. Lula acabou acusado, quase um ano depois da desistência de Marisa, de receber o imóvel no Guarujá como propina da OAS. 

Ao apreciar o caso, o TJ-SP confirmou que a ex-primeira-dama desistiu da aquisição, disse não existir evidência de que Marisa ou seus familiares usufruíram do apartamento e que a devolução dos valores se justifica pelo atraso na entrega. 

"Não há prova nos autos de que, em algum momento, a autora tivesse recebido a posse do imóvel ou de que ele tivesse sido disponibilizado em seu favor", afirmou em seu voto a desembargadora Mônica de Carvalho, relatora do processo. 

Ainda segundo a magistrada, "se a construtora descumpre o prazo de entrega da obra, podemos dizer que a rescisão ocorreu por fato contra ela imponível, pelo que a autora [Marisa] tinha direito à devolução integral dos valores que pagou, devidamente atualizados e com imposição de atualização monetária, a qual representa meramente a recomposição do valor da moeda, e juros moratórios, que devem ser fixados na taxa integral". 

Em abril de 2019, o juiz Adilson Rodrigues Cruz, da 34ª Cível de São Paulo, já havia decidido pelo ressarcimento das parcelas. Na ocasião, no entanto, ele ordenou que OAS e Bancoop devolvessem 66% dos valores gastos por Marisa, e não 100%, como o TJ-SP.Charges do Dia Jornal A TARDE - Aziz - Cau Gomez - Simanca | Portal A TARDE

Tríplex do Guarujá

Em setembro de 2016, o Ministério Público Federal do Paraná acusou Lula de receber o apartamento como propina por contratos obtidos pela construtora na Petrobras. Ele foi condenado pelo ex-juiz Sergio Moro a nove anos e seis meses de prisão. 

Em 2018, após o Tribunal Regional Federal da 4ª Região confirmar a sentença, o petista chegou a ser preso, passando 580 dias na sede da Superintendência da Polícia Federal em Curitiba. 

A defesa de Lula sempre argumentou que a obra foi devidamente adquirida, que Marisa desistiu da compra e que ela e Lula nunca usufruíram do imóvel. Por isso, de acordo com os advogados, a acusação de propina é descabida. 

Como o ministro Luiz Edson Fachin decidiu que Curitiba é incompetente para julgar Lula, as condenações contra o ex-presidente, inclusive a do tríplex, acabaram anuladas. Nesta semana, a 2ª Turma do STF também decidiu pela suspeição de Moro no caso do tríplex.

Interceptação omitida

Conforme mostrou a ConJur no dia 1º de março, procuradores da extinta "lava jato" de Curitiba chegaram a ocultar uma interceptação de Mariuza Aparecida Marques segundo a qual Lula nunca quis o imóvel. 

Mariuza era ex-funcionária da OAS. A "força-tarefa" apontou a mulher como responsável por acompanhar as obras no apartamento. 

 "Pessoal, especialmente Deltan, temos que pensar bem se vamos utilizar esse diálogo da Mariuza, objeto de interceptação. O diálogo pode encaixar na tese do Lula de que não quis o apartamento. Pode ser ruim para nós", afirmou Athayde Ribeiro Costa a colegas de MPF em 13 de setembro de 2016, um dia antes da denúncia do tríplex ser apresentada. 

Defenderam Lula no caso, representando o espólio de Marisa Letícia, os advogados Cristiano ZaninMaria de Lourdes Lopes e William Gabriel Waclawovsky.

1076258-69.2016.8.26.0100

Aha, uhu, se é do Lula, é nosso', gritam sem-teto no tríplex do Guarujá |  VEJA

12
Mar21

Nulidade processual

Talis Andrade

 

 
 

A 2.a Turma do Supremo Tribunal Federal decidiu, por quatro votos a um, que a defesa do ex-presidente Lula pode ter acesso às mensagens obtidas por hackers que invadiram os celulares dos agentes públicos atuantes na conhecida Operação Lava Jato. Por consequência, levantou-se a discussão sobre a utilidade dessas informações nos processos que ainda correm nas instâncias judiciais. Diante da polêmica, alguns pontos, portanto, merecem especial atenção.

  1. Prova ilícita é aquela obtida mediante violação da lei. O processo penal é regido por normas rígidas que devem ser obedecidas, sob pena de nulidade dos atos praticados. Há um conjunto de regras que têm por objetivo evitar que o Estado desrespeite direitos fundamentais por mero arbítrio. Nesse sentido, por exemplo, a lei exige autorização judicial para violar qualquer tipo de sigilo, ingressar no domicílio ou privar uma pessoa de sua liberdade. Uma pessoa não pode ter seus direitos ameaçados fora das hipóteses previstas em lei.
  2. Portanto, a invasão a dispositivos informáticos, sem autorização judicial, configura crime, pois a inviolabilidade do sigilo é direito fundamental com previsão constitucional. Não restam dúvidas sobre a ilegalidade do procedimento dos hackers para terem acesso às mensagens dos celulares sem o consentimento de seus proprietários.
  3. É proibida a utilização de provas obtidas de maneira ilícita. O Estado não pode atentar contra a lei para buscar a punição a todo custo. Todo ato praticado pelas autoridades em desconformidade com as regras processuais deve ser anulado e refeito, desaparecendo seus efeitos. Se, por exemplo, uma sentença condenatória foi proferida pelo juiz com base em provas ilícitas, a decisão deve ser anulada e outra deve ser deliberada, desta vez sem vícios.
  4. Há princípios fundamentais do processo que nunca podem ser desrespeitados. A desobediência a esses princípios obriga ao reconhecimento da nulidade dos atos praticados. Um desses princípios é a imparcialidade do juiz, segundo o qual quem julga não pode atuar como se tivesse interesse no resultado final. Afinal, quem decide deve manter a mesma distância das partes envolvidas. A imparcialidade é tão importante que a Constituição Federal garante aos magistrados a vitaliciedade, a irredutibilidade de vencimentos e a impossibilidade de serem removidos contra sua vontade. Tudo isso para evitar pressões externas e uso político do processo.
  5. Não obstante, quando houver conflitos entre atos ilegais praticados no processo, a decisão a ser tomada deve ser mais benéfica ao réu. Assim, se provas obtidas ilegalmente são capazes de demonstrar que o juiz do caso atuou com parcialidade estas podem ser utilizadas pela defesa para solicitar a nulidade dos atos praticados pelo julgador, inclusive a sentença condenatória. Com a anulação, os respectivos atos devem ser refeitos e o processo praticamente começa do zero.
  6. As provas ilícitas podem ser utilizadas, excepcionalmente, quando, de alguma forma, podem beneficiar o réu. Seja para provar sua inocência, seja para apontar ilegalidades na condução do processo. O reconhecimento da parcialidade do juiz, que tenha atuado em conluio com o Ministério Público, não leva à absolvição automática do acusado, mas apenas gera a nulidade do processo e implica seu reinício. Pode, sim, haver a prescrição pelo decurso do tempo, mas essa consequência não pode ser atribuída à defesa do réu, pois os atos ilegais provêm da acusação e do julgador.

Se o STF reconhecer a atuação parcial do ex-juiz Sergio Moro nos processos em que o ex-presidente Lula é réu, não haverá reconhecimento de sua inocência, mas a necessidade de começar tudo outra vez. Se isso acontecer, e é o que se espera para o restabelecimento do Estado democrático de direito, culpa alguma poderá ser imputada à defesa ou aos hackers. O juiz tem a obrigação de julgar enquanto o Ministério Público é o único órgão que pode produzir provas para o pedido de condenação.

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06
Mar21

Procuradores dizem: Sim, nós mentimos!

Talis Andrade

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Por Lenio Luiz Streck

"Sim, nós mentimos." Eis a manchete! Parece surpreendente, não? Mas, de onde será a notícia? É da Folha de São Paulo? Do Estadão? De O Globo? Mistério.

Mas aqui já vai o spoiler.

Leio, na NPR, que documentos do attorney's officeem Manhattan — traduzindo pra nossa jurisdição, o "MP", a acusação — revelam que os "promotores de lá" mentiram à juíza Alison Nathan, que os questionava acerca de um caso ocorrido meses antes.

O caso? Explico: A desistência, por parte de procuradores, de uma acusação na qual se descobriu que eles não cumpriram com seu dever de disclosure: o dever institucional, funcional, de apresentar as evidências todas — inclusive aquelas favoráveis à defesa, pois (como defendemos, o senador Anastasia e eu, no projeto Anastasia-Streck; por todos, aqui). Vejam. Há quanto tempo falo disso por aqui?

Quando os attorneys office viram que haviam feito bobagem — mais, quando viram que se descobriu que haviam feito ilicitudes —, num país em que se sabe que a acusação não pode agir estrategicamente (por exemplo, a doutrina Brady da qual tanto falo) e deve apresentar todas as evidências, os procuradores abandonaram o caso. O que disseram? Que estavam desistindo por "questões relacionadas ao dever de disclosure".

Tudo certo, certo? Não. E não. Os procuradores não cumpriram com seu dever institucional, isso foi demonstrado, e eles desistiram. Bem, quase. Porque no meio do caminho tinha uma pedra — a juíza Nathan. Ela não se satisfez.

Ela questionou: Como assim, "questões relacionadas ao disclosure"? A juíza Nathan exigiu, além da mera e vaga retratação e desistência, que os procuradores entregassem todas as evidências favoráveis ao réu, e que indicassem todos os membros-procuradores envolvidos, inclusive supervisores.

Porque estamos falando de uma cultura político-jurídica em que não há apenas o dever de disclosure — de clareza e publicidade nas provas colhidas, sem estratégias —, mas há também accountability. Esse é o ponto.

O Ministério Público de Manhattan não apresenta provas absolutórias. E aí descobrem que foram descobertos. Desistem da acusação. A juíza Nathan, não satisfeita, exige as evidências, exige a responsabilização de quem não cumpriu com o dever funcional. E parece, como explico mais adiante, que a coisa vai ficar feia para os attorney office.

Isso acontece em um país que tem consolidado o dever de disclosure e tem accountability. Os Estados Unidos da América. A força-tarefa da "lava jato" não adora o direito norte-americano? Pois então. Fosse aqui e a casa cairia. Sergio Moro não é apaixonado pelo direito dos “isteites”? Pois então: miremo-nos todos no exemplo da juíza Nathan.

O que aconteceria em um país como o Brasil, que não tem consolidado o dever de disclosure e que não tem accountability? Bem, só se pode arriscar alguns palpites.

Como não há a ideia de disclosure, suponho que já se começaria mais além. Não "só" ocultação de provas, mas fabricação delas. As mensagens trazidas à lume pela operação spoofing mostram total ausência de disclosure e accountability.

Por aqui, por enquanto, o que temos (tínhamos) é um juiz anti-Nathan, quem, em vez de exigir responsabilidade como fez a Dra. Nathan, ajudou a acusação, indicando testemunhas, fazendo promessas e compromissos, criticando o réu, colocando-se como chefe de uma acusação que nunca foi isenta como devia ser.

Ou seja, nesse país chamado Brasil, não estamos falando  de um órgão de acusação que faz agir estratégico e que não age como magistratura (ainda que garantias de magistratura tenha); estamos falando de um juiz que não age "como magistratura" e que faz agir estratégico. Pois é. Anti-Nathan. Somando um juiz anti-Nathan com um MP que faz agir estratégico, sem disclosure, temos a tempestade perfeita.

O que seria/será da reputação do direito desse país chamado Brasil? Como levar a sério o Estado de Direito, o rule of law (Moro usou muito essa expressão, lembram?) num país assim?

Pois é. Vida longa para a juíza Alison Nathan.

Post scriptum: Registro que nos Estados unidos essa história não acabou. A Doutora Alison Nathan também ordenou a liberação de todas as declarações dos promotores e os arquivos relacionados ao caso, dizendo que o interesse público em ver os materiais superava qualquer interesse de privacidade. Nos diálogos (vejam, diálogos!), há coisa como "isso vai dar banho de sangue"; "vamos enterrar isso debaixo de uma pilha de papéis", coisas, aliás, que não surpreendem a gente daqui do Brazil (sic).

Mais coisas espúrias são reveladas e, conforme isso vai acontecendo, surgem movimentos no judiciário e no legislativo dos EUA para fortalecer a responsabilização e evitar episódios assim no futuro.

No Brasil, a história também não terminou. Porque, por aqui, uma hipotética comunidade jurídica, incluindo doutrinadores e membros da prática, ainda podem escolher fazer a coisa certa. Ainda podem fazer como a juíza Nathan, por exemplo. Os professores poderiam começar a virar o jogo a partir da sala de aula. A própria dogmática jurídica ainda deve muita coisa. Há um imenso déficit epistemológico.

Há juízes em Berlim. A juíza Nathan mostrou que nos EUA também.

Haverá juízes — e doutrinadores, e advogados, e procuradores, e defensores, e estudantes de direito — em nosso país real ou hipotético, que possam, efetivamente, firmar posição e agir em favor de disclosure (o conceito está no início deste artigo) e accountabillity (prestação de contas, transparência, republicanismo)?

A ver.

04
Mar21

Ocultação de prova é a gota d’água que transborda a Lava Jato

Talis Andrade

86 charges sobre o escândalo da #VazaJato (para compartilhar com aquele tio  reaça que adorava o Sergio Moro) – blog da kikacastro

 

  • POR LENIO STRECKMARCO AURÉLIO DE CARVALHO E FABIANO SILVA DOS SANTOS  

     

    As novas descobertas sobre as mensagens postas à lume pela Operação Spoofing mostram que Procuradores do Ministério Público Federal do Paraná conversaram, em 13 de setembro de 2016, sobre a (não) inclusão de um áudio obtido por meio de uma interceptação telefônica de Mariuza Marques, funcionária da empreiteira OAS, encarregada da supervisão do edifício.

    “Pessoal, especialmente Deltan [Dallagnol, coordenador da Lava Jato], temos que pensar bem se vamos utilizar esse diálogo da MARIUZA, objeto da interceptação. O diálogo pode encaixar na tese do LULA de que não quis o apartamento. Pode ser ruim para nós”.

    Quem escreveu a mensagem foi o procurador Athayde Ribeiro Costa, quando mostrou o trecho de intercepção para Deltan e cia. Eles se convenceram que a interceptação telefônica deixava “claro que as reformas feitas no imóvel foram feitas no interesse de Marisa Letícia [esposa de Lula]”.

    O diálogo poderia mostrar a correção da tese de defesa de Lula no processo do Triplex, conforme diz, agora, a sua defesa ao STF.

    Eis outra parte do diálogo:

    “Concordo com Athayde. eu não usaria esse dialogo [sic]. ao menos nao [sic] na denuncia”, escreveu a procuradora Jerusa Viecili. Athayde, então, pergunta ao procurador Julio Noronha: “vamos tirar o dialogo [sic] da MARIUZA ne?” Noronha responde: “vamos”.

    O restante pode ser lido nos veículos de comunicação. O que queremos aqui mostrar, para além da indiscutível e escandalosa parcialidade de Moro, é a falta de isenção do MPF e o seu agir estratégico que fez com que, segundo os diálogos, escondessem provas, omitindo algo que poderia beneficiar o réu. O que diriam os alunos de primeiro ano da Faculdade de Direito sobre isso?

    Aqui entra a importância e a urgência da aprovação do projeto Anastasia-Streck, que tramita no Senado. Ali se pretende legislar sobre uma coisa muito simples: o dever de o MP colocar na mesa tudo o que tem, inclusive o que for favorável à defesa. Em suma, o projeto visa proibir o que sempre esteve proibido: o escondimento de provas que possam favorecer réus. Isso está no Estatuto de Roma, no artigo 160 do CPP alemão e no art. 3º. do CPP austríaco. Para falar apenas desses ordenamentos.

    Mas isso é velho. Nos EUA, desde 1963 o MP tem a obrigação de mostrar o que tem. Trata-se do precedente Brady v. Maryland.

    É o que consta do filme Luta pela Justiça, disponível no Netflix. O advogado Bryan Stevenson defende, pro bono, Walter McMillian, acusado de um homicídio. Ele já estava no “corredor da morte” quando Stevenson pegou sua causa.

    Stevenson luta pela justiça. E, ao final, no Tribunal, invoca o caso Brady v. Maryland. Porque havia descoberto que o MP e a polícia tinham escondido provas.

    E Walter foi absolvido.

    Eis a questão. Simples assim. No Brasil, não precisaríamos que o parlamento aprovasse um projeto como o Anastasia-Streck. Da Constituição já se infere que o MP, por ter as garantias de um juiz, não deve – e não pode – fazer “agir estratégico”. Mas, com tudo o que se viu na lava jato e nos diálogos acima explicitados, parece que temos de construir um precedente como Brady v; Mariland. Isso poderá ocorrer no julgamento da suspeição do juiz Sérgio Moro, em breve.

    Há muitos Walters McMillians por aí. Esperando a lei ou o precedente, para obrigar uma coisa óbvia em qualquer democracia: que o MP coloque na mesa tudo o que tem, inclusive o que tem a favor do réu. E que deve investigar buscando a verdade processual, inclusive a favor do réu. E que não deve agir como se viu nos diálogos acima.

    Talvez estes diálogos constrangedores, que mostram um escondimento de prova, possam servir de marco jurisprudencial: um caso Brady brasileiro. Assim esperamos.

    O Supremo tem, no julgamento que se aproxima, uma oportunidade singular de reacreditar nosso Sistema de Justiça, mostrando ao mundo que uma de suas maiores democracias possui instrumentos e condições para corrigir equívocos por ela mesma produzidos.

    Artigo publicado no DCM /Prerrô

     

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