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O CORRESPONDENTE

Os melhores textos dos jornalistas livres do Brasil. As melhores charges. Compartilhe

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O CORRESPONDENTE

10
Jul23

Juiz das garantias e interpretação desconforme com a Constituição

Talis Andrade

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Por Lenio Luiz Streck

6. Por que a imparcialidade deve ser o modo-de-ser do juiz

(Continuação)  A imparcialidade faz parte do juiz-como-juiz. A coisa como-coisa já deveria trazer a própria desnecessidade do juiz das garantias. E o cenário que o torna necessário é o mesmo cenário que pode vir a torná-lo inútil. Essa é a grande questão.

Sou, portanto, um aliado nessa luta. Insuspeito quanto a isso, acho. Estamos na mesma trincheira. Saúdo o juiz das garantias. Mas quero ir além do JG. Há mais coisas a conquistar. Mas reconheço o jogo difícil.

Insisto que o problema está no modo como concebemos a gestão da prova. Não existe (re)estrutura que supere um universo jurídico que aceita que juiz decide com discricionaridade com o argumento de que "é assim e pronto", "não tem o que fazer".

Não há garantias que sejam garantidas quando até garantistas acreditam em ficções como "o livre convencimento veio pra superar a prova tarifada". Falei (d)isso para o próprio Sergio Moro, em debate em 2015, quando poucos enxergavam que o rei estava nu. Moro me respondeu: "– Tenho livre convencimento". E ainda tentou tirar onda comigo, dizendo "afinal, o livre convencimento veio para superar a prova tarifada"? Respondi: "– Ah sim, obrigado. Eu não 'sabia' (ironia)". E acrescentei que, com juízes como ele, eu preferia um textualista ou até mesmo a própria tarifação — mormente porque a "tarifação" nas constituições garantidoras é benfazeja (ou alguém acha que a própria garantia da imparcialidade pode ser superada por livre convencimento ou uma nulidade da prova pode ser superada por convencimento livre)? E assim a vida continua.

Estou escrevendo um livro sobre isso. Sobre as origens. Com dados empíricos. Onde morou o juiz boca da lei? Ele habitou em algum canto do Direito brasileiro? Onde e como a tal "superação" da prova tarifada ocorreu no Brasil? E se ainda se pode falar em "superação" a um tempo em que temos um elenco de neotarifações riquíssimas como o elenco das garantias do artigo 5º da Constituição. E, mais grave: alguma garantia pode ser superada por livre convencimento?

Enfim, tudo isso torna o juiz das garantias paradoxal. Por paradoxal que possa parecer, paradoxalmente o JG é necessário.

Precisamos do juiz das garantias. Que pena. Mas precisamos.

Só que meu papel, aqui, será o de lembrar que não resolveremos os problemas da crise do Direito no Brasil (que, aliás, vai ao ponto de necessitarmos de um JG) se não superarmos o problema de um ensino jurídico que reproduz o senso comum teórico.

Um bom exemplo é que falamos em "precedentes qualificados" e não resolvemos até hoje o problema sobre o que é um precedente. Abundam os estudos sobre inteligência artificial e até hoje não resolvemos a questão da prova no Brasil.

E aí queremos resolver a livre apreciação com um novo juiz. Quase hobbesianamente. Só que Hobbes sacou, homem de seu tempo, que uma hora isso precisa terminar.

Ao contrário de Hobbes, sou um otimista metodológico.

Por enquanto, sou a favor do juiz das garantias. Claro que sim. Mas meu otimismo também é cauteloso: sou favorável, consciente de que só sairemos dessa quando resolvermos o problema da gestão-compreensão do que é isto — o processo, o que é um precedente e sobre o que é isto — o livre convencimento e a livre apreciação da prova.

Sou a favor do juiz das garantias. Mas vou sempre lembrar que todo juiz deveria ser das garantias.

 

7. O voto do ministro Fux e o conceito de interpretação conforme

Por fim e não menos importante: li o voto do ministro Luiz Fux. Ele legislou. Isso precisa ser dito. Ao fazer interpretação conforme, fez vários novos textos. Reescreveu a lei. E isso é vedado ao Judiciário. Mais grave ainda é fazer interpretação em desconformidade com a lei e com a Constituição.

Interpretação conforme não altera o texto, apenas a norma. Se alterar o texto, o Judiciário legisla. Porque o Judiciário cuida do passado e o Legislativo cuida do futuro. Quem escreve textos é o Legislativo.

Normas — o sentido que é dado ao texto — não podem alterar o próprio texto. Judiciário pode anular textos. Interpretação conforme é dar sentido que conforme a lei (no seu texto) à Constituição, sendo que, para isso, altera-se a norma (que é sempre, conforme nos ensina Müller, o produto da interpretação do texto). Essa é a tradição.

Trago aqui alguns comentários sobre isso. O primeiro, de Canotilho: "o aplicador de uma norma não pode contrariar a letra e o sentido dessa norma através de uma interpretação conforme a constituição, mesmo [que] através desta interpretação consiga uma concordância entre a norma infraconstitucional e as normas constitucionais". O segundo é Luís Roberto Barroso, para quem "não é possível ao intérprete torcer o sentido das palavras nem adulterar a clara intenção do legislador". O terceiro é Gilmar Mendes, para quem, na jurisprudência do STF, os limites à interpretação conforme a constituição resultam tanto da expressão literal da lei quanto da vontade (concepção original) do legislador.

Posso até, no limite dos limites, encontrar guarida em redefinições textuais mínimas — porém, o caso do JG, como posto pelo voto do ministro Fux, refoge a qualquer dessas possibilidades. Vejamos o que dirão os demais ministros.

- - -

[1] No Dicionário de Hermenêutica, discuto os conceitos de livre convencimento e livre apreciação da prova à luz da filosofia e do direito estrangeiro. São dois verbetes que tratam da matéria.

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15
Jan22

“kkkk” é a resposta de Dallagnol sobre quebrar empresa com 150 mil trabalhadores

Talis Andrade

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A Tribuna publicou uma série de “Conversas Ocultas”,  trechos de diálogos entre procuradores da Operação Lava Jato e o ex-juiz e ex-ministro da Justiça do governo Bolsonaro Sergio Moro

As conversas foram obtidas pela defesa do ex-presidente Lula após o ministro do STF (Supremo Tribunal Federal), Ricardo Lewandowski, ter retirado o sigilo dos diálogos e garantido acesso aos arquivos da Operação Spoofing, da Polícia Federal.

19
Dez21

Peça 5 – as acusações contra Cancellier e o papel da mídia

Talis Andrade

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XADREZ DO CASO CANCELLIER E DA MARCHA NÃO INTERROMPIDA PARA A DITADURA

por Luis Nassif

Lançada, a Operação Ouvidos Moucos falava-se em desvio de R$ 80 milhões das verbas destinadas à educação à distância na UFSC. O valor correspondia a tudo o que foi gasto em anos e anos de cursos. Mas foi sacado pela PF para garantir mídia e justificar uma operação que envolveu 120 policiais de todo o país.

Logo depois que os professores foram detidos, os valores de desvio foram reduzidos para R$ 500 mil. A maneira como se chegou a esses valores é um dos clássicos modernos da fabricação de provas.

O documentário detalha as principais acusações contra Cancellier e demais funcionários:

  1. Foi acusado de tentar atrapalhar as investigações.

As investigações foram conduzidas pelo  corregedor da UFSC, indicado pela antiga reitora, notadamente parcial e desequilibrado. Ele manteve as investigações sob sigilo. 

Na qualidade de reitor, Cancellier solicitou o acesso ao relatório, algo plenamente dentro de suas atribuições. Foi acusado de boicotar as investigações.

 

  1. O curso foi acusado de distribuir bolsas para carteiros e motoristas.

Os personagens em questão, eram o símbolo máximo do que a mídia celebra, de meritocracia. Trabalharam duro em empregos simples e de baixa remuneração e conseguiram completar o mestrado. Serviram de álibi para que Cancellier e professores fossem presos, submetidos a revistas íntimas e colocados em celas com criminosos, porque a PF não podia aceitar que um carteiro fizesse pós-graduação. Nem se deram ao trabalho de analisar que as bolsas eram pagas diretamente pela Capes (do governo federal) a cada bolsista.

Também incluíram como desvios pagamentos de outros serviços necessários para a operação, como pagamento de gráficas.

3. Direcionamento de licitações.

A universidade tem várias empresas credenciadas para transporte de professores. Muitas delas são micro-empresas cujo dono é o motorista do único veículo. Cabe aos gestores escolher os motoristas e atender às demandas dos professores. Alguns não querem motoristas homens, outros não querem motoristas que correm demais. A escolha dos motoristas foi tratada como crime de corrupção.

Em outros casos, comparou-se uma viagem de ida e volta a determinada cidade com outra, de ida e volta e pernoite, e se considerou que a diferença de preços era sobrepreço criminoso.

Os Relatórios da Controladoria Geral da União (CGU) e do Tribunal de Contas da União (TCU) são a demonstração do clima persecutório irresponsável que perpassou todos os órgãos de controle. (Continua)

 

18
Dez21

Peça 4 – o caso Cancellier

Talis Andrade

 

XADREZ DO CASO CANCELLIER E DA MARCHA NÃO INTERROMPIDA PARA A DITADURA

por Luis Nassif

Os estudiosos do nazi-fascismo, do Estado Novo e outras manifestações autoritárias, são unânimes em descrever dois processos paralelos que levam à perda dos direitos e ao fim das democracias.

O primeiro, a Suprema Corte abrindo espaço para o arbítrio. O segundo, sem os freios do Supremo,  o fortalecimento das corporações públicas, especialmente aquelas ligadas a controles e à repressão, disseminando o arbítrio por todos os poros do Estado e do país.

Ambos os fenômenos estão intrinsecamente ligados.

O massacre de Cancellier se deveu à desmoralização do devido processo legal, do “garantismo” alvo de campanhas de Barroso. Condenaram antes de analisar os fatos, inventaram crimes, inventaram provas e levaram o caso inicialmente ao tribunal da mídia, que aceitou passivamente, sem ouvir os réus, para não ser acusada de “bandidolatria”. Transformaram fatos corriqueiros em versões  criminosas.

Primeiro, vamos apresentar os atores finais desta trama macabra, as autoridades diretamente envolvidas com a morte de Cancellier.

Corregedor Rodolfo Hickel – com histórico de violência e de desequilíbrio, foi indicado corregedor da UFSC por uma reitora que saía, visando atazanar o sucessor. Produziu um relatório repleto de inverdades que serviu de ponto de partida para a prisão de Cancellier.

Delegada Erika Marena – atuante na Lava Jato, apresentada como heroína em série da Netflix, chegou a Santa Catarina sem holofotes. Criou o escândalo da UFSC para uma operação com 120 policiais de todo o país.

Procurador André Bertuol – do Ministério Público Federal. Endossou todas as arbitrariedades e prosseguiu na perseguição a Cancellier mesmo depois de morto, processando o filho.

Juíza Janaina Cassol – juíza substituta que endossou todas as arbitrariedades da PF e do MPF.

Procurador Marcos Aydos – denunciou professores da UFSC pelo simples fato de, na cerimônia em homenagem a Cancellier, não terem impedido faixas de protesto contra a delegada Erika (Continua)

03
Nov21

Delação de Barusco forjada pela Lava Jato serviu para fraudar mais duas

Talis Andrade

 

Procuradores de Curitiba tentaram armar cenário no qual Zwi Skornicki, representante do estaleiro Keppel Fells, teria sido denunciado por Pedro Barusco por pagar propina a políticos, sem que de fato isso fosse dito

 
 

As conversas vazadas da extinta força-tarefa da Lava Jato, da Procuradoria da República em Curitiba (PR), obtidas pelo Diário do Centro do Mundo (DCM), mostram que a equipe chefiada por Deltan Dallagnol incluía trechos de denúncias que nunca saíram da boca do delator Pedro Barusco, ex-executivo da Petrobras, para incriminar outros envolvidos nas investigações.

As conversas, que são objeto de uma investigação da Polícia Federal no âmbito da Operação Spoofing, mostram os procuradores Deltan Dallagnol, chamado de “Delta”, e Roberson Pozzobon, identificado como “Robito”, combinando como incluir o estaleiro Keppel Fels nas delações, uma vez que eles tinham apenas convicção de que “alguém da Keppel estava envolvido diretamente”, fato admitido por Pozzobon.

“A solução seria colocar um entre aspas do Barusco (Pedro Barusco, ex-executivo da Petrobras), que disse na colaboração que ‘Zwi (Skornicki, lobista do estaleiro Keppel Fells) pagava propina da Keppel’ na delação de Musa (ex-gerente da Petrobras, Eduardo Costa Vaz Musa)”, diz Pozzobon.

A intenção dos procuradores era “acertar” a versão de que Pedro Barusco, em sua delação, havia ligado Zwi e a Keppel ao pagamento de propina a agentes políticos, o que não havia sido dito, tampouco provado.

Para deixar a armação mais convincente, Pozzobon sugere o uso do mesmo artifício, ou seja, citar Pedro Barusco, repetindo o procedimento na delação de João Carlos de Medeiros Ferraz, ex-presidente da Sete Brasil.

Sempre Lula como alvo

Obcecados por ligar o nome do ex-presidente Lula em todas as investigações, os procuradores buscam uma vantagem política ao tentar envolver o petista nas delações de Ferraz e Musa.

“Mencionar que JS (João Santana, publicitário das campanhas petistas em 2010 e 2014) começou seu trabalho publicitário com o PT nas eleições de Lula”, comentam.

Deltan Dallagnol responde então que os pagamentos a João Santana foram a partir de 2012” e que isso “coloca mais a Dilma do que o Lula” na cena, frustrando o ânimo do colega.

Na sequência da conversa, Pozzobon volta à carga contra a Keppel e Zwi, argumentando que o lobista “destinava parte de sua comissão como propina”.

“Mas que eles (a Keppel Fells) se beneficiaram em contratos e aditivos, eles se beneficiaram”, diz o procurador, mesmo sem ter prova qualquer disso.

Ação dirigida

Pozzobon cita também outro alvo da ação orquestrada pelos procuradores federais: a intenção das delações seria “afundar a Odebrecht de vez”, empresa que em 2019 entrou com um pedido de recuperação judicial após perder 82% do quadro de funcionários.

Indústria da delação

Sobre essas novas revelações em esquemas fraudulentos nos depoimentos dados à força-tarefa da Lava Jato, o advogado Marco Aurélio de Carvalho, especialista em Direito Público e coordenador do Grupo Prerrogativas, ressaltou o caráter político e a devastação produzidas pela prática.

“A indústria de delações forjadas, a serviço de um projeto político e eleitoral, destruiu muito mais do que reputações. Deixou no país um rastro de pobreza e de miséria. Perdemos quase 5 milhões de postos de trabalho e mais de 170 bilhões em investimentos”, explicou.

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28
Ago21

Acusado de tráfico é absolvido e juíza manda apurar suposto flagrante forjado

Talis Andrade

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PROVAS PLANTADAS

 

por Eduardo Velozo Fuccia /ConJur

A defesa sustentou a tese de "flagrante forjado", duas testemunhas desmentiram a versão de policiais militares e a juíza absolveu um homem acusado de tráfico de drogas e porte ilegal de arma de fogo sob o fundamento de insuficiência de provas. A julgadora ainda determinou a remessa de cópia da sentença à Polícia Civil, "para apuração de eventual conduta criminosa dos policiais", e a expedição de alvará de soltura do réu.

O processo tramitou na 3ª Vara Criminal de Santos (SP). O veredicto foi dado pela juíza Carla Milhomens Lopes de Figueiredo Gonçalves De Bonis ao término de audiência virtual de instrução, debates e julgamento ocorrida no último dia 16 de agosto. O promotor Carlos Eduardo Terçarolli e o advogado João Manoel Armôa Júnior não recorreram e a decisão transitou em julgado, ou seja, tornou-se definitiva.

No último dia 11, Armôa juntou ao processo matérias jornalísticas sobre a apreensão, na véspera, de 10,2 quilos de maconha, cocaína e crack nas dependências do 2º Batalhão da Ações Especiais de Polícia (Baep), em Santos. Os entorpecentes estavam em um armário sem identificação e foram encontrados durante operação feita no quartel por integrantes da Corregedoria da PM com o apoio do canil da corporação.

Duas réplicas de pistola, espingarda, quatro munições de escopeta, quatro granadas, dois telefones celulares, duas balanças de precisão e quatro bases para carregador de HT completaram a relação de materiais achados no armário. Conforme reportagem do site Vade News, "os indícios são os de que as drogas e os demais materiais ilícitos seriam utilizados para forjar prisões — os chamados kits flagrante".

O advogado justificou em petição que a juntada das reportagens tem a "finalidade de demonstrar ao MP e a esta magistrada que a tese desenvolvida por este defensor de flagrante forjado realizado pelos policiais militares não é desprovida de argumentos concretos". Armôa arrematou dizendo que uma ilegalidade do gênero "pode ter ocorrido naquele fatídico dia", referindo-se à data da prisão do seu cliente.

Versões conflitantes
De acordo com dois policiais militares, o acusado tentou fugir correndo ao vê-los, no último dia 20 de março, em uma favela. O suspeito estaria carregando uma sacola e traria uma pochete na cintura. Ao ser detido, teria gritado "perdi, perdi, estou armado". Segundo os PMs, na sacola havia 600 porções de maconha e 295 de cocaína, totalizando quase dois quilos.

Os agentes públicos disseram que encontraram na pochete um revólver calibre 38 com a numeração raspada e municiado com cinco balas. Também narraram que populares se insurgiram com a prisão, "por provavelmente se tratar de um gerente do tráfico", e avançaram no sentido da guarnição, motivando-os a usar granadas de efeito moral para sair da favela em segurança.

"O que houve, na realidade, foi a revolta da comunidade diante de uma prisão injusta", rebateu o advogado. Duas mulheres ouvidas como testemunhas contaram que o acusado estava desarmado e não portava sacola. Uma delas detalhou que os PMs levaram o réu para o galinheiro no fundo da favela, onde há um barraco abandonado, permaneceram ali por "algum tempinho" e, na saída, um policial carregava uma mochila.

As mulheres chegaram a ser levadas à delegacia onde o homem foi autuado e qualificadas no boletim de ocorrência, mas foram embora antes de serem ouvidas ou liberadas. Em juízo, elas explicaram que ficaram receosas, porque os PMs as questionaram se não tinham medo de depor. Uma das testemunhas afirmou que ouviu os PMs exigirem do réu a entrega de um "barraco-bomba" ou de duas pistolas em troca de sua liberdade.

Barraco-bomba é o local utilizado como depósito por traficantes em uma favela. O réu negou na delegacia e no interrogatório judicial a posse dos entorpecentes e do revólver. Admitiu que correu, como outras pessoas, porque os PMs chegaram atirando. Contou que foi levado sem nada para um barraco, sendo questionado sobre o esconderijo das drogas e armas. Como não tinha nada a entregar, foi conduzido preso à delegacia.

Documento sonegado
"A prova testemunhal traz séria dúvida quanto à autoria delitiva, o que inviabiliza a condenação. Anoto que a juntada aos autos do BOPM foi insistentemente solicitada, mas até o presente momento foi sonegada", destacou a juíza. Carla De Bonis ainda anotou na sentença que as testemunhas chegaram a ser qualificadas na delegacia, "mas estranhamente seus depoimentos não foram tomados".

A julgadora requisitou a apuração da conduta dos PMs baseada na gravidade dos relatos das mulheres e do réu. "Ambas afirmaram terem sido vítimas de ameaça de mal injusto e grave por parte dos policiais, motivo pelo qual deixaram a delegacia sem depor. Além disso, o acusado afirmou que ambos os policiais que depuseram na audiência anterior tinham exigido a entrega de arma de fogo para não incriminá-lo falsamente".

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Nota deste correspondente: Tem que acabar a maldita herança de condenar sem provas da lava jato, organização criminosa que atuou na Justiça brasileira. Ou condenar com provas inventadas, adulteradas nos manjados inquéritos policiais. Idem de procuradores da justiça espetáculo. Da justiça ativista. Da justiça que pretendia eleger Sergio Moro presidente do Brasil. Dos procuradores que tramavam eleger Dallagnol senador ou governador do Paraná.

Para levantar a grana, para as campanhas eleitorais, criaram uma fundação. Que teve uma conta inicial, gráfica, de 2 bilhões e 500 milhões, aberta na Caixa Econômica Federal de Curitiba. Dinheiro depositado pela Petrobrás no dia 30 de janeiro de 2020, primeiro mês de Moro ministro da Justiça de Bolsonaro. A polícia-promotor ou procurador-juiz atua contra políticos da oposição, notadamente dos partidos 'esquerdistas-comunistas', e os sem teto e os sem terra. É a famigerada, corrupta "polícia ppv",  que persegue os pobres, as putas e os viados, conforme definição do ministro Edson Vidigal, quando presidente do Superior Tribunal de Justiça. 

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22
Jun21

Liberdade de imprensa vira refém do jornalismo populista

Talis Andrade

Zumbis da imprensa saem às ruas
para pedir condenações

 

por Márcio Chaer /ConJur

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Está em cartaz a maior campanha contra a liberdade de expressão já vista no país. Ela foi articulada por pretensos justiceiros que adotam a mentira como técnica jornalística. O velho truque de fazer o mal em nome do bem — papel de embrulho para açular as arquibancadas.

A pantomima, no seu último influxo ganhou o estranho apelido de "lava jato". Os alicerces dessa construção foram "notícias" fabricadas e que agora vê-se, pelo espelho retrovisor, que metade delas foram lorotas. A parte verdadeira foi romanceada.

Como se estruturou essa novela? Vejamos:

O mercado do conteúdo tem um público enorme para o entretenimento, empreendimentos religiosos, mas um público muito reduzido para a informação política, econômica e científica.

Para aproveitar o sucesso da emoção sobre a razão, a mídia passou a embalar a informação jurídica e judicial — em geral árida e enfadonha —  com sentimentos morais e maniqueísmo.

Essa metamorfose deu à luz o fetiche da corrupção. Criou-se a fantasia de que todo homem público ou empresário é corrupto. A campanha contra a liberdade de expressão começou por abolir a checagem das "informações" vendidas pelo lavajatismo. Qualquer rumor soprado pelos justiceiros passou a ter mais peso que documentos, provas e evidências que desmontasse. A começar pela falsa dimensão dada à prática da corrupção no país.

Na vida real, o maior problema dos brasileiros está nas relações de consumo. Isso representa cerca de 34% dos conflitos que chegam ao Judiciário. Em seguida, relações de trabalho: algo como 24% dos litígios. A criminalidade responde por pouco mais de 10%. Os crimes relacionados ao bloco da corrupção representam cerca de 0,03%.

Mas o charme de se derrubar um presidente, prender um deputado ou um empresário ricaço é insuperável, claro. Abusos de operadoras de telefonia, concessionárias, bancos ou planos de saúde não têm espaço nem interesse.

Até porque, pautas como a ineficiência do setor público (saúde, educação, segurança) ou do setor privado dão muito trabalho. É preciso pesquisar, estudar, fazer contas. É muito mais fácil sair gritando "pega ladrão". Não por outro motivo, os jornalistas mais famosos do momento (com exceções, claro) são verdadeiros linchadores.

O que isso tem a ver com liberdade de expressão? Tudo. Porque se essa deformação não for corrigida, as garantias e prerrogativas do jornalismo perderão o sentido. Não se fortalece as salvaguardas da imprensa fazendo vistas grossas para o fato de que há no meio vigaristas usando o manto do jornalismo para fraudar notícias — seja por dinheiro, seja por sensacionalismo.

O que tem caracterizado o noticiário sobre a Justiça? Existem os setoristas, os repórteres que acompanham julgamentos, leem as decisões, entrevistam as partes e os juízes. E existem aqueles que brilham na primeira página ou no espaço nobre das emissoras. São os animadores de auditório da escola do Ratinho, do Datena e outros artistas populares.

Sem tirar deles a importância que têm na história contemporânea, claro. Foram eles que construíram a fantasia da lava jato, elegeram Bolsonaro, Witzel, Doria e um lote de capitães, majores e coronéis no Congresso e Assembleias Legislativas. O Brasil deve a eles não só o avanço político como a gestão da crise sanitária da epidemia.

Isso foi construído com manchetes terroristas (e mentirosas) como a de que a prisão depois do trânsito em julgado colocaria nas ruas 180 mil "bandidos". Que o reconhecimento da suspeição de Sergio Moro anularia centenas de processos ou a velha ladainha de que anular ilegalidades de Curitiba seria trabalhar para corruptos.

A Academia está devendo ao país estudos menos conservadores a respeito do fenômeno do lavajatismo. O que pode explicar que procuradores e juízes de primeira instância tenham se tornado mais poderosos que seus órgãos de cúpula? Fenômeno igual ao que se viu com delegados da Polícia Federal e auditores da Receita. Quem acreditará em dez anos que um dia um grupo que se apelidou "força tarefa" governou o país, acima da Presidência da República e do Congresso?

Para voltar ao poder, movimentam-se "poetas", "escritores", "filósofos" e jornalistas em fim de carreira e sem perspectivas, que fugiram do ostracismo com a onda populista. Depois de verem suas balelas desmentidas, tentam desfibrilar o cadáver da fantasiosa "lava jato". A manobra de ressuscitação da "operação" consiste em insuflar ataques ao STF para emparedar seus ministros. Querem fazer crer que um acusado não é absolvido por falta de culpa, mas porque o juiz está do lado da corrupção.

É o encontro do voluntarismo desinformado com a perversidade. Um gênero de idealismo que confunde ingenuidade com esperteza. Ou com interesses financeiros e comerciais mesmo, como bem mostram falsos constitucionalistas e professores como Joaquim Falcão e Modesto Carvalhosa.

Um exemplo da farra: o comercialista Carvalhosa — que se apresenta como "professor aposentado" da USP, sem ser — dá aula nesta segunda-feira (3/5) para um comitê bolsonarista da Câmara dos Deputados. O tema é uma pretensa "PEC da 2ª instância". Quem sabe o professor ensine, como qualquer estudante sabe, que é inadmissível proposta de emenda constitucional para alterar cláusulas pétreas. Quem sabe.

Parafraseando o poeta Pablo Neruda, "você é livre para fazer suas escolhas, mas é prisioneiro das consequências". Ou então, Eça, na frase do Conselheiro Acácio: "As consequências vêm sempre depois". Mas em pelo menos um aspecto não é preciso esperar o futuro. A imprensa tradicional só tem encolhido. Isso pode estar relacionado com suas escolhas. Ou ao seu controle de qualidade.

 

19
Jun21

O desprezo do lavajatismo pelo processo penal na democracia

Talis Andrade

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por Danilo Pereira Lima /ConJur

O processo penal é uma boa chave de análise da qualidade de uma democracia. Por meio dele podemos avaliar de que forma o Estado se relaciona com a liberdade de seus cidadãos, qual é a eficácia dos direitos e garantias fundamentais e se a persecução penal é feita na perspectiva do Estado de Direito.

Diante disso, se encontramos nos órgãos jurisdicionais uma forte cultura inquisitória, podemos constatar que o Estado mantém uma relação autoritária com os indivíduos, no sentido de vê-los muito mais como inimigos do que como cidadãos.

Por outro lado, se os órgãos jurisdicionais veem o processo penal como uma garantia do acusado e exercem sua função institucional dentro dos limites do sistema acusatório, podemos concluir que a interdição penal — necessária para o processo civilizatório — acontece dentro dos parâmetros do Estado de Direito.

Com base nesse critério, podemos observar que infelizmente a situação não é muito boa para o Brasil. Em tempos de lavajatismo, e após a divulgação das conversas entre o juiz Sergio Moro e "seus" procuradores da República, o lado mais sombrio do Estado brasileiro tornou-se ainda mais explícito: muitos juízes e membros do Ministério Público persistem numa posição de desprezo pelo Estado de Direito.

Apesar da promulgação de uma Constituição que rompeu com 21 anos de ditadura militar, ainda permanece a noção de que o acusado deve ser tratado não a partir dos limites estabelecidos por seus direitos e garantias fundamentais, mas sim como inimigo do Estado. Uma noção sempre utilizada por regimes de exceção e que, antes do paradigma constitucional instaurado em 1988, se fez presente por meio da doutrina de segurança nacional. Por sinal, foi com base nessa doutrina que a ditadura militar suspendeu a garantia do Habeas Corpus para pessoas enquadradas na Lei de Segurança Nacional.

Passaram-se muitos anos desde a aprovação do Ato Institucional nº 5 e o país se redemocratizou. O ministério Público deixou de ser um mero auxiliar do Poder Executivo e tornou-se fiscal da lei. O Poder Judiciário reconquistou sua autonomia funcional. Mas o entendimento de que os direitos e garantias fundamentais não passam de meros detalhes permaneceu entre alguns agentes públicos. Foi o que os procuradores federais da lava jato manifestaram em diálogos pelo Telegram logo após a divulgação ilegal da interceptação telefônica das conversas entre Lula e a então presidente Dilma Rousseff.

Diante do vazamento, o procurador Januario Paludo sustentou que a ilegalidade da divulgação não passava de filigrana jurídica. Opinião seguida por Deltan Dallagol ao defender que, "a questão jurídica é filigrana dentro do contexto maior que é político". Ou seja, no tratamento oferecido ao inimigo, ilegalidades podem ser praticadas.

Em regimes democráticos, o sistema acusatório determina que a acusação e o órgão jurisdicional atuem de forma separada, de maneira a garantir a imparcialidade do juiz no julgamento do processo penal. Nos tempos da "Santa" Inquisição, a mesma pessoa encarregava-se do julgamento, da investigação e da acusação. Sem esquecer, é claro, do uso da tortura como um meio para obter a confissão do acusado. O tempo da fogueira inquisitorial passou, mas a operação lava jato não abriu mão do sistema inquisitório nas suas intenções quase "messiânicas" de guerra "santa" contra a corrupção.

Em vez do Ministério Público Federal atuar com independência ao longo das investigações, o que se viu foi a total subserviência dos procuradores em relação ao verdadeiro chefe da operação, o juiz Sergio Moro. Em muitas mensagens os procuradores afirmavam que, antes de tomarem alguma posição, o juiz Moro precisava ser consultado.

Foi o caso da mensagem do procurador Carlos Fernando dos Santos Lima, que em conversa com seus colegas confidenciou a preocupação de manter "o russo [Sergio Moro] informado, bem como [permanecer] atento aos humores dele". Nesse sentido, o órgão jurisdicional e o ministério público deixaram de ser instituições separadas, com autonomia funcional, para atuarem como se fossem um mesmo órgão sob a chefia do juiz Moro.

Para que o juiz permaneça na posição de expectador durante todo o processo, também é importante garantir que a gestão das provas permaneça sob a responsabilidade exclusiva das partes. Sempre levando em consideração a presunção de inocência, que no caso transfere para o acusador toda a responsabilidade pelo ônus da prova. Se no decorrer do processo penal as provas para a condenação são insuficientes, prevalece o princípio do in dubio pro reo.

Não cabe ao juiz produzir provas ou orientar como as partes devem usá-la. No entanto, apesar das limitações impostas pela Constituição, o juiz Moro mais uma vez abandonou a imparcialidade para determinar que o ministério público devia incluir uma prova contra um réu da lava jato. De acordo com as conversas do Telegram, Deltan comunicou a procuradora Laura Tessler que o juiz Moro havia chamado a atenção para a ausência de uma prova na denúncia contra Zwi Skornicki.

"Laura no caso do Zwi, Moro disse que tem um depósito em favor do [Eduardo] Musa [da Petrobras] e se for por lapso que não foi incluído ele disse que vai receber amanhã e dá tempo. Só é bom avisar ele", diz Deltan.

"Ih, vou ver", responde a procuradora. 

No dia seguinte a esse diálogo, a procuradoria incluiu um comprovante de depósito e o juiz Moro aceitou a denúncia.

A operação "lava jato" não foi um ponto fora da curva. O juiz Sergio Moro e "seus" procuradores seguiram a tendência dominante dentro do processo penal brasileiro, baseada na cultura inquisitória. Mas, além do comportamento Torquemada de muitos juízes e promotores, o que também é possível atestar por meio da permanência da cultura inquisitória é a resistência de muitos agentes públicos contra qualquer controle constitucional de suas funções. Sendo assim, em vez do processo penal ser compreendido como uma garantia de que o acusado terá um julgamento justo da parte do órgão jurisdicional do Estado; o que se percebe é que, nas mãos de quem vê os direitos e garantias fundamentais como meras filigranas jurídicas, o processo penal é apenas um instrumento de poder e repressão, numa noção típica de agentes públicos que resistem ao Estado de Direito por meio do mandonismo.

Desse modo, ao medir a qualidade da democracia brasileira por meio do processo penal, podemos concluir que o entulho autoritário de outras épocas ainda insiste em deixar a Constituição cidadã de lado para manter de pé o paradigma amigo/inimigo.

12
Mar21

Nulidade processual

Talis Andrade

 

 
 

A 2.a Turma do Supremo Tribunal Federal decidiu, por quatro votos a um, que a defesa do ex-presidente Lula pode ter acesso às mensagens obtidas por hackers que invadiram os celulares dos agentes públicos atuantes na conhecida Operação Lava Jato. Por consequência, levantou-se a discussão sobre a utilidade dessas informações nos processos que ainda correm nas instâncias judiciais. Diante da polêmica, alguns pontos, portanto, merecem especial atenção.

  1. Prova ilícita é aquela obtida mediante violação da lei. O processo penal é regido por normas rígidas que devem ser obedecidas, sob pena de nulidade dos atos praticados. Há um conjunto de regras que têm por objetivo evitar que o Estado desrespeite direitos fundamentais por mero arbítrio. Nesse sentido, por exemplo, a lei exige autorização judicial para violar qualquer tipo de sigilo, ingressar no domicílio ou privar uma pessoa de sua liberdade. Uma pessoa não pode ter seus direitos ameaçados fora das hipóteses previstas em lei.
  2. Portanto, a invasão a dispositivos informáticos, sem autorização judicial, configura crime, pois a inviolabilidade do sigilo é direito fundamental com previsão constitucional. Não restam dúvidas sobre a ilegalidade do procedimento dos hackers para terem acesso às mensagens dos celulares sem o consentimento de seus proprietários.
  3. É proibida a utilização de provas obtidas de maneira ilícita. O Estado não pode atentar contra a lei para buscar a punição a todo custo. Todo ato praticado pelas autoridades em desconformidade com as regras processuais deve ser anulado e refeito, desaparecendo seus efeitos. Se, por exemplo, uma sentença condenatória foi proferida pelo juiz com base em provas ilícitas, a decisão deve ser anulada e outra deve ser deliberada, desta vez sem vícios.
  4. Há princípios fundamentais do processo que nunca podem ser desrespeitados. A desobediência a esses princípios obriga ao reconhecimento da nulidade dos atos praticados. Um desses princípios é a imparcialidade do juiz, segundo o qual quem julga não pode atuar como se tivesse interesse no resultado final. Afinal, quem decide deve manter a mesma distância das partes envolvidas. A imparcialidade é tão importante que a Constituição Federal garante aos magistrados a vitaliciedade, a irredutibilidade de vencimentos e a impossibilidade de serem removidos contra sua vontade. Tudo isso para evitar pressões externas e uso político do processo.
  5. Não obstante, quando houver conflitos entre atos ilegais praticados no processo, a decisão a ser tomada deve ser mais benéfica ao réu. Assim, se provas obtidas ilegalmente são capazes de demonstrar que o juiz do caso atuou com parcialidade estas podem ser utilizadas pela defesa para solicitar a nulidade dos atos praticados pelo julgador, inclusive a sentença condenatória. Com a anulação, os respectivos atos devem ser refeitos e o processo praticamente começa do zero.
  6. As provas ilícitas podem ser utilizadas, excepcionalmente, quando, de alguma forma, podem beneficiar o réu. Seja para provar sua inocência, seja para apontar ilegalidades na condução do processo. O reconhecimento da parcialidade do juiz, que tenha atuado em conluio com o Ministério Público, não leva à absolvição automática do acusado, mas apenas gera a nulidade do processo e implica seu reinício. Pode, sim, haver a prescrição pelo decurso do tempo, mas essa consequência não pode ser atribuída à defesa do réu, pois os atos ilegais provêm da acusação e do julgador.

Se o STF reconhecer a atuação parcial do ex-juiz Sergio Moro nos processos em que o ex-presidente Lula é réu, não haverá reconhecimento de sua inocência, mas a necessidade de começar tudo outra vez. Se isso acontecer, e é o que se espera para o restabelecimento do Estado democrático de direito, culpa alguma poderá ser imputada à defesa ou aos hackers. O juiz tem a obrigação de julgar enquanto o Ministério Público é o único órgão que pode produzir provas para o pedido de condenação.

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06
Mar21

Procuradores dizem: Sim, nós mentimos!

Talis Andrade

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Por Lenio Luiz Streck

"Sim, nós mentimos." Eis a manchete! Parece surpreendente, não? Mas, de onde será a notícia? É da Folha de São Paulo? Do Estadão? De O Globo? Mistério.

Mas aqui já vai o spoiler.

Leio, na NPR, que documentos do attorney's officeem Manhattan — traduzindo pra nossa jurisdição, o "MP", a acusação — revelam que os "promotores de lá" mentiram à juíza Alison Nathan, que os questionava acerca de um caso ocorrido meses antes.

O caso? Explico: A desistência, por parte de procuradores, de uma acusação na qual se descobriu que eles não cumpriram com seu dever de disclosure: o dever institucional, funcional, de apresentar as evidências todas — inclusive aquelas favoráveis à defesa, pois (como defendemos, o senador Anastasia e eu, no projeto Anastasia-Streck; por todos, aqui). Vejam. Há quanto tempo falo disso por aqui?

Quando os attorneys office viram que haviam feito bobagem — mais, quando viram que se descobriu que haviam feito ilicitudes —, num país em que se sabe que a acusação não pode agir estrategicamente (por exemplo, a doutrina Brady da qual tanto falo) e deve apresentar todas as evidências, os procuradores abandonaram o caso. O que disseram? Que estavam desistindo por "questões relacionadas ao dever de disclosure".

Tudo certo, certo? Não. E não. Os procuradores não cumpriram com seu dever institucional, isso foi demonstrado, e eles desistiram. Bem, quase. Porque no meio do caminho tinha uma pedra — a juíza Nathan. Ela não se satisfez.

Ela questionou: Como assim, "questões relacionadas ao disclosure"? A juíza Nathan exigiu, além da mera e vaga retratação e desistência, que os procuradores entregassem todas as evidências favoráveis ao réu, e que indicassem todos os membros-procuradores envolvidos, inclusive supervisores.

Porque estamos falando de uma cultura político-jurídica em que não há apenas o dever de disclosure — de clareza e publicidade nas provas colhidas, sem estratégias —, mas há também accountability. Esse é o ponto.

O Ministério Público de Manhattan não apresenta provas absolutórias. E aí descobrem que foram descobertos. Desistem da acusação. A juíza Nathan, não satisfeita, exige as evidências, exige a responsabilização de quem não cumpriu com o dever funcional. E parece, como explico mais adiante, que a coisa vai ficar feia para os attorney office.

Isso acontece em um país que tem consolidado o dever de disclosure e tem accountability. Os Estados Unidos da América. A força-tarefa da "lava jato" não adora o direito norte-americano? Pois então. Fosse aqui e a casa cairia. Sergio Moro não é apaixonado pelo direito dos “isteites”? Pois então: miremo-nos todos no exemplo da juíza Nathan.

O que aconteceria em um país como o Brasil, que não tem consolidado o dever de disclosure e que não tem accountability? Bem, só se pode arriscar alguns palpites.

Como não há a ideia de disclosure, suponho que já se começaria mais além. Não "só" ocultação de provas, mas fabricação delas. As mensagens trazidas à lume pela operação spoofing mostram total ausência de disclosure e accountability.

Por aqui, por enquanto, o que temos (tínhamos) é um juiz anti-Nathan, quem, em vez de exigir responsabilidade como fez a Dra. Nathan, ajudou a acusação, indicando testemunhas, fazendo promessas e compromissos, criticando o réu, colocando-se como chefe de uma acusação que nunca foi isenta como devia ser.

Ou seja, nesse país chamado Brasil, não estamos falando  de um órgão de acusação que faz agir estratégico e que não age como magistratura (ainda que garantias de magistratura tenha); estamos falando de um juiz que não age "como magistratura" e que faz agir estratégico. Pois é. Anti-Nathan. Somando um juiz anti-Nathan com um MP que faz agir estratégico, sem disclosure, temos a tempestade perfeita.

O que seria/será da reputação do direito desse país chamado Brasil? Como levar a sério o Estado de Direito, o rule of law (Moro usou muito essa expressão, lembram?) num país assim?

Pois é. Vida longa para a juíza Alison Nathan.

Post scriptum: Registro que nos Estados unidos essa história não acabou. A Doutora Alison Nathan também ordenou a liberação de todas as declarações dos promotores e os arquivos relacionados ao caso, dizendo que o interesse público em ver os materiais superava qualquer interesse de privacidade. Nos diálogos (vejam, diálogos!), há coisa como "isso vai dar banho de sangue"; "vamos enterrar isso debaixo de uma pilha de papéis", coisas, aliás, que não surpreendem a gente daqui do Brazil (sic).

Mais coisas espúrias são reveladas e, conforme isso vai acontecendo, surgem movimentos no judiciário e no legislativo dos EUA para fortalecer a responsabilização e evitar episódios assim no futuro.

No Brasil, a história também não terminou. Porque, por aqui, uma hipotética comunidade jurídica, incluindo doutrinadores e membros da prática, ainda podem escolher fazer a coisa certa. Ainda podem fazer como a juíza Nathan, por exemplo. Os professores poderiam começar a virar o jogo a partir da sala de aula. A própria dogmática jurídica ainda deve muita coisa. Há um imenso déficit epistemológico.

Há juízes em Berlim. A juíza Nathan mostrou que nos EUA também.

Haverá juízes — e doutrinadores, e advogados, e procuradores, e defensores, e estudantes de direito — em nosso país real ou hipotético, que possam, efetivamente, firmar posição e agir em favor de disclosure (o conceito está no início deste artigo) e accountabillity (prestação de contas, transparência, republicanismo)?

A ver.

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