Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

O CORRESPONDENTE

Os melhores textos dos jornalistas livres do Brasil. As melhores charges. Compartilhe

Os melhores textos dos jornalistas livres do Brasil. As melhores charges. Compartilhe

O CORRESPONDENTE

10
Jul23

Juiz das garantias e interpretação desconforme com a Constituição

Talis Andrade

_jb jorge braga justiça.jpg

 

Por Lenio Luiz Streck

6. Por que a imparcialidade deve ser o modo-de-ser do juiz

(Continuação)  A imparcialidade faz parte do juiz-como-juiz. A coisa como-coisa já deveria trazer a própria desnecessidade do juiz das garantias. E o cenário que o torna necessário é o mesmo cenário que pode vir a torná-lo inútil. Essa é a grande questão.

Sou, portanto, um aliado nessa luta. Insuspeito quanto a isso, acho. Estamos na mesma trincheira. Saúdo o juiz das garantias. Mas quero ir além do JG. Há mais coisas a conquistar. Mas reconheço o jogo difícil.

Insisto que o problema está no modo como concebemos a gestão da prova. Não existe (re)estrutura que supere um universo jurídico que aceita que juiz decide com discricionaridade com o argumento de que "é assim e pronto", "não tem o que fazer".

Não há garantias que sejam garantidas quando até garantistas acreditam em ficções como "o livre convencimento veio pra superar a prova tarifada". Falei (d)isso para o próprio Sergio Moro, em debate em 2015, quando poucos enxergavam que o rei estava nu. Moro me respondeu: "– Tenho livre convencimento". E ainda tentou tirar onda comigo, dizendo "afinal, o livre convencimento veio para superar a prova tarifada"? Respondi: "– Ah sim, obrigado. Eu não 'sabia' (ironia)". E acrescentei que, com juízes como ele, eu preferia um textualista ou até mesmo a própria tarifação — mormente porque a "tarifação" nas constituições garantidoras é benfazeja (ou alguém acha que a própria garantia da imparcialidade pode ser superada por livre convencimento ou uma nulidade da prova pode ser superada por convencimento livre)? E assim a vida continua.

Estou escrevendo um livro sobre isso. Sobre as origens. Com dados empíricos. Onde morou o juiz boca da lei? Ele habitou em algum canto do Direito brasileiro? Onde e como a tal "superação" da prova tarifada ocorreu no Brasil? E se ainda se pode falar em "superação" a um tempo em que temos um elenco de neotarifações riquíssimas como o elenco das garantias do artigo 5º da Constituição. E, mais grave: alguma garantia pode ser superada por livre convencimento?

Enfim, tudo isso torna o juiz das garantias paradoxal. Por paradoxal que possa parecer, paradoxalmente o JG é necessário.

Precisamos do juiz das garantias. Que pena. Mas precisamos.

Só que meu papel, aqui, será o de lembrar que não resolveremos os problemas da crise do Direito no Brasil (que, aliás, vai ao ponto de necessitarmos de um JG) se não superarmos o problema de um ensino jurídico que reproduz o senso comum teórico.

Um bom exemplo é que falamos em "precedentes qualificados" e não resolvemos até hoje o problema sobre o que é um precedente. Abundam os estudos sobre inteligência artificial e até hoje não resolvemos a questão da prova no Brasil.

E aí queremos resolver a livre apreciação com um novo juiz. Quase hobbesianamente. Só que Hobbes sacou, homem de seu tempo, que uma hora isso precisa terminar.

Ao contrário de Hobbes, sou um otimista metodológico.

Por enquanto, sou a favor do juiz das garantias. Claro que sim. Mas meu otimismo também é cauteloso: sou favorável, consciente de que só sairemos dessa quando resolvermos o problema da gestão-compreensão do que é isto — o processo, o que é um precedente e sobre o que é isto — o livre convencimento e a livre apreciação da prova.

Sou a favor do juiz das garantias. Mas vou sempre lembrar que todo juiz deveria ser das garantias.

 

7. O voto do ministro Fux e o conceito de interpretação conforme

Por fim e não menos importante: li o voto do ministro Luiz Fux. Ele legislou. Isso precisa ser dito. Ao fazer interpretação conforme, fez vários novos textos. Reescreveu a lei. E isso é vedado ao Judiciário. Mais grave ainda é fazer interpretação em desconformidade com a lei e com a Constituição.

Interpretação conforme não altera o texto, apenas a norma. Se alterar o texto, o Judiciário legisla. Porque o Judiciário cuida do passado e o Legislativo cuida do futuro. Quem escreve textos é o Legislativo.

Normas — o sentido que é dado ao texto — não podem alterar o próprio texto. Judiciário pode anular textos. Interpretação conforme é dar sentido que conforme a lei (no seu texto) à Constituição, sendo que, para isso, altera-se a norma (que é sempre, conforme nos ensina Müller, o produto da interpretação do texto). Essa é a tradição.

Trago aqui alguns comentários sobre isso. O primeiro, de Canotilho: "o aplicador de uma norma não pode contrariar a letra e o sentido dessa norma através de uma interpretação conforme a constituição, mesmo [que] através desta interpretação consiga uma concordância entre a norma infraconstitucional e as normas constitucionais". O segundo é Luís Roberto Barroso, para quem "não é possível ao intérprete torcer o sentido das palavras nem adulterar a clara intenção do legislador". O terceiro é Gilmar Mendes, para quem, na jurisprudência do STF, os limites à interpretação conforme a constituição resultam tanto da expressão literal da lei quanto da vontade (concepção original) do legislador.

Posso até, no limite dos limites, encontrar guarida em redefinições textuais mínimas — porém, o caso do JG, como posto pelo voto do ministro Fux, refoge a qualquer dessas possibilidades. Vejamos o que dirão os demais ministros.

- - -

[1] No Dicionário de Hermenêutica, discuto os conceitos de livre convencimento e livre apreciação da prova à luz da filosofia e do direito estrangeiro. São dois verbetes que tratam da matéria.

Justiça sentada-por-Sponholz.jpg

14
Mai23

A autópsia do ovo da serpente (crotalus terrificus) da lava jato (vídeos)

Talis Andrade

geuvar moro ovo serpente.jpg

Gilmar Mendes critica Lava Jato e Sergio Moro: 'Curitiba gerou Bolsonaro e tem o germe do fascismo'

 

por Lenio Luiz Streck

Antes de tudo, sim, eu sei que crotalus terrificus é o nome cientifico de uma serpente específica, a cascavel. O título é para mostrar o problema que poucos viram lá atrás: o ovo desse crotalus.

aroeira globo ovo serpente.jpg

 

Escrevo para dizer que é muito bom quando a epistemologia vem para mostrar que uma tese é correta. Uma boa pesquisa ilumina caminhos por vezes traçados intuitivamente.

Todos sabem de minhas críticas à lava jato. Foram mais de cem textos escritos sobre esse específico tema. Sempre apontando para o perigo que a lava jato representaria para o futuro.

Vejo, agora, que o professor Fábio de Sá e Silva, professor da Universidade de Oklahoma, nos Estados Unidos, fez profícuos estudos (veja a entrevista) sobre a lava jato e seus impactos no cenário brasileiro.

O professor trata os acontecimentos do 8 de janeiro como uma linha de continuidade da lava jato e mostra que a atuação principalmente do ex-juiz Sergio Moro e do ex-procurador Deltan Dallagnol fomentaram o atual contexto sócio-político de terrae brasilis.

Sá e Silva destaca que, depois de protagonizar barbaridades referendadas por um sistema de Justiça que cedeu ao canto das sereias, a lava jato começou a sofrer as primeiras derrotas perante os tribunais, e seus atores começaram a subir o tom contra as Cortes de Justiça, principalmente contra o STF e contra o Congresso.

O produto dessa ofensiva, segundo o professor da Universidade de Oklahoma, foi uma acelerada indisposição de parcela da sociedade contra os poderes, como se as instituições estivessem tomadas pela corrupção e os tribunais fossem coniventes com isso.

Ou seja, quando suas decisões começaram a ser alteradas, Moro e Dallagnol instilaram forte veneno contra o Supremo Tribunal. E buscaram desacreditar a todo custo o sistema de justiça. Dallagnol chegou a chamar garantias constitucionais de "filigranas". Portanto, a guerra contra o STF também tem na lava jato o seu "ab ovo".

É fato. Dallagnol e Moro eram o centro dessa retórica contra o STF, principalmente em suas postagens e manifestações públicas. Sá e Silva mostra que a "troca" da carreira jurídica pela política otimizou o discurso de ambos, e a soltura de Lula foi instrumentalizada para alavancar essa tensão, com a criação, por exemplo, do termo "descondenado" (quantas vezes Dallagnol usou essa palavra?), amplamente utilizado por aqueles que pediram (e ainda pedem) o golpe. O STF virou "comunista". Discursos esses adotados por Bolsonaro e seus apoiadores.

Sá e Silva confirma o que de há muito tenho dito: o ovo da serpente dos maiores males que enfrentamos, institucionalmente, foi e ainda é a lava jato — agora transformada em um imaginário golpista. Uma coisa levou à outra.

O interessante é que o professor Sá e Silva vem sendo atacado principalmente por Dallagnol. No twitter, único lugar em que o agora deputado Dallagnoll consegue se comunicar, os ataques são constantes, buscando desqualificar o professor. Como se o professor fosse como alguns antigos "amiguinhos" jornalistas (e jornaleiros) que lhe fizeram a fama.

O professor Sá e Silva mostra essa linha de continuidade: começa com a lava jato, criminaliza a política e enfraquece as instituições. Ingredientes para uma tempestade perfeita. E no meio ainda teve a tentativa de golpe de Dallagnol e Moro contra o direito brasileiro, ao gestarem o famigerado "Projeto das Dez Medidas". Ali estava um "ovinho" do golpismo, porque pretendia introduzir o uso de prova ilícita e acabar com o habeas corpus.

É. Choveu muito na serra e poucos viram a enchente que vinha. O que o professor Sá e Silva faz é mostrar também as trovoadas. Bem isso.

O resto todos sabemos. O dia 8 de janeiro foi o coroamento de uma crônica de uma anti institucionalidade anunciada. E a história há de mandar a conta. Com juros de cartão de crédito.

De todo modo, isso não tem preço!

Mais sobre mim

foto do autor

Subscrever por e-mail

A subscrição é anónima e gera, no máximo, um e-mail por dia.

Arquivo

  1. 2023
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D
  14. 2022
  15. J
  16. F
  17. M
  18. A
  19. M
  20. J
  21. J
  22. A
  23. S
  24. O
  25. N
  26. D
  27. 2021
  28. J
  29. F
  30. M
  31. A
  32. M
  33. J
  34. J
  35. A
  36. S
  37. O
  38. N
  39. D
  40. 2020
  41. J
  42. F
  43. M
  44. A
  45. M
  46. J
  47. J
  48. A
  49. S
  50. O
  51. N
  52. D
  53. 2019
  54. J
  55. F
  56. M
  57. A
  58. M
  59. J
  60. J
  61. A
  62. S
  63. O
  64. N
  65. D
  66. 2018
  67. J
  68. F
  69. M
  70. A
  71. M
  72. J
  73. J
  74. A
  75. S
  76. O
  77. N
  78. D
  79. 2017
  80. J
  81. F
  82. M
  83. A
  84. M
  85. J
  86. J
  87. A
  88. S
  89. O
  90. N
  91. D
Em destaque no SAPO Blogs
pub