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O CORRESPONDENTE

Os melhores textos dos jornalistas livres do Brasil. As melhores charges. Compartilhe

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O CORRESPONDENTE

28
Jul23

Crescimento da extrema direita e de células nazistas no Brasil

Talis Andrade

 

opinião 2707 -  (crédito: Caio Gomez)
crédito: Caio Gomez

 

Para compreender e enfrentar esse fenômeno, é fundamental reconhecer que sua origem reside na crescente desigualdade social e na miséria que corroem o tecido social, gerando um aumento da polarização e da violência

 

por André Naves

Correio Braziliense

- - -

As recentes turbulências políticas em Israel, as eleições espanholas, diversos novos governos europeus, ataques violentos nos Estados Unidos e no Brasil, são os alertas para o grave fenômeno do crescimento da extrema direita pelo mundo. Infelizmente, esse cenário encontra solo fértil em nosso país, onde células nazistas têm se disseminado, lançando sombras sobre a nossa sociedade. Contudo, para compreender e enfrentar esse fenômeno, é fundamental reconhecer que sua origem reside na crescente desigualdade social e na miséria que corroem o tecido social, gerando um aumento da polarização e da violência.

O aumento da desigualdade social tem sido um combustível para a disseminação de ideologias extremistas. Os países, onde as estruturas sociais são mais desiguais, estão mais suscetíveis a movimentos que prometem "soluções" radicais e simplistas para os problemas complexos da sociedade. A extrema direita, aproveitando-se das brechas sociais e da insatisfação popular, apresenta-se como uma alternativa sedutora para aqueles que se sentem marginalizados, desesperançados e esquecidos pelas políticas tradicionais.

Nesse contexto, a disseminação de células nazistas em nosso país é uma chaga que reflete a profundidade das desigualdades e a ausência de políticas públicas efetivas para mitigá-las. A crescente polarização política e social apenas amplia o abismo entre os extremos, fomentando um ambiente de animosidade e violência.

A polarização política e o apelo ao populismo exacerbam a divisão entre "nós" e "eles", transformando adversários políticos em inimigos mortais. Nessa dinâmica, o inimigo político deixa de ser apenas um oponente de ideias e passa a ser encarado como uma ameaça existencial. Esse "canto mortal das sereias populistas" convence uma parcela da população de que a eliminação do "outro" é a solução para os problemas sociais.

Contudo, acreditar nessa cilada é um equívoco que pode ter consequências catastróficas. O combate a problemas sociais não pode ser simplificado na eliminação física ou no silenciamento de grupos e indivíduos divergentes. Investir contra os aparentes problemas, sem analisar suas raízes e nuances, é condenar-se a uma empreitada vazia e ineficaz.

Para combater essa colheita macabra, é urgente mudar o plantio. Isso significa abraçar a democracia e seus valores fundamentais. Democracia é muito mais do que votar em representantes periodicamente; é assegurar a vontade da maioria sem desrespeitar a dignidade das minorias. Aprofundar e concretizar os direitos humanos é o caminho para uma sociedade mais justa, igualitária e inclusiva.

Os direitos humanos não são meros conceitos abstratos; eles estão intrinsecamente ligados à essência da vida humana. Garantir a plenitude das condições existenciais das pessoas, respeitar sua liberdade, promover a igualdade de oportunidades, assegurar a propriedade e a segurança em suas diversas dimensões são pilares para uma sociedade mais justa e menos suscetível ao ódio fascista.

Aliás, os direitos humanos devem ser entendidos como todos aqueles decorrentes da vida, entendida como a plenitude das condições existenciais da pessoa; da liberdade, entendida como a possibilidade de cada indivíduo ser, e se portar, segundo seus desígnios; igualdade, entendida como igualdade concreta de condições de emancipação humana; propriedade, entendida como possibilidade de se assegurar, e desenvolver, tudo aquilo que é próprio ao ser humano; e Segurança, que vai muito além do combate à violência, materializando-se como a oportunidade de satisfação das necessidades existenciais humanas (segurança alimentar, segurança sanitária, segurança educacional...).

A equalização das barreiras estruturais da sociedade, a promoção da inclusão social e a busca por uma convivência diversa e plural constituem a melhor vacina contra o segregacionismo. Ao enfrentarmos a desigualdade social, desarticularemos a base que sustenta o ódio e o extremismo político e social. Uma sociedade verdadeiramente sustentável é aquela que reconhece e valoriza a diversidade, que protege e fortalece os direitos humanos de todas as pessoas, independentemente de sua origem, etnia, gênero ou crença. Somente por meio de uma sociedade inclusiva e justa poderemos construir um futuro melhor, livre dos grilhões do ódio e da violência.

É fundamental reconhecer que o crescimento da extrema direita e a disseminação de células nazistas no Brasil são sintomas de um problema maior: a desigualdade social e a miséria que corroem os alicerces de nossa sociedade. O caminho para combater essa ameaça não é abraçar o extremismo, mas, sim, aprofundar a nossa democracia, pautada nos valores dos direitos humanos. Ao investirmos na construção de uma sociedade mais justa e igualitária, estaremos plantando sementes de esperança, em prol de um futuro em que a convivência pacífica e a harmonia prevaleçam sobre a polarização e a violência.

03
Set22

Eleições e religião

Talis Andrade

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por Janice Theodoro da Silva /Jornal da USP

- - -

A população brasileira é formada por 50% de católicos e 31% de evangélicos.

A Constituição de 1891 estabeleceu o Estado brasileiro como uma instituição laica, garantindo a liberdade religiosa, para todos os cidadãos, até os dias de hoje.

Assunto encerrado?

Não.

Basta olhar as notícias no celular, abrir um jornal ou ligar a televisão. Na disputa presidencial brasileira o voto dos evangélicos tem peso significativo. Entre eles, 48% declaram voto em Bolsonaro e 32% apoiam Lula (dados do Datafolha, divulgados em 1/9).

Apesar do Estado brasileiro ser laico, parte significativa da população não separa o espaço privado, de suas convicções religiosas individuais, do espaço público, gerido pelo Estado. Por que é difícil separar uma coisa da outra, o público do privado?

 

Política e cultura

 

A história do Brasil é farta em diferentes práticas religiosas. As escolas religiosas foram uma marca no passado e no presente, as festas devocionais, um momento de confraternização da população, e as expressões de linguagem “Deus te guarde”, “Vá com Deus”, “deixo nas mãos de Deus” são formas de falar típicas do dia a dia dos brasileiros. Festas juninas são, também, festas políticas e de políticos. A população brasileira espera apoio material de Santo Antônio, de São João, da Virgem Maria, e em níveis mais elevados de Santo Agostinho, São Tomás de Aquino e, por vezes, do Estado.

Para todos, indiscriminadamente, a população pede proteção e justiça.

A esperança é que alguém escute.

É comum ouvir a frase: Eu só quero justiça, diante de um crime.

Justiça praticada por quem?

Pelo Estado.

Onde e como nasceu a ideia de Justiça?

Na tradição do Ocidente, com os gregos, remodelada com o cristianismo, discutida pelos teólogos, como São Tomás de Aquino, desembocando no contrato social, gerido por instituições de Estado.

A cidade das gentes é repleta de desejos de vingança, de amor, de ódio, de generosidade, de ganância, sentimentos próprios da condição humana. Para resolver as contradições dos humanos, a história do Ocidente construiu alternativas com raiz na pólis, no bem comum, nas instituições, na Justiça. O indivíduo isolado ou mesmo organizado em pequenos grupos não dispõe de instrumentos para planejar, gerir e corrigir os rumos da pólis. Os seres humanos sem um contrato e instituições brigarão muito entre si. Entre inúmeros desacertos correm o risco de morrer de fome, sem chegar a nenhum acordo. Cabe ao Estado pôr ordem no caos, gerir as condutas dos indivíduos, organizar a sociedade, impor limites aos crentes ou descrentes da vida política, ou mesmo, de Deus (ou deus).

 

As igrejas evangélicas

 

As igrejas evangélicas existentes no Brasil, com suas diversas denominações, ganharam força a partir da década de 1970. Desenvolveram projetos pregando a valorização da prosperidade individual, em detrimento de políticas estatais.

Por que as igrejas evangélicas ganharam espaço em comunidades de baixa renda, especialmente a partir dos anos 1970 do século passado?

Porque desenvolveram e difundiram a teologia da prosperidade, com forte aceitação no segmento neopentecostal. A proposta ganhou força entre uma população pobre, migrante do campo para as periferias das cidades. Os antigos laços familiares e de solidariedade se romperam com a migração. Abandonados pelo poder público, a população marginalizada viu crescer diversos tipos de associações de ajuda mútua. Algumas escolheram como vínculo a religiosidade e, outras, o crime organizado (milícias) e o comércio de drogas.

Em meio à insegurança cotidiana, as igrejas evangélicas encontraram uma população descrente das instituições políticas e incapaz de superar os desafios contemporâneos. Elas foram a única porta aberta nas comunidades, oferecendo abrigo para as populações de baixa renda.

Os evangélicos souberam substituir a instituição Estado pela instituição Igreja.

Construíram uma nova linguagem fundada na intolerância da igualdade, canal adequado para desaguar a raiva do “vizinho”, inimigo próximo. Souberam ensinar a obediência irrestrita (disciplina), aproveitando dos resquícios de uma sociedade autoritária, e valorizaram as tradições patriarcais, fortalecendo uma cultura tradicional, profundamente machista. Negaram a mudança e a modernidade, demonizaram as questões de gênero. Defenderam uma teologia ancorada na negação do prazer carnal, valorizaram a cura pelo exorcismo e estimularam as ilusões proféticas, materializadas em milagres. Pastores ungidos pelo Senhor e diante do profundo desamparo da população construíram uma nova linguagem, marcada pela fala direta, sem os rodeios retóricos antigos e uso de diminutivos (formas de amenizar estruturas de dominação). Ensinaram a administração eficiente de negócios, desenvolveram práticas voltadas para a liderança e modelos de gestão de negócios. Acrescentaram à lógica religiosa a matemática do empreendimento, o espetáculo nos cultos e a cultura de resultados (prosperidade), transformando o dinheiro em expressão da graça divina.

Sem o amparo do Estado, sem educação de qualidade e sem renda para subsistir, as populações mais pobres precisaram justificar tanta desgraça, para aliviar o justo rancor social. Era necessário produzir um responsável materializável para encarnar todas as desgraças. O Estado é uma entidade abstrata. Não se presta para descarregas de ódio. É mais fácil compreender o mal se ele estiver representado em algo palpável, sólido. Nada melhor do que um diabo, um juiz, uma mulher feiticeira, um comunista, um preto ou uma urna eleitoral para personalizar o mal. Melhor ainda a contraposição binária do diabo encarnado no pobre em oposição ao empreendedor-mascate, cuja fé (e não o SUS) cura qualquer doença, transformando o crente em um rico e feliz fiel pagador de dízimos.

Uma teologia onde Jesus Cristo redimiu a humanidade e a graça produz sinais como a riqueza, a boa saúde ou a vitória política, indicativos da salvação apropriados à conversão de pessoas em situação de dificuldade. Da mesma forma demonizar o mal, materializando-o na pobreza, na doença, em minorias (mulheres, pretos, judeus, ideologias de gênero, entre outros), permite solidez, materialidade, para o bem e o mal. Ingredientes de uma perigosa receita política.

Bem mais difícil é refletir, abstrair, avaliar as próprias atitudes e compreender as políticas de Estado. Meta quase impossível de ser alcançada sem um pouco de educação de qualidade. A solução mais simples sempre é culpar o Outro, delegar o mal para quem é diferente na cor, nas ideias, ou nas tradições.

A certeza frui, é leve e linear. A dúvida dói, pesa, é um emaranhado de possibilidades.

As soluções apresentadas pelos evangélicos dizem respeito à ética do trabalho. Na linguagem atual a palavra é empreendedorismo, tecido com ilusões, apoiado por alguns sucessos financeiros, difundidos nas redes sociais. Não se pode deixar de lado o modelo eficiente de gestão dos negócios, proposto pelos evangélicos. Ele envolve redes de apoio na comunidade e, do ponto de vista dos negócios, sugere até franquias para a sua expansão. As práticas de fato favorecem a prosperidade financeira.

Em suma: Existe, entre alguns evangélicos, justificação religiosa e política para a precarização do sistema de saúde, para o combate à fome e para a ausência de políticas voltadas para o bem-estar dos mais necessitados. Existe liberdade de interpretação do texto bíblico, à moda do leitor. Eu me salvo. Reconheço os sinais da graça, e ponto final.

 

Lugar de fala: o catolicismo e a questão da graça

 

Qual a diferença com a tradição dos católicos?

O bem e o mal não estão postos em pessoas diferentes. De um lado o bem e de outro o mal. O bem e o mal vivem dentro de cada um de nós. Optar pelo bem ou pelo mal é do livre-arbítrio do ser humano. Ele é o responsável pela escolha, por meio do uso da razão e do coração. E, para complicar: dinheiro e poder não significam sinais de obtenção da graça.

Dura responsabilidade, e solitária realidade.

Personalizando a reflexão na pessoa do padre Júlio Lancellotti é possível observar o cuidado do pároco com a população de rua, com menores infratores e pacientes com HIV/Aids. Não se trata apenas de diferenças de sensibilidade em relação aos mais necessitados.

O centro da questão é: diante de uma dificuldade para obter um emprego, sarar de uma doença ou acompanhar os desafios escolares, a “culpa” ou responsabilidade (presente nas duas tradições) é de quem? Do pobre, do doente, da mãe ou do abandono do Estado incapaz de prover o indivíduo para que ele disponha de condições adequadas para atuar na pólis (vida política)?

Sucesso, dinheiro e poder são indicativos do caminho da salvação?

Na tradição católica, não.

De acordo com a tradição católica a graça é dom do amor. Ela é gratuita, faz parte da liberdade amorosa de Deus. Ela não é resultado da ação ou de obras ou do trabalho. Uma pessoa pode ter ganho muito dinheiro ou ter obtido muito poder ou, ainda, ter sido disciplinada ao longo da vida sem alcançar a graça. Ela, a graça, não se mistura nem com o poder, nem com o dinheiro nem com o Estado. Portanto, é clara a separação das coisas terrenas das coisas divinas, justificando o papel do Estado laico e responsabilizando os indivíduos pelas suas escolhas (livre-arbítrio).

Para os católicos, embora o demônio esteja presente na religiosidade popular, a resolução teológica, do bem e do mal, se dá por meio do livre-arbítrio. O homem possui capacidade de escolha entre o bem e o mal, a todo o instante. Esta liberdade para escolher faz dele agente responsável pela prática, do bem ou do mal. O mal não está no Outro, em objetos, em exus, orixás, caboclos, feiticeiras, comunismo, mulheres ou opções políticas. O bem ou o mal, o amor ou o ódio, a generosidade ou a mesquinhez são frutos de uma escolha: do livre-arbítrio do ser humano. O mesmo livre-arbítrio que dispomos na pólis, para votar e se responsabilizar pela escolha.

Temos na política duas matrizes religiosas que, grosso modo, justificam mais ou menos Estado, mais ou menos liberdade individual, mais livre-arbítrio e menos demonização do Outro.

Resumo da ópera: as práticas religiosas existentes nas sociedades interferem nas políticas públicas. O Estado, embora laico, enfrenta dificuldades para manter as fronteiras entre o público e o privado. A porosidade das fronteiras pode contribuir para a discutida corrosão da democracia.

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03
Fev21

Acredite se quiser! Moro cita 9 vezes matéria de jornal como prova documental

Talis Andrade

Resultado de imagem para charges sentença de sergio moro

O advogado e professor de Direito Penal Fernando Hideo Lacerda elaborou um texto sobre a sentença com que Sérgio Moro condenou o ex-presidente Lula. Em poucas palavras, o professor desmonta a sentença de Sérgio Moro. In Carta Campinas, 13 jul 2017.

Por Fernando Hideo Lacerda

Não me proponho a exaurir o tema, tampouco entrar num embate próprio das militâncias partidárias, relatarei apenas as minhas impressões na tentativa de traduzir o juridiquês sem perder a técnica processual penal.

Objeto da condenação: a “propriedade de fato” de um apartamento no Guarujá.

Diz a sentença: “o ex-Presidente Luiz Inácio Lula da Silva e sua esposa eram PROPRIETÁRIOS DE FATO do apartamento 164-A, triplex, no Condomínio Solaris, no Guarujá”.
 

Embora se reconheça que o ex-presidente e sua esposa jamais frequentaram esse apartamento, o juiz fala em “propriedade de fato”.

O que é propriedade ?

Código Civil – Art. 1.228. O proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e o direito de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha.

Portanto, um “proprietário de fato” (na concepção desse juiz) parece ser alguém que usasse, gozasse e/ou dispusesse do apartamento sem ser oficialmente o seu dono.

Esse conceito “proprietário de fato” não existe em nosso ordenamento jurídico. Justamente porque há um outro conceito para caracterizar essa situação, que se chama posse:

Código Civil – Art. 1.196. Considera-se possuidor todo aquele que tem de fato o exercício, pleno ou não, de algum dos poderes inerentes à propriedade.

E não foi mencionada na sentença qualquer elemento que pudesse indicar a posse do ex-presidente ou de sua esposa do tal triplex: tudo o que existe foi UMA visita do casal ao local para conhecer o apartamento que Léo Pinheiro queria lhes vender.

Uma visita.

Portanto, a sentença afirma que Lula seria o possuidor do imóvel sem nunca ter tido posse desse imóvel. Difícil entender ? Impossível.

Tipificações penais

– corrupção (“pelo recebimento de vantagem indevida do Grupo OAS em decorrência do contrato do Consórcio CONEST/RNEST com a Petrobrás”)

– lavagem de dinheiro (“envolvendo a ocultação e dissimulação da titularidade do apartamento 164-A, triplex, e do beneficiário das reformas realizadas”).

Provas Documentais

Um monte de documento sobre tratativas para compra de um apartamento no condomínio do Guarujá (nenhum registro de propriedade, nada que indique que o casal tenha obtido sequer a posse do tal triplex) e uma matéria do jornal o globo (sim, acreditem se quiser: há nove passagens na sentença que fazem remissão a uma matéria do jornal O Globo como se prova documental fosse).

Esse conjunto de “provas documentais” comprovaria que o ex-presidente Lula era o “proprietário de fato” do apartamento.

Mas ainda faltava ligar o caso à Petrobras (a tarefa não era assim tão simples, porque a própria denúncia do Ministério Público do Estado de São Paulo — aquela mesmo que citava Marx e “Hegel” — refutava essa tese)…

Prova Testemunhal

Aí entra a palavra dos projetos de delatores Léo Pinheiro e um ex-diretor da OAS para “comprovar” que o apartamento e a reforma seriam fruto de negociatas envolvendo a Petrobras.

Não há nenhuma prova documental para comprovar essas alegações, apenas as declarações extorquidas mediante constante negociação de acordo de delação premiada (veremos adiante que foi um “acordo informal”).

A Corrupção

Eis o tipo penal de corrupção:

Art. 317 – Solicitar ou receber, para si ou para outrem, direta ou indiretamente, ainda que fora da função ou antes de assumi-la, mas em razão dela, vantagem indevida, ou aceitar promessa de tal vantagem

Portanto, deve-se comprovar basicamente:

– solicitação, aceitação da promessa ou efetivo recebimento de vantagem indevida; e
– Contrapartida do funcionário público.

No caso, o ex-presidente foi condenado “pelo recebimento de vantagem indevida do Grupo OAS em decorrência do contrato do Consórcio CONEST/RNEST com a Petrobrás”.

O pressuposto mínimo para essa condenação seria a comprovação:

– do recebimento da vantagem (a tal “propriedade de fato” do apartamento); e
– da contrapartida sobre o contrato do Consórcio CONEST/RNEST com a Petrobras.

Correto ?

Não.

Como não houve qualquer prova sobre a contrapartida (salvo declarações extorquidas de delatores), o juiz se saiu com essa pérola:

“Basta para a configuração que os pagamentos sejam realizadas em razão do cargo ainda que em troca de atos de ofício indeterminados, a serem praticados assim que as oportunidades apareçam.”

E prossegue, praticamente reconhecendo o equívoco da sua tese: “Na jurisprudência brasileira, a questão é ainda objeto de debates, mas os julgados mais recentes inclinam-se no sentido de que a configuração do crime de corrupção não depende da prática do ato de ofício e que não há necessidade de uma determinação precisa dele”.

Ou seja, como não dá pra saber em troca de que a OAS teria lhe concedido a “propriedade de fato” do triplex, a gente diz que foi em troca do cargo pra que as vantagens fossem cobradas “assim que as oportunidades apareçam” e está tudo certo pra condenação !

Para coroar, as pérola máxima da sentença sobre o crime de corrupção:

– “Foi, portanto, um crime de corrupção complexo e que envolveu a prática de diversos atos em momentos temporais distintos de outubro de 2009 a junho de 2014, aproximadamente”.

Haja triplex pra tanta vantagem…

“Não importa que o acerto de corrupção tenha se ultimado somente em 2014, quando Luiz Inácio Lula da Silva já não exercia o mandato presidencial, uma vez que as vantagens lhe foram pagas em decorrência de atos do período em que era Presidente da República”.

Haja crédito pra receber as vantagens até 4 anos depois do fim do mandato…

Lavagem de Dinheiro

A condenação por corrupção se baseia em provas inexistentes, mas a pior parte da sentença é a condenação pelo crime de lavagem de dinheiro.

Hipótese condenatória: lavagem de dinheiro “envolvendo a ocultação e dissimulação da titularidade do apartamento 164-A, triplex, e do beneficiário das reformas realizadas”.

Ou seja, o ex-presidente Lula teria recebido uma grana da OAS na forma de um apartamento reformado e, como não estava no nome dele, então isso seria lavagem pela “dissimulação e ocultação” de patrimônio.

Isso é juridicamente ridículo.

Lavagem é dar aparência de licitude a um capital ilícito com objetivo de reintroduzir um dinheiro sujo no mercado. Isso é “esquentar o dinheiro”. Exemplo clássico: o cara monta um posto de gasolina ou pizzaria e nem se preocupa com lucro, só joga dinheiro sujo ali e esquenta a grana como se fosse lucro do negócio.

Então não faz o menor sentido falar em lavagem nesses casos de suposta “ocultação” da grana. Do contrário, o exaurimento de qualquer crime que envolva dinheiro seria lavagem, percebem ?

Não só corrupção, mas sonegação, roubo a banco, receptação, furto… Nenhum crime patrimonial escaparia da lavagem segundo esse raciocínio, pq obviamente ninguém bota essa grana no banco !

Delação Informal (ilegal) de Léo Pinheiro

Nesse mesmo processo, Léo Pinheiro foi condenado a 10 anos e 8 meses (só nesse processo, pois há outras condenações que levariam sua pena a mais de 30 anos).

Mas de todas as penas a que Léo Pinheiro foi condenado (mais de 30 anos) ele deve cumprir apenas dois anos de cadeia (já descontado o período de prisão preventiva) porque “colaborou informalmente” (ou seja, falou o que queriam ouvir) mesmo sem ter feito delação premiada oficialmente.

Ou seja, em um inédito acordo de “delação premiada informal”, ganhou o benefício de não reparar o dano e ficar em regime fechado somente dois anos (independentemente das demais condenações).

Detalhes da sentença:

“O problema maior em reconhecer a colaboração é a falta de acordo de colaboração com o MPF. A celebração de um acordo de colaboração envolve um aspecto discricionário que compete ao MPF, pois não serve à persecução realizar acordos com todos os envolvidos no crime, o que seria sinônimo de impunidade.” –> delação informal

“Ainda que tardia e sem o acordo de colaboração, é forçoso reconhecer que o condenado José Adelmário Pinheiro Filho contribuiu, nesta ação penal, para o esclarecimento da verdade, prestando depoimento e fornecendo documentos” –> benefícios informais

“é o caso de não impor ao condenado, como condição para progressão de regime, a completa reparação dos danos decorrentes do crime, e admitir a progressão de regime de cumprimento de pena depois do cumprimento de dois anos e seis meses de reclusão no regime fechado, isso independentemente do total de pena somada, o que exigiria mais tempo de cumprimento de pena” –> vai cumprir apenas dois anos

“O período de pena cumprido em prisão cautelar deverá ser considerado para detração” –> desses dois anos vai subtrair o tempo de prisão preventiva

“O benefício deverá ser estendido, pelo Juízo de Execução, às penas unificadas nos demais processos julgados por este Juízo” –> ou seja, de todas as penas (mais de 30 anos) ele irá cumprir apenas dois anos em regime fechado…

Traumas e prudência

Cereja do bolo: o juiz diz que “até caberia cogitar a decretação da prisão
preventiva do ex-Presidente Luiz Inácio Lula da Silva”, mas “considerando que a prisão cautelar de um ex-Presidente da República não deixa de envolver certos traumas, a prudência recomenda que se aguarde o julgamento pela Corte de Apelação antes de se extrair as consequências próprias da condenação”.

É a prova (agora sim, uma prova !) de que não se julga mais de acordo com a lei, mas pensando nos traumas e na (im)prudência…

_______

Independentemente da sua simpatia ideológico-partidária, pense bem antes de aplaudir condenações dessa natureza.

Eis o processo penal de exceção: tem a forma de processo judicial, mas o conteúdo é de uma indisfarçável perseguição ao inimigo !

Muito cuidado para que não se cumpra na pele a profecia de Bertolt Brecht e apenas se dê conta quando estiverem lhe levando, mas já seja tarde e como não se importou com ninguém… (Fernando Hideo Lacerta, do Vi o Mundo)

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