A autora de “A torre das guerreiras”, Ana Maria Ramos Estêvão
Ainda que tenha como tema um período histórico sofrido, de exílios, violência, torturas e perdas humanas, o livro de Ana Maria Ramos Estevão, uma de minhas parceiras de resistência enquanto vivemos intermináveis meses encarceradas no Presídio Tiradentes, em São Paulo, entristece-nos pelas denúncias que voltam à tona, mas não nos deprime. Pelo contrário, consegue ser lírico, de um lirismo improvável, mas que tem o aroma agradável de um relato cheio de sinceridade.
Comove pela honestidade e pela capacidade que a autora tem de, mesmo em meio ao ódio e à brutalidade das torturas com que nós, presos políticos, fomos tratados, encontrar, onde preponderava o sofrimento, pequenas alegrias e motivos para acreditar na humanidade quando a rotina era a banalidade do mal.
Neste livro não há rancor e ressentimento, apenas o desejo de que aquelas tragédias – não apenas a tragédia do país, mas os dramas pessoais a que Ana Maria assistiu e viveu – não sejam esquecidas pelas atuais gerações. Que sejam lembradas sempre para que não se repitam. Como ela mesma afirma, “sinto-me no dever moral de registrar estas memórias, antes que o tempo as apague e não reste nada mais que a lembrança difusa da dor que esta escrita pretende, senão extinguir, ao menos, acalmar.”
Nós, que dividimos a Torre das Donzelas, ou “das Guerreiras”, como Ana Maria decidiu renomear, só temos a agradecer por ela ter adotado a missão de preservar as suas memórias. Parte delas também é nossa. As lembranças deste livro ressaltam e valorizam, em meio à crueldade de uma ditadura que brutalizava suas vítimas, pequenos e grandes gestos de solidariedade e amizade entre militantes muito jovens – tínhamos, a maioria, entre 20 e 25 anos –, todas dispostas a sonhar com outro país e com coragem de lutar por ele.
Com justiça, este livro aponta o dedo acusador também para os que, mesmo sendo civis, participaram alegremente das sessões de sevícias, oferecendo apoio aos torturadores fardados, e que “riam cinicamente enquanto as pessoas sofriam e gritavam. Esse não era o trabalho deles: eram fascistas voluntários”.
Mas também conta a história de rara beleza, de que só a grandeza humana é capaz. “Nunca abrimos mão do riso, da alegria e da civilidade como estratégia de sobrevivência, haja vista que, para garantir o moral elevado, o humor era fundamental. Cantar também era nosso costume. Cantávamos o tempo todo: por tristeza, para avisar das novidades, quando alguém chegava, quando alguém saía. As cantorias estavam sempre presentes”.
Canções que poderiam ser canções de amor, como a de Tânia, que cantava perto da pequena janela para ser ouvida por seu companheiro Gabriel, que, com câncer, estava preso no mesmo local, em cela distante. Todas fazíamos silêncio para que Tânia fosse ouvida pelo marido e, quando, um dia, Ana Maria perguntou por que cantava todas as noites, ela respondeu: “Assim ele me ouve e sabe que estou bem”.
Apesar de pertencer à Igreja Metodista desde menina, onde iniciou sua militância política, Ana Maria, como todas nós, também passou por momentos em que se rendeu ao desabafo do desespero, como quando diz que “na tortura não existe sujeito, ele foi anulado, […] foi rebaixado ao estado de ‘coisa’. […] Deus não existe na tortura, ficamos sós, completamente sós”.
Depois de ter sido barbaramente torturada na Oban e ter passado nove meses na Torre das Guerreiras, a autora deste livro foi presa de novo e ainda sofreu o exílio, durante o qual, pelo menos, teve a alegria de conhecer um ídolo, Paulo Freire, a quem brindou com um jantar tipicamente nordestino.
A brava Ana Maria soube enfrentar o pior, e felizmente está aqui para nos contar, já que muitas não tiveram a mesma chance. Ela explica que “o fio condutor destas memórias é a vida de quem sobreviveu e de quem precisou aprender a mentir para defender a sua vida e a de seus companheiros, mesmo porque, em algumas situações, as pequenas verdades podem ser perigosas”. Sua razão de viver e sua gana de sobreviver ela justifica numa frase que é a perfeita tradução deste livro: “A luta e a esperança, sempre! Viver é muito perigoso, mas é muito bom!”.
Ana Maria não apenas ainda vive como se mantém íntegra, hoje professora da Unifesp e ativista no Sindicato Nacional dos Docentes das Instituições de Ensino Superior (Andes). Quem passou pela Torre das Guerreiras foi marcada pelas dores da vida e, claro, pelas imposições do tempo, mas permanecem entre nós o respeito mútuo e o compromisso com a democracia e com a luta por um país melhor.
Boa leitura a todos!
Ana Maria Ramos Estevão é professora do departamento de Serviço Social da UNIFESP da Baixada Santista, além de membro do ANDES (Sindicado dos Docentes das Instituições de Ensino Superior). Em decorrência de sua militância no período da Ditadura Militar, Ana Maria foi presa três vezes pela repressão e torturada. Foi ex-colega de cela de Dilma Rousseff no presídio Tiradentes, em São Paulo. Recentemente, lançou o livro “Torre das Guerreiras e Outras Memórias“, sobre as perseguições e torturas sofridas durante o regime militar, que conta com o prefácio escrito pela ex-presidente Dilma: “Neste livro não há rancor, apenas o desejo de que aquelas tragédias não sejam esquecidas pelas atuais gerações”. Nesta entrevista, Ana Maria conversa com a equipe de redação do Jornal GGN sobre seu novo livro, sobre o período da Ditadura Militar e sua prisão e o momento atual de negação da história. 📌 A democracia brasileira é coisa frágil. Defendê-la requer um jornalismo capaz de lançar luz sobre a escuridão.
Recentemente o Supremo Tribunal Federal declarou, no âmbito da ADPF nº 334, proposta pela PGR ainda em 2015, a inconstitucionalidade da prisão especial prevista no artigo 295, inciso VII, do Código de Processo Penal. A decisão se deu por rara unanimidade do pleno, tendo o ministro Alexandre de Moraes como relator.
O fundamento central da decisão baseou-se na necessidade de se observar o princípio constitucional da isonomia, em que "[a] extensão da prisão especial a essas pessoas [diplomadas] caracteriza verdadeiro privilégio que, em última análise, materializa a desigualdade social e o viés seletivo do direito penal e malfere preceito fundamental da Constituição que assegura a igualdade entre todos na lei e perante a lei". (grifei)
A questão parece ser, em um primeiro olhar, pacífica. Um "easy case". E o consenso se fez presente, de fato, na unanimidade do pleno.
Mas exercitando meu resoluto senso incomum — sem deixar de lado meu local de fala como amicus da corte —, ouso discordar das razões de uma decisão como essa.
Vejamos.
Uma isonomia às avessas?
Todos sabemos que soa muito bem falar em "isonomia" quando o mérito é a "impunidade", o "combate" (sic) à criminalidade, etc. Combater privilégios é uma obrigação republicana.
A questão que se deixa de lado, contudo, quando se decide sobre qualquer tema relacionado ao sistema carcerário brasileiro, é... o próprio sistema carcerário!
Explico. Como sabemos, no mesmo ano em que a ação que discuto aqui foi proposta, 2015, o Supremo Tribunal declarou o sistema prisional em Estado de Coisas Inconstitucional (ADPF 347). Na época me manifestei contrariamente ao modelo de decisão aplicado, uma vez que de difícil — ou impossível — eficacialidade (sugiro a leitura do texto que escrevi — ver aqui).
Não parece desarrazoado pensar, hoje, que, se o sistema prisional é "inconstitucional", não faz muito sentido retirar a previsão de prisão especial para quem possua curso superior. Por isso é que se trata de uma isonomia às avessas, ou "nivelada por baixo". O jornalista Elio Gaspari, falando a sério ou por ironia, disse que, ao ser extinta essa prisão especial, os presídios melhorariam, porque gente do andar de cima faria com que as condições melhorassem em face da possibilidade desse segmento frequentar os ergástulos de Pindorama.
Não creio muito nesse tipo de "dialética". Seria mais ou menos como um marxista dizer que assalto acirra a luta de classes ou que não dar esmola acirra a revolução. Isto é: prender pessoas "do andar de cima" sem o "privilégio" da prisão especial antes da condenação definitiva poderá acarretar melhorias? Não creio. Porque o ponto não é esse.
Se o argumento é a isonomia, não funciona, porque advogados e autoridades continuarão a ter esse direito "especial". Logo, talvez a decisão do STF funcionasse se fosse, mesmo, para todos.
Eu não concordo. Sou a favor da prisão especial enquanto os presídios continuarem como estão (em Estado de Coisas Inconstitucional — afinal, foi o STF quem assim decidiu!).
No giro do raciocínio, penso que não deveria nem mesmo haver "prisão especial", pois esse raciocínio já parte do pressuposto de que há uma prisão "geral" — leia-se, um tipo de prisão que não seja condigna e humanitária.
Prisão deveria ser uma só, para qualquer prisioneiro, provisório ou definitivo, excetuando-se, evidentemente, pessoas que exigem algum cuidado especial do Estado, seja para assegurar a sua própria segurança ou a dos demais presos. Isso, sim, que poderíamos chamar de isonomia.
O contrassenso jurisdicional
Todo o resto é contrassenso jurisdicional, pois ao fim e ao cabo o Supremo Tribunal está, nas razões do acórdão da ADPF 334, decidindo contra o mérito da ADPF 347 (a do Estado de coisas Inconstitucional). Parece-me difícil não ligar uma decisão à outra.
Continuo a achar que aquela decisão (a do ECI) também teve caráter meramente retórico, pois declarar o sistema carcerário um estado de coisas inconstitucional não resolve(u) o problema. É como proibir o mosquito da febre amarela.
Garantir aos acusados que suas garantias processuais penais sejam cumpridas, por outro lado, resolve(ria). Mas a decisão veio e fez jurisprudência. Logo, o precedente do Estado de Coisas Inconstitucional tem de ser respeitado. Portanto, se há um "estado de coisas inconstitucional" nas/das prisões brasileiras, dever-se-ia diminuir o número de detentos, não aumentar. Pior: já tem muita gente querendo acabar com a presunção da inocência.
Quem ler a Lei de Execuções Penais perceberá que, fosse obedecida à risca, dispensaríamos prisão especial. O problema é a triste realidade. A triste realidade de um sistema já declarado inconstitucional e que, na prática, continua degradado e degradante. A decisão tomada na ADPF 334 mira na isonomia, mas a acerta na incoerência, pois o cumprimento da lei — para todos — é que gera a isonomia.
De todo modo, torçamos para que os órgãos competentes — incluindo neles o legislativo — impeçam que novos projetos encarceradores e punitivistas avancem; o executivo, a partir de políticas penitenciárias e de segurança pública efetivas; e o judiciário, cumprindo a LEP com rigor e efetivando garantias processuais a todos (vide o contraexemplo do Rio Grande do Norte, pois não?).
Apenas com o tempo poderemos atestar o quão retórico ou efetivo foram decisões como a ADPF 347 e 334.
Numa palavra final, vale a ironia do jornalista e filósofo Hélio Schwartsman, da Folha de S.Paulo. Como ele é "apenas" (entendamos bem as aspas) alguém com curso superior (portanto, sem direito à prisão especial!), sugere: "... vou reativar minha igreja, a Igreja Heliocêntrica do Sagrado EvangÉlio, e passar a distribuir ordenações sacerdotais. Com a exclusão dos que tem formação universitária do rol de beneficiados, o preço do título de ministro religioso deve subir".
Nota: para quem não sabe, pastores continuam com direito a prisão especial. Isto é: resta um imenso rol de pessoas com direito à prisão especial.
No próximo dia 31 de março, o golpe de 1964 completa 59 anos. É sempre importante recordar que não faltaram juristas que colaboraram com a ditadura militar. Doutrinadores, juízes, OAB etc., exerceram papeis destacados na configuração da legalidade autoritária utilizada na institucionalização da ditadura. Contudo, na outra margem do rio, também é importante recordar que um pequeno número de advogados combateu o bom combate em defesa da vida e da liberdade dos presos políticos. Nas palavras de D. Paulo Evaristo Arns, "um grupo de profissionais do Direito que, naquela época de muitos temores, arriscaram suas próprias vidas e carreiras profissionais para se dedicarem a defender, na grande maioria dos casos gratuitamente, as vítimas da violência política"[1].
Com uma pequena margem de manobra e fazendo uso da interpretação mais liberal possível do aparato jurídico utilizado pela repressão [2], os advogados dos presos políticos conseguiram estabelecer uma forma de resistência.
Desde o golpe, os militares e seus juristas começaram a traçar uma engenharia constitucional que, além de favorecer a repressão, também procurava oferecer ao regime um verniz de Estado de Direito para angariar legitimidade perante a opinião pública, seja internamente ou internacional. Era importante mostrar para as nações ocidentais que o Brasil permitia a existência de dois partidos (governo e oposição); que os Poderes funcionavam normalmente; que os presidentes militares não agiam como os caudilhos existentes na América Latina; que os presos políticos eram devidamente processados na Justiça Militar; e que seus recursos inclusive poderiam chegar até o órgão de cúpula do Poder Judiciário, o Supremo Tribunal Federal.
Isso não quer dizer que a ditadura brasileira deixou de usar a estratégia da guerra suja contra seus opositores. O sequestro, a tortura, o encarceramento, a utilização de sítios clandestinos, o assassinato e o desaparecimento também fizeram parte das engrenagens de seus órgãos de repressão. Em vários casos o regime sequer demonstrou alguma preocupação em formalizar a prisão e abrir um processo na Justiça Militar. Foi o que aconteceu com o comunista David Capistrano da Costa, que, ao tentar retornar para o Brasil em 1974, acabou assassinado num dos principais centros clandestinos de tortura do regime, a conhecida casa da morte de Petrópolis. Ainda segundo relato prestado por um ex-integrante do DOI-Codi, o agente Marival Dias Chaves do Canto, o corpo de Capistrano foi esquartejado e jogado num rio [3].
As prisões muitas vezes aconteciam sem qualquer tipo de controle judicial. Os órgãos de repressão não precisavam pedir autorização ao Judiciário para realizar uma busca e apreensão ou para efetuar uma prisão, pois no momento em que entrava o trabalho da informação e da contrainformação nada podia ser formalizado através de um inquérito. Como muitas vezes a prisão funcionava como um sequestro, os advogados não recebiam qualquer informação sobre a situação de seus clientes. O encontro entre o preso político e seu defensor ocorria somente quando aquele era remetido à Secretaria de Segurança Pública.
De 1964 até o final do ano de 1968 ainda existia uma chance considerável dos presos políticos serem libertados por meio do habeas corpus. Após a suspensão desse remédio constitucional para crimes enquadrados na lei de segurança nacional, os advogados tiveram que buscar outros meios não apenas para defender a liberdade dos presos políticos, como também para levantar informações sobre suas localizações, já que a suspensão do habeas corpus possibilitou a ampliação do número de encarcerados e criou enormes dificuldades para que os advogados localizassem seus clientes.
Foi a partir daí que os advogados passaram a apresentar petições à Justiça Militar que tinham o formato de habeas corpus, mas não podiam ser chamadas de habeas corpus. Eram os chamados habeas corpus de localização [4]. Se a petição não era suficiente para alcançar a liberdade do preso político, pelo menos ela servia para retirá-lo das sombras e forçar um registro formal da sua situação. De acordo com o advogado Mario de Passos Simas, "nós (os advogados) nos valíamos de tudo, de mil requerimentos, de centenas de petições e reclamávamos perícias, invocávamos autoridades estrangeiras, entidades internacionais como a Anistia Internacional. Tudo que era válido era exercido"[5].
Como bem observou D. Paulo Evaristo Arns, "[...] um dos maiores esteios dos presos e de suas famílias eram seus advogados"[6]. Reunindo pessoas de diversas tendências ideológicas, como liberais, conservadores e socialistas, esses advogados estabeleceram uma convergência política e jurídica fundamental para uma resistência não apenas dentro Justiça Militar, mas também por meio do debate feito pela imprensa; das denúncias de tortura feitas em organismos internacionais; da defesa da anistia; e da construção de pontes para a redemocratização. Os advogados da resistência não chegaram a formar uma organização para a defesa dos presos políticos, mas, sem dúvida alguma, ajudaram a movimentar a resistência civil contra a ditadura.
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[1] ARNS, Paulo Evaristo. Prefácio. In: SÁ, Fernando; MUNTEAL, Oswaldo; MARTINS, Paulo Emílio. Os advogados e a ditadura de 1964: a defesa dos perseguidos políticos no Brasil. Rio de Janeiro: Editora Vozes e PUC Rio, 2010, p. 8.
[2] Foi nessa conjuntura autoritária que o uso alternativo do direito surgiu como um meio de resistência dos juristas contra a ditadura. De acordo com Lenio Streck, "o movimento do direito alternativo se colocava, então, como uma alternativa contra o status quo. Era a sociedade contra o Estado. Por isso, em termos teóricos, era uma mistura de marxistas, positivistas fáticos, jusnaturalistas de combate, todos comungando de uma luta em comum: mesmo que o direito fosse autoritário, ainda assim se lutava contra a ditadura buscando 'brechas da lei', buscando atuar naquilo que se chamam de 'lacunas' para conquistar uma espécie de 'legitimidade fática'". Para mais detalhes, ver sua entrevista concedida para o Instituto Humanitas Unisinos: Uma análise sociológica do direito. Disponível em: http://www.ihuonline.unisinos.br/index.php?option=com_content&view=article&id=2758&secao=305. Acessado em: 24/03/2023.
[4] FERNANDES, Fernando Augusto Henriques. Voz humana: a defesa perante os tribunais da República. Rio de Janeiro: Revan, 2004, p. 224. De acordo com Nilo Batista, "O habeas corpus, depois do AI-5, se converteu num macabro teste de sobrevivência dos presos. Você requeria um habeas corpus e indicava como autoridades coatoras o Cenimar, o CISA, o DOI-Codi e o Dops. Quando algum deles dizia que o paciente estava preso, significava que estava vivo. Quando a resposta vinha negativa, como no caso do Stuart (Angel Jones), era um mau presságio porque a pessoa tinha sido morta, tinha sido executada, morrido na tortura". SPIELER, Paula. Entrevista com Nilo Batista. In: SPIELER, Paula; QUEIROZ, Rafael Mafei Rabelo (coord.). Advocacia em tempos difíceis: ditadura militar 1964-1985. Curitiba: Edição do autor, 2013, p. 653. Disponível em: http://bibliotecadigital.fgv.br/dspace/bitstream/handle/10438/13745/Advocacia%20em%20tempos%20dif%C3%ADceis.pdf?sequence=1. Acessado em: 24/3/2023.
[5] MOURA, Ana Maria Straube de Assis; GONZAGA, Tahirá Endo. Mario de Passos Simas: mais que um advogado, um patrono. In: SÁ, Fernando; MUNTEAL, Oswaldo; MARTINS, Paulo Emílio. Os advogados e a ditadura de 1964: a defesa dos perseguidos políticos no Brasil. Rio de Janeiro: Editora Vozes e PUC Rio, 2010, p. 80.
[6] ARNS, Paulo Evaristo. Prefácio. In: SÁ, Fernando; MUNTEAL, Oswaldo; MARTINS, Paulo Emílio. Os advogados e a ditadura de 1964: a defesa dos perseguidos políticos no Brasil. Rio de Janeiro: Editora Vozes e PUC Rio, 2010, p. 8.
Para estes dias que antecedem a maior eleição do Brasil, divulgo o capítulo pós-escrito que publiquei na edição norte-americana do romance “A mais longa duração da juventude”. Nas últimas páginas da tradução de Peter Lownds , “Never-Ending Youth”, acrescentei estas linhas:
Os cartazes tomam conta da cidade nos últimos tempos.
“Parem o incêndio das florestas no Brasil”
“Queremos vacinas!”
“Fora desprezo pelas mortes do coronavírus”
“Fora, Bolsonaro”
Eu os vejo e penso. Todos os militantes socialistas do Brasil, nos anos da ditadura, jamais esperaram completar a idade que agora atravessamos ao ver os protestos que voltam às ruas e aos quais voltamos. Antes, a morte estava ali, aqui, já, hoje ou logo amanhã de manhã. As prisões, torturas e assassinatos de companheiros se sucediam, e chegavam cada vez mais perto de nós mesmos, dos camaradas da última sexta-feira de carnaval. Por que nos poupariam o fim? Daí que vivíamos todos sob alta tensão. Daí que vivíamos todos como se ganhássemos as últimas horas do último dia. Mas sobrevivemos, só Deus e o Diabo sabem como.
Agora, sob um governo fascista, problemas que julgávamos resolvidos voltam à tona. O que será dos nossos direitos? O que será do trabalho dos nossos filhos? Haverá um mundo digno do nome para as novas gerações? Para essas perguntas bem sabemos a resposta: vamos à luta, não podemos submergir em um mar de angústia e desesperança. O problema é que no contexto geral desse fascismo vêm as perguntas particulares para a nossa idade: como podemos encarar o futuro? Que planos faremos? Que perspectivas temos?
Para quem atinge além dos 70 anos, o futuro a ser vivido é curto, pode até nem atingir o fim deste dia. Nesse aspecto, é uma repetição dos anos de ditadura, em inesperada semelhança. No entanto, a resposta hoje é bem diferente daqueles dias. Hoje, devemos encarar o futuro sem lhe destacar o prazo certo, pequeno de tempo. Para o breve futuro caminhamos na certeza de que até o fim viveremos com a força do que sabemos fazer e acreditamos. Ateus, materialistas, não teremos o céu depois da morte. O céu é nosso trabalho, aqui, agora, de hoje até o último segundo. O inferno é negar o que temos de melhor em nossa alma, porque de ideias e sentimentos somos feitos.
Mas que planos faremos? Para tão curto espaço de horas o plano é amar, beijar as pessoas, dizer-lhes o que nunca lhes dissemos, porque temos a consciência do próximo mergulho que não projetamos. E trabalhar, e trabalhar, e trabalhar para realizar o melhor que somos. Admitamos, esse é um grande plano. Pois devemos dividir e multiplicar as lições que acumulamos. Queremos aquele alto que Joaquim Nabuco expressou tão genial em seu fim:
– Doutor, tudo, menos perder a consciência!
Se perdemos a consciência, já não somos. E quando a perdermos, não seremos. Não deve haver lágrimas para um corpo inútil corpo, sem identidade. Então o plano é ser, o ser pleno, o plano é pleno. Até onde possamos sorver a plenitude.
Mas que perspectivas temos? Daqui onde estamos, nesta hora, que olhar podemos lançar para o porvir? Uma resposta está no que vimos há pouco, nas linhas anteriores.
A resistência, que é vida, se faz na brevidade pelas ações e trabalho dos que partiram e partem. Mas nós, os que ficamos, não temos a imobilidade da espera do nosso trem. Nós somos os agentes dessa duração, o trem não chegará com um aviso no alto-falante, ‘atenção, senhor passageiro, chegou a sua hora’. Até porque talvez chegue sem aviso, e não é bem o transporte conhecido. O trem é sempre de quem fica. E porque somos agentes da duração, a nossa vida é a resistência ao fugaz.
Por isso a nossa mais longa juventude protesta nestes dias. Voltamos às ruas, voltamos à luta, aqui, agora, em palavras, em ações e arte, de todas as maneiras. Canta de novo para todos nós, ó Ella Fitzgerald! Estamos voltando.
O então deputado Jair Bolsonaro exibe em 2004 um cartaz em seu gabinete onde protesta contra a procura dos restos mortais dos guerrilheiros do Araguaia.
Grupo do Ministério Público Federal pretende impedir que órgão criado por Fernando Henrique Cardoso seja desmantelado pelo governo sem que a procura das vítimas tenha sido concluída
por Marcelo Godoy
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Caro leitor,
O governo de Jair Bolsonaro pretende pôr um fim à Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMDP). Trata-se de velho desejo do capitão. Para tanto, o presidente da comissão, Marco Vinícius Pereira de Carvalho, convocou a 84.ª reunião do órgão para o próximo 28 de junho. Carvalho é um advogado bolsonarista simpatizante do regime militar, que foi nomeado para o cargo pela então ministra Damares Alves. Antes, ele promoveu ações em que tentava impedir a posse de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) como ministro da Casa Civil, em 2016, e o impeachment do ministro do STF Dias Toffoli.
O plano é usar a reunião do dia 28 para aprovar um relatório final dos trabalhos para fazer desaparecer a comissão. Fundada em 1995 no governo de Fernando Henrique Cardoso (PSDB), ela foi o resultado de um acordo entre o ministro da Justiça, Nelson Jobim, e o ministro do Exército, Zenildo Lucena. Tratava-se de cumprir o que estava nas disposições transitórias da Constituição de 1988, reconhecendo a responsabilidade do Estado brasileiro no desaparecimento e na morte de presos políticos. Ao mesmo tempo, mantinha-se a Lei de Anistia, de 1979, que impedia a punição dos torturadores e assassinos de prisioneiros sob custódia.
Após 27 anos de trabalhos, poucos corpos foram localizados. Surgiram relatos de militares e de policiais, além de documentos, que ajudaram a esclarecer dezenas de crimes, como o sequestro, tortura, morte e desaparecimento do ex-deputado federal Rubens Paiva. Também foi possível identificar na vala comum do cemitério de Perus, em São Paulo, as ossadas de cinco desaparecidos políticos: Dênis Casemiro, Frederico Antonio Mayr, Flávio de Carvalho Molina, Dimas Antonio Casemiro e Aluísio Palhano Ferreira.
Quatro deles foram assassinados pelo Destacamento de Operações de Informações (DOI), do 2.º Exército, e um pelo delegado Sérgio Paranhos Fleury, do Dops paulista. Na região do Araguaia, apenas dois corpos dos mais de 60 desaparecidos na guerrilha do PCdoB foram localizados, mesmo depois de o major Sebastião Curió confessar 42 execuções de prisioneiros ao jornalista Leonencio Nossa.
A Lei 9.140/95, que criou a comissão, previa o seu fim quando os trabalhos estivessem concluídos. Em 2019, ao deixar a presidência da CEMDP, a procuradora da República Eugênia Augusta Gonzaga consignou em relatório o que ainda precisava ser feito. O doutor Carvalho, que a substituiu, considerou que tudo o que se fizera até então estava errado. Seu objetivo era encontrar supostas irregularidades para desqualificar o trabalho. Dizia que a procura de corpos devia se limitar às pessoas cujas famílias requisitaram isso e apresentaram indícios de onde estariam segundo o prazo. Era uma espécie de “marco temporal” dos desaparecidos, um jeitinho para se furtar ao trabalho humanitário.
Apoiado no colegiado por dois oficiais do Exército, o doutor bolsonarista foi mais longe: chegou a questionar por que certidões de óbitos foram entregues aos familiares. O doutor Carvalho fez isso após a comissão entregar o atestado de óbito do estudante Fernando Santa Cruz, militante da Ação Popular - contrário à luta armada - ao seu filho, o então presidente da OAB, Felipe Santa Cruz. O ato provocou a reação de Bolsonaro e a demissão de Eugênia. Fernando foi assassinado por militares do Centro de Informações do Exército (CIE), liderados por um outro tipo de doutor que habitava os porões do regime: o Doutor Cesar.
Com a repercussão do caso, Bolsonaro inventou a mentira desmentida por documentos do próprio Exército de que Fernando mudara de lado, traíra os colegas. Agora, o doutor Carvalho quer a interpretação da lei acima do direito humanitário, enterrando a esperança dos familiares com a ideologia da extrema-direita. Rompe-se, assim, o acordo político, tratado pelos seus autores como parte do processo de pacificação, conforme explicou à coluna o ex-ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Eros Grau. Relator da ação que pedia no STF a derrubada da Lei de Anistia, Grau deu o voto que manteve a medida.
Para o Grupo de Trabalho Memória e Verdade, da Procuradoria da República, entregar os corpos às famílias é dever humanitário que vai além do que diz a Lei 9.140/95. Os procuradores prepararam um parecer contrário ao encerramento da comissão, pois acreditam que o trabalho dela não está concluído. Para eles, a CEMDP foi ratificada pela Comissão de Anistia e pela Comissão Nacional da Verdade, bem como pela condenação do Brasil na Corte Interamericana dos Direitos Humanos (CIDH) nos casos Gomes Lund e Vladimir Herzog.
A procuradora da República Eugênia Gonzaga. em São Paulo
Diz o parecer: “o enfrentamento das questões relativas aos mortos e desaparecidos políticos não pode ser realizado somente com base nas Leis n° 9.140/1995 e 10.536/2002. Elas evidentemente não esgotam o tratamento da matéria, por isso devem ser analisadas e interpretadas em conjunto com os demais instrumentos aplicáveis. Uma conclusão em sentido contrário, levaria ao paradoxo de se conferir uma proteção insuficiente para familiares de mortos e desaparecidos políticos, o que é vedado”.
Os procuradores usam a Convenção de Genebra, da qual o Brasil é signatária no parecer. “Entre os vários princípios adotados nas referidas convenções, cabe citar: a) feridos e enfermos serão recolhidos e tratados; b) mortos devem ser previamente identificados e enterrados de modo a permitir a sua identificação futura; c) não deve haver segredos sobre a localização de corpos, tudo deve ser relatado; d) os Estados têm o dever de emitir atestados e certidões de óbito dos atingidos pelo conflito”. Tudo o que o Doutor César desrespeitou.
O parecer prossegue afirmando que as normas destinadas a situações de guerras declaradas entre nações são “em tudo aplicáveis a vítimas de conflitos internos, inclusive integrantes de movimentos de resistência, de libertação ou de guerrilha, conforme mais tarde ficou claro nos protocolos adicionais às convenções acima”. Esses protocolos, aprovados em 1949, foram ratificados no Brasil pelo Decreto 849, de 1993. “Ora, agentes da ditadura brasileira, vigente entre 1964 e 1985, sempre justificaram as prisões ilegais e assassinatos praticados com base na ideia de que havia uma guerra interna. Porém, ainda que verídica essa versão, nota-se que não foram cumpridos os deveres acima por parte do Estado”.
Ou seja, o Doutor César e seus homens cometeram crimes de guerra ao desaparecer dolosamente com os corpos e executar prisioneiros sob sua custódia. “Desse modo, a instauração da CEMDP, com a função de identificar mortos, localizar corpos ocultos, não entregues às famílias, bem como de emitir os competentes atestados de óbito, teve a função (ainda que tardia) de suprir as omissões do período ditatorial. Assim, tendo em vista que a situação no Brasil permanece longe de se garantir a familiares dos mortos e desaparecidos políticos seus direitos, não há como se defender a extinção do único órgão existente no País com essa finalidade”, conclui o parecer dos procuradores.
Quando era deputado, Bolsonaro protestou em 2004 contra os trabalhos da Comissão. Diante de um cartaz em que um cachorro mordia um osso, o futuro presidente dizia “quem procura osso é cachorro”. O capitão debochava do sofrimento dos familiares dos mortos e desaparecidos. Em mais de uma oportunidade levou ao Congresso militares veteranos de órgãos de informação e de operações responsáveis pela prisão, tortura e morte de opositores políticos. Tratava-os como heróis, como se referia ao coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, o Doutor Tibiriçá, do DOI/II Exército e do CIE.
O coronel reformado do Exercito Carlos Alberto Brilhante Ustra presta depoimento sobre crimes durante o regime militar, na Comissão Nacional da Verdade, em Brasília
Para a procuradoria, “sequer a esfera de discricionariedade do Poder Executivo poderia respaldar uma decisão de extinção da CEMPD no momento atual”. A razão disso é que as leis, assim como as recomendações emitidas pela CNV – ainda não cumpridas – determinam que se faça o contrário. “Ou seja, em vez de extinguir um dos únicos órgãos existentes na temática, o Estado deve fortalecer esse órgão e lhe dar as condições necessárias para que possa intensificar as suas atividades”, afirmam os procuradores.
O GT Memória e Verdade, da Procuradoria Federal dos Direitos dos Cidadãos, conclui seu parecer afirmando: “Tendo em vista a possibilidade iminente de extinção da comissão, solicita à Procuradoria Regional dos Direitos dos Cidadãos (de Brasília), que promova as medidas necessárias, administrativas e judiciais, para que a CEMDP não seja extinta enquanto persistir a situação de não cumprimento das decisões da CIDH nesta seara, bem como das recomendações da CNV”. Eis aqui a reação do MPF à conduta do doutor Carvalho.
A pressa com que o governo Bolsonaro quer acabar com a comissão parece ter duas finalidades. A primeira é fazer tudo o que for possível antes de ser obrigado a deixar o poder, em caso de vitória de Luiz Inácio Lula da Silva. A outra é ter mais um trunfo para mobilizar sua base extremista com um acerto de contas com a herança do governo de FHC, considerado por Bolsonaro um “gêmeo siamês” das administrações petistas. E, para tanto, pouco importam as considerações legais e humanitárias ou a reação judicial à medida.