Apresentador, que ameaçou metralhar a deputada federal, sustentou os ataques e reforçou o discurso de ódio bolsonarista, machista, misógino, antifeminista e preconceituoso
A deputada federal Natália Bonavides (PT) tevedireito deresposta negado pelo apresentadorRatinho, que defendeu, durante um programa na sua rádio, Massa FM,“eliminá-la” com uma metralhadora.
A recusa de Ratinho foi encaminhada à Procuradoria Parlamentar da Câmara no último dia 4. ÀRevista Fórum, a assessoria de comunicação da parlamentar disse queirá à Justiça contra a negativa feita pelo apresentador.
Segundo Natália, a recusa ao direito de resposta “evidencia as mentiras contadas no programa e mostra a necessidade urgente de enfrentar a intolerância e o preconceito”.
A recusa em divulgá-la é uma confirmação daquilo que foi dito. E não esqueçamos: foram crimes!”, afirma a deputada.
Machista valentão, Ratinho sustentou ataques feitos à deputada
No texto, por meio de sua advogada, o apresentador sustenta os ataques feitos à parlamentar e argumenta que os comentários foram feitos apenas para “manifestar sua contrariedade” ao Projeto de Lei da petista que propõe alterar os termos “marido e mulher” na celebração de casamentos civis. [Esta informação de Ratinho é mentirosa. É uma informação falsa. A deputada Natalia Bonavides jamais quis alterar os termos "marido e mulher" nos casamentos civis. Essa informação inverídica de Ratinho visa indispor a deputada com as pessoas de diferentes religiões, apelando inclusive para o fanatismo.
Além disso, segundo sua defesa, Ratinho “fez uma crítica” com “linguajar popular”, sobretudo “porque julgava que existiam questões mais sérias, graves e urgentes para serem tratadas no país e que precediam o debate sobre a denominação utilizada ao final de uma cerimônia matrimonial”.
[Ratinho criticou a atuação parlamentar da deputada. Que ele trata de besterol. "Que existem questões mais sérias, graves e urgente". Natalia Bonavides trata, sim, dos mais sérios problemas nacionais. Trabalha para garantir direitos à classe trabalhadora. Atuação que Ratinho como empresário e grileiro e escravocrata condena.
Natalia luta para assegurar condições dignas de trabalho, moradia, educação, acesso à saúde e qualidade de vida. "E em tempos tão difíceis como o que vivenciamos com a pandemia, não podíamos deixar de apresentar a maior quantidade possível de propostas para proteger a maioria da população, principalmente os mais vulneráveis. Os principais exemplos dessa produção são a prorrogação da Lei Aldir Blanc, de incentivo a cultura, a aprovação do Vale Gás, que garante desconto de 50% no preço do gás de cozinha para famílias de baixa renda e a aprovação do Despejo Zero, que impede pessoas de serem despejadas de suas casas em plena pandemia"
Natalia é atuante no cenário nacional, mas não esquece o Estado que representa, o Rio Grande do Norte, e tudo faz em defesa do povo potiguar. Denunciou Natália: "A Prefeitura do Natal tomou mais uma vez os pertences, colchões e lençóis da população em situação de rua que se organiza nos arredores do Baldo. O prefeito Álvaro Dias, ao invés de tirar o pouco que essas famílias têm, tem que garantir moradia e proteção!"
Outro exemplo: "Tivemos um encontro lindo com Manuela D'Ávila em novembro, no La Luna, em Natal. Debatemos violências políticas contra as mulheres e compartilhamos vivências. Saímos com a certeza ainda maior de que a luta das mulheres seguirá ousando mudar os rumos da história, que lugar de mulher é onde ela quiser, inclusive na política, e que machistas, fascistas e racistas não passarão!".
É isso aí: a luta das mulheres contra os machistas e os misóginos do tipo dos Ratinhos preconceituosos, antifeministas, ameaçadores e assediadores. Natalia sempre defendendo os mais pobres, os mais desamparados.
No dia 9 último, esteve no 5° Encontro de Juremeiros de Natal. A atividade reuniu lideranças das religiões de matrizes africanas de todo o Rio Grande do Norte. A Jurema é uma das religiões tradicionais dos povos afro-ameríndios brasileiros e tem origem em uma guerreira indígena.
A supremacia branca do Paraná, que os Ratinhos representa, defende "metralhar" Natalia Bonavides. No Encontro com os juremeiros, Natália declarou:
7 de janeiro marca o dia da liberdade de cultos no Brasil. A data foi instituída em 1890 e é assegurada pela Constituição Federal de 1988. Apesar disso, os dados de intolerância religiosa só crescem no país.
A maior parte das agressões são contra religiões de matrizes africanas, como o Candomblé e a Umbanda. Isso revela o caráter racista que tem como pano de fundo o processo histórico de exclusão e criminalização das religiões de matriz africana no Brasil.
A religião foi a primeira forma de organização social do povo negro no período escravocrata brasileiro e sua preservação é mais uma forma de resistência.
Sigamos em defesa a concretização do respeito a diversidade religiosa.
São inúmeras as ações legislativas de Natalia Bonavides.
Policlínica Regional de Canguaretama vai beneficiar 27 municípios de toda a região!
Com R$ 2,5 milhões em recursos destinados por Natalia, a população terá um importante equipamento de saúde, que contribuirá com a melhoria dos serviços como consultas em mais de 20 especialidades.
O edital de obras já foi lançado e logo a população vai contar com a estrutura da policlínica.
A unidade contará com equipe multiprofissional, sendo ofertado o serviço de apoio técnico especializado através da enfermagem, serviço social, psicologia, fisioterapia, nutrição, fonoaudiologia, farmácia clínica e terapia ocupacional.
Bem que faz falta uma Natalia Bonavides no governo do Paraná. O único feito nacionalmente visível foi transformar ginásios e colégios em escolas cívico-militar, para agrado palaciano, adulador, cortesão a Bolsonaro que patrocina, regiamente, os programas de Ratinho. Contra tal absurdo lembro a crítica de uma liderança estudandil:
Que diabo para Ratinho é "linguajar popular"? É espalhar informações falsas, usar termos chulos? Abusar dos fake news? Quem é mais mentiroso Ratinho ou Bolsonaro?]
“Essa crítica [o termo certo é o assédio terrorista de metralhar] foi realizada na condição de um cidadão comum, sem qualquer pretensão de destratar asmulheres, realizar ameaças ou prejudicar a autora do projeto de lei, até mesmo porque o Interpelado sequer a conhecia”, diz a advogada de Ratinho.
[Na frase "sequer a conhecia" o desrespeito, a desconsideração à luta de parlamentar que tem o reconhecimento da imprensa livre, dos jornalistas que não recebem grana do Gabinete do Ódio.
Depois da fala para os fanáticos de metralhar é exibida uma foto de Natália Bonavides, e Ratinho emendou: “Feia do capeta também”.
"Feia do capeta"? ]
Além da Procuradoria da Câmara, a Casa acionou a Polícia Legislativa. Depois das ofensas e incitações de Ratinho contra a deputada, a polícia começou a apurar os ataques que a petista tem recebido nas redes sociais.
Relembre o caso
Durante o programa “Turma do Ratinho”, ao vivo, um locutor leu uma notícia sobre um Projeto de Lei da petista que propõe alterar os termos “marido e mulher” na celebração de casamentos civis. A ideia é trocar a frase “vos declaro marido e mulher” por “firmado o casamento”, já que há uniões civis de pessoas homossexuais e transexuais que não se enquadram nas definições de “marido e mulher”.
Ratinho, então, reagiu atacando a deputada. “Natália, você não tem o que fazer? Vá lavar roupa, vai fazer algo, a lavar as caixas do seu marido, a cueca dele. Isso é uma imbecilidade. A gente tem que eliminar esses loucos. Não dá pra pegar uma metralhadora?”, disparou o apresentador. Logo depois, na transmissão ao vivo do programa nas redes sociais, foi exibida uma foto de Natália Bonavides e Ratinho emendou: “Feia do capeta também”.
Cozinheiros, bartenders e garçons, que prepararam e serviram o banquete, representaram o povo em geral que passa fome no Brasil dos desempregados, dos sem terra, dos sem teto, dos sem nada
O ex-juiz suspeito Sergio Moro, em campanha presidencial pelo Podemos, busca estreitar o apoio do capital financeiro.
Na noite desta segunda-feira (29), em São Paulo, se reuniu na casa de Luiz Fernando Figueiredo, sócio-fundador da Mauá Capital, com outros nomes de peso do setor.
O festim político teve a presença de nomes como Roberto Setubal, copresidente do conselho de administração do Itaú, Milton Goldfarb, fundador da incorporadora One, Marcelo Maragon, executivo do Citi, José Flavio Ramos, CEO do banco de investimentos Br Partners.
A iniciativa do encontro foi de Figueiredo, informa a CNN Brasil. A ideia era que o ex-juiz parcial "pudesse expor sua visão sobre o país e ainda que ouvisse o que o grupo dos mais ricos entende ser necessário para um projeto presidencial", segundo a emissora.
Antes dos comes e bebes, Moro se reuniu com investidores na XP Investimentos, também em São Paulo, acompanhado de seu assessor econômico, Afonso Celso Pastore.
Alex Vitale lança livro no Brasil. O autor estadunidense provoca: além de abusos e corrupção, controle sobre a vida pública gerou, paradoxalmente, um subpoliciamento. Saídas efetivas contra o crime exigem mais políticas públicas e menos armas
Professor do Brooklyn College lança no Brasil o livro O Fim do Policiamento: “para criar uma nova sociedade, precisamos desfazer nossa dependência do policiamento”
Alex Vitale, professor de Sociologia e Coordenador do Projeto de Polícia e Justiça Social no Brooklyn College, começa seu livro O Fim do Policiamento (Autonomia Literária, 2021) listando uma série de mortes de inocentes na mão da polícia – casos não muito diferentes dos cobertos diuturnamente aqui na Ponte, mas com um diferencial importante: acontecem no país mais rico do mundo, o autointitulado “farol da liberdade” do Primeiro Mundo chamado Estados Unidos.
O projeto que levou ao livro O Fim do Policiamento começou antes das revoltas de 2014 em Ferguson, Missouri, nos EUA, após a morte do jovem negro Michael Brown, baleado pelo policial Darren Wilson. Essa série de revoltas, que criou o movimento Black Lives Matter (BLM, Vidas Negras Importam, em inglês), ajudou na popularização de um conceito até então visto como “muito radical”, restrito a círculos anarquistas e da extrema-esquerda: o fim da polícia – ou pelo menos, a redução das atribuições das forças policiais através de uma série de reformas que enfraquecesse o aparato policial.
O tema voltou à arena pública, especialmente nos EUA, no verão de 2020, após uma nova série de revoltas, em plena pandemia, provocadas por mais um homem negro morto pela polícia estadunidense. As imagens de George Floyd sendo asfixiado até a morte pelo policial Derek Chauvin correram o mundo e inspiraram uma nova onda de combate ao racismo e de questionamento do papel da polícia, que contaminou inclusive o Brasil.
O Fim do Policiamento passou a ser amplamente lido, e agora sua versão em português brasileiro será finalmente lançada neste mês pela Autonomia Literária (e já pode ser encomendada aqui), com prefácio de Aline Passos, uma das autoras da coluna Abolição aqui na Ponte, e orelha assinada pelo diretor de redação da Ponte, Fausto Salvadori.
No livro, Vitale analisa a criação da polícia moderna estadunidense, com raízes no controle de escravos negros no sul do país, no colonialismo das Filipinas e no combate à organização dos trabalhadores industriais do norte dos EUA. O professor também elenca uma série de áreas da vida cotidiana dos EUA que são policiadas – escolas, comunidades pobres, questões como consumo de drogas e trabalho sexual, pessoas com problemas mentais – e mostra como a polícia e mais policiamento têm sido uma resposta ineficaz para esses problemas.
Entrevistei Vitale para a sexta edição do Salão do Livro Político, realizado virtualmente no último fim de semana, para entender melhor os conceitos que traz em seu livro, tecer algumas comparações entre a polícia dos EUA e a do Brasil (spoiler: são mais semelhantes do que imaginamos) e saber: é mais fácil imaginar o fim do mundo ou o fim da polícia? Leia abaixo a entrevista na íntegra ou assista ao vídeo acima, com legendas.
Amauri Gonzon entrevista Alex Vitale
Ponte – Por que escrever um livro sobre policiamento? Uma das coisas mais interessantes do livro, é que podemos ver que há muitas pesquisas, não tantas quanto necessitamos, sobre policiamento nos EUA. O que lhe impulsionou a produzir um livro que condensasse todas essas pesquisas?
Alex Vitale – Estive trabalhando com temas de policiamento por 30 anos, e com uma variedade de competências há mais de 20 anos, específicamente, como um estudioso sobre polícias, e publiquei em diversos periódicos proeminentes sobre policiamento, participei de todos os congressos, e passei algum tempo com as polícias ao redor do mundo, acompanhando patrulhas, escrevendo relatórios sobre as atividades, e etc. Senti que a literatura policial não estava levando a sério o crescente discurso acerca da abolição, principalmente com relação ao encarceramento Então, havia esta crescente literatura, que nos últimos dez anos, começou a intensificar-se, abordando o encarceramento em massa. Muito dessa literatura é explicitamente abolicionista, mas senti que ninguém estava articulando este argumento quando se trata das polícias. Não havia muito interesse em policiamento quando iniciei este projeto. Eu havia me comprometido originalmente a escrever este livro antes dos ocorridos em Ferguson. Achei que realmente estaria dialogando apenas com uma limitada comunidade de acadêmicos e ativistas. Obviamente se tornou algo maior do que isto, conforme os movimentos sociais maiores também avançavam para além de apenas da crítica às prisões, e verdadeiramente engajaram-se de forma mais direta com essas questões sobre a utilidade do policiamento, e o que poderíamos estar fazendo de maneira diferente.
Ponte – O livro foi bastante significativo para contribuir nas reflexões das pessoas, e o movimento pela abolição da polícia cresceu desde o lançamento do livro, desde que foi escrito.
Alex Vitale – Bem, o livro foi bastante bem recebido quando foi lançado em 2018, mas no fim de 2017 eu já estava recebendo diversos convites para encontros com colegas que estavam fazendo trabalho de organização, e também para debater estes conceitos com outros acadêmicos e policiais. Então eu sabia que existia esse movimento crescente por todo país, sempre existiram algumas pessoas fazendo esse trabalho, mas estava se ampliando. Quando George Floyd foi assassinado em Minneapolis, observamos uma eclosão de protestos, e foi algo realmente surpreendente para mim que a principal demanda deste movimento não era mais câmeras na farda dos policiais, ou jogar alguns policiais na cadeia. Pelo contrário, era tirar o financiamento da polícia, e utilizar essas funções de formas diferentes. Então, o movimento teve um grande impulsionamento no verão do ano passado, mas continuou na construção, e continuou se organizando de forma local acerca das prioridades orçamentárias.
Ponte – A polícia foi criada para combater o crime? Qual a real função da polícia atualmente?
Alex Vitale – Bem, o que definimos como crime pode ser um ponto de partida. Meu argumento é o de que a polícia não foi criada com tanta intenção de combater o crime, embora possa ser um subproduto do que fazem. O papel essencial deles é estabelecer certa ordem social, pacificação ou estabelecimento da ordem. E fazem isso através do controle à resistência a sistemas de opressão. O que chamamos de crime são comportamentos que ameaçam relações sociais existentes e essas relações são profundamente desiguais.O que observamos é, que cerca de duzentos anos atrás, o policiamento moderno é desenvolvido com base no relacionamento aos três mecanismos primários de exploração e desigualdade que naquele período era: o colonialismo, escravidão e industrialização em massa. A formação da Polícia Metropolitana de Londres em 1829 foi baseada em um modelo que havia sido desenvolvido durante a ocupação da Irlanda, e a criação da primeira força policial estatal na Pensilvânia, instituída para administrar revoltas nas minas de carvão e ferro moldada com base na ocupação dos EUA nas Filipinas. Houve também a evolução de forças policiais no sul, que faziam patrulha de captura de escravos, gestando depois o conjunto de leis racistas conhecido como Jim Crow. Observamos que a polícia tinha com incumbência primária lidar com a resistência e rotulá-la como criminosa. Seja por furto de propriedades, ou apenas por comportamento desordenado e conflituoso, ou violência interpessoal. Se compreendermos estes comportamentos, que estavam emergindo desses sistemas de exploração, então o policiamento aparece para enfrentar tais problemas através da criminalização de formas que desafiam esses sistemas de exploração.
Ponte – Você fala no livro sobre o conceito de excesso de policiamento. O que isto significa? O que você quer dizer quando diz que estamos sendo excessivamente policiados?
Alex Vitale – Esta é uma boa pergunta, e também um pouco difícil de responder, pois suscita o questionamento de qual é a quantidade certa de policiamento. E o momento presente, realmente busca formas de tentar reduzir nossa dependência do policiamento, de várias formas possíveis. Uma das contra-argumentações que surgiu desta ideia é que muitas comunidades enfrentam o excesso de policiamento e a ausência dele simultaneamente. Isso se refere à ideia de que a polícia tem perdido muito tempo envolvendo-se com intimidações, e no reforço de leis fúteis, quando deveria estar se concentrando em crimes reais, na resolução de questões reais de violência. Acontece é que essa equação não faz muito sentido, quando observamos com mais cautela. E o que acontece é que isto reforça esta ideia de que se o policiamento fosse feito adequadamente, nossos problemas seriam resolvidos. Mas o que observamos é que, mesmo quando ordenamos que a polícia foque apenas em crimes importantes, cartéis de drogas, tiroteios entre civis, a forma que enfrentam estes problemas, é através de altos níveis de hostilização, baixa aplicação da lei, e intervenção nas vidas das pessoas. Fazem diversas abordagens nas ruas em busca de armas, fazem apreensões com poucas provas com intuito de pressionarem as pessoas por informações Então, não é realmente possível, encontrar este equilíbrio perfeito entre “subpoliciamento” e excesso de policiamento.
Outra razão pela qual isto é real, é que quando dizemos à polícia que eles são o mecanismo de enfrentamento de problemas como a violência, cartéis de drogas, é uma receita para o agravamento, pois, este tipo de policiamento, cabalmente, não funciona muito bem e isso leva à frustração entre policiais, e intensificação das táticas e da retórica. Por isso, invariavelmente, este tipo de policiamento resulta em abusos e corrupção. E a solução a isto, não é encontrar um equilíbrio imaginário, e sim enfrentar nossos problemas de outras formas, observarmos por exemplo a legalização das drogas, que tiraria a violência de questão, percebermos a pobreza que está motivando a violência interpessoal para criar soluções comunitárias, que empoderem as pessoas, que tentem curar as pessoas, ao invés de constantemente criminalizá-las, destruí-las, violentá-las, e lamentavelmente, de matá-las.
Ponte – Você acha que uma polícia comunitária, ou policiamento comunitário, é algo alcançável?
Alex Vitale – Não, sou bastante cético sobre isso. Policiamento comunitário é prioritariamente um discurso, não é uma prática completa ou nítida. É uma ideia que aparece sempre que a polícia está enfrentando crises de legitimidade. Então sempre que há resistência à polícia, sempre que ocorrem revoltas, protestos, motins, subitamente a solução é não remover as polícias de nossas vidas para melhorar, a solução se torna esse policiamento coletivo. Mas quando olhamos cuidadosamente a implementação desse policiamento coletivo, vemos que é ou algo completamente superficial e sem sentido, ou apenas uma manobra de relações públicas, e uma extensão do policiamento às nossas vidas. É um discurso utilizado para coletar informações das pessoas, mas, mais importante, existe para estabelecer uma lógica que dita que a maneira que resolvemos problemas comunitários, é através do policiamento. Mas em essência, este é justamente o problema, pois quais ferramentas a polícia tem, efetivamente, para resolver problemas comunitários? Armas? Multas, algemas, violência? Estas não são as ferramentas que nossas comunidades precisam para resolver seus problemas. Precisam ter acesso a empregos de verdade, habitação estável, saúde adequada, cuidados, e o policiamento não pode fornecer nenhuma dessas coisas para nossas comunidades.
Ponte – Há uma gestão policial, militarizada, de escolas sendo instalada no Brasil. Há este pensamento de que precisamos, por conta de Bolsonaro, militarizar a educação. Bolsonaro e seus apoiadores dizem que precisamos disso para disciplinar os jovens.Como é a experiência dos policiais em escolas nos EUA?
Alex Vitale – Curiosamente, o policiamento escolar surgiu de formas similares nos Estados Unidos. Foi uma resposta para uma grande crise, tanto da juventude quanto do apoio à educação. O que aconteceu foi que em algumas décadas, houve a redução do financiamento para educação. Ao mesmo tempo, muitas comunidades vulneráveis estavam vivenciando altos níveis de pobreza, violência, cisões familiares e etc. Então isto contribuiu para um aumento dos pro, e até mesmo, violência, em escolas. E a solução desenvolvida para isto não foi a renovação dos programas educacionais, ou contratação de novos orientadores, ou criar suportes familiares. A solução foi rotular estes jovens como moralmente inadequados, fora do controle, predadores, que apenas respondiam à violência, coerção e ameaças. O objetivo começou a não ser auxiliar que os jovens alcançassem o sucesso acadêmico para que terminassem seus estudos, o objetivo se tornou como removê-los do ambiente educacional, para que possamos ajudar os outros jovens. Não apenas a polícia foi inserida nas escolas, mas sistemas educacionais novos inteiros foram criados para administrar os jovens que eram removidos do sistema educacional. Basicamente foram criadas escolas prisionais.
Curiosamente, no mesmo período, essas mesmas pessoas que querem reduzir o orçamento escolar e envolver a polícia, dizem que agora sim, vamos mensurar o sucesso do ensino através de uma série de regimes de testagem de alta performance utilizando medidas quantitativas, de um conjunto de conhecimentos reduzido, e vamos decidir quanto financiamento os professores e escolas receberão, baseados em suas performance nesses testes. Agora a escola tinha um incentivo para afastar estudantes com performances ruins e estes estudantes serão colocados em escolas que não são incluídas nos regimes de testagem.Estados como a Flórida e o Texas alegam ter consertado o sistema educacional cortando seus orçamentos pois as notas dos testes subiram quando começamos priorizar os testes. Mas nunca contam que removeram 20% de seus estudantes de perfomances mais fracas, e os excluíram dos regimes de testagem basicamente jogando fora estes jovens. Suas vidas foram arruinadas, acabam indo parar no sistema penal adulto, sem empregos, sem moradia, e etc. Isto foi rotulado como um sucesso. Então não é um bom caminho, certo?
Ponte – Os Estados Unidos e o Brasil, possuem laços intensos com o passado nefasto da escravidão, especialmente de pessoas negras que foram sequestradas da África. Bem como nos Estados Unidos, o Brasil também possui altas taxas de assassinato pela polícia. Você acredita que este passado complexo de escravidão e sua abolição sem nenhuma reparação tem alguma influência em o quanto a polícia é violenta em nosso continente?
Alex Vitale – Sim, acho que precisamos compreender estes três fatores que conduzem a elaboração do policiamento moderno. Não é apenas a escravidão dos EUA, ou do Brasil, é também o colonialismo. As primeiras forças policiais nos EUA e no Brasil, exerceram um papel na remoção de povos indígenas, roubo de suas terras e recursos, e de reprimir a resistência deles. E também, as polícias tanto nos EUA quanto no Brasil, surgiram para controlar a resistência dos trabalhadores a regimes de exploração industrial e também de exploração do trabalho agrícola. Vemos as polícias sendo usadas para acabarem com greves, para desaparecerem com líderes trabalhistas, encerrar reuniões, para impedir a formação de uma força trabalhista. Estas são as heranças de formação da polícia, que continuam informando a função básica e natureza da instituição. E quando o policiamento se prova ser profundamente discriminatório racialmente, e a produzir estes resultados discriminatórios nos dizem que vão dar educação sobre preconceito a polícia, de forma tácita, e de que vão contratar mais guardas negros, e que isto resolverá o problema. Esta é uma forma de apagar toda a história e natureza desta instituição, e invariavelmente, estes esforços de relações públicas, são absolutamente fracassados na mudança do policiamento de forma relevante.
Ponte – No Brasil, temos tentativas de reformas na polícia, nos anos 1990, os PMs, cujos crimes eram julgados por um tribunal militar, passaram a responder a juris civis em caso de homicídios. Porém isso não reduziu necessariamente a violência policial, e os júris, devido a uma percepção do trabalho policial, também absolvem muitos policiais que matam. Agora estamos discutindo, alguns estados estão implementando, inclusive, o uso de câmeras nas fardas de policiais. Como é a experiência dos EUA, em relação às câmeras corporais? Você acha que elas podem ser efetivas de alguma forma?
Alex Vitale – Não. Na melhor das hipóteses, câmeras na farda serão possivelmente tão exitosas quanto os mecanismos de responsabilização podem torná-las. Em outros termos, o simples fato de existirem imagens não altera a reticência dos promotores e a hesitação dos juízes, dos júris em condenar policiais. As regulamentações legais nas quais a polícia opera são incrivelmente permissivas do uso de violência policial. Se não alterarmos estes sistemas maiores de responsabilização, a introdução de evidências em vídeo, dificilmente fará alguma diferença concreta. Foi o que observamos nos EUA. Vimos um número tão pequeno de casos chocantes resultarem em alguma conclusão diferente. Mas no geral, quando fazemos estudos mais controlados, descobrimos que as câmeras não possuem qualquer efeito significativo no policiamento, pois a polícia sabe que nada irá acontecer a eles, independentemente do que mostram as imagens.
Ponte – Como podemos abordar a redução do policiamento neste tipo de contexto? É difícil que políticos proponham o desfinanciamento da polícia no Brasil, todos argumentarão que os bandidos estão armados, e quem vai lutar contra eles? Como isso tem funcionado para vocês?
Alex Vitale – Não é como se essa mobilização em massa da polícia militar tenha feito qualquer coisa para reduzir a disponibilidade e uso de armas, para diminuir o poder e influência do crime organizado, como se tivessem criado incríveis favelas utópicas onde todos vivem pacificamente juntos, certo? O que está sendo feito para reduzir a violência não está tendo efeito. Tem levado a massivas violações dos direitos humanos, contribuído com o empobrecimento de comunidades inteiras, e está dando apoio a uma ideologia de repressão de direita e autoritarismo. Certamente o Brasil tem sérios problemas, estes problemas estão claramente ligados a profundos problemas de desigualdade. Há um imenso número de pessoas completamente excluídas da economia formal, da segurança habitacional, privados do acesso a serviços essenciais governamentais, e é onde a maior parte dos comportamentos seriamente perigosos, se originam. E os políticos que foram colocados em exercício para manterem esse sistema funcionando, são exatamente os mesmos políticos que nos dizem que a solução é um policiamento ainda mais militarizado e intenso, pois foram colocados no cargo para afastarem esforços que reduzam a desigualdade e exploração. Esta é a razão de estarem em exercício, dizer que os problemas da sociedade brasileira são a criminalidade, imoralidade, e predadores, que cometem crimes, que podem ser respondidos apenas através da repressão, policiamento e encarceramento em massa. Quando isto não funciona, e invariavelmente não funciona, abre margem para pedidos de ainda mais polícia. E a custos extremos, como esquadrões da morte, assassinatos extrajudiciais e todo o resto, pois foi dito à polícia que depende deles reduzir a violência. Ainda assim, as ferramentas empregadas, não funcionam. Então quando fracassam, eles enrijecem.
Ponte – É bastante corriqueiro discutirmos o conceito de polícia política, quando falamos de governos ditos autoritários, sejam eles de esquerda ou direita. Mas seu livro evidencia que a polícia estadunidense também é uma polícia política. Todas as polícias são polícias políticas? Ou há alguma reconhecida como uma polícia não-política?
Alex Vitale – Sim, todo policiamento é político, se compreendemos que a polícia tem uma missão, dada por líderes políticos, para resolverem problemas essencialmente políticos, de uma forma singular através da coerção, intimidação, violência, ameaças, e etc. Mas também precisamos ter uma análise crítica do policiamento que tem como função primordial reprimir a organização de resistência, e a denominada polícia de alto escalão, tem suas próprias características históricas. O uso de vigilância e de informantes pagos podem ser similares a técnicas usadas contra cartéis de drogas e contra o crime organizado. Também é importante notar a manutenção de registros em massa, o uso de artimanhas corruptas, a deturpação da representação ao público que estes grupos estão fazendo. Estas são técnicas singulares que associamos com o policiamento político, bem como a repressão de protestos através de evidentes demonstrações de uso de força.
Ponte – Sobre a questão de corrupção e polícia, os EUA tem uma experiência diferente, que começa quando a Agência de Combate às Drogas (DEA, em inglês) passou a pegar dinheiro que era confiscado das pessoas acusadas de tráfico de drogas e a usar esse dinheiro legalmente, em benefício próprio. Como tem sido essa experiência para a polícia, especialmente na guerra contra as drogas? Tem funcionado? É algo eficaz para lidar com a corrupção na polícia?
Alex Vitale – Bem, deixe-me te dar um exemplo interessante. Uma das área primárias da corrupção policial e crime organizado nos Estados Unidos no século XX, foram os jogos ilegais, jogos tipo o jogo do bicho em particular, loterias informais, que eram administradas pelo crime organizado. Isso impulsionou o suborno sistêmico de agentes policiais, juízes e oficiais eleitos, e gerou muita violência, às partes em guerra. Eram chamadas de gangues policiais. Ao longo dos últimos 40 anos, vimos a legalização dos jogos nos Estados Unidos. Quase todos os estados dos Estados Unidos agora têm suas próprias loterias e esses estabelecimentos ilegais já desapareceram em grande maioria, e com eles, a corrupção e a violência. Ao invés de tentar erradicar a corrupção policial associada a eles, a estratégia foi obviamente legalizar os jogos e regulá-los, para que saíssem do submundo do crime. Foi um grande sucesso. Precisamos fazer o mesmo com narcóticos, e com o trabalho sexual. Não existe um mundo onde o policiamento resolverá estes problemas para nós. Eles jamais irão eliminar a procura por drogas, nunca vão erradicar a demanda por trabalho sexual. Precisamos buscar a regulamentação dessas atividades. De certa forma, o Brasil fez isso com o trabalho sexual. Descriminalizaram na maioria das cidades, e isso contribuiu à redução da corrupção policial nessas cidades.
Ponte – Na verdade, essa era minha próxima pergunta sobre o debate do trabalho sexual no Brasil que você aborda no livro. O ponto principal é que a prostituição aparentemente nunca foi proíbida no Brasil, de forma direta. Mas temos leis contra a facilitação do trabalho sexual, e estas leis que dificultam a facilitação do trabalho sexual prejudicam bastante as trabalhadoras do sexo, pois não podem nem alugar um apartamento, porque poderia ser considerado um prostíbulo, não podem ter quase nada, pois todos em seus arredores, algo como o parecido com o que acontece nos EUA, são criminalizados. Então é bastante difícil para que trabalhem e isso também gera corrupção policial, especialmente com o trabalho sexual nas ruas, e principalmente, contra trabalhadoras do sexo trans. Não são criminalizadas, mas a polícia os assedia, as pegam para interrogatórios sobre tráfico de drogas, ou qualquer outra coisa que exista nas ruas, pois não têm os mesmos direitos que todo mundo tem.
Alex Vitale – Minha compreensão, e você pode me corrigir, é que em algumas das maiores cidades existem áreas de “luz vermelha”, que foram formalmente descriminalizadas. Mas talvez isso seja fruto da corrupção.
Ponte – É algo parecido com isso. Há alguns lugares específicos onde há trabalho sexual, mas é uma decisão da polícia, para controlar melhor o território – e esse território acaba sendo dominado por facções criminosas, como acontece, por exmeplo, no Jardim Itatinga em Campinas (SP), dominado pelo Primeiro Comando da Capital (PCC).
Alex Vitale – Bem, o que eu digo no livro é que temos que observar os modelos de descriminalização e legalização, e então trabalhar com as comunidades locais para encontrarmos o equilíbrio adequado. Para algumas partes da indústria, a mera descriminalização possibilitaria contratantes mais independentes, por assim dizer. Entidades independentes possibilitariam que trabalhadoras do sexo se unissem por seus benefícios, mas que ainda existiria a ameaça de criminalidade organizada, e até mesmo, de tráfico. Então existe a necessidade de fiscalização, mas deveria ser abordada quase como um assunto de direitos trabalhistas, pois não é realmente um problema criminal, é algo como pessoas sendo forçadas a trabalharem em campos de cana, isso deveria ser tratado como uma questão de direitos trabalhistas. As pessoas devem ter o direito a organização, e de poderem prestarem queixas para que haja uma mediação do público, para que a Procuradoria Geral, ou algo assim ou para que o Ministério Público, resolva estes problemas. Mas certamente, em ambos modelos, tirar a polícia da forma que conhecemos da equação é uma grande vantagem.
Ponte – Como podemos falar sobre menos policiamento quando há comunidades carentes pedindo por mais policiamento? O que é necessário e como precisamos abordar nossas próprias comunidades, nossos arredores, nossas comunidades em dificuldades, sobre a importância da redução do policiamento?
Alex Vitale – Há algumas maneiras que precisamos raciocinar esta questão. Primeiro, as comunidades têm problemas reais. Há violência, violência interpessoal, roubo de propriedade, há comportamentos desordenados, conflituosos, e hostis, e as comunidades têm o direito de exigir que estes problemas sejam resolvidos. Mas o policiamento não é a única ferramenta possível imaginável, que conhecemos, que é eficiente em resolver estes problemas. Mas parte do problema, e esta é a segunda parte das maneiras de pensarmos a questão, é que por gerações as pessoas ouviram que a única ferramenta que elas têm para tratar tais problemas comunitários é a polícia. Então, neste momento, o que precisamos é de organização comunitária, mobilização, que trabalhe com essas comunidades, para liberar todas as outras ideias que as pessoas têm, para tornarem suas comunidades melhores, mais seguras e ambientes mais saudáveis para se viver. E o que acontece é que quando comunidades têm a oportunidade de inquirir o que realmente querem, elas tem uma lista bastante grande de demandas bastante claras. O policiamento acaba ficando bem mais para o final desta lista. Elas querem escolas decentes para os filhos, moradias dignas para suas famílias, rendimentos estáveis para que não vivam em miséria, e têm ideias de como abordar a violência e os crimes contra a propriedade aos quais estão submetidos. Também é importante lembrar de que este movimento para a redução do policiamento não está clamando por uma virada milagrosa, e amanhã não existirá polícia, todos estarão por conta própria, e então viria o caos. É sobre um processo a longo prazo de desenvolvimento de novas infraestruturas de segurança e saúde em comunidades que possibilitem dependermos menos no policiamento. Ninguém acha que isso acontecerá do dia para a noite, ninguém acha que temos as respostas para todos os problemas em uma comunidade.
Mas eis uma forma de se pensar nisso, quando pedimos por policiamento, normalmente cometemos três erros: primeiro, superestimamos grosseiramente a eficiência concreta da polícia em lidar com qualquer problema. A polícia não está protegendo as mulheres, não está evitando o crime patrimonial, a polícia não fez nada sobre os cartéis de drogas, não está acabando com a violência. Segundo, é que falhamos na hora de observar os custos do policiamento. Policiamento é algo imensamente custoso financeiramente, e quando aplicado, produz violência e morte e criminaliza comunidades inteiras. E também concede legitimidade a uma ideologia, uma visão de mundo, que propõe que a solução dos nossos problemas é a intervenção coercitiva sobre quem chamamos de criminosos, apagando todas estas questões sociais mais amplas, que nos causam os conflitos sociais que temos. E o terceiro erro que cometemos é falhar em considerar as alternativas. Temos maneiras mais eficientes de manter a segurança das escolas. Temos formas melhores de lidar com os problemas com as drogas de nossa sociedade. Temos maneiras melhores de lidar com questões de saúde mental, e abuso de substâncias, e formas melhores de abordar o crime organizado das drogas. É hora de estimularmos estas alternativas, e começarmos o processo de desligamento de nossa confiabilidade no policiamento e da ideologia que continua a recompensar políticos autoritários.
Ponte – Por qual motivo temos policiais atendendo ocorrências de casos de saúde mental? Que tipo de contexto faz com que nós pensemos na polícia antes de qualquer coisa?
Alex Vitale – Vejamos, o policiamento tem um problema inerente de legitimidade. Quando o histórico da polícia é um histórico de busca pela legitimidade, pois grandes porções da população são profundamente céticas sobre o papel que desempenham na sociedade, pode ser que sintam que não há outra alternativa, mas possuem um profundo ceticismo. Há sempre um sistema massivo de produção de legitimidade à polícia, um constante discurso de reformas, para tentar convencer pessoas de que algo está sendo feito sobre os óbvios problemas que vemos, e também a produção de peças midiáticas celebrando a polícia, que colocam a polícia no centro de todas as narrativas de segurança pública. Por fim, existe também uma sólida infraestrutura de propaganda policial, programas de TV, filmes e etc., que heroicizou a imagem dos policiais, que imaginam ou representam a polícia como algo que nos ajuda e nos salva. Então assistimos TV e o que vemos é a polícia resolvendo crimes incríveis, e pegando o vilão todas as vezes, proporcionando justiça, que na maior parte do tempo é apenas vingança E há muito pouco espaço para narrativas contrárias.
Escrever um programa de televisão sobre um agente comunitário, ajudando jovens a solucionarem seus problemas sem a violência, não tem o mesmo drama que policiais atirando nos vilões. Então temos que parar de nos apoiar em representações populares de policiais, para formarmos nosso entendimento básico do funcionamento da polícia. Temos que nos apoiar mais em conexões comunitárias, feitas cara a cara com pessoas, para estabelecermos novas logísticas de cuidado e solidariedade, que esperançosamente levarão a solicitações para a criação de comunidades mais saudáveis e seguras, e uma vida de melhores oportunidades para as pessoas, para que não tenhamos que usar a polícia em nossas vidas, seja como uma piada exagerada, da qual podemos rir, pois há estruturalmente a desconfiança deles, ou como heróis que vão resolver todos os problemas.
Ponte – Em seu livro você fala um pouco sobre polícias que não portam armas, como a do Reino Unido, e a do Japão. Como podemos conceber uma polícia desarmada em um país como os EUA, onde todos estão potencialmente armados por conta da Segunda Emenda?
Alex Vitale – Pois, há muitas armas nos EUA. Bem, uma das razões para o tanto de armas nos EUA, é nosso histórico com o policiamento. Estabelecemos o policiamento ao redor destes sistemas de escravidão e colonialismo, que eram profundamente alicerçados na violência armada e o policiamento era um elemento central desta violência armada. Então talvez, se começarmos a reduzir a extensão do policiamento armado, seria uma parte de como criarmos uma nova cultura, que seja menos firmada em celebrar a violência armada, da qual a cultura americana se encontra totalmente consumida, com fantasias de vingança e tiroteios, e todo o resto. Mas penso de forma mais prática: o que estou dizendo é que não necessariamente precisamos desarmar policiais uniformizados. O que me interessa é remover funções da polícia, e devolvê-las aos civis.
Não precisamos de polícia armada para escrever relatórios de acidentes de trânsito. Não precisamos de polícia armada para elaborar relatórios de furtos. Não deveríamos ter policiais armados em nossas escolas. Não deveríamos estar utilizando a polícia para administrar nossos problemas sociais com drogas. Não deveríamos estar enviando policiais armados para administrarem alguém tendo uma crise de saúde mental. É sobre substituir a polícia por pessoas apropriadamente preparadas para lidarem com esses problemas. Sem nada disso ter que ancorar-se na violência. Quando fazemos isso, reduzimos não apenas a violência comunitária, mas a violência policial. A polícia produz um número imenso de homicídios no Brasil, na sociedade brasileira. São responsáveis por algo entre 5-10% dos homicídios nos EUA. Vamos parar o massacre reduzindo nossa dependência da polícia.
Ponte – É mais fácil imaginar o fim do mundo, ou o fim das polícias? Podemos sonhar com um mundo sem policiamento, sem polícias? Podemos realmente ter essa esperança? Ou é um futuro para nossa sociedade que jamais acontecerá?
Alex Vitale – Bem, minha colega Ruth Wilson Gilmore diz que a abolição é sobre o fim de tudo. Sobre mudar tudo. Quando compreendemos que o policiamento tem raízes em sistemas centrais de exploração em nossa sociedade, existe a necessidade de começarmos a desmantelar tais sistemas de exploração e desigualdade que geram o que é interpretado como necessidade de policiamento. A armadilha aqui é que isto não significa que temos que esperar até que haja uma transformação total da sociedade para então descobrirmos o que fazer sobre a polícia No fim das contas, ao meu ver, o que precisamos fazer são as duas coisas de forma simultânea. A parte de como criamos uma nova sociedade é o trabalho de desfazer nossa dependência no policiamento, pois o policiamento sempre foi ferramenta central usada para atacar nossos movimentos, para evitar a formação de alternativas lógicas para a redução da exploração. Então, nunca teremos uma transformação social ampla se não pressionarmos simultaneamente contra o policiamento e a ideologia que o sustenta.
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Onde tem polícia tem pátria armada, há desigualdade social, desemprego, salário mínimo do mínimo, ordem unida para os pobres, os sem terra, os sem teto, os sem nada. Polícia é para proteger os bairros ricos, zelar pela propriedade privada das castas superiores, proteger os proprietários dos latifúndios, das grandes empresas, os banqueiros, os agiotas, os traficantes de moedas, o dinheiro escondido nos paraísos fiscais.
“A gente precisa se organizar para lutar pelo direito de autodefesa das comunidades pobres”, afirmou o coordenador do coletivo de negros João Cândido e dirigente do PCO, Juliano Lopes, durante ato em São Paulo, no sábado, 8, contra a Chacina do Jacarezinho.
“A comunidade e o povo trabalhador tem o direito legítimo e democrático de reagir à altura diante dos ataques cometidos pela polícia”, emendou. “Nesse sentido, toda a reação violenta é legítima contra os órgãos de repressão que estão matando a população pobre nos becos, nas favelas e nas ruas”.
A declaração destoou do restante das organizações de esquerda que estiveram presentes no ato. Na maioria dos casos, além de importantes denúncias que foram feitas, os movimentos e partidos presentes faziam apelos emocionais, como “parem de nos matar”, ou imitavam a luta nos Estados Unidos, com “vidas negras importam”.
Os gritos revelam que boa parte da esquerda carece de um programa para combater a política, cada vez mais recorrente, de chacina da classe operária brasileira, de maioria negra. Os que têm alguma reivindicação, pedem “justiça” e a “desmilitarização” da Polícia Militar.
Ilusões na "Justiça"
No primeiro caso, Juliano Lopes tratou de esclarecer o problema: “A Justiça é o Sergio Moro. A Justiça arquivou os processos do Carandiru, vai arquivar os de Osasco, vai arquivar os da Candelária. O policial que mais mata é promovido”.
A Justiça, desta forma, é um instrumento do Estado para garantir a política da burguesia, de extermínio da população pobre. Geralmente, quando ocorre alguma forma de punição a agentes da repressão, que seriam promovidos pela matança, é resultado de uma intensa mobilização popular.
Mas, mesmo assim, pegando o caso dos Estados Unidos. Se por um lado as manifestações mostraram de qual forma se luta contra a repressão - com organizações nos bairros operários e fazendo uso da violência se for preciso -, elas também mostraram o que não fazer em relação ao programa a ser defendido.
“Justiça para George Floyd” levou ao aprisionamento de apenas um policial, Derek Chauvin, enquanto salvou a pele de toda a corporação e dos chefes da unidade que sufocou o cidadão. Da mesma forma, mesmo com “Justiça”, o que observamos após o caso Floyd foi uma onda de casos de repressão policial, levando ao assassinato de diversas pessoas negras. Assim, a “Justiça” é um ouro de tolo usado para tentar estancar a luta contra a repressão.
"Desmilitarização da PM"
A reivindicação pela “desmilitarização” é confusa, mas na maioria dos casos é associada ao fim da Polícia Militar. Seria já um avanço acabar com esse órgão exclusivo do Brasil e resquício da ditadura, mas não resolve a questão do banho de sangue promovido pelo Estado.
No início de sua fala, Lopes destacou: “os autores da chacina fazem parte da Polícia Civil, e não da militar, o que mostra que a polícia precisa ser dissolvida de cabo a rabo. Não basta só o fim da Polícia Militar, mas o fim de todos os órgãos repressivos, que são eles que promovem essa matança na periferia”.
Nesse sentido, o caso do Jacarezinho é esclarecedor, pois não foi a PM que invadiu a favela e executou a sangue frio 27 pessoas. Foi a Polícia Civil. Do que adianta, então, dissolver a PM e manter vigente um órgão tão assassino quanto?
Programa de reivindicações
Os casos nos EUA mostram que não basta se mobilizar contra a repressão. Lá, os protestos, com razão, foram violentos, explosivos e combativos, mas as organizações dirigentes, tanto do movimento negro, quanto dos partidos de esquerda, não tinham um programa objetivo de reivindicações.
Por isso, é necessário colocar em discussão um programa real para acompanhar as manifestações que tendem a crescer no Brasil.
Primeiro, unificar a luta contra a repressão na luta geral contra o golpe de Estado. Junto com “Fora Bolsonaro e todos os golpistas”, a luta pelos direitos políticos de Lula, contra o desemprego e a fome, e pela quebra das patentes da vacina para imunizar em massa a população contra a Covid-19 e barrar o genocídio sanitário.
Dissolução da polícia
Segundo, na questão da repressão, é fundamental colocar a dissolução de toda a polícia. Conforme disse o dirigente do coletivo de negro João Cândido, “o que aconteceu no Jacarezinho não foi um acidente, não se trata de um desvio de conduta, mas é a prática regular, orientada pelas forças de repressão do Estado”.
A polícia é um órgão da burocracia estatal para reprimir a população pobre, isto é, impor um controle sobre o povo para manter o regime de ataques contra os trabalhadores. É um órgão vindo de cima, cujos agentes não têm nenhum vínculo com os bairros onde promovem banhos de sangue.
A reivindicação mais democrática, nesse sentido, é a substituição dos órgãos de repressão estatal por milícias organizadas por bairros, aldeias e assentamentos, eleitas pela população. Quem se coloca contra isso tem um profundo preconceito contra a capacidade do povo de se organizar e tem profundas ilusões na “Democracia”. Não pode ser considerado socialista e muito menos democrático (no real sentido da palavra).
Para estes, devemos lembrar incansavelmente que nas favelas brasileiras os bairros, do saneamento às casas, foram construídos pelos próprios moradores, com os recursos precários e escassos disponíveis. Portanto, o povo é amplamente capaz de se organizar em defesa de seus interesses.
Essa questão, no entanto, não resolve em absoluto o problema da repressão, pois a direita, organizada regionalmente, irá, sem dúvidas, influir em tal processo eletivo. Mas, pelo menos, ameniza a situação, dando mais controle popular sobre a segurança, que será feita por moradores dos próprios bairros - pessoas que não estão alheias ao que lá ocorre.
Armamento do povo
Terceiro, para facilitar o controle do povo sobre o Estado é necessário levantar a reivindicação essencial do armamento massivo da população. Não é um problema revolucionário socialista, mas um problema democrático. A burguesia, em seu tempo revolucionário, defendeu a legalização do armamento popular para quebrar o monopólio das armas pela aristocracia, levantando a ideia de que um povo desarmado é um povo escravizado.
Conforme disse Lênin, “democracia é uma arma no ombro de cada trabalhador”. Essa reivindicação, no entanto, não é a mesma política defendida pela extrema-direita. Os fascistas querem flexibilizar o porte de armas para facilitar o armamento de suas milícias, ao mesmo tempo em que, historicamente, restringem o seu acesso à ampla maioria da população, colocando empecilhos burocráticos.
O que o movimento operário defende historicamente é o armamento massivo da população, começando pelos sindicatos, mas estendendo esse direito para todo o povo brasileiro.
Para exemplificar. Nesta segunda-feira, 10, garimpeiros chegaram com sete barcos e atiraram contra indígenas na Terra Yanomami, em Roraima. Os indígenas revidaram. O que poderia ter sido mais uma chacina no campo, não ocorreu, deixando um saldo de quatro garimpeiros feridos e um indígena.
Mostrou a importância de fundar os comitês de autodefesa no campo e nos bairros operários para impedir as chacinas.
Segundo dados do último Censo de 2010, a população negra representa 37,1% do total da população da cidade de São Paulo.
Negras e negros paulistanos se concentram nas regiões periféricas da cidade, em especial nos extremos Leste e Sul.
Parelheiros é o bairro mais negro da cidade, com 57,1% de seus moradores se declarando negra ou negro, seguido por M’Boi Mirim, também na Zona Sul, com 56%.
Na Zona Leste, Cidade Tiradentes tem 55,4% e Guaianazes 54,6%.
Quando falamos de ocupação indígena da cidade, verificamos que São Paulo é o 4º município com maior população (absoluta) de índios no Brasil: 12.977.
Em São Paulo, encontramos os dois tipos de situação: duas terras indígenas Guarani localizadas nas Zonas Sul e Oeste (Terras Indígenas Jaraguá e Tenondé Porã), onde vivem 1711 índios, e uma grande população indígena distribuída por diversos bairros da Grande São Paulo constituída por famílias que migraram de suas terras de origem de diversas regiões do país, principalmente do Nordeste.
Além disto, estudos mostram que há uma concentração dos investimentos em equipamentos públicos de saúde, educação, cultura e lazer nas regiões centrais.
Os territórios negros e indígenas se configuram, assim, em zonas de exclusão na qual impera todo oconjunto de negação de direitos.
Este apartheid social é completado com os sistemas de contenção e controle por meio da violência física dos aparatos de segurança. Em torno de 2/3 dos homicídios são cometidos contra jovens negras e negros, a esmagadora maioria na periferia, e é preciso estipular formas para coibir essa violência.
A agenda antirracista é, portanto, uma defesa do direito à vida digna da periferia negra e se conecta com o centro do programa de inversão de prioridades e de centralidade periférica.
A pandemia intensifica a retirada de direitos e a desumanização da classe trabalhadora. As políticas de corte de investimento em saúde e educação atingem mais negras, negros e indígenas – e a mulher negra e indígena, nesse sentido, é a mais afetada. São elas, em sua maioria, as chefes de famílias na periferia paulistana.
Em São Paulo nunca se matou tanto quanto no período da pandemia. Um projeto de cidade antirracista precisa ser feito pela população negra e periférica.
O encarceramento da população negra é foco de nossas preocupações.
No âmbito municipal, é necessária uma reformulação da Guarda Civil Municipal.
Há um acúmulo nos últimos 30 anos de conquistas de políticas de ação afirmativa, como a lei 11.645/08, que altera a Lei de Diretrizes e Bases da educação e institui a obrigatoriedade do ensino de História da África e Cultura afrobrasileira e indígena, a lei de cotas no serviço público e nas universidades públicas, o Estatuto da Igualdade Racial, entre outras.
Entretanto, a aplicação destas políticas foi extremamente limitada por restrições orçamentárias. É fundamental que haja a efetiva participação das demandas da população negra e indígena na divisão (SMPIR) e de políticas transversais de combate ao racismo.
PROPOSTAS
• Constituir o Fundo Municipal de Políticas de Combate ao Racismo com um percentual fixo do orçamento municipal, prioridades definidas pelo Conselho Municipal de Promoção da Igualdade Racial (já existente) e gerenciado por Secretaria de Igualdade Racial a ser reconstituída;
• Compromisso com os processos de demarcação de terras indígenas no município;
• Fazer com que se cumpra a Lei Municipal nº 15.939, de 2013, que dispõe sobre o “estabelecimento de cotas raciais para o ingresso de negros e negras no serviço público municipal em cargos efetivos e comissionados”;
• Dar atenção especial à saúde da população negra e indígena em suas especificidades;
• Estabelecer convênios para ampliar as vagas oferecidas em cursinhos pré-vestibulares populares;
• Instituir o Programa de Formação Continuada dos Profissionais da Rede Municipal de Educação Para o Respeito à Diversidade Étnica e Racial;
• Combater o desemprego e pobreza nos territórios periféricos por meio de:
• Fortalecimento das iniciativas de economia popular periférica de negras e negros, como cooperativas populares;
• Fortalecimento das cadeias produtivas constituídas pelas ações culturais de jovens negros e negras;
• Instituição do Programa de Renda Solidária (ver mais no eixo “Economia, Trabalho e Renda);
• Instituição de programas de frentes de trabalho (ver mais no eixo “Economia, Trabalho e Renda);
• Elaboração de um programa municipal para garantir o acesso à justiça e a mecanismos de reinserção social de egressos do sistema prisional e do sistema socioeducativo na cidade;
• Instituir nos processos de licitação e contratação de empresas por parte da prefeitura a exigência de um percentual de trabalhadores negras e negros;
• Impedir a homenagem a figuras históricas relacionadas a escravidão no país em monumentos e nomes de locais públicos.
(Programa de Governo Boulos Erundina 2020. Hora de Virar o Jogo em São Paulo. Continua)
A violência policial é fartamente direcionada contra as populações pobres e periféricas, as incursões mortíferas não são práticas de exceção, pelo contrário, a regra é o extermínio dos corpos pobres e negros sob as patas do Estado Brasileiro. Evidentemente, essa política fundada em táticas de guerra, truculência, violência(s) e letalidade sobre os corpos indesejáveis ou definidos como inimigos, são resquícios históricos desde o Brasil colonial e suas heranças escravocratas.
Salienta-se que os policiais também são vítimas dessa política de Estado, nessa guerra contra a “criminalidade” e às drogas, as vítimas e os vitimizados são os mesmos, em outras palavras: gente pobre matando gente pobre para assegurar-se os interesses do Estado e do Mercado.
A (in)segurança pública é um projeto de poder, no qual o Estado atua fortemente nas regiões precarizadas, neste jogo permanente de se “fazer guerra” contra a população pobre e negra, vende-se o discurso da pacificação. As operações mortíferas da polícia na sociedade pós-abolição (formal) da escravidão, se atualizam nos dias atuais na definição da população negra, pobre e periférica, sobretudo masculino, enquanto “inimigo da ordem”, ademais, o esquecimento dos períodos autoritários e violentos do Estado brasileiro, resultam-se na naturalização e normalização do extermínio dessas populações.[1]
Esses legados históricos: escravidão, Brasil colonial, ditaduras militares, retratam o atual contexto da sociedade brasileira, no qual verifica-se o imobilismo social frente ao cenário de intensificação da violência estatal desigual. O ano de 2020, a partir da pandemia do Covid-19, as favelas, comunidades e periferias no Brasil, para além dos inúmeros problemas sociais: desemprego, falta de saneamento básico, educação, acesso à saúde, e o “novo” problema mortal o Covid-19.
No entanto, os moradores/as das favelas também tiveram que enfrentar o desafio de sobreviver ao aumento das incursões letais da polícia brasileira. Esse crescimento da letalidade policial em tempos de pandemia e de isolamento social, reverberam que essa atuação não se trata apenas de um erro de procedimento, ou ainda de efeitos colaterais em razão do aumento da criminalidade.
A sociedade brasileira é indiferente a violência desigual operacionalizada diariamente pelo Estado, talvez, um ideário mais ingênuo pudesse crer que durante o período da pandemia do Covid-19, a política de morte do Estado seria atenuada e não surgissem novos casos emblemáticos de extermínio policial.
Pelo contrário, o fato é que surgiram novos casos e novos nomes ganharam destaque pela mídia hegemônica, a brutalidade visível (aparente) da polícia brasileira, e ao mesmo tempo invisibilizada historicamente aos olhos da população, fez novas vítimas, talvez, pelo momento atual de crise sanitária, os casos de João Pedro, Ágatha Félix, Kaué Ribeiro dos Santos e Kauan Rosário, receberam maior atenção e geraram o mínimo de indignação social.
Não se pode olvidar que essas crianças foram mortas a partir de operações policiais (criminosas) no Rio de Janeiro, ocorridas recentemente, corroborando o “pé na porta”, inclusive em tempos de quarentena. O caso de João Pedro, representa o atual estágio da violência policial nas favelas, o adolescente foi morto pela polícia dentro de sua própria casa no complexo de favelas do Salgueiro, no Rio de Janeiro[2], sob a justificativa de combate ao narcotráfico.
Importante ressaltar que os moradores das favelas do Rio de Janeiro, assemelham-se a uma espécie de “campo de concentração a céu aberto”[3], no ano de 2020, são expostos ao vírus e a(s) violência(s) permanentes que recaem prioritariamente sobre seus corpos, afirma-se isso, em virtude da desigualdade racial no Brasil. Segundo, o Fórum Brasileiro de Segurança Pública 2020, no ano de 2019, 79,1% das vítimas de intervenções policiais eram negros.[4]
O Estado do Rio de Janeiro, serve como exemplo emblemático desse “desafio” dos moradores da favela em resistirem ao vírus e a polícia, visto que mesmo frente a diminuição de crimes, em especial, roubo e homicídio, as operações mortíferas cresceram durante o período da pandemia. Destaca-se que somente no mês de abril de 2020, foram 177 mortes decorrentes de atuações policiais, um aumento de 43% em relação ao mesmo período do ano de 2019, sendo assim, a cada quatro horas, ocorreu uma morte a partir de intervenção da polícia. Considerando os primeiros quatro meses de 2020, foram 606 mortes, um crescimento de 8%.[5]
Em complemento, a escalada abrupta de mortes decorrentes de operações policiais em meio a pandemia, também se operacionalizou na Polícia Militar do Estado de São Paulo, os agentes policiais somente no mês de abril de 2020, executaram 116 pessoas, apesar de período de quarentena, tais números representam recorde dos últimos 14 anos[6], todavia, a pergunta que merece ser levantada: quem assina essa violência?
A responsabilidade dessas mortes não é exclusiva dos policiais que apertaram o gatilho, mas também do Estado que ratifica a institucionalização da violência como forma de “combate” ao crime e ao criminoso. As operações violentas e letais somente foram reduzidas em virtude de decisão liminar do Supremo Tribunal Federal, proibindo as incursões durante a quarentena, isto é, evidenciando como o controle interno e externo das polícias são protocolares.
A realidade que insiste em bater em nossa porta, revela como é cruel e massacradora essa política de Estado, basta, para tanto, analisar os números de assassinatos da população negra e pobre no Brasil, sem contar a cifra oculta, em 2019: foram 6.357 mortes por intervenções policiais (79,1% negros), igualmente, 172 policiais foram assassinados. [7]
O massacre direcionado contra essa população não pode ser considerada como “uso excessivo da força”, essas práticas policiais militarizadas nas favelas e territórios periféricos representam a realidade e não a exceção, visto que a polícia brasileira é conhecida internacionalmente como a mais letal do mundo[8], bem como a polícia que mais vitimiza seus agentes.
Em síntese, para além das inúmeras violações direcionadas contra essas pessoas, trata-se de tarefa urgente “enxergar aquilo que se vê”, destarte, que o Estado brasileiro através dessa política de morte vitimiza sua população. Portanto, o mundo idealizado do “dever ser” no qual a polícia segue os parâmetros normativos e democráticos, ou de uma polícia cidadã e civilizatória, não chega nos espaços e regiões periféricas como as favelas[9], a população pobre e negra é perversamente inserida nessas violências cotidianas e naturalizadas no Brasil, vamos insistir em negar essa realidade cruel até quando?
Notas:
[1] WERMUTH, Maiquel ngelo Dezordi. Biopolítica e polícia soberana: a sociedade escravocrata como chave de compreensão da violência e da seletividade punitiva no Brasil. Revista Direitos Fundamentais & Democracia, 2018, 23.3: 284-309. p. 295.
[2] BBC NEWS. Caso João Pedro: quatro crianças foram mortas em operações policiais no Rio no último ano. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/geral-52731882. Acesso em: 10 nov. 2020.
[3] Expressão utilizada por Edson Passetti.
[4] FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA. Anuário Brasileiro de Segurança Pública. 2020. Disponível em: https://forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2020/10/anuario-14-2020-v1-interativo.pdf. Acesso em: 10 nov. 2020.
[5] RIO DE JANEIRO. Instituto de Segurança Pública. 2020. Disponível em: http://www.isp.rj.gov.br/. Acesso em: 10 de nov. 2020.
[6] BRASIL DE FATO. Na quarentena, PM de SP mata 102 em abril e bate recorde dos últimos 14 anos. Disponível: https://www.brasildefato.com.br/2020/07/11/na-quarentena-pm-de-sp-mata-102-em-abril-e-bate-recorde-dos-ultimos-14-anos. Acesso em: 10 nov. 2020.
[7] FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA. Anuário Brasileiro de Segurança Pública. 2020. Disponível em: https://forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2020/10/anuario-14-2020-v1-interativo.pdf. Acesso em: 10 nov. 2020.
[8] ANISTIA INTERNACIONAL. Anistia Internacional informe 2017/18: O estado dos direitos humanos no mundo. 2018. Disponível em: https://anistia.org.br/wp-content/uploads/2018/02/informe2017-18-online1.pdf. Acesso em: 10 nov. 2020.
[9] FRANCO, Marielle. UPP a redução da favela a três letras: uma análise da política de segurança pública do estado do Rio de Janeiro. São Paulo; N-1 edições, 2018.
– BBC NEWS. Caso João Pedro: quatro crianças foram mortas em operações policiais no Rio no último ano. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/geral-52731882. Acesso em: 10 nov. 2020.
– FRANCO, Marielle. UPP a redução da favela a três letras: uma análise da política de segurança pública do estado do Rio de Janeiro. São Paulo; N-1 edições, 2018.
– RIO DE JANEIRO. Instituto de Segurança Pública. 2020. Disponível em:http://www.isp.rj.gov.br/. Acesso em: 10 de nov. 2020.
– WERMUTH, Maiquel Ângelo Dezordi. Biopolítica e polícia soberana: a sociedade escravocrata como chave de compreensão da violência e da seletividade punitiva no Brasil. Revista Direitos Fundamentais & Democracia, 2018, 23.3: 284-309.
ConJur - A manifestação de raiva e indignação com a morte de João Alberto Silveira Freitas no interior do supermercado Carrefour pode ser feita desde a ordem, a razão, ou mediante a expressão do sentimento, cumprindo, assim, as premissas clássicas do liberalismo (mente/corpo). Nós preferimos ir além por entendermos que o racismo deve ser visto sob os diversos prismas que conformam a sociedade, afastando-se, assim, da falácia jurídica, ou seja, na crença de que apenas o âmbito jurídico pode garantir direitos. Essa a opção de Mbembe, denominada também de visceralidade, ou o uso da expressão dos nossos sentimentos em forma de razão e indignação. Conceição Evaristo já denominou de escrevivência o ato de escrever o que vivenciamos como grupo racial e racializado.
Os vídeos onde se vê seguranças espancando até à morte João Alberto, homem negro, companheiro de Milena e pai de quatro filhos, no estacionamento de uma das lojas da rede de supermercados Carrefour, constitui-se em um padrão da realidade vivenciada pela população negra brasileira. A cena não deixa nada a desejar à descrição de qualquer outra ocorrida no período escravocrata no Brasil.
A marcação, a vigilância e o controle dos corpos negros nos espaços públicos e privados constitui-se em exemplo suficiente de como se inviabiliza o princípio liberal de liberdade de locomoção e circulação, e, por conseguinte, a igualdade formal entre todos os cidadãos no Brasil, entre outros contextos onde residem seres racializados. O motivo principal é que os nossos corpos sempre foram vistos e percebidos na esfera pública como ameaça, perigo, descontrole da ordem convencional preestabelecida por âmbitos institucionais governados e coordenados por indivíduos de raça branca. Essa construção e difusão da figura do homem negro como indolente, violento e perigoso redunda em diversos outros indicadores sociais os quais demonstram que, na sociedade brasileira, há um lugar específico para a população negra, qual seja, sem emprego ou subocupada, sem ocupar cargos de poder ou de saber, morta ou encarcerada, desumanizada, hierarquizada e sob intenso controle social.
Apesar da superação do conceito da superioridade racial desde o ponto de vista biológico, a raça continua sendo o elemento chave na determinação da superioridade e inferioridade entre as pessoas, sobretudo desde a conjunção modernidade/colonialidade (escravidão e colonização).
Aníbal Quijano, ao falar sobre colonialidade do poder, discorre sobre a diferença colonial, a qual consiste, em apertada síntese, em uma marcação de grupos de pessoas ou populações, identificados por suas faltas ou excessos, usando essas diferenças como elementos de classificação de inferioridade em relação a quem as classifica. A colonização foi a matriz que permitiu estabelecer essas diferenças e justificar a cristianização com a lógica de classificar e de hierarquizar as pessoas do planeta de acordo com suas línguas, religiões, nacionalidades, cor de pele, grau de inteligência etc.
Desse modo, a questão do racismo não se traduz somente em uma questão de cor de pele ou de cor de sangue e, sim, em uma questão de humanidade, pois um grupo de pessoas definiu o que é humanidade e o que não é. Nessa ótica, alguns são considerados néant (Fanon) ou nadies (Galeano), marcando-se bem as fronteiras da humanidade e contradizendo, assim, os princípios do humanismo a priori. A morte de João Alberto deve ser vista como a manifestação de uma violência branca que se vêm incrementando nos últimos anos devido à legitimidade ou cegueira das violências estruturais que são proferidas desde o governo brasileiro, entre outros, em nível mundial.
Quando se pensa na responsabilização civil do Carrefour e no processo cível daí decorrente, convém destacar que todas essas concepções racistas capturam as subjetividades dos julgadores e julgadoras, constroem uma forma de pensar que organiza as relações de poder entre os sujeitos de direito e os operadores do Direito e, por isso, devem ser visibilizadas, ainda mais quando se sabe que o Poder Judiciário brasileiro compõe-se, majoritariamente, por homens e mulheres brancos e que, por outro lado, a população preta/parda corresponde a 54% da população brasileira. A correlação entre órgãos judiciais e população se distancia ainda mais no cenário sul-rio-grandense, onde 97% dos magistrados são brancos e a população negra corresponde a pouco menos de 20% do total.
Expor a falácia da "neutralidade do órgão judicial" escancara o fato de que o fenômeno jurídico é produto da atividade humana, pertence à cultura e, como fenômeno cultural, não pode ser compreendido como mera técnica, ao contrário, para seu melhor entendimento se permite e se exige uma aproximação histórica, ciente de que a finalidade do processo não se constitui em simples realização do Direito material e, sim, na concretização da Justiça material e na pacificação social. O Direito entendido como uma técnica de domínio social que não se constitui neutra e determina a priori quem pode produzir a lei, quem pode interpretá-la e quais parâmetros serão fixados para interpretar e aplicar a lei, demonstra como os/as magistrados/as possuem grande poder, pois, não apenas dizem qual o direito mais adequado para cada caso, mas conformam atitudes e regulam relações sociais de acordo com um sentido ideológico e político próprio e determinado.
Por tal razão, pensar o assassinato de João Alberto como sendo mais uma das milhares de mortes de homens negros no país constitui-se tarefa primeira de todo/toda magistrado/a que analisar eventual pedido de responsabilidade civil a ser ajuizado perante a rede de supermercados Carrefour, pois a causa estrutural evidente, ou seja, o racismo que conduz a todo esse contexto desigual e violento deixa de ser, costumeiramente, enunciado nas decisões que enfrentam idênticos fatos, por razões conscientes ou, até mesmo, inconscientes.
Tendo em conta as questões subjetivas que conformam a branquitude brasileira e a inexistência de neutralidade racial na condução de processos judiciais, conferindo especial ênfase ao silenciamento de tudo o que diga respeito, diretamente, à população negra, apresenta-se impositivo afastar o mito da democracia racial, já que a falácia do "todos somos iguais", brancos ou negros, invisibiliza, por completo, toda e qualquer discussão a respeito de raça e racismo, seja no âmbito da Justiça, seja na própria sociedade, gerando, a partir daí diversas outras situações de desigualdade e exclusão. Nesse contexto, especial ênfase há de se dar à consciência racial, conceito trabalhado na teoria crítica racial, junto com branquitude, microagressão (produzida pelo Direito), interseccionalidade, entre outros, o qual, ao reconhecer as diferenças sociais entre raças, recusa a noção de objetividade da lei (que enxergaria o indivíduo para além de/independente de sua raça) e recusa a ideia de que o direito não deve levar em conta a raça.
Espera-se que o Poder Judiciário sul-rio-grandense, constituído, em sua ampla maioria, de pessoas brancas, ao analisar o presente caso, leve em conta o contexto social, racial, cultural, político, do Brasil e do Rio Grande do Sul para compreender, a partir da lógica racista estrutural e institucional implementada desde os tempos coloniais, como se (re)produzem as violências sociais e raciais que culminaram com a morte de João Alberto, por asfixia, no interior das dependências do Carrefour.
Entidades do movimento negro como Educafro, Uneafro Brasil, Movimento Negro Unificado e Marcha de Mulheres Negras de São Paulo, lançaram o manifesto "SP Antirracista com Boulos", em apoio à candidatura do psolista que disputa o segundo turno das eleições em São Paulo.
"Nós, população negra organizada, mulheres negras, pessoas faveladas, periféricas, LGBTQIA+, que professam religiões de matriz africana, quilombolas, pretos e pretas com distintas confissões de fé, moradoras e moradores da cidade de SP, manifestamos nosso apoio à candidatura de Guilherme Boulos e Luiza Erundina e à urgência em derrotar o PSDB genocida e o bolsonarismo na cidade de São Paulo", diz trecho do manifesto.
Para derrotar o PSDB e o Bolsonarismo em São Paulo
eleger Boulos e Erundina
Nós, população negra organizada, mulheres negras, pessoas faveladas, periféricas, LGBTQIA+, que professam religiões de matriz africana, quilombolas, pretos e pretas com distintas confissões de fé, moradoras e moradores da cidade de SP, manifestamos nosso apoio à candidatura de Guilherme Boulos e Luiza Erundina e à urgência em derrotar o PSDB genocida e o bolsonarismo na cidade de São Paulo.
2020 é um ano que ficará marcado na história como aquele da avassaladora pandemia de corona vírus, que até agora custou 170 mil vidas brasileiras e que em São Paulo, sob a gestão de Covas, matou mais de 14 mil pessoas, grande maioria nas periferias desassistidas da cidade. Mas é preciso lembrar que este ano também será lembrado como aquele em que milhões de pessoas ao redor do mundo forçaram um aprofundamento do debate público sobre o combate ao racismo sistêmico e suas consequências sociais. Um caminho sem volta foi aberto e futuros governos terão que diversificar racialmente secretariados e ministérios, reconhecer a competência política e profissional de lideranças negras e femininas para atuação em diversos níveis.
O PSDB de Bruno Covas representa o projeto político genocida praticado há décadas por governos tucanos seja no nível municipal, seja nos momentos de dobradinha com governos estaduais, como é o caso agora, com Covas-Dória. Foi nesta gestão de Covas que a cidade de São Paulo presenciou, silenciosamente, o assassinato de 12 adolescentes vitimados pela ação violenta da polícia em repressão ao um baile Funk em Paraisópolis, há um ano. A aliança macabra entre Covas e Dória faz nosso povo sofrer, seja no espelhamento das políticas de segurança pública que fazem da guarda municipal tão violenta quanto a PM, sobretudo covarde no trato com pessoas em situação de rua e trabalhadores ambulantes, seja também nas políticas da assistência social, na precarização e terceirização de serviços públicos, na desvalorização do funcionalismo, nas politicas privatistas e de diminuição do estado de direito. O PSDB é germe do bolsonarismo que contaminou o país e que fez da população negra, mais uma vez, o principal alvo. Precisamos derrotá-los!
Neste segundo turno das eleições municipais em São Paulo, temos em Boulos e Erundina a possibilidade de virar o jogo e eleger uma gestão municipal comprometida com a vida do povo negro, que estabeleça como prioridade o enfrentamento ao racismo em suas mais diferentes expressões e intersecções. Para tanto, Boulos e Erundina devem caminhar lado a lado com os movimentos negros e periféricos, e reconhecer o movimento negro de São Paulo como força política consistente que é. É muito importante a criação de canais de diálogo, participação e construção real e por dentro, do próximo governo. A população negra organizada deve compor a gestão dos serviços públicos e da máquina pública a partir de pessoas negras orgânicas desses movimentos e suas pautas e reivindicações devem ser acolhidas.
A partir deste compromisso público junto às pautas dos movimentos negros, também sinalizadas em documentos orientadores da Coalizão Negra por Direitos e da Convergência Negra, convocamos todos aqueles que estão comprometidos com a luta antirracista, periférica, e de valorização da cultura popular a eleger Boulos e Erundina 50, e construir um amanhã preto, periférico e popular para a cidade de São Paulo!
Poetisa, escritora e atriz Elisa Lucinda fala sobre o racismo estrutural no Brasil no momento em que mais um negro é assassinado por "seguranças"de um supermercado
Por Elisa Lucinda, especial para os Jornalistas Livres
Hoje comemoramos 18 anos do Parem de Falar Mal da Rotina em cena e nesse tempo o conteúdo e suas formas foram também se transformando. Quem acompanha o espetáculo desde que nasceu, sabe que dentro dele há o tema do racismo e é parte importantíssima do roteiro. Me lembro que quando começamos esse trabalho os ouvidos eram mais turvos, as cabeças mais obtusas, os egos mais encastelados numa redoma em que era mais difícil se admitir o racismo. Já na primeira versão o Parem falava de cabelo ruim versus cabelo bom e protestava: “Meu cabelo é ruim por que, fez alguma coisa com o senhor?” De lá pra cá a “piada” ainda provoca riso mas algo mudou. Acredito que nas grandes cidades e nos espaços intelectuais e acadêmicos começa a ser admitida a possibilidade de assumir essa triste condição de racismo estrutural que infelizmente está entranhada na vida brasileira. Quero dizer que não é mais tempo para adiar o tema no divã de cada um. Não dá mais. É rasteira nas pernas dos progressistas, é uma grave contradição no discurso dos revolucionários. Quem no Brasil lutou contra a desigualdade e não fez nessa luta um recorte racial e de classe, me desculpe, mas não lutou contra a desigualdade. Ou ao menos deixou de ver o óbvio e essa não visão fez falta na análise final. Tornou fajuta aquela grande dissertação, aquela tese. Estou falando que só agora, grandes amigos meus, inteligentes, respeitados, alguns famosos, têm me confessado o quanto passaram grande parte de sua vida achando que raramente encontrar negros gerentes de banco, de empresas, protagonistas de novelas, dirigindo cinema, parlamentos, cidade, Estados e país era mera coincidência. Muita gente até aqui acreditou que 56 % da população brasileira estava desconsiderada e excluída unicamente por por falta de mérito próprio, por falta de competência. Creia-me, existe uma certa “inocência” branca, uma nebulosa visão sobre toda a injustiça exercida contra indígenas e negros desde o começo de nossa história em que é vista como uma simples coincidência.
André Rebouças, o mesmo que construiu o que é hoje a sede carioca da Ação e Cidadania, na Barão de Tefé, o primeiro prédio feito por mão de obra negra remunerada, era um engenheiro abolicionista, que fez muito mais que o Túnel Rebouças, sua proposta era uma república nova com a abolição: cada negro liberto, receberia uma terra para plantar, seria alfabetizado, seria indenizado pela escravização e teria acesso aos estudos. O bravo abolicionista e seus colegas perderam essa batalha. Não venceu a sensatez e, embora em nome de Deus tenha sido feita a nossa colonização, também não venceu a bondade. Ainda que, na sequência à imigração européia tenha sido oferecido terra e trabalho remunerado, o mesmo não se deu com a população negra, nem com a indígena. A branquitude sempre foi genocida com esses povos desde os primeiros contatos. Portugueses desembarcaram aqui doentes, sujos, famintos, perdidos em terras estrangeiras. Foram pelos indígenas curados, alimentados, banhados. Quando se viram recuperados trataram de trair os nativos. Quem nos colonizou sequestrou negros, estuprou indígenas, matou tribos inteiras na base do engano e da discrepância de recursos. Cheio de covardia e violência é o passado, cheio de covardia e violência é o presente. O que não se esperava era esse Brasil novo, disposto a botar fogo no parquinho a partir da morte de George Floyd, o que não se contava era com o resultado do sistema de cotas que fez com que os desconsiderados sociais entrassem nas universidades e derramassem dentro dela o seus saberes. Afinal, negros trazem a honra de terem sido os primeiros homens da Terra. Por muito fomos só nós, nos primórdios. O branco veio depois. Para dar só alguns exemplos, negros trazem a medicina, a arquitetura, a aritmética, a geometria, a engenharia, o papel, a escrita na bagagem de suas criações. Exigimos respeito. Há um Brasil recente feito de cidadãos que cresceram com seus cabelos crespos, conscientes de suas belezas, seguros de sua nobreza.Um Brasil que sabe que é diáspora, que veio do continente africano, que veio do Congo, país exemplar na arte da diplomacia, antes do sangrento negócio nos mares. Antes da carnificina, do sequestro e tráfico de pessoas negras, a África já tinha seu funcionamento coletivista e até monarquias à sua maneira. Hoje temos um Brasil que sabe que não descende de escravizados mas antes, de uma África anterior a essa safadeza. Cruel foi o nosso holocausto. Esse Brasil está disposto a mudar a cara das eleições. Esse Brasil se candidatou. Esse Brasil também tem sido eleito.
Concomitantemente, a cada hora uma pessoa branca se revela antirracista e quer mexer no seu lixo. Está disposta a meter a mão na própria cumbuca. Sabe que vai encontrar a deslealdade no jogo. Sabe que não é por acaso que nem ela e nem ninguém da família dela pode se casar com negro, sabe que muitas fortunas vieram de mão de obra praticamente escravizada. E estão correndo atrás. Concordo. Paga um mico imenso o racista hoje. E eu quero que fique constrangedor, que as pessoas de “bem” que vão às festas de aniversário de criança levando as babás dos seus filhos uniformizadas ainda por cima, se sintam constrangidas. A cada hora destampa-se mais um bueiro. Por exemplo, no ano passado eu fiz vários filmes, nove, precisamente, e nos últimos tempos, felizmente, tenho recebido muitos convites para o audiovisual. Então me vejo pela primeira vez com uns oito roteiros para ler. Agora depois de trinta e quatro anos vivendo na Cidade Maravilhosa! Imediatamente me lembrei de amigas minhas da mesma geração, só que brancas, e que há muitos anos estão sempre dizendo “que têm muitos roteiros para ler.” Eu me perguntava por que eu não recebia a mesma quantidade de convites? Por que era raro? Se eu contasse para uma amiga branca isso ela dizia que era paranoia minha. E quando eu perguntava a um produtor de elenco sobre a possibilidade de eu fazer esse ou aquele filme, a resposta era sempre a mesma “é difícil papel pra você; não tem papel pra você”.
Aviso ao leitor, isso aqui não é mimimi, isso aqui não é vitimismo, isso aqui é aquilo chamado fato acontecido do qual, por muito tempo, não havia nem espaço para falar. Felizmente há brancos abrindo suas redes para ocupações e há brancos dispostos a falarem os seus salários. Sim, dos seus salários, e por que? Há uma discrepância gigantesca entre o salário profissional negro e do profissional branco. Ponto. É verdade, ninguém inventou essa informação. A gente sempre soube que era diferente mas não sabíamos da proporção. Ninguém é obrigado a falar publicamente quanto ganha, mas podemos conversar pontualmente cada um com nossos amigos e estarmos preparados para a ajustar descalabrosa diferença. Se algum sindicato levasse a sério o tema, daria até cadeia, penso eu. Eu mesma tive um produtor que me disse logo que veio trabalhar comigo, quando soube do valor do meu cachê: “Nossa, isso é cachê de…” e citou uma atriz branca. Me lembro que fiquei chocada. O que será que ele queria me dizer? Somos duas artistas no mesmo mercado e eu ainda com o diferencial de ser escritora. De que será que ele falava? O que é que esse infeliz queria me dizer? Abriu-se a caixa de Pandora. Rompeu-se aquele silêncio e não somos mais tão poucos no corredor das vozes ouvidas. Estamos cada vez mais em bando e se cada um de nós é obrigado a se superar, a ser exímio em cada trincheira, nos imagine em grupo.Há muito tempo os movimentos sociais, em especial o movimento negro, vêm empunhando essas bandeiras e denunciando os mesmos absurdos que escrevi aqui. Mas só agora a branquitude parou para ouvir e descobriu que era ignorante, descobriu que quando estudou literatura, filosofia e cultura universal, ficou faltando a África. Descobriu que ser conhecedor somente da mitologia grega sem saber distinguir Exu de Oxum como bem mostra a mitologia negra, revela um déficit imenso na sua subjetividade. Toda a cultura universal ocidental que só se referenciou na sabedoria europeia é capenga, deficitária. É uma teoria falha porque falta-lhe um pedaço. Arrogante, o colonialismo ainda insiste em chamar a língua nativa dos povos de dialeto. E a voz dominadora de língua. Pois é, meus amigos, essa é a bagunça que temos nas mãos para organizar o caminho do que poderia se chamar o futuro de uma civilização. Para isso precisamos cuidar do presente.
Agora, nesse mês da Consciência Negra, algumas vezes eu tive que dizer: “Não aceito esse trabalho, não faço esse trabalho escravo, principalmente no mês da Consciência Negra, minha consciência não deixa! Fico achando sádico ser chamada para trabalhar de graça, para falar de antirracismo de graça, num mercado chefiado por brancos onde já valemos menos, e que nos obriga a lutar direitos all the time. Tem hora que dá cansaço. Flávia Oliveira costuma dizer quando perde a paciência com o que chamamos de white fragility: “Ai, gente, não é isso que eu queria dizer, será que isso é racismo? Eu não tive a intenção, minha babá é negra.” É quando Flavinha responde: “Ah, meu bem, o bloco de ensino fundamental é noutro prédio”.
Por fim, fiquei estarrecida ao concluir mais uma obviedade: Ora, a ideologia escravocrata justificou o domínio sob nossos corpos acorrentados com uma teoria genética de inferioridade étnica. E tentou-se inutilmente embranquecer o Brasil com base nessa teoria eugenista. Ora, mas a pergunta que não quer calar é a seguinte: Se somos geneticamente inferiores, por que será então que é preciso roubar no jogo? Os brancos não ganhariam num jogo limpo? Enquanto fica a pergunta, chamo a branquitude esperta para a luta, para o aquilombamento contemporâneo. Por que não estudamos o Quilombo do Palmares é que não sabemos que nele viviam abolicionistas brancos, poetas, revolucionários, gays, humanistas, artistas, bravos anti escravagistas que se embrenhavam na luta contra aquele cancro social instalado. O racismo e sua necro política é um problema dos brancos e possui muitas formas de matar os pretos. Por isso é coisa para ser tratada imediatamente nesta hora furuncular. O cineasta Joel Zito Araújo sugere que todo dia é preciso matar o racista que existe dentro de cada um. Pois até quando vamos permitir e colaborar com o apartheid onde vivem os filhos brancos de tanta gente “bacana” brasileira? Quando Marthin Luther King fala contra o silêncio dos bons, é disso que ele estava falando, da grande omissão que muitas pessoas evoluídas, instruídas oferecem secularmente a essa causa. Eu vou repetir: No “esporte” da disputa econômica e social brasileira, os competidores não saem da mesma raia, não recebem o mesmo treino. De modo que os que não têm técnicos nem vitaminas, nem mestres, nem intercâmbios ficam predestinados pela sujeira do jogo, a limpar os sapatos dos campeões. Chega. A justiça, meus atentos leitores, é uma questão matemática. E o erro nosso não acontece na conta de somar, nem de multiplicar, nem de diminuir. O erro, minha cara gente branca, é na conta de dividir. Enquanto escrevo mais um negro é assassinado na porta do Carrefour.Todo racista está envolvido neste crime.
20 de novembro, pelo Direito ao direito, fim de primavera, 2020.
A TV 247 produziu, na tarde do Dia da Consciência Negra, o Documentário "Povo Negro Unido é Povo Negro Forte", evidenciando a revolta popular contra a rede de supermercados Carrefour, em que dois seguranças, em Porto Alegre, assassinaram brutalmente João Alberto Silveira Freitas, um homem negro, pai de quatro filhos. O trágico evento gerou comoção no Brasil e no mundo e foi o mote principal das manifestações em São Paulo nesta sexta-feira 20.
As entrevistas gravadas mostram de perto o sentimento de revolta da população negra diante de mais um caso de brutalidade e racismo no Brasil e o momento em que uma unidade do Carrefour, na Rua Pamplona, em São Paulo, foi alvo da revolta popular.