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O CORRESPONDENTE

Os melhores textos dos jornalistas livres do Brasil. As melhores charges. Compartilhe

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O CORRESPONDENTE

21
Jul20

Com essa "bobagem de corrupção só dos políticos" lava jato elegeu Bolsonaro

Talis Andrade

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II - “A Lava Jato foi desde o começo uma máfia”

Amanda Massuela entrevista Jessé Souza 

 

Em Guerra ao Brasil você fala sobre como a dominação estadunidense moderna é baseada no chamado soft power. Qual foi o papel da corrupção na construção desse processo de dominação no contexto brasileiro?

A corrupção só da política foi utilizada no Brasil pelo Estados Unidos para invisibilizar quem realmente rouba, que é a elite americana e brasileira. Os EUA são, possivelmente, o país mais corrupto do mundo. O capitalismo financeiro americano é montado na corrupção, na existência de paraísos fiscais que lavam a evasão global de impostos e todo tipo de dinheiro sujo. Então eles criam uma lei contra a corrupção [Foreign Corrupt Practices Act, que permite o Departamento de Justiça punir atos de corrupção de empresas estrangeiras mesmo que não atuem em solo estadunidense] não para atacar as suas próprias empresas, mas para atacar as empresas de países que querem enfraquecer. Uma vez que imaginam a América do Sul como um quintal que deve produzir matérias primas e ser importador de bens, usam o pretexto da corrupção para atacar nossas empresas toda vez que o Brasil tem maior inserção internacional ou se alça como potência regional, com grandes empresas como a Petrobras e a Odebrecht agindo no mundo todo.

 

Foi isso o que a Lava Jato fez?

Sim. Para entendermos por que a corrupção é o grande ponto aí, precisamos compreender a hierarquia moral do Ocidente. Tudo que é considerado nobre e superior está ligado às três dimensões do espírito, segundo Kant: inteligência, moralidade e estética – especialmente a moralidade. Quando você ataca um povo inteiro dizendo que ele é corrupto, está enfiando uma lança na autoestima deste povo e é por isso que a corrupção é utilizada como arma para manipular um povo sem autoconfiança. Mas não se trata de EUA contra o Brasil, e sim de uma elite americana associada a uma elite dependente e subordinada brasileira contra a maior parte do povo americano e a quase totalidade do povo brasileiro. Uma aliança entre elites que conseguiu convencer o povo de que a causa dos problemas brasileiros é a corrupção na política e que o povo brasileiro é corrupto e portanto, inferior, criminalizando a soberania popular. Isso foi aceito pela esquerda e pela direita, sem exceção. Então não é preciso de fato guerrear com esse povo, porque ele já está de joelhos.

 

Bolsonaro é o produto final desse processo?

Sem dúvida alguma. Tudo o que o Steve Bannon utilizou com Trump nas eleições americanas foi utilizado por Bolsonaro na eleição brasileira sem tirar nem por. Ficou muito claro pra mim, com Bolsonaro, que o racismo racial é a linguagem como se articulam todos os outros racismos no Brasil – de classe, de raça e o racismo entre culturas. Depois dos anos 1960, nos EUA, quando os negros entram pela primeira vez na esfera pública de modo importante na campanha pelos direitos civis, o racismo americano não pode ser mais ser dito de modo direto para a grande massa dos americanos. Então o Partido Republicano adota o que se chama de estratégia sulista para criar uma guerra contra o crime e contra as drogas sem precisar dizer que era uma guerra contra os negros. O criminoso então deixa de ser o cara que passa um trilhão para os banqueiros embolsarem e passa a ser o cara que tem uma bituca de maconha no bolso ou que está vendendo maconha na esquina, porque não tem acesso a nenhum outro emprego. Essa fabricação do criminoso também aconteceu no Brasil e Bolsonaro se aproveitou disso. Assim como o racismo americano depois da década de 1960, o racismo racial brasileiro não pode se assumir como tal desde a década de 1930, porque Getúlio Vargas usou as ideias de Gilberto Freyre de que o povo brasileiro é mestiço e que isso não tem problema nenhum, é preciso incluir esse povo. Incluir a classe trabalhadora era o projeto social mais importante para Getúlio. O projeto montado pela elite de São Paulo e de seus intelectuais com essa "– na verdade um pau mandado da elite – é um falso moralismo e uma máscara para o racismo.

 

Por quê?

Porque a elite quer o orçamento público – pago pelos pobres – para roubar enquanto a classe média branca quer os privilégios educacionais sem competição dos mais pobres. Transformar o canalha racista em campeão da moralidade é uma forma de manter a reprodução de privilégios dessas duas classes, enquanto a sociedade se mantém desigual, perversa e odienta. O tema da corrupção no Brasil só serve para isso. A questão que os cientistas sociais têm que se colocar não é a corrupção, é o racismo, porque essa classe média só sai à rua quando tem algum governo querendo inserir mestiços, negros e pobres em lugares de privilégio. É racismo. As duas teses de Bolsonaro foram combate à corrupção, coisa dessa classe média morista falsa moralista, e a suposta guerra contra a criminalidade. A novidade bolsonarista é transpor esse racismo para o nível das classes populares, algo que já vinha sendo construído há algumas décadas pela banda podre das igrejas evangélicas, que ajudam na criação artificial do pobre delinquente – para diferenciá-lo do pobre honesto, que é o evangélico. Diz-se a esse pobre: “‘você, que é humilhado e cuspido, agora já pode se considerar melhor do que alguém”. Essa dimensão moral e afetiva humana da distinção social é tão importante quanto um prato de comida. Nas classes populares, a igreja evangélica vinha fazendo isso para mostrar que o evangélico é um pobre honesto e que o delinquente é o homossexual, a “prostituta”, o “bandido”. Vai-se criando conflitos mirando a solidariedade do homem branco pobre e do evangélico, de modo a para quebrar por dentro a solidariedade nas classes populares. Esta estratégia da Igreja evangélica de angariar fiéis se casou perfeitamente com Bolsonaro, o representante miliciano que vai representar o racismo do pobre remediado e do branco que não ascendeu. São esses os racistas brasileiros, que se sentem humilhados pelo conhecimento legítimo do branco estabelecido – por isso todo apoio dessa classe contra universidade, arte e conhecimento – e que buscam alguém para canalizar esse ressentimento. Isso não existia no Brasil, e foi o que Bolsonaro – na verdade Bannon – montou. É uma estratégia da extrema-direita americana, que vem se constituindo desde os anos 1970. Daqui uns cinco ou seis anos sai o Telegram mostrando como essa coisa foi montada. Mas a gente não precisa disso, podemos só usar a nossa inteligência.

 

Se Bolsonaro foi o produto final desse processo de dominação, a Lava Jato foi a ponte?

Sem dúvida alguma, sem a Lava Jato não teria Bolsonaro. A Lava Jato queria tirar o PT do poder para por o PSDB e acabou por criminalizar toda a política, o que é um terreno perfeito para o surgimento de um cara como Bolsonaro como via de salvação para a moralidade pública. Mas a Lava Jato foi desde o primeiro dia um projeto político. Moro ia para os EUA aprender com o FBI desde 2007, sete anos antes da Lava Jato. Isso foi montado. A Lava Jato foi desde o começo uma máfia. Não é uma acusação oca, é uma análise. Ela não observou nunca nenhuma ordem legal, foi criminosa e contraditou a lei o tempo inteiro por conta da blindagem midiática elitista que a protegia. E é muito importante que a gente diga que a Lava Jato não causou só uma perda em dinheiro, não acabou só com infraestrutura, com milhões de empregos, com a pujança econômica do Brasil, não só empobreceu o país. Ela destruiu consensos democráticos extremamente difíceis de construir. Muita gente deu a vida por isso, seja porque foi assassinado ou porque empenhou a vida nisso. São ao menos duas gerações que lutaram para transformar a fé na democracia num desejo de todos os brasileiros, e isso é frágil. Esses 50 anos desde a luta contra a ditadura pela democratização foi o que a Lava Jato ajudou a destruir. O Brasil tem hoje consensos autoritários, mais do que jamais teve, e isso é produto do que essa operação fez, jogando com o tema da honestidade do modo mais hipócrita possível, enquanto destruía o âmago de uma democracia.

 

Você falou em uma live no seu Instagram sobre a necessidade de não pessoalizar essa questão, de não transformar essas análises sobre Moro ou Dallagnol, mas sim sobre as instituições. Isso não os desresponsabiliza?

Acho obviamente que Moro e Dallagnol devem ir para a cadeia. Espero que vão. Mas personalizando a gente não aprende nada. Para que isso nunca mais aconteça no futuro, precisamos entender o que tornou essa máfia morista e dallagnoista possível. Isso tem a ver com um Ministério Público e um Poder Judiciário elitistas, de uma gente horrível que odeia o próprio povo, que o despreza e que age impunemente porque são julgados pelos amigos, com os quais têm mil relações e interesses a compartilhar. Se você manda Moro e Dallagnol para a cadeia, mas esquece de reorganizar e reestruturar o Estado e os consensos sociais, é óbvio que isso vai acontecer de novo. Vai aparecer outro Moro com outro nome. É claro que é preciso criminalizar pelo que eles fizeram, mas toda compreensão ampla deve ser institucional. A imprensa também, que mentiu o tempo todo sabendo que estava mentindo. Tem que ter um controle externo da imprensa, que garanta pluralidade. Temos que aprender a perceber quais foram os fatores estruturais e institucionais que permitiram essa catástrofe para além de culpabilizar apenas indivíduos. O mundo não é feito por pessoas. As pessoas vão assumir conjunturalmente um papel, mas o mundo é feito por articulações muito maiores e mais importantes.

 

Vê saídas à esquerda para isso?

Sim, mas vejo também falhas. Eu sempre disse que num caso como o Brasil, para que você possa explicar às pessoas o que está acontecendo, é preciso atacar o tema do uso falso moralista da corrupção, que está aí há 100 anos. Não é possível retirar todo o poder da elite rentista sem tocar na única legitimação que ela têm para se manter no poder que é esse uso da corrupção para enganar os próprios pobres, estigmatizar, criminalizar e enganar o voto popular. Eu não vejo ninguém na esquerda tematizar e nem ter efetiva clareza em relação a isso, é uma coisa que me deixa extremamente preocupado. Não tem mobilização de base, ninguém está usando o dinheiro dos partidos para educar as massas. Não existe nada mais importante do que isso. As pessoas precisam ser educadas. As pessoas que comandam partidos, que são de classe média, imaginam que quem é pobre pensa o mundo como elas, com as mesmas categorias, com o distanciamento em relação ao mundo que elas têm – que é um privilégio de classe, você poder refletir distanciadamente e ver como as coisas realmente acontecem. Não é assim que os pobres veem o mundo, mas os políticos de classe média imaginam que seja. Eu vejo aí enorme falhas. Claro que individualmente há muita gente fazendo o melhor que pode, não quero ser injusto, como Flávio Dino, Boulos, Freixo, uma geração de políticos talentosos, mas ainda sem uma percepção adequada de como montar, recuperar a inteligência desse povo oprimido, que pra mim é a grande questão. Isso não se resolve com estratégia eleitoreira, mas só por meio de ideias e esclarecimentos, que faltam em todo lugar. Tenho essa preocupação muito grande e acho que ela é extremamente importante para qualquer projeto que seja de mudança do nosso país.

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02
Jul20

AFINAL, QUEM É O GUARDÃO DA CONSTITUIÇÃO?

Talis Andrade

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por Caio Henrique Lopes Ramiro e Tiago Clemente Souza/ Empório do Direito 

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De algum tempo pode-se observar algumas interpretações bastante curiosas da Constituição Federal de 1988. Publicamos nesse espaço alguns dias atrás texto a respeito da polêmica interpretação do artigo 142 da Constituição da República[1], cuja hipótese é a de uma estranha recuperação da distorcida ideia e instituição de um poder moderador atribuído às forças armadas, a fim de defender uma leitura senhorial do documento constitucional, o que implica em um funcionamento tutelado das instituições. Na ocasião, retomamos a seminal hipótese de trabalho do professor Paulo Bonavides a respeito da crise constituinte no Brasil, apresentada em textos de intervenção pública nos anos de dabate da constituinte de 1988 e reunidos no livro Constituinte e Constituição. Para Bonavides é possível reconhecer a permanência de uma crise constituinte na histórica constitucional do Brasil, bem como um déficit de legitmidade em alguns documentos constituicionais, haja vista a ausência do povo e da representação de seus interesses, desse modo, de verdadeiros processos constituintes originários. O poder originário dos governados teve sua soberania bloqueada e golpeada em sua temporalidade constitucional, uma vez que continuamente foi usurpado por um simulacro de constituinte ou mesmo por golpes de Estado, com a instauração de regimes ditatoriais. Assim, Paulo Bonavides argumenta que, em regimes democráticos e sistemas políticos que funcionam normalmente, alguns valores são pressupostos e suportam o funcionamento das instituições, guiando a vida pública e a liberdade dos cidadãos, o que permite, então, reconhecer a constituição como imagem da legitimidade institucional e valor supremo que limita os poderes, não sendo apenas um mero pedaço de papel, tão familiar aos sombrios regimes de culto ao arbítrio personalista e sem participação popular, como as ditaduras.

Ainda no cenário de debates da constituinte de 1988, o professor emérito e ex-reitor da Universidade de Brasília Roberto Aguiar apresenta ao público um interessante livro cujo título é: Os militares e a constituinte: poder civil e poder militar na constituição. Aguiar desenvolve seu argumento em três movimentos, a saber: primeiro ele analisa as constituições brasileiras com foco nas mutações do conceito de Forças Armas; doravante examina a questão em termos de direito comparado para, por fim, propor um critério para leitura correta desse conceito e de seu papel na constituição. É interessante destacar que a partida do primeiro movimento se dá com um diagnóstico muito próximo ao de Bonavides, ou seja, de que há uma ausência da participação popular, ou, mesmo, uma participação muito tímida no processo constituinte; o que não pode ser compreendido como alienação ou imaturidade do povo em termos de organização política e reivindicação de direitos, mas, sim, tal ausência é determinda pela própria história constitucional do Brasil, que é marcada pela outorga de documentos constitucionais que refletem os interesses e privilégios históricos “dos grupos hegemônicos da sociedade”. Dessa maneira, Roberto Aguiar vai além e destaca que essa perspectiva de garantia de privilégios de grupos hegemônicos da sociedade brasileira ─ e não se trata aqui do reconhecimento de direitos humanos a minorias historicamente oprimidas ou mesmo de categorias profissionais e de servidores civis do Estado ─, não se limita a constituição, mas irradia sua presença a todo ordenamento jurídico brasileiro.

O ponto interessante a se observar nesse momento é o da ideia de representação, tomando em consideração o curioso manifesto dos “504 guardiões da Nação”, publicado no último dia 18 de junho. A representação se tornou, desde algum tempo, uma questão de debate para filósofos, juristas e cientistas políticos que, a despeito das distintas épocas em que desenvolveram suas reflexões, bem como as diferenças de doutrina e método, concordam a respeito da importância da problematizção de tal conceito em marcos sócio-jurídico-políticos de uma boa e justa organização da sociedade humana. Em termos conceituais, a ideia de representação se apresenta bastante difícil e, em linhas muito gerais, inspirados na hipótese de Hanna Pitkin, podemos compreendê-la aqui em sentido de sua figura jurídico-política como o esforço de tornar presente, na esfera institucional, um ausente. Essa imagem do conceito de representação ganha contornos peculiares no Brasil, uma vez que a ausência popular ─ como vimos com Bonavides e Aguiar ─, não se trata somente de uma ficção, como ocorre para pensar o funcionamento da representação parlamentar no Estado de Direito. Não obstante, destaca-se que há um diagnóstico crítico acerca da representação política, em especial no que diz respeito a sua configuração quase que exclusiva em termos bastante estreitos de defesa, justificação ou representação de interesses na esfera estatal do poder legislativo, cuja legitimiade é dada por processos eleitorais periódicos e que não dariam conta de absorver o poder de ação dos representados e que, hodiernamente, possibilita o reconhecimento de ações políticas de confronto dos representados com as pessoas que agem em nome deles. Diante do que restou dito até aqui, circunscrevemos nossa análise à questão peculiar a ser notada no Brasil, a ideia do povo ausente, e como ela se liga justamente a imagem clássica da representação popular legitimida pelo voto e a figura do guardião da constituição.

Nesse sentido, nos restam algumas indagações quanto à autolegitimidade proclamada pelo grupo “504 guardiões da nação”: os 504 guardiões representam quem? Há possibilidade de catalisar a chamada “vontade popular” por um grupo representante de uma elite castrense? Há, ao menos, uma legitimidade de representação dos interesses da minoria? Como avocam para si a legitimidade de representar o povo se não passaram pelo processo contemporâneo de atribuição de legitimidade ao poder?

Para as democracias contemporâneas não resta outro mecanismo de legitimidade do político-institucional que não os processos populares de eleição. Nesse sentido, os representantes eleitos pelo povo buscam catalisar a vontade de uma maioria, ainda que temporária e localizada. Trata-se, portanto, de um processo de legitimidade a priori, na medida em que há eleição para que os representantes possam falar por seus representados. As manifestações de propostas e planos de governo entram em disputa durante esse processo eleitoral e vencem aqueles que representam a vontade da maioria.

Quando tratamos de Cortes Constitucionais ou Supremos Tribunais, surge a questão já em alguma medida clássica da ausência de legitimidade popular para que estes possam tratar de assuntos caros e densos para qualquer comunidade, tais como o aborto, quotas raciais em universidades públicas, casamento entre pessoas do mesmo sexo, entre outras questões importantes. Entretanto, para o constitucionalismo contemporâneo, a legitimidade de referidos órgãos de cúpula se dá não necessariamente pela autoridade que lhe fora dada a priori, uma permissão prévia para decidir, mas, muito mais do que isso, uma legitimidade que é conquistada ao longo dos processos decisórios, em que cada julgador fundamenta e justifica racionalmente suas decisões, promovendo a verdadeira defesa dos direitos e garantias das minorias. Daí sua legitimidade decorrer da sua função contramajoritária, conquistada ao longo do processo de atuação.

Para autores como Reave Seagel, Robert Post, Jack Balkin entre outros que compõem a Escola de Yale e que desenvolvem importantes estudos sobre como se constrói em sociedades democráticas os sentidos da Constituição, as Cortes Constitucionais são somente um ator em meio a vários outros, que contribuem para a formação de sentidos constitucionais que perpassam pela disputa social de narrativas. Logo, o que a Constituição significa transita necessariamente por aquilo que o povo, ao longo da sua história, construiu e vem construindo mediante disputas.

Assim, a Constituição deve representar os valores nucleares estabelecidos em seu momento fundador e que foram sendo esculpidos e talhados ao longo da sua construção histórica. Dois pontos devem ser deixados em destaque neste momento, o primeiro diz respeito à manutenção, desenvolvimento e fortalecimento daqueles valores construídos e institucionalizados no momento fundador, tais como o Estado Democrático de Direito e Separação de Poderes. O segundo ponto, diz respeito à centralização da vontade popular, a importância das manifestações culturais, sociais, mediante organizações oficiais e não oficiais, para a construção do sentido constitucional. A tradução dessa vontade popular, ou seja, o processo de institucionalização daquilo que é reivindicado por movimentos sociais, pela sociedade civil organizada, por grupos oficiais ou não oficiais, poderá ocorrer pela pressão que estes oferecem aos órgãos oficiais, tais como o Poder Judiciário e o Poder Legislativo, que institucionalizam ou não as reivindicações.

Diante dessa dinâmica, a questão que se coloca é se o grupo dos “504 guardiões da nação” guardam efetivamente os valores fundantes da Constituição Federal de 1988? Ou seja, eles realmente guardam a Constituição? A ameaça à cúpula do Poder Judiciário e ao Poder Legislativo por si indica uma ruptura colossal e absurda aos valores instituídos pela Magna Carta de 1988, que vislumbrando a própria limitação dos Poderes estabeleceu a sua distribuição e separação, buscando inspiração no clássico ideário de Montesquieu e dos textos dos Federalistas. Daí se vislumbra, portanto, uma contradição de forma, na exata medida em que buscam mecanismos democráticos para defender resultados antidemocráticos.

Por outro lado, o povo, como titular do poder, não será substituído por um grupo de militares e as facções de simpatizantes. Não há outra possibilidade de se expressar a vontade do povo que não pelo próprio povo, pelos movimentos sociais, pelas instituições formais e não formais. O que os “504 Guardiões da Nação” representam diz respeito tão somente à vontade e intenção de um grupo elitista e conservador, que realiza um verdadeiro jogo de palavras para buscar aparente legitimidade popular, que de popular não guarda qualquer raiz.

Assim, recuperando a proposta de Roberto Aguiar, as forças armadas brasileiras estão submetidas e devem ser compromissadas com a força normativa da Constituição da República, bem como às práticas da democracia representativa, não cabendo mais o imaginário de que as armas podem funcionar como um árbitro voluntarista ou como um distorcido poder moderador. Tal hipótese, conforme ressaltamos em outra oportunidade, recoloca o país na via de uma profissão de fé na concentração de poderes e na negação de toda herança do constitucionalismo que eclode no período das Luzes, com a defesa de um horizonte sombrio e da ideia, não de um Guardião da Constituição ou da nação, mas, sim, da hipótese de existência de uma magistratura de crise e da justificação de uma figura senhorial para a Constituição, uma herança do direito romano que ─ conforme Tito Lívio, Marcus Valerius, Titus Lartius e Marco Túlio Cícero ─, funciona como instrumento na luta política interna contra os plebeus, ou seja, nos termos de nossos dias, contra o povo. Logo, para a garantia dos privilégios das elites romanas surgia o ditador, que não encontrava barreiras jurídicas para sua atuação, em especial para agir contra aqueles cidadãos que fossem considerados como inimigos da ordem estabelecida, desse modo, as hipóteses da existência de guardiões da nação somada à leitura do artigo 142 que defende o poder moderador no limite buscam pavimentar o caminho para uma ditadura e por essa via não pretendem proteger a Constituição Federal, mas, sim, quebrar o pacto fundante de 1988.

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Notas e Referências

[1] Ver RAMIRO, Caio Henrique Lopes: https://jornalggn.com.br/artigos/entre-o-silencio-e-o-entulho-autoritario-por-caio-henrique-lopes-ramiro/

 

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