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O CORRESPONDENTE

Os melhores textos dos jornalistas livres do Brasil. As melhores charges. Compartilhe

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O CORRESPONDENTE

24
Set23

"A fake news do banheiro unissex mostra que oposição não consegue debater os grandes temas do País"

Talis Andrade

lama fogo piche familia tradicional oleo.jpg

Nos tempos de Bolsonaro: casas sem banheiro, sem água potável, ruas sem saneamento, fogo nas florestas, rios envenenados, óleo nas praias, alimentos com agrotóxicos liberados

 

No governo Bolsonaro 5,5 milhões de pessoas viviam em locais sem um banheiro. E 35 milhões não tinham acesso à água potável e quase 100 milhões sofriam com a ausência de coleta de esgoto

 

No Brasil, no final do governo militar de Jair Bolsonaro, o número de residências sem acesso a banheiro era de 1,6 milhão, isto é, se considerarmos a média de 3,5 pessoas por residência são mais de 5,5 milhões de pessoas que vivem em locais sem um banheiro. Não obstante, cerca de 35 milhões de brasileiros não têm acesso à água potável e quase 100 milhões sofrem com a ausência de coleta de esgoto – enquanto apenas 50,8% dos esgotos do país são tratados, ou seja, são mais de 5,3 mil piscinas olímpicas de esgoto sem tratamento despejadas na natureza diariamente. 

Apesar desta triste realidade, fanáticos religiosos, candidatos conservadores da extrema direita, deputados e senadores bolsonaristas discutiam e discutem banheiro unissex, isto é, a construção de banheiros masculinos, femininos, trans, homossexuais, bissexuais e de lésbicas.

O ministro-chefe da Secretaria de Comunicação Social, Paulo Pimenta, concedeu entrevista ao programa Bom Dia 247 e repercutiu a ação do ministro dos Direitos Humanos e da Cidadania, Silvio Almeida, que irá enquadrar os deputados Felipe Barros, Nikolas Ferreira, além do senador e ex- juiz suspeito Sergio Moro e o ex-deputado Arthur do Val na Advocacia Geral da União (AGU), por propagação de notícias mentirosas ligadas ao governo sobre a criação de banheiros unissex nas escolas. >>> Silvio Almeida diz que Moro será investigado por espalhar fake news sobre banheiros unissex

“O grande desafio hoje é encontrar um equilíbrio entre a liberdade de expressão e a integridade da informação. No G20, vamos defender que o Brasil lidere um grande esforço internacional pela integridade da informação e da democracia”, iniciou.

“Há determinados temas que indicam desespero da oposição. É o caso do banheiro unissex, que envolveu o ex-juiz Sergio Moro. Isso mostra que a oposição tem grande dificuldade para discutir grandes temas”, notadamente a triste, vergonhosa, anti-higiênica, anti-salutar, doentia, desumana realidade: 

Mais de 5 milhões de brasileiros não têm banheiros em suas residências

ecocídio fogo lama oleo chumbo grosso.jpg

 

No sábado, dia 19 de novembro, é celebrado o Dia Mundial do Banheiro. Em 2003, a data foi instituída pela Organização das Nações Unidas (ONU) com o intuito de colocar em pauta o saneamento, visando estimular o debate e ações efetivas na busca soluções para universalizar os serviços básicos. Na “Agenda 30” criada pela ONU, entre  os 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), o número 6 da agenda propõe a meta de alcançar o acesso universal e equitativo de água potável e saneamento para todos

No Brasil, o número de residências sem acesso a banheiro são de 1,6 milhão, isto é, se considerarmos a média de 3,5 pessoas por residência no país, são mais de 5,5 milhões de pessoas que vivem em locais sem um banheiro. Não obstante, cerca de 35 milhões de brasileiros não têm acesso à água potável e quase 100 milhões sofrem com a ausência de coleta de esgoto – enquanto apenas 50,8% dos esgotos do país são tratados, ou seja, são mais de 5,3 mil piscinas olímpicas de esgoto sem tratamento despejadas na natureza diariamente. 

Tabela 1 – Indicadores de banheiros no Brasil, ano base 2019

Localidade

Moradias com banheiros (habitações)

Moradias sem banheiro (habitações)

População sem banheiro 

Brasil 

70.771.763

1.622.965

5.680.377,50

Norte 

4.878.186

531.449

1.860.071,50

Nordeste 

17.994.415

964.995

3.380.842,50

Sudeste 

31.436.466

82.703

289.460,50

Sul 

10.920.509

25.041

87.643,50

Centro-Oeste 

5.542.187

18.777

65.719,50

Fonte: Painel Saneamento Brasil

Entre as cinco regiões brasileiras que sofrem com a ausência de moradias sem banheiro, a situação mais preocupante é vista no Nordeste do país – cerca de 3,4 milhões dos habitantes não têm vaso sanitário, ou seja, quase 1 milhão de residências. Em seguida, na região Norte aproximadamente 1,2 milhão de moradores sem banheiro; no Sudeste são quase 290 mil nessas condições. Na região Sul a população que sofre com essa ausência é de 87 mil pessoas e no Centro-Oeste são 65 mil habitantes sem banheiros na residência.

A precariedade do saneamento básico vai além de apenas impactar a saúde, a falta do acesso à água e ao atendimento de esgotamento sanitário reforça até mesmo a desigualdade de gênero no país. Segundo um estudo realizado pelo Instituto Trata Brasil, em parceria com a BRK Ambiental, entre 2016 e 2019, o número de mulheres sem banheiro em casa cresceu 56,3% no período, passando de 1,6 milhão para 2,5 milhões. Ademais, a ausência de banheiros reforça a pobreza menstrual, um dos problemas agravados pelas más condições dos serviços básicos.

A Presidente do Instituto Trata Brasil, Luana Siewert Pretto, aponta que o acesso ao banheiro deve estar presente nas políticas públicas, visando zerar o déficit de banheiros com a universalização do saneamento básico. “A partir das metas estabelecidas pelo Marco Legal do Saneamento, o país precisará disponibilizar água potável para 99% da população e 90% dos habitantes devem ter acesso ao esgotamento sanitário até 2033. Durante esse período, a universalização também passa pelo acesso digno aos mais de 5 milhões de habitantes que ainda sofrem com a ausência de banheiros em suas residências.”

Para esconder essa realidade de país do Terceiro Mundo, o Brasil quebrado, o governo militar dos marechais de contracheque, dos coronéis do Ministério da Saúde, do general Braga interventor Militar do Rio de Janeiro, dos pastores do Ministério da Educação, o Brasil da segunda maior concentração de renda espalhava os famosos fake news dos banheiros unissex, da mamadeira de piroca (denúncia da família Bolsonaro presidente, Flávio senador, Eduardo deputado federal, Carlos vereador, Renan lobista palaciano) as cartilhas crack (denunciada por Damares Alves ministra hoje senadora), e gay (denunciada por pastores da igreja de Michelle (rainha Ester) Bolsonaro, presidenta do PL Mulher de Valdemar da Costa Neto. 

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Após espalhar fake news e ser acionado na AGU, Moro ataca Silvio Almeida

O ex-juiz suspeito e atual senador Sérgio Moro criticou neste sábado (23) o ministro dos Direitos Humanos e da Cidadania, Silvio Almeida, por acionar a Advocacia Geral da União (AGU) contra o ex-juiz após espalhar a notícia falsa que o governo federal estaria impondo “banheiros unissex” nas escolas públicas do país. "Temos um Ministro dos Direitos Humanos que se cala quando seu chefe Lula adula Putin e Maduro, ataca o TPI e ignora a importância de mulheres no STF. Mas está com tempo para ameaçar parlamentares por criticarem o Governo", afirmou o ex-juiz suspeito.

O ministro Silvio Almeida disse que quem espalha desinformação deve sofrer o rigor da lei. “Quem usa a mentira como meio de fazer política, incentiva o ódio contra minorias e não se comporta de modo republicano tem que ser tratado com os rigores da lei. É assim que vai ser”, disse o ministro em uma rede social. 

Lugar certo

 

A notícia falsa começou a circular após a publicação, na sexta-feira (22), de uma resolução tratando de parâmetros para o acesso e permanência de pessoas travestis, mulheres e homens transexuais, além de pessoas transmasculinas e não binárias, nos sistemas e instituições de ensino. A resolução é de autoria do Conselho Nacional dos Direitos das Pessoas LGBTQIA+. O texto diz que as instituições de ensino - em qualquer nível - devem garantir, entre outros pontos, o uso do nome social nos formulários de matrícula, registro de frequência, avaliação e similares nos sistemas de informação utilizados pelas escolas. Além disso, a resolução estabelece que deve ser garantido o uso de banheiros, vestiários e demais espaços segregados por gênero, quando houver, de acordo com a identidade e/ou expressão de gênero de cada estudante.

SUJEIRA lama meio ambiente.jpg

 
24
Set23

A evolução do Direito de Família pelo mundo (parte 3): o poliamor

Talis Andrade
 
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Por Mário Luiz Delgado

Concluo hoje a série de colunas sobre o 18º Congresso Internacional da ISFL (International Society of Family Law), que ocorreu entre 12 e 15 de julho em Antuérpia, na Bélgica, sem esgotar sequer a menção a todos os temas tratados [1].

Por isso, inicio por convidar os nossos leitores, não apenas os interessados no Direito de Família e Sucessões transnacional, mas também aqueles que queiram conhecer a experiência e as vivências de nossa área em outros países, para se associarem à ISFL e participarem de seus próximos eventos. A ISFL promove conferências regionais abertas a não membros em várias partes do mundo e um congresso mundial a cada três anos. A próxima conferência regional ocorrerá nos EUA em 2024.

Na última coluna, aludi à tendência crescente, no cenário internacional, de inclusão, no Direito de Família e Sucessões, das entidades familiares não binárias, ou seja, grupos com mais de duas pessoas, independentemente de conjugalidade e de parentalidade, mas submetidos ao mesmo tipo de proteção legal dada aos relacionamentos conjugais de duas pessoas (casamento e união estável) ou às famílias monoparentais e anaparentais.

O chamado poliamor (polyamory) foi destaque em diversos painéis na Universidade de Antuérpia. Estou convicto de que a grande rejeição, no Brasil, à regulação e à formalização dessa modalidade de família, com recorrente invocação, por alguns autores e tribunais, de violação ao princípio da monogamia como óbice, se deve, muito mais, a um preconceito machista, e a uma curiosidade concupiscente, sobre a natureza das relações íntimas entre os seus membros, do que a qualquer outra razão jurídica [2].

Tanto é assim que, se apartarmos a discussão da questão sexual, focando, por exemplo, em uma comunidade de três amigas idosas, solteiras e sem filhos, que convivem juntas, em comunhão de vidas e de patrimônio, mas sem relações sexuais, poucos se oporiam à equiparação desse trio (e não trisal) às demais entidades familiares, em direitos e obrigações. Essa constatação me leva também a concluir pela necessidade de "dessexualização" da família, expressão inspirada nos estudos de Giselle Groeninga, sobre a qual certamente voltaremos a tratar.

O fato é que o reconhecimento dessas pessoas, como um "núcleo amoroso" e familiar, não pode estar condicionado à prática de relações sexuais entre elas. Independentemente do que ocorra entre quatro paredes, e que se acoberta sob o manto da garantia constitucional da inviolabilidade da vida privada, deve-lhes ser assegurado o direito de combinar sobrenomes, o direito aos vínculos legais de parentesco, direitos sucessórios, alimentos, regime de bens, e tudo o mais.

A professora Nausica Palazzo, da Faculdade Nova de Direito de Lisboa, comentando a decisão do tribunal de despejos da cidade de Nova York (New York City's eviction court) no caso West 49th St., LLC v. O'Neill , de 2022, objeto de nossa última coluna [3], apontou, em sua conferência, para "a inevitabilidade de expandir noções de família por meio de argumentos baseados em funções. Se o foco estiver na capacidade de um relacionamento funcionar exatamente da mesma forma que uma família tradicional, então um conjunto maior de famílias merece reconhecimento legal". O Direito de Família deve se preocupar com as características e funções reais dos membros da família, em ter pessoas cuidando e apoiando umas às outras de forma confiável e duradoura, demonstrando comprometimento e confiança. A decisão, segundo ela, considera irrelevante, para a concessão das proteções legais, a questão de saber se o relacionamento é "bom" ou mesmo "emocionalmente abusivo", muito menos se eles praticavam sexo entre si, acrescento eu. A pretendida proteção contra o despejo liminar, afirmou Palazzo, "não deve se basear em distinções jurídicas fictícias ou na história genética, mas deve encontrar seu fundamento na realidade da vida familiar".

Kaiponanea Matsumura, da Loyola Law School, de Los Angeles, observou que, se por um lado uma primazia cultural do casamento sobre outras molduras de família socialmente reconhecidas decorre de ser o casamento supostamente mais estável do que outras formas de relacionamento, e que as propostas para reconhecer relacionamentos não conjugais geralmente giram em torno do fator "estabilidade", não é menos verdade que relacionamentos poliamorosos ou plurais também podem se revelar bastante estáveis e persistirem, apesar das idas e vindas de parceiros individuais. Segundo Matsumura, "estudos sugerem que as pessoas em relacionamentos plurais não estão menos comprometidas, satisfeitas ou confiantes em seus parceiros. Na verdade, eles relatam níveis ainda mais altos de satisfação e qualidade no relacionamento" [4].

Em outros termos, se a estabilidade foi um elemento importante na aceitação social de variadas formas de conjugalidade (como ocorreu com a união estável no Brasil), também é de ser levada em conta no reconhecimento de relacionamentos plurais, com ou sem coabitação.

Um relacionamento é considerado "estável", para Matsumura, quando é: respeitável (digno), altruísta (satisfaz as necessidades dos outros), exclusivo (sem parceiros externos) [5], financeiramente seguro, emocionalmente comprometido e longevo ou com expectativa de permanência.

A lei valoriza relacionamentos "estáveis", diz Matsumura, porque eles promovem dignidade, segurança jurídica, segurança financeira, ambiente de cuidado, conexões sociais e privatização da dependência econômica, pois o suporte material, em caso de dissolução, é devido pelos respectivos parceiros.

Se o Estado, por meio do Direito de Família, incentiva os relacionamentos estáveis em detrimento dos transitórios, negar a tutela estatal e condenar à invisibilidade as formações não binárias seria reconhecer que tais relacionamentos, entre mais de duas pessoas, são inerentemente instáveis, inferiores aos relacionamentos de duas pessoas e que não são dignos de respeito, restaurando, assim, uma inaceitável hierarquização das formas de constituição de família, há muito tempo banida pelo pergaminho constitucional.

A invisibilidade estatal no tocante a essas molduras não hegemônicas de família no Brasil, além de restringir a autonomia privada e a liberdade das pessoas que convivem dessa maneira, legitima uma indevida intervenção do Estado na vida privada, em clara violação à cláusula de barreira prevista no artigo 1.513 do CCB, segundo a qual é "defeso a qualquer pessoa, de direito público ou privado, interferir na comunhão de vida instituída pela família".

 - - -

[1] A profusão de temas discutidos nos quatro dias do congresso da ISFL é digna de nota. Menciono, a seguir, apenas os títulos de alguns painéis, para que se tenha a dimensão da grandiosidade desse evento: Justiça algorítmica para disputas familiares; Prevenindo a violência de gênero e familiar por meio da Inteligência Artificial: uma perspectiva multidisciplinar; O caso do 'contato herdado’ entre o direito à privacidade e o direito ao sucesso; Inteligência Artificial e Algoritmos no Direito de Família; Famílias Queer; Maternidade, gravidez de substituição e as novas famílias decorrentes; O que é um Parceiro: Relações Platônicas; Vida Humana Não Nascida ; Aborto e Direitos Reprodutivos; Autodeterminação Reprodutiva; Lei e intimidade; Análise jurídica dos direitos reprodutivos do pai, especificamente em matéria de aborto; Biotecnologias e "crianças perfeitas": como proteger o melhor interesse da criança quando os pais querem escolher as características genéticas de seus filhos?; A justificativa das medidas de proteção à criança durante a gravidez; Os direitos das crianças são suficientes?; A autonomia parental e os direitos e interesses dos filhos à luz das responsabilidades parentais; O direito de brincar: um direito dos menores, mas não um direito dos menores; Repensando a responsabilidade parental à luz dos direitos fundamentais das crianças na era digital; Reprodução medicamente assistida e o direito de conhecer as próprias origens; O direito da criança a conhecer as suas origens — existe um fosso entre a legislação e a prática jurídica?; O significado dos genes ; Os significados interdisciplinares das origens genéticas na concepção dos doadores; Guarda Física Compartilhada e Alto Conflito Interparental; Compreendendo as obrigações alimentares dos filhos: uma perspectiva ética relacional; Alienação Parental: Efeitos de Longo Prazo de Ordens Judiciais. Entre muitos outros.

[2] Não se pode equiparar qualquer relação íntima entre várias pessoas com a figura da poligamia, que pressupõe a existência de vários casamentos (poly/gammus). O princípio da monogamia, por sua vez, está implícito no ordenamento e é extraído a partir da interpretação do art. 1.566, inc. I, do CC, ao consagrar o dever de fidelidade recíproca entre os cônjuges, durante o casamento e desde que não haja separação de fato, entendida como causa de rompimento dos deveres. Em outras palavras, a monogamia refere-se à proibição expressa ao segundo casamento de quem ainda não dissolveu o anterior e à proibição à constituição de união estável de quem já é casado e ainda não se separou de fato.

[3] https://www.conjur.com.br/2023-jul-30/processo-familiar-isfl-evolucao-direito-familia-mundo-parte

[4] Segundo o conferencista de Los Angeles, "o casamento não surgiu como resultado de um movimento político, uma doutrina religiosa ou qualquer outra força motriz da história mundial, mas para atender a uma necessidade vital: garantir que as crianças são concebidas por uma mãe e um pai comprometidos em criá-los nas condições estáveis de um relacionamento vitalício".

[5] A exclusividade aqui não se confunde com a monogamia, no sentido de relações exclusivas entre duas pessoas. Mas relações exclusivas entre aqueles que integram o relacionamento plural.

 
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24
Set23

Evolução do Direito de Familia pelo mundo (parte 2): uniões não-conjugais plurais

Talis Andrade

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Por Mário Luiz Delgado

Escrevi aqui na ConJur, em outra oportunidade, em coautoria com o professor José Fernando Simão [1], sobre as diferenças entre famílias (co)parentais e famílias conjugais. Na ocasião, tínhamos em mente o rumoroso litígio envolvendo o inventário de um célebre apresentador de televisão, em que se discute a pretensão da genitora biológica de seus herdeiros de ver reconhecida uma suposta relação de união estável havida entre eles.

Volto agora ao tema em razão do 18º Congresso Internacional da ISFL (International Society of Family Law), que ocorreu entre 12 e 15 de julho em Antuérpia, na Bélgica, evento em que as questões envolvendo os chamados casais "não-conjugais", e sua eventual subordinação à regência normativa do Direito de Família, foi destaque em diversas conferências.

Duas ou mais pessoas, sem vínculo biológico ou legal, que convivem, na prática, como uma família, em um relacionamento longevo e com compartilhamento de despesas, estarão à margem da tutela estatal somente pela falta de conjugalidade (coabitação) entre eles? Por que irmãos afetivos ou amigos que residem sob o mesmo teto, com sentimento de fraternidade recíproca, não são dependentes previdenciários um do outro? Por que não podem invocar o direito real de habitação (CCB, artigo 1.830) sobre o imóvel de residência comum, em caso de falecimento de um deles? A evidência de relações sexuais remanesce como pressuposto para o reconhecimento de uma família? Como traçar uma linha entre "família" e "não-família" nessas situações? Parentes e familiares são sinônimos? Quem é e quem eu considero como membros da minha família [2]?

A conferência do professor Sally Goldfarb, da Rutgers Law School de Camden, New Jersey, no último congresso internacional da ISFL na Antuérpia, destacou exatamente essa questão, com acurada sensibilidade prática:

"[Nós] coabitamos continuamente…, contamos uma com a outra para apoio emocional e somos totalmente dependentes uma da outra financeiramente… No entanto, porque somos irmãs, em vez de marido e mulher, … nos negam benefícios fiscais, cobertura de saúde e uma infinidade de outras vantagens… Parece-nos que estamos a ser penalizadas por não casar ou viver com homens — ou mesmo com mulheres numa relação presumivelmente sexual. A possibilidade de relações sexuais..., sejam heterossexuais ou homossexuais, deve ser realmente o padrão pelo qual o governo, a lei e as corporações medem o direito de um cidadão aos direitos sociais e econômicos? Essa noção é completamente absurda e, no entanto, toda a nossa estrutura social é baseada nela" [3].

Para o professor de New Jersey, "embora tenham surgido novas formas de reconhecimento legal para relacionamentos adultos, elas geralmente são modeladas na conjugalidade (casamento/união estável). Como resultado, muitos relacionamentos adultos — incluindo relacionamentos multipartidários, não conjugais e não coabitantes — são amplamente invisíveis à lei. Reformar o Direito de Família para permitir o reconhecimento legal de uma gama mais diversificada de relacionamentos adultos promoverá a autonomia e estenderá as vantagens do reconhecimento familiar para muitas pessoas que agora carecem deles" [4].

Outra exposição a tratar da matéria foi proferida por Nina Dethloff, da Universidade de Bonn, na Alemanha, com foco nas relações adultas para além do amor: "quais são as relações que a lei protege — e o que ela deveria proteger?" (Adult relations of love and beyond Adult relations of love and beyond: What legal recognition and protection do they need?).

Dethloff observa que as formas de vida familiar estão se diversificando e, cada vez mais, relacionamentos íntimos nos quais as pessoas assumem responsabilidade umas pelas outras estão se formando para além do casamento e da família tradicional. Não apenas os casais conjugais, homo ou heteroafetivos, coabitam e convivem sob o mesmo teto, como também existem outras relações de afeto entre dois ou mais adultos, sem conjugalidade, mas com vínculo familiar eletivo, sejam pais solteiros que resolvem criar seus filhos juntos, idosos que optaram por uma vida em comunidade, irmãos ou adultos mais jovens que decidem compartilhar, não apenas a moradia, mas a vida e o cuidado um do outro, formando famílias por sua livre escolha. Sem falar nas pessoas que não estão em uma relação amorosa, mas que podem optar pela co-parentalidade, ou seja, decidir ter um filho e criá-lo juntos.

Essas relações afetivas não conjugais, normalmente, apresentam algumas características em comum, que nem sempre serão as mesmas, tais como: longevidade do relacionamento; compartilhamento de despesas domésticas ou familiares; participação conjunta em eventos familiares, celebrações, atividades sociais e recreativas. O importante é que, em nenhum caso, a evidência de uma relação sexual entre essas pessoas seria exigida ou considerada. São uniões não sexuais de pessoas adultas que se comprometem e se responsabilizam reciprocamente.

Nas palavras de Nina Dethloff, "não obstante as pessoas em um relacionamento não conjugal frequentemente convivam em uma moradia comum, isso não precisa ser o caso. Além disso, algumas relações são caracterizadas por uma completa separação de assuntos financeiros, enquanto em outras existem vários graus e formas de interdependência econômica devido ao trabalho de cuidado ou às contribuições financeiras de cada um. Em particular, quando uma ou mais pessoas assumem a responsabilidade pelo cuidado, quer seja em relação aos filhos ou a idosos, essas pessoas muitas vezes abdicam, pelo menos parcialmente, do seu próprio desenvolvimento profissional, sofrendo, assim, desvantagens na sua capacidade de ganho que só se manifestam mais tarde. Este também pode ser o caso ao se cuidar de uma pessoa doente, como uma sobrinha vivendo com sua tia em uma relação de cuidado" [5].

Em algumas jurisdições estão sendo discutidos regimes jurídicos mais abrangentes, para proteção de relacionamentos adultos, não confinados ao casamento ou à união estável, nem ao número de parceiros. A proteção atual, na maiora dos países, se limita a negócios jurídicos de direito privado (contratos, testamentos, DAV, etc), pouco eficazes perante o Estado e de eficácia limitada perante terceiros, diante das restrições impostas por normas de ordem pública do Direito de Família e das Sucessões. Muitas salvaguardas importantes para o trabalho de cuidado, como o direito a alimentos ou à sucessão legítima, ou ainda a representação em caso de incapacidade, quando estipuladas em contrato, são frequentemente afastadas por decisões dos tribunais, provocadas por pessoas com vínculo legal de parentesco, mas que nunca exerceram o cuidado.

Com o intuito de suprir essas lacunas, a professora de Bonn mencionou um projeto de lei do governo alemão, visando introduzir um instituto jurídico novo chamado de "comunidade de responsabilidade"
(Verantwortungsgemeinschaft), que não se circunscreve às relações amorosas (sexuais), abarcando e protegendo todas as situações, comunidades ou grupos convivenciais em que as pessoas tenham assumido responsabilidades umas pelas outras, fornecendo um quadro jurídico adequado para diferentes tipos de relações, com graus variados de proximidade. Havendo filhos, além das responsabilidades recíprocas, acrescenta-se a responsabilidade parental conjunta de dois ou mais adultos, como ocorre nas famílais coparentais
[6].

Para Nina Dethloff, essa "comunidade de responsabilidade" teria, como consequências jurídicas, "a equiparação às entidades familiares, para fins de inclusão em certas disposições estatutárias existentes em algumas áreas da lei. Além disso, se durante a existência da comunidade, os participantes individuais assumem a responsabilidade parental social, sem serem pais legais, devem poder gozar a licença parental e receber o subsídio parental independentemente do casamento ou da união estável. Um membro que deseja cuidar de outro deve poder tirar licença para cuidar da família. No caso de dissolução da comunidade, as seguintes consequências legais também devem ser previstas: o uso continuado do apartamento comum e dos bens domésticos deve ser concedido pelo tribunal a um membro que não seja o proprietário ou parte no contrato de locação. Uma certa compensação financeira também levaria em consideração a comunidade econômica que foi criada. Além disso, uma reivindicação de alimentos — limitada no tempo — parece apropriada. Se um membro da comunidade morre, um direito legal de herança para os sobreviventes parece concebível" [7].

Até agora, apenas alguns pilares foram definidos: o principal deles é que o novo regime não deve ser do tipo binário, restrito a duas pessoas. Dois ou mais adultos poderão ingressar neste novo instituto jurídico. De uma perspectiva comparativa, segundo a conferencista, seria um empreendimento verdadeiramente novo, pois as poucas jurisdições que regulamentaram as parcerias não conjugais e que protegem, especificamente, as relações de cuidado (com ou sem vínculo de parentesco entre as partes) restringem a proteção a apenas duas pessoas.

A ideia tedesca resolverá, por exemplo, a problemática regulatória das famílias poliafetivas, sem precisar adentrar na celeuma sobre o seu enquadramento ou não como entidade familiar. E muito menos sobre a natureza das relações íntimas entre os seus membros.

Uma realidade que constatei em Antuérpia é a de que existe uma tendência crescente, no cenário internacional, de inclusão, no Direito de Família, das entidades familiares não binárias. Naquele evento tomei conhecimento de uma importante decisão do tribunal de despejos da cidade de Nova York (New York City's eviction court) no caso West 49th St., LLC v. O'Neill , de 2022, em que se concluiu que os relacionamentos poliamorosos têm direito ao mesmo tipo de proteção legal dada aos relacionamentos de duas pessoas [8].

Mas o poliamorismo e os detalhes desse julgamento serão o meu tema para uma próxima coluna!

 - - -

[1] Famílias conjugais e famílias (co)parentais. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2020-mar-08/processo-familiar-familias-conjugais-familias-coparentais.

[2] Segundo o professor Teiko Tamaki da Universidade de Niigata, no Japão as respostas para essas questões "podem mudar ao longo do tempo à medida que envelhecemos, pois muitas pessoas experimentam uma mudança da família primária/ou biológica para a família originada por meio do casamento e do nascimento de filhos. Alguns estudos mostraram que as pessoas com quarenta anos ou mais tornam-se menos ligados à família primária e mais voltados para os seus. Não é incomum optar por reavaliar a importância da 'família' à medida que envelhecemos. As definições legais de família podem abranger indivíduos que provavelmente já não se consideram mais como 'família', não obstante os laços de parentesco os façam parentes entre si. Dadas as tendências atuais da sociedade — aumento da população solteira, redução da taxa de natalidade e 'super envelhecimento', especula-se como as pessoas cuja família está confinada à família de nascimento percebem a sua responsabilidade pelo cuidado e sustento desses familiares legais, não eletivos".

[3] Law Commission of Canada, Beyond Conjugality: Recognizing and Supporting Close Personal Adult Relationships 119 (2001). Tradução livre do autor, a partir da apresentação da professora Nina Dethloff, na Universidade de Antuérpia, por ocasião do 18º Congresso Internacional da ISFL (International Society of Family Law).

[4] Tradução livre do autor, a partir da apresentação do professor Sally Goldfarb, na Universidade de Antuérpia, por ocasião do 18º Congresso Internacional da ISFL (International Society of Family Law).

[5] Tradução livre do autor, a partir da apresentação da professora Nina Dethloff, na Universidade de Antuérpia, por ocasião do 18º Congresso Internacional da ISFL (International Society of Family Law).

[6] As famílias coparentais são caracterizadas pela inexistência de conjugalidade e cuja formação se deve ao único propósito de concretizar um projeto parental de paternidade ou maternidade, valendo-se, em grande parte dos casos, das técnicas de reprodução medicamente assistida (Cf. artigo citado em: https://www.conjur.com.br/2020-mar-08/processo-familiar-familias-conjugais-familias-coparentais) .

[7] Tradução livre do autor, a partir da apresentação da professora Nina Dethloff, na Universidade de Antuérpia, por ocasião do 18º Congresso Internacional da ISFL (International Society of Family Law).

[8] Cf. https://nypost.com/2022/10/08/nyc-judge-rules-in-favor-of-polyamorous-relationships/

30
Abr18

Hilda Hilst

Talis Andrade

Hilda Hilst incompreendida.jpg

 

 

Araras versáteis

 

Araras versáteis. Prato de anêmonas.
O efebo passou entre as meninas trêfegas.
O rombudo bastão luzia na mornura das calças e do dia.
Ela abriu as coxas de esmalte, louça e umedecida laca
E vergastou a cona com minúsculo açoite.
O moço ajoelhou-se esfuçando-lhe os meios
E uma língua de agulha, de fogo, de molusco
Empapou-se de mel nos refolhos robustos.
Ela gritava um êxtase de gosmas e de lírios
Quando no instante alguém
Numa manobra ágil de jovem marinheiro
Arrancou do efebo as luzidias calças
Suspendeu-lhe o traseiro e aaaaaiiiii…
E gozaram os três entre os pios dos pássaros
Das araras versáteis e das meninas trêfegas.

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