Ô menina O que é que você vai ser? Atriz, cantora ou dançarina?
O mundo te afirma o tempo inteiro Você tem que escolher ligeiro Um código de barra pra sua vida
Pressa, eu não tenho não
Eu creio que a paixão É um ato de conhecimento Quanto mais amo o que faço Mais invisto no que aprendo
Desejo que a invenção Da profissão que movimento Seja sempre consequência Do que explode aqui dentro
Ô menina O que é que você vai ser? Atriz, cantora ou dançarina?
Se a morte dura mais que o tempo em vida Dedicarei minhas batidas Ao que me faz ter mais dignidade
Por ora agora gosto de cantar Mas se amanhã isso bastar Serei fiel ao que me der vontade
Ô menina O que é que você vai ser? Atriz, cantora ou dançarina?
O mundo te afirma o tempo inteiro Você tem que escolher ligeiro Um código de barra pra sua vida
Pressa eu não tenho não
É que eu gosto tanto de poesia E de dar significado aos segundos São tantas tintas Diálogos com o porteiro Botão de elevador E a voz do tempo que diz Menina, se a vida estiver Consagrada ao exercício Do amor, o caminho será De paz. A paz que excede Todo entendimento
Eu vejo um planeta Que não tem gente careta Só trabalha no que gosta E não fecha a visão
Aprendi que a semente Está no riso dessa gente Que percebe que na vida Não há formula padrão
Ô menina O que é que você vai ser? Atriz, cantora ou dançarina?
Com os dois pés fincados nos terreiros da dança e do teatro, Flaira Ferro resolveu mostrar também sua faceta de cantora e compositora. “Cordões umbilicais”, seu disco de estreia, é um álbum autoral e autobiográfico, em que a artista dá roupagem pop a diversos elementos de sua formação cultural: frevo, cavalo marinho, caboclinho e maracatu, pernambucanidades temperadas com pitadas de erudito.
Flaira veio ao mundo no meio do carnaval do Recife, tendo se iniciado na dança ainda criança, aos seis anos de idade. Filha de pais foliões, foi aluna do lendárioNascimento do Passo, formou-se em Comunicação Social pela Unicap (Recife) e hoje é professora, pesquisadora, dançarina, atriz e cantora, ufa!, do Instituto Brincante, deAntonio Nóbrega, sediado em São Paulo, onde está radicada desde 2012.
No refrão de atriz, cantora ou dançarina? (letra e música dela), a pergunta que muitos lhe fazem e farão, este repórter inclusive: “ô menina/ o que é que você vai ser?/ atriz, cantora ou dançarina?”. “Mundo, continente, país, estado,/ cidade, bairro, casa, eu./ Somos tantos mundos/ dentro de outros mundos mais/ e estamos ligados por/ cordões umbilicais”, comunga a letra da faixa-título, parceria de Flaira eIgor Bruno.
Ela assina letra ou música em 10 das 11 faixas, incluindo “Contra-regra” (pré-novo acordo ortográfico), calcada em versículos bíblicos. A única música que não assina é (mais ou menos) sobre ela. Na verdade é sobre “Filhos” – o título – em geral. A letra é do ex-deputado federalFernando Ferro, seu pai: “Filhos são frutos,/ filhos são parte do nosso caminho,/ filhos são flores e são espinho,/ filhos são nós, e nós que atam e desatam./ Filhos são nossa parte, fazendo arte,/ filhos são doces pimentas do ser,/ filhos são nosso prêmio e pranto,/ filhos são surpresas,/ em cada canto./ Filhos não pedem pra nascer…”, reza a letra.
Em “Me curar de mim” (letra e música dela), literalmente desnuda-se: “E dói, dói, dói me expor assim/ dói, dói, dói, despir-se assim/ Mas se eu não tiver coragem/ pra enfrentar os meus defeitos/ de que forma, de que jeito/ eu vou me curar de mim?”, indaga-se/nos.
Disponível para download gratuito nosite da artista, “Cordões umbilicais” foi gravado entre agosto de 2013 e abril de 2014 e lançado no Recife em janeiro passado, dentro da programação do Festival Janeiro de Grandes Espetáculos, em cuja 17ª edição Flaira já havia sido premiada como melhor bailarina, por “O frevo é teu?”, seu primeiro espetáculo solo, dirigido porBella Maia.
O disco tem produção musical e arranjos deLeonardo GorositoeAlencar Martins(seu parceiro em “Lafalafa” e “Contra-regra”) e participações especiais do maestroSpok(saxofone) eLéo Rodrigues(percussão). Por e-mail, ela conversou com o blogue sobre o álbum, seu trânsito livre entre a música, o teatro e a dança, a porção autobiográfica de sua obra e projetos futuros.
Zema Ribeiro entrevista Flaira Ferro
A artista no clique de Patrícia Black
Zema Ribeiro– O que melhor define você: atriz, cantora ou bailarina? Flaira Ferro– Essa resposta está na letra da música que te inspirou a pergunta. Meu caminho é o da busca. Nela procuro os lugares onde moram meus desafios. Quem se dispõe a olhar para dentro de si, na tentativa de entender seu papel no mundo, há de se deparar com muitas questões da existência. A dança está na minha vida há mais tempo, mas ela foi um pontapé inevitável para o teatro e para o canto. O que me interessa mesmo é a ponte que existe entre as três linguagens. Todas elas têm o corpo como instrumento e o movimento como impulso para ações e intenções. A possibilidade de me expressar misturando tudo isso é o que me define hoje.
ZR– Com uma consolidada carreira como bailarina e atriz foi preciso cortar algum cordão umbilical com aquelas artes para dedicar-se à música enquanto cantora? Ou tudo se soma e uma expressão ajuda a outra? FF– Elas são complementares e sem dúvida uma ajuda a outra, principalmente na compreensão de execução. Pra cantar é preciso respirar corretamente, coisa que a dança trabalha bastante. Pra interpretar uma dança ou música a atuação é um recurso importante na escolha das intenções, enfim.
ZR– “Cordões umbilicais” traduz uma reelaboração pop de ritmos tipicamente pernambucanos, como frevo, cavalo marinho, caboclinho e maracatu, e traz além de pitadas eletrônicas, referências eruditas. Como foi o processo de composição e gravação do álbum? FF– Tudo começou no final de 2012. Em um processo lento e atento às minhas verdades, juntei todas as composições que eu tinha feito ao longo da minha vida e convidei, por afinidade e entrosamento, os músicos Alencar Martins e Leonardo Gorosito para pensarmos na elaboração das músicas. Durante um ano nos encontramos semanalmente na casa de Alencar. Eu mostrava as letras e melodias e os dois criavam os arranjos. Dessa brincadeira saíram duas parcerias, “Lafalafa” e “Contra-regra”, com letras de minha autoria e música de Alencar. Depois de tudo arranjado, eles escolheram a dedo os músicos que formariam a banda para gravar no estúdio e foi quando conheciJota Jota de Oliveira(baixo),Gabriel Zit(bateria) eCiro de Oliveira(teclado). Fizemos alguns ensaios e gravamos o disco em dois estúdios: Cia do Gato e Ilha da Lua, ambos em São Paulo.Gustavo do Valefoi o técnico responsável pela gravação, mixagem e masterização. Além da banda, o disco contou com a participação especial dos músicos maestro Spok, Léo Rodrigues,Taís Cavalvanti, Danilo Nascimento, Sandra Oakh, Ramiro Marquese meus pais. Também tive parceiros fundamentais na autoria de algumas letras, são eles:Camila Moraes, Igor Bruno, Ulisses Moraese minha irmãFlávia Ferro. Apesar de eu ter idealizado o projeto, “Cordões Umbilicais” foi feito por muitas mãos e jamais teria a cara que tem se não fossem todas as pessoas que mencionei acima. Tive a sorte de contar com músicos, familiares e profissionais que foram verdadeiros portais para esse sonho ser compartilhado.
ZR– Em “Templo do tempo” se indaga: “será que saberei um dia/ o que vou ser quando crescer?”. Nenhum risco de “Cordões umbilicais” ser teu único disco, não é? Ainda é cedo, mas já se pegou pensando no sucessor da estreia? FF– Sem dúvida. A composição é um exercício e uma necessidade constante. Tem muita música nascendo e em algum momento irei desaguá-las em um novo disco. Mas ainda vai levar tempo. Quero curtir esse primeiro filho com calma, rodar com shows, digerir e processar essa descoberta com carinho.
ZR– A letra de “Contra-regra” tem versículos bíblicos, sem nem de longe pagar de gospel. Você é religiosa? É católica? Que papel tem a Igreja em sua vida? FF– Até o mais ateu dos ateus não nega: deus é um tema irresistível. Não sou católica, muito menos religiosa. Levo uma vida sem misticismos ou superstições. A meu ver, dignidade vem com trabalho, bom humor e uma boa dose de teimosia. Acredito na espiritualidade como um tipo de inteligência que qualquer um pode ou não desenvolver e, para mim, a conexão com o divino é um estado de discernimento e expansão de consciência sobre o todo. Nasci num país onde os preceitos da cultura judaico-cristã predominam e de alguma forma me sinto influenciada por isso. Sou fascinada pela mensagem intrigante de amor incondicional pregada por Jesus Cristo. Quem consegue amar ao próximo como a si mesmo? Quem é capaz de dar a outra face se alguém o bater? Eu não consigo. A meu ver, o verdadeiro artista é um devoto às questões da alma. Neste sentido Jesus é pra mim um artista revolucionário e transgressor da maior ordem e, por isso mesmo, acredito que sua mensagem está longe de ser compreendida pela ganância e hipocrisia que regem o sistema político e cultural do Ocidente. Fico imaginando o que Jesus faria se presenciasse as atrocidades irreparáveis que os homens fazem em seu nome. É tanta intolerância, homofobia, racismo e violência dentro das igrejas que tenho dificuldade de me sentir representada plenamente por alguma instituição. Mas acho importante compartilhar experiências coletivas de fé para fortalecer a crença individual, seja ela qual for. Procuro me cercar de pessoas generosas que estejam dispostas a olhar a vida sem dogmas e moralismos e são nestas relações que minha igreja reside em essência. Identifico-me profundamente com a lógica de agradecimento presente nas manifestações populares como o Cavalo-marinho e o Reisado [maiúsculas dela]. Fui batizada em igreja batista, sempre que dá frequento a IBAB, o templo budista da Monja Coen e as sambadas do Instituto Brincante.
ZR– Diversas faixas têm um quê autobiográfico. O quanto dói se expor assim, como você afirma em Me curar de mim? FF– Não sei se existe uma dimensão para medir nossas dores. Acredito que todo processo de transformação demanda algum tipo de sofrimento, o que é saudável e natural. No meu caso, a exposição de minhas fraquezas dói o necessário para me fazer perceber o que preciso trabalhar.
ZR– Por falar em exposição, sua participação no projeto Apartamento 302, do fotógrafoJorge Bispo, ganhou repercussão na seara política, ao que parece com veículos de comunicação querendo atingir seu pai. O que achou de participar do projeto e qual a sua opinião sobre essa repercussão enviesada? FF– Participar do projeto foi uma experiência interessante para lidar com a auto-imagem, o lugar do feminino e o julgamento externo. Sinto que a repercussão distorcida e maldosa só fortaleceu a importância de agir a partir da fidelidade às minhas próprias questões. O artista nem sempre vai ser compreendido, então, avante. Quando a gente se entrega de coração a alguma coisa, a paz que vem da escolha feita com verdade é absurda. O autoconhecimento é um tema que me seduz muito, desde pequena. Procuro viver atenta às minhas necessidades e todos os dias me faço a pergunta: estou investindo meu tempo tentando ser o melhor de mim mesma? A partir dela vou encontrando respostas para tomar decisões que independem do que os outros vão dizer ou achar.
ZR– Em “Atriz, cantora ou dançarina” você afirma: “Por ora agora gosto de cantar/ mas se amanhã isso bastar/ serei fiel ao que me der vontade”. O que Flaira ainda não fez e tem vontade? FF– Muita coisa, né? Mas das que estão no topo da lista, tenho muita vontade de organizar uma viagem intensa pelo Brasil para fazer uma pesquisa de campo sobre os ritmos e as danças populares de cada região do país.
Thiago de Mello nasceu em Barreirinha, no interior do Amazonas
Suas obras foram traduzidas para mais de trinta idiomas. Seu poema mais conhecido é 'Os Estatutos do Homem', em que o poeta canta a Liberdade e denuncia a ditadura militar da qual foi vítima, vivendo o exílio no Chile de Allende e Europa.
Exposição Thiago de Mello 95 anos de vida, poesia e amor por Manaus.
Morreu agora cedo, aos 95 anos, o poeta amazonense Thiago de Mello, um dos maiores do Brasil, autor, entre milhares de poemas, do “Estatutos do Homem” e do “Faz escuro, mas eu canto”.
Mello tinha 95 anos de uma vida intensa e militante, que lhe valeu a perseguição e o exílio no Chile, onde tornou-se amigo e companheiro de Pablo Neruda, e, depois, na Europa.
Quando pôde voltar, não escolheu outro lugar senão a sua cidade de Barreirinha, rio abaixo de Manaus pelo Rio Amazonas.
A ele, a homenagem em que, em 1966, a delicada voz de Nara Leão empresta a leveza a “Faz escuro mas eu canto”.
Quando a gente não sabe o que dizer, o poeta dizpragente.
É frouxo o artista que fica à sombra dos distanciamentos, como se nada fosse com ele. Marília Mendonça desafiou a ira da extrema direita com apenas 23 anos, quando disse que não votaria no sujeito por uma questão de bom senso.
Não era e nunca foi uma artista engajada, nem uma militante, era apenas uma artista dizendo o que pensava ali naquela hora.
Ela disse em 2018 que era impensável votar naquele que todos sabiam (uns fingiam não saber) de quem se tratava. Participou da campanha do Ele, não, e foi o que bastou.
Posicionou-se sobre uma questão crucial, foi perseguida e ameaçada e teve de recuar, como muitos recuaram para sobreviver. Por isso mesmo, pela perseguição e pela urgência do recuo, a breve história de Marília nos comove".
Ele, não, em São Paulo
Ele , Não, o posicionamento da maioria dos compositores, cantores, poetas. Escute Ele, não, com Khalil Magno:
Ele é a faca que matou kantendê Ele é a bala em marielle Ele é o ódio à flor da pele Ele é o sangue na favela Ele é o mal
Onde nos quero livre ele é a jaula A hipocrisia em ditos cidadãos de bem Que se escondem num discurso isento Ele é você que não se vê ao lado De quem goza da coragem de dizer
Pro fascismo: Não mais! Pro machismo: Não mais! Homofobia: Não mais! Pra transfobia: Não mais! Para o nazismo: Não mais! Para o racismo: Não mais! Xenofobia: Não mais! Qualquer fobia: Não mais! Intolerância: Não mais! Não mais! Não mais! Não!
Ninguém mais tem o direito de desconfiar de que o Brasil está se tornando um pária no mundo, seja pelas escolhas do governo em matéria de política externa, seja por sua atuação em organismos e fóruns multilaterais, seja por sua política ambiental, seja pelo incentivo à barbárie cultural, à estupidez e à ignorância mais rombuda.
Tudo isso se conjugou nesta quinta no discurso do chanceler Ernesto Araújo durante solenidade de formatura no Instituto Rio Branco. Os formandos escolheram como patrono o diplomata e poeta João Cabral de Melo Neto, que morreu em 1999.
É o autor do célebre poema "Morte e Vida Severina", de 1955, que virou peça de teatro em 1966, com música de Chico Buarque. É, sim, uma obra de crítica social, mas já então a artesania do verso se mostrava evidente num texto que trata das mazelas da seca e das "vidas severinas" que a tudo suportam em busca de alguma transcendência — a esperança que seja.
João Cabral nunca foi esquerdista ou escreveu obra de militância. Ao contrário: parte da crítica engajada apontava o seu alheamento das questões políticas e seu suposto apego excessivo ao formalismo. É preciso ser um tarado ideológico, dotado de uma ignorância profunda, para apontar viés esquerdizante na sua poesia.
Ainda que houvesse, pergunta-se: e daí? Isso impede a boa obra? Arte e política não costumam formar uma mistura tranquila, tampouco eficaz. Assim como as revoluções não geram necessariamente boa poesia, é uma tolice supor que poesia possa fazer revolução, embora, por óbvio, a arte se deixe marcar por seu tempo. Mas aquela que permanece transcende as disputas mundanas.
João Cabral foi um poeta gigantesco, seja pelo rigor formal, seja pela dimensão humana, transcendente e, a seu modo, metafísica da obra, que passou longe de vulgatas do pensamento de esquerda ou de direita. Toda arte carrega, é evidente, valores ideológicos intrínsecos, mas estes não são o desiderato do discurso artístico.
Acontece que o olavista — discípulo do astrólogo Olavo de Carvalho — Ernesto Araújo não passa de um prosélito medíocre e de um recém-convertido ao pensamento de extrema direita. Então as brutalidades que o seu mestre consegue sigilar num discurso mais elaborado — quando não está dedicado a proferir palavrões e a fazer digressões sobre o orifício excretor alheio —, ele o faz de modo grosseiro, extravasando a sua ignorância arrogante.
O pêndulo de Bolsonaro vinha se deslocando para o centro, ainda que muito distante dele. Para os acordos com o Centrão, a conversa vale. Mas é evidente que decidiu que é chegada a hora de fazer concessões a seus soldados de extrema-direita. O ataque à vacina do Instituto Butantan é um sinal para juntar a tropa. E o mesmo se diga do discurso de Araújo.
O chanceler resolveu deixar claro como Brasil vê o mundo e como nele se vê, com ataques à ONU e, claro, genuflexão no altar de Donald Trump. Afirmou:
"Nos discursos de abertura da Assembleia Geral das Nações Unidas, por exemplo, os presidentes Bolsonaro e Trump foram praticamente os únicos a falar em liberdade. Naquela organização, que foi fundada no princípio da liberdade, mas que a esqueceu. Sim, o Brasil hoje fala em liberdade através do mundo. Se isso faz de nós um pária internacional, então que sejamos esse pária. Talvez seja melhor ser esse pária deixado ao relento, do lado de fora, do que ser um conviva no banquete do cinismo interesseiro dos globalistas, dos corruptos e dos semicorruptos. É bom ser pária. Esse pária aqui, esse Brasil; essa política do povo brasileiro, essa política externa Severina -- digamos assim -- tem conseguido resultados".
É mesmo? Quais resultados?
Que o agronegócio ouça. Que os industriais fiquem atentos. Que os mercados abram os ouvidos. Por alinhamento ideológico, o ministro das Relações Exteriores resolveu transformar o país num pária internacional e se orgulha disso.
O último resultado vistoso de Araújo foi a imposição de sobretaxa, pelos EUA, para o alumínio brasileiro.
Aí ele resolveu falar sobre o que não sabe e não leu, não sem deixar claro que, na sua mentalidade, o papel das Severinas e Severinos é servir a gente como Araújo, mas crendo em Deus e temendo o comunismo.
Contou que uma emprega doméstica que trabalhava em sua casa na década de 80 chamava-se... Severina. E que ela odiava o comunismo porque este é "contra Deus".
E atacou João Cabral, que teria se voltado "para o lado errado, para o lado do marxismo e da esquerda".
E mandou ver:
"Sua utopia, esse comunismo brasileiro de que alguns ainda estão falando até hoje, constituía em substituir esse Brasil sofrido, pobre e problemático por um não-Brasil. Um Brasil sem patriotismo, sujeito, naquela época, aos desígnios de Moscou e, hoje, nesse novo conceito de comunismo brasileiro, sujeito aos desígnios sabe-se lá de quem".
É tanta bobagem reunida que nem errado ele consegue ser.
Chulo, vulgar e ignorante, acusou a esquerda de reduzir tudo a "conceitos como gênero e raça" e de querer promover "a ditadura do politicamente correto e da criação de órgãos de controle da verdade".
Sempre que um extremista de direita ataca o que chama de "ditadura do politicamente correto", fiquem certos: está com vontade de ofender mulheres, negros e gays e acha um absurdo que a lei puna o que ele considera ser "liberdade de expressão".
E emendou frases de efeito:
"Todo isentão é escravo de algum marxista defunto. Tratar os conservadores de ideológicos é o epítome da prática marxista-leninista: chame-os do que você é, acuse-os do que você faz".
"Isentão" é vacabulário de bloqueiro arruaceiro e fascitoide.
Não perguntem a Araújo em que livro Lênin escreveu essa frase, que é carne de vaca do olavismo, porque ele terá de perguntar ao mestre, que responderia: "Sei lá eu, porra! Isso sou eu lendo Lênin".
Ah, sim: a questão ambiental seria só uma orquestração da esquerda, também parte da "estratégia comunista". E, terríveis que são, os esquerdistas aproveitaram o coronavírus para tentar implementar um "gigantesco aparato prescritivo, destinado a reformatar e controlar todas as relações sociais e econômicas do planeta". A isso ele chamou "covidismo".
Não era um discurso no hospício. Era o chanceler brasileiro numa cerimônia de formatura.
Que as pesquisas se cumpram e que Biden vença a eleição nos EUA. Quem sabe as escolhas do povo americano façam com que nos livremos da delinquência intelectual no Itamaraty.
O moço que ele é nos seus 90 anos pode ser notado também nos poemas eróticos que publica
por Urariano Mota
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Entre os grandes personagens de 23 de agosto, a Wikipédia indica Gene Kelly, Nelson Rodrigues, Tônia Carrero, Rita Pavone, Rodolfo Valentino, Vicente Celestino e Alberto Cavalcanti. Mas não registra, em uma só linha, um dos mais importantes críticos de cinema do Brasil, o recifense Celso Marconi. Essa ausência na enciclopédia é, ao mesmo tempo, injusta e descuidada, para dizer o mínimo. Então, em breves linhas, tento um curta dos seus 90 anos.
Nesse texto, eu lembrei que Celso Marconi vinha sendo o crítico brasileiro de cinema com maior longevidade. Nos seus 90 anos agora, tenho a certeza de que ele é o jornalista com mais tempo de crítica de cinema não só no Brasil, mas em todo o mundo. O paradoxo, ou paradoxal, é que na sua idade ele é o mais jovem crítico de cinema, pela expressão maravilhosa, que nos desconcerta, em meio a um texto como aqui:
Face a Face é melhor ser visto num aparelho individual, numa TV grande, mas de maneira que você possa parar quando estiver cansado, prostrado, e sair para comer um chocolate ou tomar um café antes de continuar. Penso que, se estivesse vendo esse filme de Ernst Ingmar Bergman hoje numa sala de cinema, eu gritaria para que parassem pra gente descansar um pouco…
Certamente hoje são poucas as pessoas que conhecem o cinema de Ingmar Bergman e isso se justifica pelo fato de que o atual presidente do País não tem a menor noção do que é Cultura, e sem dúvida nunca viu nem um filme de Ingrid Bergman – quanto mais de Ingmar! É uma pena. Com tantos elementos novos e fundamentais para mudarmos a nossa vida e podermos conhecer melhor o que é uma vida amadurecida, é lamentável que estejamos vivendo esse dilema de moralismos inúteis”
Nele, o que não é reflexão mais profunda é rebeldia, que não se contém nem se contenta. E com ele temos crescido, desde os anos 1970, quando Celso Marconi já era um crítico consagrado, guru de nossa estética de cinema. Lembro, de modo claro, que nós corríamos para aquelas críticas no Jornal do Commercio que nos revelavam o valor da programação do Cine de Arte Coliseu e de outros cinemas. Que oásis! Bebíamos o que ele nos revelava naquele deserto da ditadura. Eram linhas que faziam a cabeça de estudantes contra a ditadura e das novas gerações no Recife. Era uma alegria imensa, nos fins de semana, saber o que o Coliseu nos reservava, a partir do texto de Celso Marconi. Foi com ele que descobrimos Buñuel, artista que nos deixava tontos antes do bar, como destaco no começo do livro Soledad no Recife:
“Eu a vi primeiro em uma noite de sexta-feira de carnaval. Fossem outras circunstâncias, diria que a visão de Soledad, naquela sexta-feira de 1972, dava na gente a vontade de cantar. Mas eu a vi, como se fosse a primeira vez, quando saíamos do Coliseu, o cinema de arte daqueles tempos no Recife. Vi-a, olhei-a e voltei a olhá-la por impulso, porque a sua pessoa assim exigia, mas logo depois tornei a mim mesmo, tonto que eu estava ainda com as imagens do filme. Em um lago que já não estava tranquilo, perturbado a sua visão me deixou. Assim como muitos anos depois, quando saí de uma exposição de gravuras de Goya, quando saí daqueles desenhos, daquele homem metade tronco de árvore, metade gente, eu me encontrava com dificuldade de voltar ao cotidiano, ao mundo normal, alienado, como dizíamos então. Saíamos do cinema eu e Ivan, ao fim do mal digerido O Anjo Exterminador. Imagens estranhas e invasoras assaltavam a gente”.
Lá no início deste artigo, eu escrevi que Celso Marconi é um jovem. E não só na sua expressão de crítico, esclareço agora. O moço que ele é nos seus 90 anos pode ser notado também nos poemas eróticos que publica no Face, porque o seu desejo de vida é permanente. Como aqui:
A PUTA E O POETA
Sonhei que era um poeta russo E vivia nos tempos dos soviéticos Com uma bela puta também russa E tinha muito prazer em trepar com ela Que era linda e branca azulada Tinha um ar de tristeza que ameaçava Qualquer um que trepava com ela Mas o seu corpo era perfeito para a função E ela adorava que eu lesse minhas poesias O que nem sempre era aceito pelos soviéticos Que implicavam com um sujeito mesmo poeta Viver comendo por conta de uma puta Pois nós comíamos e sempre tínhamos Borsht, solyanka, blini, frango à Kiev, Pilmeni ou salada olivier à mesa Que a puta fazia com todo gosto E não tinha estória de não comer Só porque era puta ou era poeta E fomos vivendo com muita alegria O pior porém era quando queríamos mudar de cidade Sair de Vladivostoki para Irkutski na Sibéria Pois os guardas dos aeroportos ou rodoviárias Mesmo que achassem a gente bonitos Não aceitavam que o poeta não trabalhasse e Ficasse comendo com o que a puta ganhava
EU QUERO O PRAZER
As religiões condenam o prazer E inclusive não querem o desejo Você tem que sentar e esperar Que todo o desejo se esvoace Se a religião não quer o desejo Por que então nascemos com essa Possibilidade? O desejo de prazer fujamos Carnaval dos carnavais Como vamos fingir o não desejo? A natureza nos pune Mas ao contrário nos alegra Quando concretizamos um desejo
O corpo de Pedro Casaldáliga repousa onde pediu, à beira do Araguaia e à sombra do pé de pequi. Como pediu, sem qualquer ostentação. Sua grande alma voa livre, animando todas as lutas de Libertação. Deus esteja e nos proteja.
Chico Alencar
Enterrem-me no rio, perto de uma garça branca. O resto já serei eu.
Pedro Casaldáliga
por Leonardo Boff
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O bispo Pedro Casaldáliga (não gostava do título de Dom) foi transfigurado no dia 8 de agosto de 2020 com 92 anos de idade. Catalão, veio ao Brasil e foi sagrado bispo em 1971 para a Prelazia São Felix do Araguaia-MT. Foi pastor exemplar, profeta corajoso, poeta de grande altura e místico dos olhos abertos. Notabilizou-se por ficar decididamente do lado dos indígenas e peões expulsos de suas terras pelo avanço do latifúndio.Sua Carta Pastoral de 1971”Uma Igreja da Amazônia em Conflito com o Latifúndio e a Marginalização Social” provocou várias ameaças de morte e de expulsão do país pela ditadura Militar.
Aqui atenho-me apenas a alguns tópicos de sua poesia e de sua mística que se alinham à grande tradição espanhola de poetas místicos como São João da Cruz e como Santa Tereza d’Avila. Alguns estão em espanhol, outros em português.
Viveu a pobreza evangélica em grau extremo: ”Não ter nada/não levar nada/não poder nada/e de pessagem, não matar nada/não calar nada./Somente o Evangelho como faca afiada/e o pranto e o riso no olhar/E a mão estendida e apertada/e a vida, a cavalo, dada./E este sol e estes rios e esta terra comprada/como testemunhas da ressurreição já estalada./E mais nada”.
Corajoso, diz ao enfrentar os opressores: ”Onde tu dizes lei, eu digo Deus./Onde tu dizes paz, justiça, amor/eu digo Deus./Onde tu dizes Deus/eu digo liberdade, justiça, amor” Estes valores são os verdadeiros nomes de Deus. Ameaçado de morte, escreve uma Cantiga à morte:
“Ronda a morte rondeira/ a morte rondeira ronda/já o disse Cristo antes de Lorca. Que me rondarás, morena,/vestida de medo e sombra. Que te rodarei, morena,/vestido de espera e glória. Tu me rondas em silêncio/eu te rondo na canção.Tu me rondas de aguilhão eu te rondo de laurel./Que me rondarás/que te rondarei.Tu para matar/eu para nascer. Que te rondarei/que me rondarás.Tu com guerra e morte/eu com guerra e Paz. Que me rondarás em mim; ou nos pobres de meu Povo/ou nas fomes dos vivos/ou nas contas dos mortos. Me rondarás bala/me rondarás noite/me rondarás asa/me rondarás carro. Me rondarás ponte/me rondarás rio/sequestro, acidente/ tortura, martírio,/temida. Chamada/ vendida/comprada/mentida/sentida/calada/cantada. Que me rondarás/que te rondarei que me rondaremos/todos/eu/e Ele/ Se com Ele morremos/com Ele viveremos/Com Ele morro vivo/por /Ele vivo morto/Tu nos rondarás/mas nós te pegaremos”.
Mas nada teme: Leva tranquilo suas visitas aos pobres.”E chegarei de noite/com o feliz espanto/de ver/por fim/que andei/dia após dia; /sobre a própria palma de Tua Mão”.
Este poema nos remete a São João da Cruz do Cântico Espiritual, um dos mais belos da lingua espanhola.
“Por aqui ya no hay camino”./Hasta donde no lo habrá?/Si no tenemos su vino/la chicha no servirá”?
“Legarán a ver el dia/quanto con nosostros van?/Como haremos compañia/si no tenemos ni pan?”
Por donde iréis hasta el cielo/si por la tierra no vais?/Para quién vais al Carmelo/Si subis y no bajáis”?
Sanará viejas feridas/las alcuzas de la ley?/Son banderas o son vidas/las batallas de este Rey”?
“Es le curia o es la calle;/donde grana la misión?/Si dejáis que el Viento calle/ que oiréis en la oración?”
“Si no oís la voz del Viento/qué palabra llevaréis?/Que daréis por sacramento/si no os dais en lo que teneis”?
“Si cedéis ante el imperio/la Esperanza y la Verdad/Quién proclamará el misterio/de la entera Libertad”?
“Si el Señor es Pan y Vino/y el Camino por do vais/Si al andar se hace camino/qué camino esperáis?”
Vivia num “palácio”de madeira de terceira qualidade, totalmente desnudado.Era tão identificado com os indígenas e os peões assassinados, que quis ser enterrado no “Cemitério do Sertão” onde eles, anônimos, jazem:
“Para descansar/ quero só esta cruz de pau/como chuva e sol;/estes sete palmos e a Ressurreição”.
E assim imaginou o Grande Encontro com o Amado que serviu nos condenados da terra:
“Ao final do caminho me dirá/
E tu, viveste? Amaste?
E eu, sem dizer nada,
Abrirei o coração cheio de nomes”
O clamor de sua profecia, a total entrega de Pastor aos mais oprimidos, a poesia que nutre nossa beleza e sua mística de olhos abertos e das mãos operosas, permanecerão como um legado perene às comunidades cristãs, ao nosso país índio e caboclo que ele tanto amou e à humanidade inteira.