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O CORRESPONDENTE

Os melhores textos dos jornalistas livres do Brasil. As melhores charges. Compartilhe

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O CORRESPONDENTE

08
Mai23

Paulo Freire sempre

Talis Andrade
Foto: Joao Pires (AE)

 

 

Leia a tradução para o inglês do poema “Recife Sempre”, de Paulo Freire

 

30
Abr23

Revendo Talis Andrade

Talis Andrade
 
Quem é esse homem que nos acompanha há 60 anos? - Papo Cultura
Woden Madruga
 
 
 
 

 

por Woden Madruga

- - -

Na gaveta dos papéis desarrumados encontro uma carta de Talis Andrade. Talis, o poeta e jornalista, meio pernambucano meio natalense, nascido em Limoeiro, 1937. Viveu intensamente em Natal, idos de 1950, 1960, pedaços dos anos 70. Depois retornou para Recife, lá se vão quarenta e tantos anos. A última vez que nos vimos já passa do quinze. Aqui e acolá um telefonema, um bilhete, uma carta. Talis, que já publicou uns 13 livros de poemas, participou ativamente da vida literária de Natal naquelas décadas de 50 e 60, assumindo de mesmo o papel de agitador cultural da aldeia. Dirigiu o suplemento literário de A República (governo Dinarte Mariz) e depois dirigiu o próprio jornal (governo Cortez Pereira).

A carta está datada de março de 1995, escrita no Recife (datilografada com um P.S. manuscrito que o cristão sofre para entender a letra do poeta) em papel timbrado da TBT Publicidade (Ilha do Leite). Vamos lê-la:
“Woden, meu rei mago:
Uma eternidade nos separa. Mas, não podemos reclamar. Mesmo quando eu morava na sua casa, passavam dias, meses, e a gente não se via...
Finalmente, estou lhe mandando meu livro Herdeiros da Rosa, que pertence a uma fase intimamente natalense.
E sonho que a Companhia Editora do Rio Grande do Norte me deve este livro, porque o sistema off-7 da empresa foi comprado quando eu era o diretor responsável d’A República, na minha segunda passagem por Natal, sendo Cortez governador. Inclusive convoquei e presidi a comissão de concorrência, formada pelos diretores da Imprensa Oficial de Pernambuco, Parque Gráfico do Jornal do Commércio do Recife e Imprensa Universitária da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Os membros da comissão não se conheciam e a votação foi unânime.
Feita a concorrência (insisti que fosse uma impressora com dobradores para livros), dei como terminada a minha missão em Natal.
Lá no prédio da velha República existe a placa de inauguração sem o meu nome, desde que a direção empresarial foi contra a minha iniciativa.
Os Herdeiros da Rosa é dedicado a dois potiguares que admiro: Ticiano e Ney, que deviam ser mais festejados pelo povo e autoridades. Não são homenageados como merecem porque pessoas de humildade de santo, apesar da beleza dos deuses.
Bem, você, Veríssimo, Luís Carlos e o gordo Sanderson estão intimados a promoverem a impressão do livro.
Escrevi para o Sanderson: “Queria que você e/ou Luís Carlos fizesse (m) o prefácio... com motivação para escrever a história da poesia do Rio Grande do Norte no período da estreia. Finalmente, outro pedido: E que a apresentação fosse escrita por Woden e/ou Veríssimo. Uma apresentação que servisse de pretexto para um relato sobre a Imprensa potiguar nos tempos do velo de ouro que antecedem a março de 64”
Sei que você anda velho, vivendo as corujadas de avô, mas ainda lhe imagino com aquela garra de antigamente.
Este amigo de sempre e todo seu,
Talis Andrade.
P.S. Queria ver se era possível reunir os amigos na 5ª Feira Santa, ou Domingo de Aleluia, na casa de Cláudio Marinho, em Ponta Negra (ele plantou nos jardins, cactos de sua fazenda). ” 

O livro
Na verdade, o que Talis me mandou foram os originais de Os Herdeiros da Rosa. O livro mesmo somente seria editado onze anos depois (2006) pela Editora Livro Rápido, de Olinda.  Não saiu nem com o prefácio de Sanderson Negreiros e nem de Luís Carlos Guimarães, como era o desejo do poeta. Mas tem duas apresentações. A primeira, assinada por Veríssimo de Melo, como Talis queria, e a segunda da lavra de Francisco Fausto Paula de Medeiros.
Comparando agora os originais com o livro impresso constato algumas alterações.  A edição impressa, por exemplo, não traz o texto original que Talis escreveu apresentando o livro. Transcrevo-o, agora:
“Este livro foi iniciado após à morte de Berilo Wanderley e escrito nos plantões das redações do Jornal do Commércio e Diário de Pernambuco, no Recife. Finalmente concluído nas imediações da rua João Berckmans Marinho, Ponta Negra, em março de 1995. Acredito que retrata um pouco da boemia, do jornalismo e da poesia de Natal, no final da década de 50 e começos da de 60. T.A.”
Nas duas orelhas do livro impresso Talis transcreveu um Jornal de WM, da Tribuna do Norte de 11 de agosto de 2004, com o título de “Talis e os Herdeiros da Rosa”.

capa_os_herdeiros_da_rosa.jpg



O Cisne Flutuante
A apresentação de Veríssimo de Melo para Os Herdeiros a Rosa tem o título de “O Cisne Flutuante”. Começa assim:
“Numa tarde solarenga – década de cinquenta – Talis Andrade embiocou na redação do jornal A República, em Natal. Na sua magreza e adolescente em flor, um sorriso à Gioconda, quase flutuava como cisne em lago azul. Vinha assumir o cargo de revisor de provas. Foi o começo de sua atividade na imprensa natalense. Logo se afirmaria como jovem de suave e ameno trato no convívio com os seus camaradas de redação. Fez depois crônicas, reportagens, notícias diversas. Nos intervalos de suas tarefas profissionais, Talis despertava para a poesia. Cometia os seus primeiros poeminhas. Mas, já então demonstrava um talento fora do comum.
De repente – puf! – Talis desapareceu da cidade. Por onde anda Talis Andrade? – perguntavam. Soube-se depois que emigrara para Recife, onde continuou a fazer jornalismo e praticar seu esporte favorito: uma boêmia tranquila e infinita. ”

Poesia “Todas às vezes / que vejo Bruna / salivo como um cão / lascivo de Pavlov // Todas às vezes / que vejo / a foto nua de Bruna / uivo como um cão / uiva para a lua”. De Talis Andrade no seu poema Uivo, no livro Herdeiros da Rosa. 

Tribuna do Norte, Jornal de WM, in 20/11/2016, Natal

22
Mar23

A Queda do Céu: o Yanomami dá o espelho ao Brasil

Talis Andrade
O xamã e tradutor de mundos, Davi Kopenawa. Foto: Daniel Klajmic/Prodigo, Instituto Socioambiental, 2019


Fruto de 40 anos de diálogo entre um xamã e um antropólogo, o livro é de atualidade atroz. E revela, sobretudo, o impasse civilizatório do país dos “comedores de terra”, que aposta na devastação ao invés da riqueza da floresta e da diferença

No velho e requentado discurso neocolonial, o território brasileiro é riscado por fronteiras – “agrícola”, dos “negócios”, do “desenvolvimento”, da “civilização”… Fronteiras ou fronts de uma guerra de conquista que busca incorporar cada novo rincão ao projeto uniformizante do capitalismo extrativista global. A terra arrasada é um método frequente. Revirar o subsolo em busca de minério, contaminando os rios, pôr abaixo a inconcebível floresta vista como entrave ao “desenvolvimento” e calar pelo genocídio os povos originários, sua ecologia e suas línguas. 

É na linha de resistência a esse processo, e no reverso de sua noção de fronteira, que se produz um livro como A queda do céu – palavras de um xamã yanomami, escrito em coautoria por Davi Kopenawa e pelo antropólogo francês Bruce Albert. A obra é fundamentalmente fruto de um pacto tradutório entre mundos, pessoas, línguas e histórias, em que as diferenças não se polarizam nem se anulam, ao contrário, se afirmam e se multiplicam. Por isso revela com agudeza tanto os impasses como as possíveis linhas de fuga do projeto violento de nação periférica a que o Brasil é ciclicamente reduzido. 

A importância dessa obra, aliás, confirmou-se no quadro do projeto 200 anos, 200 livros,  organizado em 2022 por um conjunto de instituições no âmbito das reflexões em torno dos 200 anos da Independência. Os três livros que encabeçaram a lista dos livros mais importantes para entender o Brasil foram, em primeiro lugar, o incontornável Quarto de despejo, de Carolina Maria de Jesus, seguido de duas obras empatadas em segundo lugar: Grande sertão: veredas de João Guimarães Rosa e A queda do céu

As recentes revelações do feroz ataque que o povo Yanomami vem sofrendo evidenciam ainda mais a necessidade de se voltar a este livro, que já nasceu como um capítulo fundamental para se compreender e interpretar a história do Brasil. Publicado originalmente em francês, em 2010, fruto de traduções de entrevistas feitas em yanomami ao longo de quase 30 anos, o texto foi lindamente traduzido para o português, em 2015, pela antropóloga e professora da USP Beatriz Perrone-Moisés. A edição brasileira conta com o revelador prefácio de um dos mais importantes intelectuais do país, o também antropólogo Eduardo Viveiros de Castro. 

Como pensador da tradução, eu não poderia deixar de notar que estamos diante de uma obra que é um complexo de traduções. Ela se mostra assim como o ponto de partida ideal para iniciarmos uma série de resenhas dedicadas às Visões indígenas em tradução e que comporão esta coluna mensal. Inspiro-me há mais de uma década como pesquisador nas reflexões de Eduardo Viveiros de Castro e sua concepção de tradução cultural como equivocação controlada. Essa noção diz respeito ao processo envolvido na tradução de conceitos práticos e discursivos do outro para os termos do aparato conceitual daquele que enuncia, ampliando as ferramentas conceituais daqueles que se deixam afetar outramente por essas cosmovisões.

Em seu prefácio, um dos aspectos que Viveiros de Castro destaca é o fato de esse livro ímpar ser fruto de um diálogo “entrebiográfico” que se estabeleceu ao longo de décadas entre um sobrevivente indígena – que viveu vários anos em contato com os brancos até se reincorporar a seu povo e se tornar xamã – e um antropólogo – cuja trajetória bastante singular caracteriza-se por não ter se deixado capturar pela estrutura acadêmica. Isso faz com que estejamos diante de enunciadores em posição atípica, fronteiriça; tornando-os representantes ideais de suas respectivas tradições, por serem capazes de sair do ensimesmamento dos “monolinguismos cosmológicos” em que normalmente nos encontramos, acrescenta Viveiros de Castro.

O antropólogo brasileiro ressalta ainda que essa relação de amizade e parceria entre o protagonista Davi Kopenawa e seu colaborador Bruce Albert, marcada pelo compromisso existencial e pela disciplina intelectual, levou-os a negociarem a diferença intercultural até o ponto de uma mútua e imensamente valiosa “entretradução”. Esta seria ainda mais valiosa por estar ciente de suas imperfeições, de suas aproximações equívocas, de suas equivalências impossíveis. O livro é assim um trabalho profundo de tradução cultural cuja dimensão crítico-reflexiva constante faz com que se produza uma perspectiva “em abismo” metatextual.

Estruturado a partir de três grandes pilares, esta obra monumental de mais de 700 páginas começa descrevendo a vocação desse xamã, desde a sua primeira infância, desenvolvida ao longo de décadas de uso ritual de potentes substâncias psicoativas. Esse uso vincula-se à cosmovisão indígena na qual o homem pertence à Natureza – em yanomami, hutukara. Nela, humanos e não humanos, espíritos, animais e plantas formam comunidade, convivem e sonham de forma indissociável. Como se pode ler no livro…

Os brancos nos chamam de ignorantes apenas porque somos gente diferente deles. Na verdade, é o pensamento deles que se mostra curto e obscuro. Não consegue se expandir e se elevar, porque eles querem ignorar a morte. Ficam tomados de vertigem, pois não param de devorar a carne de seus animais domésticos… Ficam sempre bebendo cachaça e cerveja, que lhes esquentam e esfumaçam o peito. Por isso que suas palavras ficam tão ruins e emaranhadas. Não queremos mais ouvi-las. Para nós, a política é outra coisa. São as palavras de Omama e dos xapiri que ele nos deixou. São as palavras que escutamos no tempo dos sonhos e que preferimos, pois são nossas mesmo. Os brancos não sonham tão longe quanto nós. Dormem muito, mas só sonham com eles mesmos. Seu pensamento permanece obstruído e eles dormem como antas ou jabutis. Por isso não conseguem entender nossas palavras. 

O segundo pilar é o aterrador relato do avanço dos brancos pela floresta e seu brutal rastro de destruição. Nesse sentido, além dos devastadores relatos feitos dos brancos “comedores de terra” em busca insaciável pelo “ouro canibal” que envenena corpos e espíritos, dói demais ler o último anexo a respeito do massacre de Haximu, ocorrido em 1993. Nele, o massacre feito por garimpeiros de parte da comunidade Hw’axima u é contado em detalhes. No final, podem-se ler as assustadoras e atuais considerações de que os sobreviventes…

jamais esquecerão que os brancos são capazes de massacrar mulheres e crianças de modo bárbaro e sanguinário, algo que até então consideravam exclusividade dos espíritos canibais.

O terceiro pilar é justamente a narração da incansável luta desse grande líder e seu corajoso amigo antropólogo para denunciar a sistemática destruição de seu povo que, como assistimos atônitos, segue pavorosamente em curso e inspiram as inquietantes considerações:

O ouro nada mais é do que uma poeira brilhante na lama. E no entanto os brancos são capazes de matar por causa disso! Será que ainda matarão muitos de nós dessa forma? E, depois disso, as suas fumaças de epidemia vão devorar todos os que sobrarem, até o último? Eles querem mesmo acabar com a gente?

O livro conta ainda com um conjunto impressionante de peritextos, dentre os quais o Postscriptum de Bruce Albert, intitulado “Quando eu é um outro (e vice-versa)”. Nele, Albert descreve sua trajetória intelectual. Chama a atenção o fato de que, já em 1974, quando de seu primeiro campo junto ao povo Yanomami, este estar sob o impacto da construção da rodovia Perimetral Norte e dezenove indígenas já terem morrido numa primeira epidemia de sarampo. O trágico cenário transamazônico ganharia contornos ainda mais dramáticos nos anos seguintes, pois, em 1977, outra epidemia de sarampo dizimaria a população do alto Catrimani, fazendo com que Albert se juntasse, ainda no final da década de 1970, à fotógrafa Claudia Andujar para denunciar as iniciativas etnocidas da ditadura militar. Nos anos 1980, uma corrida do ouro sem precedentes adicionou a este histórico uma verdadeira catástrofe epidemiológica e ecológica. 

Apesar dessa situação ter sido parcialmente controlada com a demarcação do território yanomami em 1992, ainda no governo Collor, em 2015, Viveiros de Castro denuncia o quanto o governo brasileiro, então sob o comando de Dilma Rousseff, seguia hostil aos povos indígenas e compromissado com um projeto desenvolvimentista para o qual eles não eram mais que um empecilho, com a emblemática construção de gigantescas usinas hidrelétricas e o congelamento de novas demarcações. A situação se deteriorou radicalmente durante os nefastos anos de Jair Bolsonaro. No início de seu terceiro mandato, o presidente Lula dá sinais claros de uma reparação histórica, que, no entanto, demandará tempo até que se possa dirimir a justificada desconfiança em relação às políticas indigenistas e ambientais postas em prática também pelas anteriores gestões petistas. O tempo dirá o quanto esse novo governo saberá, de fato, se distinguir dos horrores e descasos cometidos em governos precedentes.

O Postscriptum contém ainda preciosas reflexões a respeito da construção do pacto etnográfico. A maneira como foi se construindo a relação de confiança e amizade entre o jovem intérprete da Funai, Davi Kopenawa, e o neófito antropólogo francês revela os meandros dessa obra de tradução cultural na qual dois autores habitam no mesmo “eu” da enunciação. É toda uma abordagem do traduzir que se desenha nessa aventura narrativa. Trata-se, como afirma Bruce Albert, de propor uma tradução do testemunho de Davi Kopenawa “situada a meio caminho entre uma literalidade que poderia tornar-se caricatural e uma transposição literária que se afastaria demais das construções da língua yanomami”. Esse cuidado de redação faz com que o registro seja “uma delicada busca por uma justa aliança entre o som de uma voz, a fidelidade documental e o prazer do texto”, completa o coautor francês.

Enfim, essa obra monumental dá pistas claras de como nós, supostamente brancos brasileiros, podemos repensar nossa relação com este território hoje chamado Brasil. A demarcação das terras indígenas começa a nos permitir vislumbrar que um dos grandes desafios para os próximos 2, 20, 200, 2 mil anos, se sobrevivermos ao nosso próprio afã de comedores de terra, é reconhecermos, como já o fizeram os bolivianos e equatorianos em sua Constituição, que somos um estado plurinacional; e que cada povo que aqui habita deve ser reconhecido como nação. Mais ainda, que a Terra, seus rios e biomas, tenham seus direitos reconhecidos. Este livro nos ensina ainda que é possível, para nós não indígenas, superar nosso “monolinguismo cosmológico” se estivermos dispostos a conviver e aprender com os povos que desde as priscas eras habitam este continente — Abya Yala. Basta rompermos nossa apática indiferença, nos colocarmos em estado de escuta, dispostos à tradução e seus intraduzíveis.

22
Mar23

Yanomami: O sonho tormentoso de Deus

Talis Andrade
Foto: Ricardo Stuckert

 

Em textos poéticos, a angústia frente ao eterno retorno da tragédia dos povos da Amazônia. O Criador vislumbra o impasse da destinação de suas criaturas. Tudo em nome da “poeira brilhante na lama”, como definiu Davi Kopenawa

 

 

O PESADELO DIVINO

Num sonho tormentoso, Deus se vê falando a Motociata e Motosserra, ilustres ninfocidas e guardiãs do recém-criado décimo círculo infernal.

1. Há muito contemplo o caminho que percorreis. Conheço as vossas tramas e os vossos ardis. Bem sei do que sois capazes.

2. Agora, pois, atentai à minha palavra: Eis que ponho inimizade eterna entre vós e os ribeirinhos, e selo convosco uma firme aliança, simbolizada por este anel, feito do mais fino ouro que se pôde extrair da Terra Yanomami.

3. Sem o vosso auxílio e unidade de espírito não se cumpriria tão cedo o plano que ora cogito.

4. Arrependi-me novamente da criação e decidi, de uma vez por todas, extirpar os seres viventes da face da terra.

5. Não posso, porém, renunciar así no más à minha obra, pois, feito o belo Narciso, também ele um ser criado à minha imagem e semelhança, apego-me a tudo aquilo em que me vejo, ainda que mal, espelhado.

6. Por isso, lembrei-me de vós, que formais uma só carne e um só pensamento. 

7. Recordai o mandamento que ditei a vossos pais: crescei e multiplicai-vos!

8. Tomai em vossas mãos aquilo que escapou das minhas. Expandi a vossa atuação até os confins da terra e até o fundo dos mares. E não poupeis o luzeiro menor, dominai-o! E, se puderdes, tratai de ocultar o maior, toldando o firmamento com o vosso admirável arsenal de pestilências.

9. Acreditei uma vez nas virtudes dos filhos de Noé e dos filhos de seus filhos. De todo o coração, apostei na redenção da criatura. Debalde!

10. Fazei, pois, cumprir o meu intento e sereis recompensadas com a incomparável paz do inexistente.

 

 

DOS LEGADOS PATRIÓTICOS

 

Ao yanomami
A anomia

À mídia
O direito à afasia

Ao pastor
A voz da fanfarronice pia

 

28
Jan23

Antologia “Poesia intratável” revela produção poética contemporânea brasileira na França

Talis Andrade
 
 
 
 
A obra tradutória de Inês Oseki Dépré - YouTube
 
 
 
 

“Poésie intraitable” (Poesia intratável): este é o título da nova antologia da poesia contemporânea brasileira, que acaba de ser publicada na França pela editora Les Presses du Réel/Al Dante poesia, dirigida por Laurent Cauwet. A obra, bilingue, é organizada pela experiente Inês Oseki-Dépré, que também assina o prefácio e a tradução de todos os poemas que integram a seleção.

A antologia de poesia contemporânea apresenta ao público francês 33 poetas brasileiros, de várias regiões do Brasil, dos mais emblemáticos aos mais jovens, de João Cabral de Melo Neto a Lorena Martins, passando pelos irmãos Haroldo e Augusto de Campos, Paulo Leminski ou Arnaldo Antunes. O título intrigante de “Poesia intratável” foi a alternativa encontrada para passar ao leitor francês a ideia de “Poesia/risco”, que também indica o rabisco, de Augusto de Campos. “Nós procuramos uma palavra que tivesse o sentido de arriscar e, ao mesmo tempo, um traço. (...) ‘Poésie intraitable’ porque tem também o traço (trait em francês), o rabisco”, explica a tradutora.

Inês Oseki-Dépré incluiu em sua seleção vários poetas que já morreram porque considera “que a poesia contemporânea não é necessariamente a poesia de poeta vivo”. Ela ressalta que esses autores, que já faleceram há muito tempo como João Cabral, Décio Pignatari, Haroldo de Campos e Paulo Leminski, “servem de referência, continuam sendo um modelo ou um antimodelo para os poetas que vêm a seguir”.

Grande presença de mulheres

A presença de poetas mulheres, principalmente mais jovens, é marcante na antologia, mas a paridade ainda não é total. A pouca visibilidade das mulheres na história da poesia influencia a produção das poetas atuais, acredita Inês Oseki-Dépré. “O poeta homem existe desde muito tempo, e eles constituíram uma espécie de memória, de reserva masculina, e, em geral, o poeta se refere a formas que foram trabalhadas por outros homens. As mulheres não têm essa memória”, analisa. A falta desse paradigma torna a escrita poética feminina “muito livre. Eu chamei de poesia performativa, quer dizer, uma poesia do real, uma poesia imediata”, descreve.

Uma característica comum a todos os poetas e poemas que integram a seleção seria a “poesia crítica, de resistência”. A tradutora lembra que começou a trabalhar nessa antologia em um momento crítico para o Brasil, depois do impeachment da presidente Dilma Rousseff. “Eu achei que a gente podia identificar a atitude deles como uma espécie de resistência, que não se manifesta na temática ou nas escolhas. É uma poesia de vamos continuar. Eu achei que devia fazer aparecer essas pessoas que continuam escrevendo, que continuam acreditando na poesia e na arte. E esse é o traço comum dessa antologia”, aponta Inês Oseki-Dépré.

A organizadora tentou “dar um panorama diferente do que se faz no Brasil em matéria de resistência à letargia, à morosidade ou ao desânimo. E em matéria de voz. Há muito muitos poetas que são promissores. É uma tentativa de dar apoio a poetas menos conhecidos para que eles continuem”. Duas poetas que integram a antologia serão em breve publicadas na França: Patricia Lavelle e Angélica Freitas que terão seus livros lançados em junho, pela mesma editora, Les Presse du Réel/Al Dante.

Como traduzir coisas intraduzíveis?

Inês Oseki-Dépré, nasceu em São Paulo e vive na França desde 1966. Ela foi professora da Universidade de Aix-en-Provence e, há anos, promove a literatura, e principalmente a poesia, brasileira e portuguesa. Ela assina várias traduções importantes de autores de referência como Fernando Pessoa, Lygia Fagundes Telles e Haroldo de Campos. Em 1999, ela recebeu o importante prêmio Roger Caillois pela tadução da obra “Galáxias” do poeta concretista. Mas fez várias traduções também do francês para o português, começando por “Escritos” de Jacques Lacan. “Quer dizer, eu comecei já com coisas difíceis”, salienta.

Ao ser questionada sobre seu método de tradução, ela responde com uma pergunta: “Como traduzir coisas intraduzíveis? Você tem que inventar o método, a maneira, tem de ficar muito próxima do texto. O Haroldo (de Campos) chama isso de isomórfico.” E quando não dá para traduzir, como na obra de Guimarães Rosa repleta de “brasileirismo, você tem que inventar”, explica. O objetivo é dar ao leitor, no caso francês, o mesmo prazer de leitura no texto original e para isso Inês Oseki-Dépré tenta entrar na cabeça do autor.

“A minha ideia era sempre querer tentar adivinhar o que o autor quis fazer, me colocar na cabeça dele, fazer uma espécie de imitação de como ele quis fazer. Assim, o método mimético que consiste a achar que eu estou na cabeça do autor, o que ele está querendo dizer, o que está querendo transmitir; se é inovador, se é cínico, se é brincadeira. É tentar me colocar no lugar da escrita original”, detalha

 

25
Jan23

ESTA MORTE NÃO FOI POLÍTICA

Talis Andrade

 

“A face que devemos encarar é a de um Lorca distante de um paladino de esquerda, próximo à de um poeta político”

 

 

Oito décadas depois do assassinato do poeta andaluz Federico García Lorca, novas pesquisas tornam evidente a motivação do fato antes interpretado como ideológico: um crime de matriz familiar

 

por Fernando Monteiro

No século 20, nenhuma das figuras exponenciais da cultura (e foram muitas) teve a vida ligada a fatos extremos da luta política tão tragicamente quanto Federico García Lorca, o grande poeta espanhol assassinado no dia 19 de agosto de 1936, num recanto à margem da estrada Víznar-Alfaca, na sua província natal. 

Lorca era andaluz, e foi fuzilado dois dias depois de preso por uma milícia fascista, na Granada da Alhambra encarapitada nos morros da cidade e, até hoje, a memória de Federico segue preenchendo a história granadina e contribui para fazer de Andaluzia um dos destinos turísticos mais carismáticos da Europa. 

De certo modo, Granada se tornou duas legendas: Alhambra & Lorca – uma no seu esplendor arquitetônico e outro nos seus cantares “gitanos” e, por fim, no pranto de condenado à morte quase podendo ser ouvido pelos amigos e pela família detentora de boas propriedades de gente abastada, na cidade e no campo.

Quando alguém as visita, é impossível não se perguntar como foi possível o fuzilamento sumário, a agressão covarde e fatal contra o membro mais destacado – intelectualmente – daquela linhagem andaluza enraizada num lugar em que todos se conheciam. É claro, de imediato tudo foi atribuído ao descontrole do fascismo, nas três etapas: a da intenção de prender, a da decisão de nem “julgar” e a da ordem, por fim, de executar sem mais delongas. 

 

Quem foi o responsável? E por quê?

 

Essa pergunta esteve posta desde que começou a circular largamente a notícia da morte do homem que, segundo relatos da época, chorou na madrugada, diante do inacreditável fato de que iriam realmente fuzilá-lo de face para aquela manhã clara da Andaluzia que ele, filho da região, havia cantado em versos imortais.

Existiriam “motivos” políticos para a ousadia de matar um poeta já muito conhecido, um jovem com um vasto círculo de amizades na Espanha e também no exterior? Sabemos que fascistas são temerários (a palavra é essa), mas sempre houve algo de estranho nesse crime, além de obscuridades diversas, telefonemas vários, discussões, ordens e contraordens… e até uma arma apontada para a autoridade militar de Granada – por um fascista da Falange! – em defesa veemente do preso. 

É necessário, na verdade, recontar um pouco da tragédia, desde antes daquela manhã fatídica e, para isso, devemos ver Federico, ainda em Madri, sendo desaconselhado à ideia de seguir “para casa”, justamente para fugir dos perigos da capital, naquele primeiro ano da Guerra Civil. Os amigos tentaram fazê-lo desistir da viagem e permanecer entre eles. Alegavam que, na pequena Granada, ele estaria muito “mais exposto” do que na grande cidade, porém o poeta retrucou que lá, na sua Andaluzia, todos o conheciam e sabiam das suas origens. Ninguém conseguiu demovê-lo do intuito de assim se proteger e, dias depois, o poeta viajaria para Granada – e para a morte.

 

ÓDIOS ENTRE MUROS


Os amigos de Lorca tinham razão. O poeta encontraria, na Granada antigamente “mágica”, os eflúvios de ódios desatados à direita e à esquerda, no estreito ambiente limitado pelos muros seculares. Sim, ele era conhecido, para bem e para mal, como poeta e jovem boêmio de vida mais ou menos dissipada (e gostariam de dizer, claramente, a palavra derrisória para homossexuais: “vida de maricón”)… 

A cidade estava inevitavelmente alterada por medos, rumores e rancores velhos de antes da guerra. Circulavam boatos em torno de prisões já decretadas, e o seu nome teria sido mencionado. Assim, de acordo com recomendações familiares, Federico se transfere da sua casa para, algumas ruas depois, uma mansão de amigos dos Lorca-García: os Rosales, igualmente bem-relacionados e com integrantes da Falange (a sinistra agremiação política identificada com o “nacionalismo” de Franco) dentro de casa, do mesmo modo como também havia um poeta adolescente, Luis Rosales, mais tarde autor da obra-prima La casa encendida. A mudança parecia segura e conveniente para a segurança do belo rapaz das noitadas madrilenas. 

Neste momento no qual acompanhamos FGL seguindo para abrigar-se no meio dos Rosales, é preciso notar uma primeira discrepância, talvez, com relação ao futuro matiz da lenda que, após o crime, começará a ser fixada pela última manhã do poeta máximo da moderna literatura espanhola (em termos de repercussão internacional). Dela, dessa aurora nascida para a morte – inesperada –, viria a se compor um retrato sacrificial, isto é, a efígie de Federico Garcia Lorca coberta de sangue, vítima republicana a mais ilustre possível: havia sido fuzilado o bardo do “amor bruxo”, o cantor do romanceiro das estradas de saltimbancos, o vate andaluz, o “herói” em queda pelo lado esquerdo do peito varado pelas balas da Guarda Civil e outras hostes fascistas que levaram o ditador Franco a esmagar a Espanha por quatro décadas de autoritarismo, repressão violenta e controle absoluto de um povo tão difícil de domar quanto um miúra bravo nas plazas de areia e sangue.

Sangue, sim, se derrama por toda a ardente Península Ibérica, mas, ali na Espanha, ele se concentra como coágulos nos cristos deitados nas catedrais escuras, no espetáculo dos touros (e dos toureiros) feridos e nas graves sequelas de um conflito interno que, em agosto de 1936, envolveria o gênio de Andaluzia até arrastá-lo para morrer como um animal de abate, naquele morticínio maldito para todos.

Esse “para todos” introduz a maior parte das dúvidas que vinham se alargando, há anos, sobre quem realmente matou Lorca, ou seja, sobre quais nomes e quais motivos provavelmente se ocultaram num assassinato que ganhou a aura, imediata, de barbaridade máxima nessa confusa quadra da história do país de Cervantes. E, desde já, parece que temos de abandonar uma querida certeza acalentada por décadas: a do Lorca sacrificado em nome da ideologia – pois há que encarar a face, menos exposta, de um poeta lírico que não foi nenhum quixote, ou que não pretendia ser um paladino das esquerdas e, pelo contrário, estava em fuga das bandeiras e das fumaças da frente de combate. Federico era praticamente apolítico – segundo a unânime opinião dos que o conheceram – e até teria nutrido, num certo momento, uma velada simpatia por “governos fortes”, por autoridades que pudessem pôr “ordem” naquela casa, mais do que caótica, da Espanha da primeira metade do século passado. 

Isso foi confirmado por Luis Rosales, a respeito de um artista no auge do sucesso, como poeta e dramaturgo, quando a guerra estalou, fratricida. Naquela altura, mais do que nunca, ele era um Lorca vivaz em Madri, um ser risonho e animado na capital onde mantinha outros interesses muito para além da política (que nenhum dos seus colegas da famosa “Residência dos Estudantes” e amigos das letras, do teatro e da boêmia de Madri enxergaram, jamais, no horizonte do rapaz bem-nascido, bonito e dândi de todas as fotografias do mito que veio a se tornar Federico, o Assassinado). 

Esse é o primeiro degrau que se tem que firmar, a fim de galgar os patamares mais obscuros da tragédia. Ela surpreende, antes de mais ninguém, o povo de Granada, e a verdade – ou o que parece ser a “verdade”, tantos anos depois – vem se insinuando no território mais íntimo da família do poeta, entre parentes insultados e queixosos de negócios em sociedade com o pai de Lorca, o “patriarca” Federico García Rodriguez.

 

QUEM MATOU LORCA?


Todos que leram a obra do irlandês Ian Gibson (que serviu mais ou menos de “cânone” para estabelecer a versão do assassinato eminentemente “político”) decerto lembram o nome do pai do poeta como apenas uma referência ao marido de Vicenta Lorca, no registro da filiação do artista caído “sob os disparos pelas costas, feitos pelos fuzis do ódio fascista” etc.

Nada a contestar sobre a periculosidade dos “ódios fascistas” (é claro), porém as pesquisas mais fundas foram, recentemente, bem mais eficazes no levantar das discórdias e invejas no seio dos quatro ramos familiares, no caso de Lorca: os Roldán, os Benavides, os Alba e os García da linhagem paterna do poeta assassinado.

Longe da idealidade firmada – com as melhores intenções – por Gibson, de imediato ouçamos o historiador andaluz Miguel Caballero, dentre outros que foram revolver os quintais domésticos, na retaguarda de Víznar-Alfaca: “Afirmar que mataram Lorca por ser homossexual e ‘vermelho’ é uma simplificação que já não se admite. As verdadeiras razões de seu assassinato devem ser buscadas na sua própria família”.

Outro pesquisador incansável, Manuel Ayllón, arquiteto e autor de Granada, 1936 (Editorial Stella Maris), também é taxativo sobre isso: “Lorca não era um problema político, não ‘militava’ no sentido estrito, e podia ser extravagante, incômodo e meio afrontador nos seus hábitos joviais, mas nunca foi um perigo para absolutamente ninguém; politicamente, não era visado pelos fascistas, uma vez que era inofensivo. Na realidade, contra ele não houve sequer uma ordem de detenção assinada. Federico foi simplesmente levado da casa dos Rosales, que lutaram para libertá-lo no minuto seguinte e não descansaram nos dois dias subsequentes. O poeta Luis Rosales, irmão de dois falangistas, foi visitá-lo, pelos dois dias, na prisão perto de Granada. Ninguém imaginava que ele corresse qualquer risco de vida, ali adentro. Seguiam tentando tirá-lo de lá, quando veio a incrível notícia da sua morte por um pelotão que incluía membros do quarteto de famílias proprietárias da Vega de Granada que, então, estava dando bons lucros a Federico Rodriguez e aos seus Lorca-García”…

Não é, de modo algum, “teoria conspiratória” surgida 80 anos depois. Nem envolve somente as pesquisas de Caballero e Ayllón, mas começou a abalar até as antigas certezas de Gibson, que está, no momento, empenhado em rever suas descrições, desde o “sequestro” no dia 17 até a execução apenas dois dias depois, sem julgamento e causando, mesmo, alguma desagradável surpresa nos círculos mais próximos do quartel-general de Francisco Franco. Claro: um fuzilamento tão brutal não seria, jamais, a melhor propaganda para os fascistas empenhados em tomar o poder na Espanha culta, também. Aliás, consta que as primeiras notícias sobre a morte de Lorca foram veiculadas por eles, os nacionalistas, pretendendo que o poeta houvesse sido vítima da “loucura republicana” (ironia das ironias) e, quando a Guarda Civil emergiu como a assassina de FGL, fez-se um silêncio sepulcral sobre o assunto, por parte dos amigos do futuro ditador.

 

VINGANÇA LITERÁRIA


Miguel Caballero é quem traz mais uma surpreendente pista: “A chave para abrir o cofre de estranhezas em torno do fuzilamento sumário de Lorca esteve desde sempre ali, representada, escrita de punho e letra pelo poeta: trata-se de um presságio fatídico que, agora, oito décadas depois do crime, assume outra dimensão. A casa de Bernarda Alba foi uma vingança literária – enfatiza o historiador granadino. Caballero vê a famosa peça – que correu mundo – como um dos fios de meada da morte, os quais vêm sendo desenrolados por mais de uma dezena de pesquisadores que investigam a história da família desde a metade do século XIX. Naquela época, a Vega de Granada estava em poder de uma aristocracia residente em Madri, e que viria a cair em ruína financeira no alvorecer do século seguinte. As terras foram, então, adquiridas por um grupo da burguesia ascendente em Andaluzia, no qual figuravam o pai de Lorca e seus parentes, os Roldán e os Alba.

Caballero descreve: “Eles foram comprando as terras de modo coletivo, através de sociedades. E estes campos vão adquirindo muito valor com o plantio açucareiro, enquanto a Granada de 21 engenhos se converte numa das províncias mais ricas da Espanha. O pai de Lorca participa como acionista de vários deles. E a disputa começa com a divisão dos lucros e mais uma tentativa de dividir as terras, porque nem todos tinham a mesma sombra nem a mesma água, sendo daí que surgiram os primeiros desentendimentos entre os Roldán, os Lorca e os Alba. Uma mesma família, na verdade, porque eram endogâmicos: casavam-se entre si, a fim de manter as terras antes de mais nada”…

Ora, para a tragédia rural A casa de Bernarda Alba, Federico García Lorca foi se inspirar em personagens reais, entre as quais avulta Francisca Alba Sierra, uma mulher forte e que se comporta da forma tirânica mostrada nos palcos, para desagrado dos Alba de carne e osso, pouco afeitos às licenças poéticas. Para eles, a peça cheirava mal e tinha insinuações insultuosas. 

Os Lorca possuíam uma residência de verão granadina – a Huerta de San Vicente –, que foi assaltada em 9 de agosto de 1936 por alguns primos de Federico, do ramo dos Roldán, tidos como conspiradores contra a República. Além dos Roldán, o historiador Miguel Caballero lembra que outros familiares estiveram implicados nos atos de detenção e execução de Federico, nomeadamente Antonio Benavides, que era sobrinho-neto da primeira mulher do pai do poeta (e que será o homem acusado de disparar, pelas costas, contra a sua cabeça, na manhã desatada de ódios redimidos não só no plano da política de mistura com os preconceitos). 

Além desse pano de fundo – nada teatral –, existiu ainda uma ameaça vinda diretamente da poesia de Lorca, para a sua vida prestes a findar tragicamente: consta que, no dia 19, ele foi levado para a morte por um pelotão comandado pelo oficial da Guarda Civil (Nicolás Velasco Simarro), que teria se sentido pessoalmente ofendido pelos versos de Romance de la Guardia Civil Española, em virtude de referências à dura repressão da Guarda contra uma greve em Málaga. Mais: o ressentimento pessoal de Simarro pode ter sido “bem-reforçado” pelo fato de esse oficial haver desempenhado funções – pagas por um Roldán (Alejandro Benavides) – no caso de uma fuga de um grupo de camponeses da Vega, sempre objeto de disputas mesquinhas com o pai de Lorca…

Uma rede de ódios e intrigas familiares começa a assumir a frente do assunto “assassinato do poeta”. Seu cadáver jaz em algum lugar da estrada, na vala comum na qual teria sido abandonado e encoberto de areia e pedras andaluzas? Talvez não. A própria família é, ainda hoje, totalmente contrária (?) a buscas mais profundas por lá. O que é muito estranho. Todos os Lorcas velhos parecem saber que Federico não se encontra mais naquela vala há muito tempo, tendo sido de imediato exumado (ainda naquele agosto aziago, há 80 anos), como certamente não o seria, no caso de um horrível crime político, que a Guarda Civil naturalmente teria todo interesse em camuflar de incertezas, ao longo do tempo. Essa é mais uma nota que soa falsa na orquestração das obscuridades que aproximam o García Lorca póstumo dos piores motivos de discórdia entre familiares, em cenário ainda mais violento do que o de um romance como Os irmãos Karamázov, de Dostoiévski. Mais uma vez, talvez a vida imite a arte, se é que não a supere de muito. 

 

01
Jan23

O mergulho de Alexsandro Souto Maior

Talis Andrade
 
 

Rafael Rocha escreve:

 

Com poemas nascidos das águas do Recife de hoje, o poeta Alexsandro Souto Maior mergulha, sem medo de se molhar, nas paragens anfíbias de uma cidade hoje muito triste e abandonada pelos governantes. O poeta não se esquece da irmã Olinda (cidade em que eu nasci), presa em olhos de carnaval e de igrejas e de boemia, alicerçando tudo isso - como Alexsandro bem diz - no sonho de um povo libertário.
 
O livro RECIFE ANFÍBIO E OUTRAS PARAGENS é uma canção de quem ama e vive a vida de uma cidade onde rios se encontram e dão origem a um oceano imenso chamado de Atlântico.
 
Uma cidade nua. Uma cidade molhada. Uma cidade de marés e de mangues. Uma cidade, enfim, superlativa em todas as páginas e em todos os poemas.
 
Bom que tenhamos conosco poetas do naipe de Alexsandro Souto Maior. O Recife agradece. Olinda também. Sem falar neste poeta que faz essa pequena resenha. Obrigado pelas poesias.

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