Adriano deixa rastro de mortes sem solução: matadores são suspeitos de 18 homicídios não esclarecidos
Um levantamento do Instituto Sou da Paz, divulgado nesta terça-feira (2), mostra que decada dez homicídios, em apenas quatro um suspeito é identificado e levado à Justiça no Brasil. OJornal Hojemostrou casos não resolvidos.
O estudo compilou dados sobre homicídios dolosos, quando há intenção de matar, registrados em 2019. O instituto usa uma metodologia que considera "esclarecido" um assassinato que tenha resultado em ação penal até o fim do ano seguinte, ou seja, quando a investigação identificou um suspeito que foi levado à Justiça.Dos 39 mil assassinatos em 2019, só 37% geraram denúncia.
É muito grave o fato do Brasil esclarecer tão pouco os homicídios, porque gera uma série de consequências negativas. Primeiro, as famílias dessas vítimas ficam sem direito à justiça, sem direito a verdade, essa sensação de impunidade num crime que é dos mais graves. E aí, um criminoso contumaz, aquele que mata sempre, ou o crime organizado sabendo que esse é um crime que não vai ser esclarecido, não vai haver responsabilização, também se sente muito mais à vontade para continuar matando. Então é negativo por muitos aspectos e é uma pena que a gente ainda não consiga avançar mais na resposta aos homicídios do nosso país”, explica Carolina Ricardo, diretora-executiva do Instituto Sou da Paz.
O levantamento usou dados de 18 estados e do Distrito Federal. Oito estados não enviaram informações suficientes.RondôniaeMato Grosso do Sulforam os que mais conseguiram apontar culpados.AmapáeRio de Janeirosão os que menos denunciam suspeitos.
Sobre a morte do adolescente Igor Bernardo, a Secretaria da Segurança Pública de São Paulo disse que o inquérito foi finalizado em julho - sem indiciamento - e remetido para análise do Poder Judiciário.
[Coronéis deputados federais e estaduais dão o exemplo. Matar rende votos. Os assassinos juram crimes de lesa-majestade, ameaçam Lula de morte, enquanto Bolsonaro promete um golpe de estado neste Brasil republiqueta de bananas. Viva a sangreira!, bando de homicidas em massa.
Ameaçaram matar Lula os deputados general Eliezer Girão Monteiro, os coronéis Marcio Tadeu Anhaia de Lemos, André Luiz Vieira de Azevedo, Washington Lee Abe, Paulo Adriano Lopes Lucinda Telhada, cabo Junio Amaral. Até Carla Zambelli por ser esposa de um coronel, Aginaldo de Oliveira. Pasmem! o pastor Otoni de Paula. Na lista criminosa o sargento vereador Anderson Simões, o delegadoPaulo Bilynskj e outros safados. Vide tags]
Rastro de assassinatos do Escritório do Crime
por Rafael Soares /Extra
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Morto por policiais militares na Bahia, o ex-capitão do Bope Adriano da Nóbrega deixou um rastro de assassinatos sem solução no Rio. O Escritório do Crime, consórcio de matadores que criou com outros dois agentes que também haviam sido expulsos da PM, é suspeito de participar de 18 homicídios desde 2004. O EXTRA teve acesso a inquéritos e à ficha disciplinar de Adriano na corporação e consultou agentes que investigaram a quadrilha para montar a linha do tempo das mortes. A lista de vítimas tem bicheiros, policiais militares, presidentes de escolas de samba, políticos e até um casal executado por engano.
Há casos já arquivados sem solução em que há a menção, em depoimentos, da participação do grupo. Outros seguem em andamento, sem denúncia à Justiça. Os inquéritos mais recentes estão no Grupo de Atuação Especial de Repressão ao Crime Organizado (Gaeco) do MP do Rio, que investiga a atuação do consórcio de matadores. Adriano morreu sem nenhuma condenação por homicídio.
Seis das mortes, entre 2004 e 2009, se relacionam com a guerra pelo espólio criminoso do bicheiro Waldomiro Paes Garcia, o Maninho. A execução do contraventor, aliás, é a primeira da lista: o caso foi arquivado em 2018 sem que ninguém fosse indiciado. Na época, Adriano era ligado a um dos melhores amigos do bicheiro, o pecuarista Rogério Mesquita, a quem chamava de “padrinho”. Mesquita acabou ficando com parte dos bens e recrutou Adriano para sua quadrilha em 2006.
Anos depois, ameaçado pelo “afilhado”, ele apontou, em depoimento à polícia, Adriano como autor das mortes de Carlos Alberto Alano, o Carlinhos Bacalhau, funcionário de Maninho assassinado no Centro do Rio, e do ex-deputado Ary Brum, executado na Linha Amarela — ambas em 2007.
A quadrilha fundadores mortos
Os fundadores do Escritório do Crime: Capitão Adriano, tenente João e o ex-PM Batoré
Os três fundadores do Escritório do Crime foram mortos num intervalo de pouco mais de três anos em situações distintas. Adriano foi baleado numa ação do Bope da Bahia. O ex-tenente João foi executado perto da casa onde morava, na Ilha do Governador. Já Bator é foi morto num carro junto com o traficante Fernando Gomes de Freiras, o Fernandinho Guarabu, por PMs na Ilha do Governador.
Novo chefe
A polícia e o MP já sabem que o grupo tem um novo chefe. Ele não é policial. É ligado à milícia que domina a Praça Seca e já foi alvo da investigação do assassinato da vereadora Marielle Franco.
O nome
A quadrilha foi batizada em referência ao local onde os integrantes se encontravam: um bar na Favela Rio das Pedras, chamado de “escritório” pelos matadores.
Outras mortes
Velório do dirigente portelense Marcos Falcon, que foi morto dentro de seu comitê de campanha Foto: Márcio Alves / Agência O Globo
Entre as mortes em que há suspeita de participação do grupo, há um caso em que o tráfico é investigado por encomendar o crime. É o assassinato do major Alan Luna, lotado no batalhão da Ilha do Governador. Ele foi executado em Nova Iguaçu,na Baixada Fluminense, a caminho da unidade. O MP apura se o chefe do tráfico da Ilha, Fernandinho Guarabu, contratou o grupo para matar o oficial. Outras mortes investigadas por ligação com o grupo são a do subtenente reformado Geraldo Pereira, a do soldado Márcio Allevato e do comerciante Marcos Souza.
Executados por engano
Quando foi recrutado por Mesquita, Adriano chamou seu melhor amigo para trabalhar com ele, o ex-tenente João André Martins — com quem se formou no curso de Operações Especiais. Os dois foram apontados, em relatos à polícia, como responsáveis pelas mortes do casal Rafael Mendes Figueiredo, de 24 anos, e Juliana Roberto Alves, de 25, na Autoestrada Grajaú-Jacarepaguá, em 2007.
De acordo com o depoimento de Rogério Mesquita, os dois “fizeram merda”. Ambos foram contratados pelo genro de Maninho, José Luiz de Barros Lopes, o Zé Personal, para matar Guaracy Paes Falcão, então vice-presidente do Salgueiro e postulante a uma parte do espólio. Na saída de um ensaio da escola, a dupla perseguiu um carro errado e acabou matando o casal a tiros. Guaracy e sua mulher, Simone Moujarkian, foram executados no Andaraí semanas depois. As quatro mortes seguem sem esclarecimento.
Guaracy Falcão, vice-presidente do Salgueiro, foi fuzilado com a mulher no carro Foto: Fernando Quevedo
Adriano e João ainda eram suspeitos de matar um funcionário de Maninho num haras, Rogério Mesquita e também Zé Personal. O objetivo era ascender na quadrilha.
R$ 200 mil por crime
Após Adriano e João serem expulsos da PM, em 2014, por envolvimento com a contravenção, os dois se juntaram com o também ex-PM Antônio Eugênio Freitas, o Batoré, e formaram o Escritório do Crime. A partir daí, deixaram de trabalhar exclusivamente para herdeiros de Maninho. Já famoso no submundo do crime pelos assassinatos “perfeitos”, o trio passou a cobrar até R$ 200 mil pelos serviços.
Ex-deputado Ary Brum foi executado na Linha Amarela, em 2007 Foto: Fábio Guimarães
Segundo o MP, as mortes cometidas pelo grupo têm o mesmo ‘‘modus operandi’’. São disparados muitos tiros nas vítimas, quase sempre com fuzil. Quatro assassinatos sob investigação no Gaeco se encaixam neste roteiro: o de Marcos Falcon, presidente da Portela e candidato a vereador, executado em seu comitê de campanha; os de Haylton Escafura, filho do bicheiro José Escafura, o Piruinha, e sua namorada, a PM Franciene Soares, mortos num quarto de hotel; e o do empresário Marcelo Diotti, fuzilado no estacionamento de um restaurante. Nos dois primeiros casos, a suspeita é que bicheiros tenham pago pelos crimes. No último, a hipótese mais forte é a de guerra entre milícias.
Num relato à polícia, um comparsa expôs o método de Adriano para cometer “crimes perfeitos”: “Ele usa um fuzil com a coronha cortada e se coloca no banco de trás do veículo, de forma que posiciona somente o cano da arma para o lado de fora, evitando assim que as cápsulas deflagradas sejam ejetadas para fora do veículo”.
Não é segredo que a Fundação Nacional do Índio (Funai) parece ignorar sua principal missão – a proteção aos povos indígenas – durante o governo de Jair Bolsonaro (PL). Não à toa, após o assassinato do indigenista licenciado Bruno Pereira e do jornalista britânico Dom Phillips os servidores da pasta se rebelaram contra a atual diretoria: a categoria lançou, junto ao Instituto de Estudos Socioeconômicos, um dossiê com mais de 200 páginas, uma espécie de radiografia do atual desmonte da Funai, e iniciou uma greve nacional pela saída de Marcelo Xavier da presidência do órgão.
No fim das contas, o brutal crime ocorrido no Vale do Javari (AM) fez com que alguns indigenistas rompessem a mordaça. A maioria dos entrevistados na ativa da Funai relatou em detalhes à AgênciaPública parte da rotina de assédios, intimidações e ameaças de morte que tem sofrido nos últimos quatro anos.
Servidores da Funai afirmam sofrer assédios, intimidações e ameaças
“Assim, não precisa nem contratar pistoleiros para nos matar”
Daniel Cangussu foi o único indigenista do grupo ouvido pela Pública a não pedir anonimato, dada sua notória insatisfação com a presidência de Marcelo Xavier. Ele atua há mais de dez anos na Frente de Proteção Etnoambiental (FPE) Madeira-Purus, uma das regiões mais ameaçadas da Amazônia, onde se especializou na localização e no contato com povos isolados.
“Com o desmonte [da Funai], ficamos desmoralizados na ponta… acabamos ‘isolados’ também. Os invasores sabem que não temos porte de arma regulamentado, nem forças de segurança ao nosso dispor. As intimidações são constantes”, afirma o indigenista.
Sua rotina de trabalho envolve tanto o planejamento e a realização de expedições em busca de vestígios de indígenas como também a proteção dos isolados contra grileiros, madeireiros e pistoleiros que cercam as terras monitoradas pela Funai.
“No fim de 2021, uma pessoa abordou a gente, eu e minha equipe, em nosso trajeto de trabalho, nos alertando do perigo que estávamos enfrentando. Meses depois, descobrimos que aquela mesma pessoa estava armando uma emboscada para nós”, diz.
O servidor conta que a descoberta ocorreu quase que por acaso, vinda de alguém convidado a participar do ataque. “Quando recebemos ameaças, o relato vem primeiro pela boca dos outros. Receber ameaças [de morte] virou algo comum, infelizmente. Dizem que são ossos do ofício, quando não deveria ser”, afirma.
Cangussu narra ainda o avanço de invasores em áreas indígenas entre o Amazonas e o Pará durante o governo Bolsonaro. “Por exemplo: na calha do [rio] Madeira, houve um aumento de atividades criminosas, especialmente desmatamento e grilagem. Nas idas a campo, virou comum passarem caminhões cheios de invasores armados, de pistoleiros, circulando nas áreas indígenas – onde é proibido.”
Ouvido antes da confirmação das mortes de Bruno Pereira e Dom Phillips, Cangussu afirmou ainda que “há diversas formas de ‘contratar’ a morte de indigenistas e jornalistas que atuam na Amazônia”. De acordo com ele, “uma delas é desmontar a estrutura de apoio e proteção da Funai, outra é passar a impressão que os servidores são os culpados quando algo dá errado. Assim, não precisam nem contratar pistoleiros para nos matar”.
“Muitos te olham com desconfiança, com ódio. É muito difícil”
Outro indigenista que atua na Amazônia e pediu para não ser identificado deu uma amostra da segurança fornecida pela gestão de Marcelo Xavier aos que vão a campo em terras indígenas com povos isolados. “Temos menos de cinco coletes à prova de balas, todos vencidos, o que não dá para todos se estivermos em campo.”
O mesmo servidor relata como as promessas de invasões armadas têm chegado aos seus companheiros de trabalho nas bases mais avançadas na Amazônia. “Normalmente, a ameaça chega pela fofoca e pelo burburinho dos moradores na região, logo depois surgem os avisos – que ‘[eles] vão invadir a base e matar’ a gente”, afirma.
“Infelizmente, toda a economia daqui gira em torno do ilegal. Tem quem trabalha cortando toras de madeira, quem opera máquinas, quem conserta motores destas máquinas na cidade. Muitos te olham com desconfiança, com ódio. É muito difícil”, diz o indigenista.
“E ainda passamos por tudo isso sem receber qualquer adicional de periculosidade pela função, sem porte de arma, ganhando apenas meia diária extra quando estamos nas bases avançadas, em uma escala perversa de, às vezes, trabalhar por 30 dias ininterruptos”, afirma o mesmo servidor.
“Faço o que acredito, mas às vezes parece que estou numa guerra”, diz.
“Serei o próximo?”
Entre os indigenistas ouvidos pela reportagem, há quem atue no mesmo setor onde Bruno Pereira fez seu nome, a Coordenadoria-Geral de Índios Isolados e de Contato Recente (CGRIIC). Ocorreram diversas mudanças na chefia da CGRIIC ao longo do governo Bolsonaro, especialmente após a saída de Bruno Pereira da Funai, em 2019.
“A saída do Bruno [do cargo de chefia da CGRIIC] foi um inferno para nós. Primeiro, destacaram o ‘missionário’ [Ricardo Lopes Dias], que atrapalhou muito nosso trabalho, e os que vieram depois seguiram a mesma toada”, afirma outro servidor, também lotado no arco do desmatamento na Amazônia.
Esse indigenista relata que, gradualmente, a Funai mudou seu próprio entendimento quanto aos indícios de presença de povos isolados na floresta, dificultando a proteção aos indígenas.
“Temos vestígios contundentes de presença [indígena] por aqui há anos, com pegadas, fios de cabelo, cultura alimentar [restos de alimentos consumidos pelos indígenas] e outros elementos que provam sua existência, mas tudo segue desacreditado pela diretoria. Afinal, se reconhecerem, eles terão de demarcar a área, obrigatoriamente”, diz.
Servidores denunciam insegurança fornecida pela gestão de Marcelo Xavier aos que vão a campo em terras indígenas com povos isolados
O servidor relata também a ofensiva de invasores nos arredores da base onde atua. “Já fizemos denúncias sobre o avanço de mineradoras – que têm até usado explosivos nas proximidades – e de outros invasores, como pescadores ilegais, mas ninguém nos dá retaguarda”, afirma.
“Não autorizam nenhuma operação para desmontarmos as invasões, não dá para enfrentar [os invasores] assim, correndo risco de tomar bala no peito. Teve o caso do Maxciel em 2019, o do Bruno agora, e a gente fica se perguntando: ‘Serei o próximo’?”, diz o indigenista.
“Minha família já pediu diversas vezes para eu repensar, para sair daqui, mas o trabalho não pode parar. Dói muito pensar no Bruno, que era meu amigo pessoal, dói saber que ele não volta mais. Mas essa força há de gerar mudanças”, afirma o indigenista.
A “turma da PF”
Marcelo Xavier
Se nas áreas mais cobiçadas da Amazônia o risco é de morte, nos corredores da sede da Funai em Brasília há outros tipos de ameaça aos indigenistas críticos à gestão de Marcelo Xavier. “Internamente, funciona assim: tudo o que a diretoria não gosta, ela classifica como ‘ideológico’ – é só ver o caso de Ituna-Itatá, com aquele relatório assinado pelo diretor na época”, disse à Pública um servidor lotado em Brasília.
César Augusto Martinez
O indigenista se refere a Cesar Augusto Martinez, delegado da PF tal como Marcelo Xavier, que comandou o setor responsável pela área de proteção a povos isolados, a Diretoria de Proteção Territorial (DPT), entre julho de 2020 e junho passado. Martinez deixou o cargo logo após o desaparecimento de Bruno Pereira e Dom Phillips, alegando, porém, que sua saída não tinha relação com o crime no Vale do Javari.
O delegado ganhou destaque com a polêmica sobre a derrubada da interdição da Terra Indígena (TI) Ituna-Itatá, no Pará, um caso que se arrasta desde 2020.
Como mostrado pelo portal InfoAmazonia, a posição dos servidores é que existem fortes indícios da presença de povos isolados nos limites do território, o que manteria a interdição do local, mas Martinez, na condição de diretor responsável, contestava. A Folha de S.Paulo reportou que o delegado da PF teria assinado um despacho qualificando o relatório dos servidores sobre Ituna-Itatá como “irregular, ideológico e imprestável”.
“Sobre a presença de isolados, nenhum perito da PF tem capacidade de avaliar de forma ‘técnica’ os relatórios, porque toda a metodologia foi construída por décadas, pelo aprendizado com indígenas, mateiros, sertanistas, gente que ‘engrossou o couro’ de tanto andar no mato”, disse um dos servidores à Pública. Sua posição crítica ao delegado e ex-diretor da Funai ecoa em outros relatos colhidos pela reportagem.
“O Martinez e a ‘turma da PF’ usaram um suposto método científico para desacreditar os relatórios sobre povos isolados, e fizeram isso como se fossem ‘legalistas’”, afirma um dos servidores, enquanto outro indigenista diz que “as partes da lei sobre direitos humanos são ignoradas pela ‘turma da PF’, mas o direito à propriedade privada é ‘cláusula pétrea’, é sagrado”.
Outro lado
A Pública procurou a Funai e os nomes citados, mas não houve resposta até a publicação.
O presidente da Funai “pediu minha cabeça”, denuncia servidor
O indigenista e servidor Guilherme Martins, na Funai desde 2018, contou em entrevista exclusiva à repórter Alice Maciel, da Pública, que o coordenador-geral de Índios Isolados e de Recente Contato (CGIIRC), Geovânio Pantoja Katukina, foi omisso nas buscas pelo colega Bruno Pereira e pelo jornalista Dom Phillips.
Ele diz que houve retaliação direta ao seu trabalho na TI Ituna-Itatá (Pará). “Eu era ponto focal nessa região do médio Xingu há quatro anos, mais ou menos. A gente fez uma expedição lá, achamos vestígios dos indígenas isolados na região, eu elaborei um relatório contextualizando a presença dos índios isolados na região, denunciando o esquema criminoso de grilagem, desmatamento, de esbulho territorial na terra indígena. Em retaliação a esse meu trabalho, um dia eu chego na minha mesa na CGIIRC para trabalhar e o Geovânio Pantoja, meu coordenador, me avisa que eu não trabalho mais lá, que eu fui removido de ofício, sem a minha anuência, sem ter acesso anterior ao processo. Eu não fiquei sabendo de nada. Quando ele me chamou, o processo da minha remoção já estava pronto, assinado pelo coordenador da CGIIRC, e eu fui transferido para o setor de RH, de folha de ponto. Quando eu fui pedir explicações sobre o motivo dessa transferência, o então coordenador-geral da CGIIRC disse explicitamente que foi em retaliação ao meu trabalho em Ituna-Itatá que o presidente da Funai “pediu minha cabeça”. Leia reportagem de Alice Maciel aqui
Deputados serial killers também ameaçam o presidente de morte. Lula promete fechar clubes de tiro e espalhar bibliotecas pelo Brasil
É uma triste realidade brasileira: serial killers das bancadas da bala continuam a ameaçar Lula de morte.
Assassino em série, o psicopata que já metralhou mais de duas pessoas. Tem um deputado de São Paulo que confessou 200 mortes, outro umas cem.
Homicidas devem frequentar os clubes e escolas de tiros estimuladas pelo presidente Bolsonaro. Idem as milícias eleitorais armadas, idealizadas pelo Gabinete do Ódio instalado no Palácio do Planalto, que o Brasil virou uma republiqueta de bananas, com suas principais empresas falidas pelas Lava Jato, ou leiloadas por Michel Temer e Bolsonaro doudos por dinheiro.
Os violentos ou faroleiros parlamentares que ameaçaram matar Lula: general Eliezer Girão Monteiro, coronéis Washington Lee Abe, Lucinda Telhada, Tadeu Anhaia, André Azevedo, Carla Zambelli casada com um coronel, sargento Anderson Alves Simões, cabo Junio Amaral, inclusive o pastor Otoni de Paula, que bem imita trejeitos de gay desmunhecado. Todos fazem parte da tropa de choque de Bolsonaro.
Os discursos de ódio são cotidianos. O presidente capitão dá o satânico exemplo de apologia da violência como campanha eleitoral. Como se quisesse envolver o Brasil em uma guerra civil, que não se trama golpe sem listas de presos políticos e listas de lideranças marcadas para morrer.
Clube de Tiro vende "livros" para matar Lula
Em suas redes sociais, integrantes do Clube de Tiro TZB, em Goiânia, publicam vídeo em tom de ameaça e deboche ao ex-presidente Lula (PT). No vídeo, os participantes anunciam que já começaram o ”clube do livro” no TZB e um deles diz: ”a gente adora você, cara”.
Ao abrir o livro, fica evidente que, na verdade, são caixas com armas dentro. ”Olha que livro bonito”, comenta um deles ao abrir o conteúdo.
Nessa mesma publicação, um dos apoiadores repete o slogan de Bolsonaro: ”um povo armado jamais será escravizado”.
Por que ”Clube de Livros”?
Recentemente, em abril, durante um encontro em que recebeu apoio formal do PSOL, Lula declarou que, caso seja eleito, pretende fechar todos os clubes de tiro formados durante o governo de Bolsonaro (PL), criando clubes de leitura.
- Se preparem, porque esses clubes de tiros que foram criados vão fechar, vamos criar clubes de leitura. Em vez de tiros, nós teremos livros. Vamos espalhar bibliotecas pelo país. Vamos trocar armas por livros
A publicação do TZB é um deboche e afronte ao comunicado de Lula. Veja que todos usam uma barba de Fidel Castro como exibição de bravura, cara de guerreiro cubano.
Lula defende transformar clubes de tiros em clubes de livros
"O Brasil terá a oportunidade de decidir que país vai ser pelos próximos anos e [pelas] próximas gerações. O Brasil da democracia ou do autoritarismo? Do conhecimento e tolerância ou do obscurantismo e da violência? Da educação e cultura ou dos revólveres e fuzis?", declarou Lula.
Delegado levou seis tiros em briga com ex
Paulo Bilynskyj ganhou projeção nacional em maio de 2020, com o espetaculoso suicídio da noiva Priscila de Bairros, em São Bernardo do Campo, na região metropolitana de São Paulo.
Após atirar contra o delegado, Priscila teria atirado contra ela mesma e morreu no local.
O inquérito que investiga o caso ainda não foi concluído, mas, no ano passado, em entrevista ao "Domingo Espetacular", da RecordTV, Bilynskyj disse que não seria possível ele ter atirado e que "nunca" foi acusado "de nada".
Na ocasião, os advogados da família de Priscila questionaram o motivo que levou a modelo a tirar a própria vida e indicaram que, "dependendo o que motivou, o doutor Paulo pode responder por instigação ao suicídio". Segundo o delegado, na noite anterior aos tiros, Priscila viu uma mensagem de uma mulher no computador do namorado e não gostou. Ele diz que era uma mensagem anterior ao relacionamento dos dois, de uma admiradora do seu trabalho como policial.
Deputado dispara arma durante sessão
Um deputado estadual do Mato Grosso do Sul foi criticado pelos colegas por ter disparado uma pistola durante a votação de um projeto de sua autoria.
João Henrique Catan (PL-MS) participava da sessão de forma remota, em um estande de tiro, e disse que era um “tiro de advertência no comunismo”.
O projeto, de âmbito estadual, reconhece o risco da atividade de atirador desportivo e foi aprovado por 16 votos favoráveis e três contrários. “O povo armado jamais será escravizado”, bradou João Henrique, apoiador fanático do presidente Jair Bolsonaro (PL).
EVANDRO GUEDES FALA SOBRE O DELEGADO PAULO BILYNSKYJ
Paulo Bilynskyj e Priscila de Bairros. Uma morte jamais investigada.
Toda solidariedade ao povo Yanomami q enfrenta o terror dentro de sua casa. Garimpeiros criminosos atacaram mais uma vez uma de suas comunidades, sequestraram duas indígenas e estupraram uma delas até a morte. Um verdadeiro horror! Oq mais precisa acontecer p/ autoridades agirem?
Anapu hoje, sob Bolsonaro, está muito, mas muito pior do que em 2005, quando Dorothy Stang foi assassinada com seis tiros. Há uma trilha de mortos nos últimos anos e um massacre pode acontecer a qualquer momento.
Dez assassinatos em Altamira em cinco dias. Uma das vítimas era Marcelino, jovem amado por todos que o conheciam, q trabalhava no galpão da associação das reservas extrativistas. Outras duas eram mãe e filha na calçada. É um massacre, sangue por todos os lados. Por favor,denunciem.
O querido Marcelino é um dos dez mortos em cinco dias no atual massacre de Altamira. Denunciem, por favor. Não podemos normalizar a barbárie. Quando normalizamos o sangue, aqueles que perpetuam a violência passam também a nos dominar.
Quem puder, colabore com a vaquinha organizada por diversos colegas para arrecadar R$ 310 mil para ajudar o jornalista
a pagar a absurda indenização ao absurdo Gilmar Mendes. Chave aleatória: ajudarubens Chave aleatória: a45ad0a9-22ef-4d20-8bd0-f756f6e7cc76
Caso Rubens Valente revela nova censura e põe em risco liberdade de imprensa
“É um atentado à liberdade de expressão e de informação”, diz jornalista, condenado por STJ e STF a indenizar ministro Gilmar Mendes pela publicação do livro “Operação Banqueiro”
“Se o STF decide que um jornalista pode ser condenado nos termos em que fui, então a porteira foi aberta”, diz Valente
Punição também impede, na prática, reedição do livro
Abraji encaminhou processo para Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Leia reportagem aqui
O assédio judicial contra jornalistas se transformou num grande desafio ao jornalismo independente e às entidades que representam a classe. Depois que a lei de imprensa foi extinta, em 2009, as ações por danos morais passaram a ser impetradas diretamente contra jornalistas. As empresas entram como rés solidárias. O caso Rubens Valente traz à tona outras duas questões básicas: a falta de parâmetros para avaliar o valor do suposto dano moral e o teor do que deve ser considerado ofensivo.
Ele também ameaçou, em 2019, um PM que pediu o namorado em casamento com a farda
Por Julinho Bittencourt /Forum
O vereador bolsonaristaAnderson Alves Simões(Avante), de Mauá (SP), divulgou em suas redes na semana passada um vídeo em que ameaça o ex-presidenteLuiz Inácio Lula da Silva(PT) com uma arma.
O bolsonarista imitou ovídeo do deputado federalJunio Amaral(PL-MG). O parlamentar criticou um vídeo do petista em que ele sugere fazer um mapeamento das casas dos deputados, “conversar com a mulher dele, conversar com o filho dele, incomodar a tranquilidade dele”, ao invés de fazer protestos em frente ao Congresso.
“Oi, Lula. Tudo bem? Estava aqui em casa, tomando café com minha família, nós vimos um vídeo seu falando para visitar os deputados federais, deputado federal tem família. Eu sou vereador, pré-candidato a deputado federal em São Paulo. Eu queria te convidar, convidar seu povo, para vir aqui em casa tomar um café comigo. Você eu sei que até esses dias morava em Curitiba, nas sela (sic) da Polícia Federal, não é isso? Agora a gente não sabe onde você mora. Fala para mim onde você mora. Eu quero visitar você aí também. Tomar um café com você. Vai ser um prazer te receber aqui em casa ou ir na sua casa tomar um café com você, tá bom? Tamo junto, Lula. Sou o Sargento Simões, tá?”, disse ele enquanto carregava uma pistola e segurava um rifle.
Sargento Simões, como é conhecido, teria atacado via redes sociais o policial após saber do pedido, feito próximo a uma base da PM em São Paulo. Entre palavras de baixo calão, o sargento disse que iria caçar o soldado e "ensiná-lo a virar homem na porrada, seu filha da p*** do c******".
“O que dá em vocês todos? Nós estudamos o problema e já estamos estudando há quase um século, sim, mas os estudos não estão nos levando muito longe. Vocês tem uma bela de uma casa aqui, bons pais que te amam, você não é um cérebro lá tão ruim. É algum diabo que entra dentro de você?”
Anthony Burgess
Osserial killersnão são um fenômeno recente na história da humanidade, porém, passaram a ganhar destaque a partir do século passado, seja pela exposição midiática, seja, como muitos afirmam, pelo aumento da sua ocorrência.
Lares problemáticos, pais negligentes, abusos físicos, psicológicos e sexuais, genes malignos, cérebros disfuncionais, sociedades com inversão de valores, esse é a mistura da receita para se criar um potencial assassino em série.
Todo esse caldo maligno praticamente mata o ser humano que deveria existir naquele corpo e o substitui por um monstro incapaz de cultivar empatia e respeito ao próximo. Toda essa maldade enclausurada nos recônditos da mente do homicida vira uma bomba relógio, prestes a explodir a qualquer momento e haja piedade da infeliz criatura que cruzar o caminho da cruel besta.
O modo como oserial killerdá vazão ao seu desejo assassino é um ritual, uma representação de tudo aquilo que o fez tornar ser o que é. É uma repetição dos traumas, porém, com inversão de papéis de vítima para algoz, como se fosse a encenação de uma vingança com o passado.
Denota-se então que, aparentemente, seja tudo uma relação de causa e efeito. Um mal cometido no passado será repetido no futuro, algo como o conceito do eterno retorno formulado por Nietzsche, de que a vida, no futuro, sempre repetirá o passado. Mas não é tão simples assim. Não existe uma certeza matemática de que uma pessoa que passe por um evento traumático ou que tenha certas anomalias cerebrais irá se converter em um homicida. E é essa incerteza que complica há séculos uma conclusão sobre o porquê de algumas pessoas virarem criminosas, vivendo em condições semelhantes, e outras não.
Toda essa incerteza reflete na resposta da sociedade para a questão, especialmente para o Estado e suas instituições responsáveis.
Não obstante, há que se considerar que nas últimas décadas houve um desenvolvimento em várias abordagens em relação ao serial killer, como no desenvolvimento de técnicas de investigação e também estudos comportamentais.
No entanto, isso ainda não é o suficiente e a despeito desses avanços nas áreas forenses, permanece uma dúvida ainda maior no tocante a qual a postura da sociedade para reagir ao problema.
Ao preso comum, há esperança de reabilitação concomitante ao cumprimento de pena de prisão. Mas para o psicopata, estudos indicam que não há a eficácia esperada justamente pelas idiossincrasias desses indivíduos.
Não se olvide também, que com a noção da possível origem das causas de surgimento dos assassinos em série, o Estado e a sociedade podem implantar políticas de controle e redução dos episódios traumáticos que sempre circundam o passado destes, como campanhas para prevenir e punir o abuso infantil e do adolescente, debates e questionamentos sobre os atuais valores primordialmente materiais estabelecidos como objetivos pela sociedade e estimulação da educação e humanização das relações entre as pessoas.
No Brasil, além dessas medidas gerais, que são aplicáveis em qualquer lugar do mundo, há necessidade também de capacitação dos profissionais, investimento em equipamentos, principalmente os de coleta de dados e análises forenses. Há que se acabar com o mito de que no Brasil não existe serial killer. O atual cenário do nosso país é o que traz todos ingredientes para a proliferação dessa espécie de assassinos, pois há disparidade de classes, cultura de violência, corrupção, impunidade e valorização exacerbada dos bens materiais e estéticos.
Por todo exposto, pode-se concluir que oserial killernada mais é do que a encarnação de tudo o que é podre na sociedade, é o reflexo de todo mal que existe por aí e muitas vezes fazemos questão de ignorar. A consciência disto é o primeiro passo para mudar esse panorama e encontrar uma saída.
Referências:
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CASOY, Ilana. Serial killers: louco ou cruel?. Rio de Janeiro: Darkside Books, 2014.
______. Serial killers: made in Brazil. Rio de Janeiro: Darkside Books, 2014.
MILLER, T. Christian. Why can't the FBI identify serial rapists?. 2015. Disponível em: <http://www.theatlantic.com/politics/archive/2015/07/vicap-fbi-database/399986/.> Acesso em: 13 fev. 2016.
PARKER, R.J.; SLATE, J.J. Social Killers: amigos virtuais, assassinos reais. Rio de Janeiro: Darkside Books, 2015.
RÁMILA, Janire. Predadores humanos: o obscuro universo dos assassinos em série. São Paulo: Madras, 2012.
ROLAND, Paul. Por dentro das mentes assassinas: a história dos perfis criminosos. São Paulo: Madras, 2014.
SCHECHTER, Harold. Serial killers, anatomia do mal. Rio de Janeiro: Darkside Books, 2013.
TENDLARZ, Silvia Elena; GARCIA, Carlos Dantes. A quem o assassino mata? O serial killer à luz da criminologia e da psicanálise. São Paulo: Atheneu, 2013.
A irmã de um miliciano executado em um cerco policial diz que sua morte foi negociada por cargos comissionados no Palácio do Planalto.
Um amigo “de casa” do presidente da República sai em sua defesa e grava um vídeo para a internet(veja ao final)dizendo que Daniela Magalhães da Nóbrega, esta irmã do morto, “estava nervosa” e que “confundiu Palácio Guanabara com Planalto”, revelando que foi avisado pelo homem que seria executado, por telefone, que em uma reunião na sede do governo do Rio ter-se-ia decidido que “não era para ele ser preso, e sim executado, o que aconteceu dois meses depois”.
Por mais chocantes que sejam as duas declarações, há algo mais escandaloso ainda: a completa inação do Ministério Público diante de duas afirmações, de viva voz, de que governantes – ou o do Estado, ou o do País – mandaram executar o ex-capitão Adriano da Nóbrega, um dos maiores chefes de milícias no Rio.
Já não estamos falando em “rachadinhas”, desvio de verbas, extorsão de servidores, mas de homicídio premeditado e no qual agentes estatais seriam os instrumento de “queima de arquivo”.
Fabrício Queiroz, o coletor das “rachadinhas”, livre, leve e solto, além de candidato a deputado pelo valhacouto que se tornou o PTB de Roberto Jefferson, sente-se à vontade para assumir a defesa presidencial e fazer uma afirmação que, se houvesse qualquer interesse em verificar poderia ser facilmente esclarecida, até porque daquela reunião homicida o aviso teria vindo de “um colega de turma” do futuro cadáver, Adriano da Nóbrega.
E o que acontece? Nada, nem sequer a abertura de uma investigação sobre o que é expressamente dito sobre um assassinato.
Dois fatos densos de reminiscência e que se articulam de modo a nos trazer à situação em que hoje atravessamos no Brasil
Por RONALDO TADEU DE SOUZA /A Terra É Redonda
“grande parte do que fez a grandeza dessa obra [Em Busca do Tempo Perdido] permanecerá oculta ou inexplorada até que essa classe [a burguesia aristocratizada] na luta final, revele seus traços fisionômicos mais fortes.” (Walter Benjamin, A Imagem de Proust).
“Justiça por Assata” (Ato 19/03 Goiânia informações: instagram: ayah_akili e pensar.africanamente).
Muito já se disse sobre a memória na formação de nossas existências. São inúmeros os teóricos sociais, filósofos, críticos da cultura e psicanalistas que afirmam ser a lembrança de uma vida de então o aspecto fundamental não só de indivíduos, mas da sociedade ao qual estão inseridos. Seja no soerguimento da identidade de cada um, seja nas disposições de organização das relações sociais, seja nos modos em que lidamos com eventos políticos significativos – o passado é parte constitutiva do ser em sentido amplo.
Não foi sem razão que Marx disse no início deO 18 Brumário de Luís Bonaparteque o espírito do passado e as tradições de outros tempos influenciam as ações do presente – mesmo que do ponto de vista da linguagem. E que Benjamin nasTeses sobre o Conceito de História, ter reivindicado que fossemos ao pretérito como um salto de tigre naquele mesmo. Tanto Marx como Benjamin estavam a escrever seus respectivos textos para aqueles e aquelas em condições de serem explorados, oprimidos pelas classes dominantes, humilhados no cotidiano por circunstâncias impostas pelo capital e suas figuras representativas e sacrificados cruelmente pela violência estatal.
Um e outro pretenderam chamar a atenção da importância para os subalternos de toda ordem da força da recordação; não da recordação que se faz patíbulo e extirpa o impulso da transformação ao prender, astutamente por vezes, as paixões políticas no passado e sim daquela que vislumbra a fusão com o contingente (essa foi a mensagem de Frantz Fanon no fim doPeles Negras Máscaras Brancas) e transfigura-se em subjetividade insubmissa, radical, revolucionária por assim dizer, e torna o futuro presente. Faz do horizonte de expectativas princípio dialético-objetivo. Ainda assim, por vezes se esquece daquilo que ocorreu no decurso da vivência.
É por isso que devemos ter em nossas mentes dois fatos que ocorreram nos últimos dias, mas que são densos de reminiscência, e que se articulam, de modo a nos trazer à situação em que hoje atravessamos no Brasil. Essa semana completaram-se quatro anos do assassinato a mando de Marielle Franco, e dias atrás presenciamos um dos acontecimentos mais terríveis da vida pública brasileira – a ida à Ucrânia de Arthur do Val, e os áudios vazados com suas declarações sobre as mulheres ucranianas em meio ao sofrimento humano de uma guerra. (Guerra essa que é promovida por aqueles que de maneira geral personagens como esse cidadão é porta voz, as classes dominantes das potências mundiais – as burguesias e elites imperialistas, Vladimir Putin e a Rússia inclusive, que já disse para quem tem ouvidos para ouvir, escutar e atentar que a região da Ucrânia foi uma equivocada invenção do Lênin e dos bolcheviques após 1917.)
É preciso lembrar que Marielle Franco, mulher negra, lésbica, de esquerda, militante socialista do PSOL (partido ao qual era filiada e atuava em defesa dos pobres, negros e negras que passam todo tipo de violência policial no dia-a-dia), foi exterminada covardemente pelas forças policiais-políticas que de uma maneira ou de outra hoje governam o país, com um programa econômico-político que visa a devastação literal daqueles considerados descartáveis para a ordem do capital atualmente (e Arthur do Val é irrefutavelmente um dos mais importantes políticos e representantes desse bloco no poder). Marielle sem dúvida seria uma das vozes a gritar pelos seus e pelas suas. Mas isso não foi possível a ela.
Em 2018 o Brasil já estava completa e moralmente conquistado (faltava apenas a consolidação material do poder estatal, pois não nos esqueçamos, a presidência de Michel Temer iniciou em 2016 com o golpe institucional, e que 9 de 10 que não sejam de esquerda qualificam com a dicção da legitimidade política de Impeachment) pela direita de todos os matizes. Hoje ninguém quer se associar ao bolsonarismo, ao Arthur do Val e com alguma timidez cínica acreditam no MBL (nossos liberais, ou liberais mesmo). No arco da contrarrevolução brasileira de 2014-2021, nosso18 Brumáriopara lembrar o ensaio de Bruno Cava, rememoremos queliberal-conservative, conservadores, liberais, tradicionalistas, neoliberais e sociais-liberais, obviamente em nenhum momento se posicionarem contrários ao que vinha ocorrendo, está inserida a morte tramada de Marielle.
As descrições do assassinato planejado racionalmente estão disponíveis para quem quiser averiguar, não as farei aqui (já o fiz nos três anos da morte de Marielle no siteA Terra é Redonda); basta dizer que Ronnie Lessa e Élcio Queiroz a espreitaram por mais de três meses antes do dia do crime. E é esse arco, em fase de estabilização agora, uma vez que estamos às vésperas da eleição – eleição que por vezes, nem sempre e não consegue de fato, tem a função de (re)estabelecer o equilíbrio instável com a competição pelo voto (Schumpeter) –, que impossibilita as investigações e a revelação de quem efetivamente exigiu o extermínio na vereadora negra e carioca. Ora, de posse do poder de Estado e sem nenhuma das veleidades democráticas (Marx) bem pensantes da esquerda legalista, era e é natural que o grupo de direita que o detém fez, faz e fará de tudo para ocultar os responsáveis: dos 9 tiros disparados pelos sicários a soldo contra Marielle Franco.
Arthur do Val – que se diga era até bem pouco tempo aliado de Sérgio Moro – foi uma das figuras mais representativas do que alguns chamam de a nova direita brasileira. De certo modo, entendidas as coisas com ponderação aqui, ele é um dos “responsáveis”, responsável indireto e com um grau significativo de distanciamento desse indireto, pelo que ocorreu no dia 14 de março de 2014 no Rio de Janeiro. É preciso lembrar que naquele contexto a cidade do Rio estava ocupada pelas forças militares sob o comando de Braga Neto; a Lava Jato estava com o prestígio absolutamente incólume dado os vínculos com a mídia empresarial; as ideias de mercado organizam o debate sobre o futuro do país; a esquerda era sem trégua alguma qualificada de corrupta (que bela é a vingança da história); e os personagens da direita eram recebidos em todos os salões sociais e do poder como os jeovás da pátria: era na verdade oKatechonda vez. Arthur do Val era um deles.
Hoje a classe média, seja a conservadora, a de profissões liberais, a intelectualizada, a progressista, tem comportamentos de aversão à figura de do Val – mas no arco em questão se felicitavam e regozijavam de quando ele ia a manifestações de movimentos e grupos de esquerda os mais variados, que na maioria das vezes compunha-se de pessoas a lutar por uma vida minimamente mais digna, e fazia questões aos presentes, questões e perguntas para tentar humilhar os já humilhados, para tentar desprezar os já desprezados, às mais absurdas, como: “você sabe o que é mais-valia?”, “o que você acha do Che-Guevara?”, “você sabe o que é déficit fiscal?” etc. (Sim caro Arthur do Val! Todos e todas sabem o que é “mais-valia”, sabem quem “foi Che”, e “entendem” das implicações do não-déficit fiscal.).
Entretanto, eis que o (ex)aliado de Moro, e que é preciso e necessário divulgar, ainda falava e fala pelas forças de direita, pelos agentes de mercado, o capital e/ou a burguesia na boa teoria socialista clássica, (ele foi um contundente defensor das reformas previdenciárias contra funcionários públicos em São Paulo), e pelos conservadores do momento parte em uma viagem para a Ucrânia, junto com Renan dos Santos (e seu rosto menino de baladeiro das boas casas noturnas de São Paulo). Lá, no país com sua população, a maioria de trabalhadores e setores médios sofrendo a realidade de uma guerra não planejado por eles, muito pelo contrário, ele “revela” a que tipo de grupo e setor político e social estamos a enfrentar. Misoginia será pouco para qualificarmos as palavras de Arthur do Val (que diga-se alguns setores fingem que não é com eles de que se trata, é vergonhoso como meios de comunicação e outros setores do espectro político trataram o caso, se fosse alguém de esquerda que no Brasil se quer pode cometer o menor deslize, mesmo que de avaliação sincera e de tomada de posição as exigências seriam bem outras).
O chefe do MBL (Movimento Brasil Livre), que tramou junto aos seus – a saber, o próprio Sérgio Moro, Aécio Neves, o Vem pra Rua, Kim Kataguiri, Brasil Paralelo, o Instituto Mises, o Instituto Millenium, Eduardo Cunha, Pondé e outros colunistas de livre pensamento e democratas (são tantos), os economistas das muitas XP’s espalhadas pelas Farias Limas a fora (André Esteves do BTG à frente), Olavo de Carvalho, PSDB, DEM, Jair Bolsonaro e o espírito-Ustra – a deposição de Dilma Rousseff, um golpe palaciano lapidado como quem lápida cuidadosamente uma pedra de diamante para a Vivara (e que agora, claro, exercita a diversidade racial), com a idêntica alma-santa que o fez mentir e criarFake Newssobre Marielle Franco, mas à época a santa aliança deu de ombros, foi à Ucrânia demonstrar de fato o que pretende como político brasileiro.
Quer, não nos esqueçamos disso, o esmagamento prático e simbólico de todos os subalternos: mulheres, negros, trabalhadores, LGBTQI+ e indígenas. Lembrar que há 1500 dias Marielle nos deixou pelas mãos e mentes de figuras-tipo como Arthur do Val e seus consortes, novamente entendidas as coisas ponderadamente, ou seja, cultivarmos a memória como irrupção do passado no presente-futuro, pode nos levar não só a redimir a vereadora negra de esquerda, como a de todas e todos que caíram e caem na luta de classes-raça árdua, às do cotidiano e às da emancipação radical.
Desabafo do advogado Valério Luiz Filho: “Naquele dia, ao olhar para o carro do meu pai, eu disse para mim mesmo: ‘quem fez isso vai pagar'” | Fernando Leite / Jornal Opção
“Espero que deste caso fique a lição de que a justiça é possível”
O dia 5 de julho de 2012 nunca foi nem será apagado da memória de Valério Luiz Filho. No começo da tarde daquele dia, ele aguardava seu pai para almoçarem juntos, no Jardim América. Mas o comentarista esportivo Valério Luiz não chegaria. Após sair dos debates da Rádio Jornal AM (hoje Bandeirantes), já dentro de seu carro, um Ford Ka preto, ele havia sido executado a tiros por um homem que, em seguida, fugiu em uma moto.
O filho foi à cena. Viu o pai morto e sentiu menos tristeza do que revolta. E fez uma promessa a si mesmo: quem fez aquilo não ficaria impune. Iria pagar pelo crime. Depois de muitos obstáculos durante o inquérito e o trâmite judicial, a data de 14 de março, esta segunda-feira, marca para o advogado o cumprimento da própria palavra. Diante de júri popular, estarão os réus Ademá Figuerêdo Aguiar Filho, Djalma Gomes da Silva, Urbano de Carvalho Malta, Marcus Vinícius Pereira Xavier e Maurício Borges Sampaio, todos acusados de homicídio duplamente qualificado – por motivo fútil e sem chance de defesa para a vítima. Ademá é acusado da execução, Sampaio, de ser o mandante. Os demais tiveram papéis intermediários.
Jornal Opção entrevista o advogado Valério Luiz Filho
O filho do jornalista covardemente assassinado fala da longa espera e de seu percurso pessoal durante esta década em busca de justiça
Jornalista Valério Luiz assassinado por um dono de cartório e cartola de futebol associado com juízes vendidos e envolvido com bandidos deputados e corruptos policiais assassinos de Goiás. Fica tanta demorada para um julgamento
Euler de França Belém – Por que exatamente mataram Valério Luiz?
No processo, fica bem clara a escalada das coisas. Em 2010, já havia um boletim de ocorrência de Maurício Sampaio contra meu pai, que havia denunciado que jogadores do Atlético estavam fazendo uso de drogas na concentração e prostitutas circulavam na porta do clube, um jogador dando cavalo de pau no pátio. Enfim, indisciplina dos atletas, de modo geral. Meu pai chegou a jogar no Atlético e era torcedor do clube. Meu avô veio de Anápolis para trabalhar em Goiânia, na Rádio Difusora, em Campinas, na Praça Joaquim Lúcio. E ele também morava ali no bairro, representado até hoje pelo Atlético.
Em 2011, a rixa entre Valério Luiz e Maurício Sampaio se manteve. Em um programa comandado pelo jornalista André Isac, chamado “Tabelando”, na PUC TV, o entrevistado foi Maurício. E ele foi questionado sobre como era o relacionamento dele com a imprensa, se tinha alguém com quem ele não se dava. E a resposta foi clara, ele disse algo como “todo mundo sabe que tem um colega de vocês aqui, o Valério [que à época trabalhava na PUC TV], não gosto dele e acho que a recíproca é verdadeira”. Isso foi em setembro de 2011. No primeiro semestre de 2012, as críticas de meu pai se intensificaram bastante, porque o Atlético, que vinha em uma linha ascendente desde 2005, de repente começou a ir mal. Estava várias rodadas como lanterna do Campeonato Brasileiro, campanha ruim gerando frustração da torcida, insatisfação com o clube. Meu pai, então, fazia comentários muito fortes. Em um deles, quando os muros da sede apareceram pichados com o nome do técnico, de jogadores e de alguns dirigentes, ele levantou a hipótese de que poderia ser algo encomendado pela diretoria, e não um protesto da torcida. E parecia mesmo, porque eram pichações feitas com rolo de tinta ou algo assim, criticando dirigentes como Valdivino de Oliveira [então presidente do clube], alguns jogadores que nem Sampaio nem Adson [Batista, diretor de futebol] gostavam. E não havia nenhuma menção aos dois. Criticavam os patrocinadores do Atlético também, que eram a Linknet e a Delta Construtora. A Delta patrocinava por influência do Carlos Cachoeira [empresário protagonista da Operação Monte Carlo, em 2012], e a Linknet, por Valdivino, que era secretário de Fazenda do governo do Distrito Federal.
Então, meu pai denunciava essas coisas: que o Atlético tinha se envolvido com patrocinadores tenebrosos, que haviam caído em escândalos, e que isso seria o motivo de o clube ter entrado em crise, porque o dinheiro não estava entrando nos cofres mais. Também dizia que as contratações oneravam muito o clube, com atletas que nem jogavam. O clima foi se acirrando com esses comentários. O Atlético havia perdido o Campeonato Goiano para o Goiás e tanto Sampaio como Adson começaram a culpar a Federação Goiana de Futebol (FGF), dizendo que a arbitragem favorecia o Goiás e coisas assim. Meu pai reagia, dizendo que o clube estava acostumado a fazer mutretas, a comprar resultados.
Por fim, com a perda do Goiano e com a crise agravando, tanto Sampaio, que era o vice-presidente, quanto Urzêda [tenente-coronel Wellington Urzêda, então diretor de Relações Públicas do clube] anunciaram que sairiam do clube. E tinha uma questão importante: havia uma disputa interna entre Valdivino e Sampaio. Nisso estávamos na segunda quinzena de junho de 2012. Foi nessa ocasião que meu pai fez várias críticas de uma vez só: falou que Sampaio era descartável no Atlético, que quem conseguia os patrocinadores era Valdivino, que Adson e Sampaio só davam prejuízo ao clube e que naquele momento, quando o time estava mal, era natural que os “ratos” fossem os primeiros a pular fora do barco que afundava.
Elder Dias – Essa frase ficou realmente muito marcada à época.
É verdade. Mas é bom dizer que, antes mesmo dessa frase, já tinha sido divulgada uma carta do Atlético a qual proibia expressamente as equipes da PUC TV e da Rádio Jornal 820 AM – os veículos em que meu pai trabalhava – de entrar nas dependências do clube. No texto, havia a referência direta ao nome do jornalista Valério Luiz, que era classificado como “persona non grata” no Atlético.
No dia desse comentário sobre os ratos pulando fora do barco, o time estava com a delegação em Curitiba. Ligaram de lá para o André Isac – ou Daniel Santana, não tenho certeza – para perguntar sobre esse comentário. Depois de confirmarem que tinha ocorrido mesmo, então, disseram que, chegando em Goiânia iriam tomar as devidas providências.
Logo depois veio também o caso de Charlie Pereira. Ele trabalhava na Rádio 730 AM [hoje Sagres] e também na PUC TV. Veio a determinação da rádio para exigência de exclusividade, de modo que ele não poderia mais trabalhar na TV. Detalhe: Maurício Sampaio era sócio da 730. Então, Daniel Santana, que era um dos coordenadores do programa de esportes de que Charlie participava, chegou a ir até Sampaio, para tentar dissuadi-lo da ideia. Era algo que nunca havia acontecido em Goiás, de forçar um jornalista a sair por não gostar de outro profissional daquele mesmo veículo. Lembro-me de que meu avô e Jorge Kajuru tiveram muitas desavenças entre si comandando equipes de esporte concorrentes, mas nunca chegaram a pressionar os funcionários em comum que tinham. Só que Maurício Sampaio teria dito, então, que ou estavam com ele ou estavam contra ele. Essa escalada culminou com o que aconteceu em 5 de julho de 2012.
Interessante é que a defesa de Sampaio alega que primeiro elegeram um culpado e depois foram atrás das provas. Analisando todos esses fatos, a gente observa que obviamente não é isso, pelo contrário. As investigações se deram com base nos elementos que foram dados. As pessoas já desconfiaram, na época, de que o motivo seria isso que eu relatei porque as circunstâncias eram essas.
Euler de França Belém – O sr. considera que a investigação policial foi bem feita?
Sim, foi bem feita.
Euler de França Belém – A casa em frente à rádio era mesmo de Maurício Sampaio ou estava alugada por ele?
A casa era de Maurício Sampaio e quem morava lá era Urbano, que era uma espécie de faz-tudo – é algo muito comum que pessoas muito ricas tenham alguém assim, para fazer tarefas do dia a dia. Pelo contexto dos áudios da investigação, fica claro que Urbano exercia esse tipo de função para Maurício, fora visto no cartório dele várias vezes, também o acompanhava a jogos no estádio. Então, ele passou a morar naquela casa em 2012, não pagava aluguel. Provavelmente para fazer a campana.
Elder Dias – A casa foi comprada também nesse período?
Maurício Sampaio tem – ou pelo menos tinha – vários imóveis naquela região. A casa fazia parte de uma quadra que já era dele. Só que a casa estava vazia.
As quebras de sigilo telefônico – embora eu não tenha como precisar toda a dinâmica – são muito decisivas para mostrar toda a movimentação dos réus no dia do crime”
Elder Dias – Então, de certo modo, foi uma coincidência a rádio ser ali perto?
Sim. Urbano foi morar lá para monitorar a movimentação. Tanto que, na cena do crime, quem estava lá era ele. Mais do que isso, as ligações entre os acusados estão muito bem delineadas no inquérito. Da Silva e Figuerêdo [policiais militares] faziam segurança pessoal para Sampaio em dias de jogos. O próprio acusado de ser o mandante admitiu que dava contrapartidas financeiras para eles, inclusive com filhos de Da Silva estudando sem pagamento de mensalidade em uma escola cujo proprietário era de Sampaio. As quebras de sigilo telefônico – embora eu não tenha como precisar toda a dinâmica – são muito decisivas para mostrar toda a movimentação dos réus no dia do crime. Um ponto muito importante que a Polícia Civil chegou a pegar é que Urbano habilitou dois celulares especificamente para uso no dia do homicídio. Esses números foram descobertos e se traçou onde eles foram usados e se revelou que isso se deu exatamente no local da ocorrência.
Euler de França Belém – E que usou esses aparelhos?
Urbano e Ademá Figuerêdo. O primeiro de campana, em frente à rádio. Existe uma ligação às 13h57 daquela tarde, de dez segundos. Foi o prazo de meu pai sair da sede e, Figuerêdo, que estava na moto, na outra esquina, ser avisado para tomar a ação. Há uma testemunha – uma funcionária da rádio, que estava subindo, também de moto – que o viu parado na esquina.
Euler de França Belém – Qual teria sido o papel do açougueiro Marcus Vinicius?
Tanto Da Silva como Figuerêdo eram policiais conhecidos como “P2”, do setor de inteligência da Polícia Militar, que trabalham à paisana, colhendo informações para municiar as viaturas ostensivas. Esses policiais têm também uma rede de informantes. Da Silva conheceu Marcus Vinícius no açougue onde comprava carne. Eles também jogavam bola juntos, às vezes, em um grupo de um policial com o qual tinham conhecimento em comum. De certa forma, acabaram se conhecendo por acaso. Só que Marcus era envolvido com a pequena criminalidade ali na região do Parque Amazonas. Existem relatos, em um dos depoimentos do processo, de seu envolvimento com o pequeno tráfico, por exemplo. Sua função, portanto, era passar informações. E o açougue ficava muito perto da rádio, uma distância a ser percorrido em dois minutos de moto. Então, Da Silva e Urbano discutiam o que iriam fazer ali, no açougue do Marquinhos, como o chamavam. Lá, definiram que a moto a ser usada seria a do pai dele, que seria lá no açougue também que deixariam a arma escondida, o capacete, celular e tudo o mais.
Elder Dias – E o pai de Marcus Vinicius, dono da moto, não teve nenhum envolvimento?
Não, nenhum. No dia do crime, Figuerêdo foi deixado lá, pegou a arma e tudo o mais, fez a execução e deixou tudo lá novamente. Marcus devolveu a moto, se desfez do capacete, queimou a camisa utilizada na cena e, depois, Da Silva foi até lá e pegou a arma.
Euler de França Belém – Como Marcus Vinícius foi para Portugal, tempos depois? Quem o mandou para lá?
Não se sabe como ele custeou sua ida para lá – aliás, ele retornou para Portugal. A justificativa que ele dá é o medo. Por várias vezes ele relatou que foi ameaçado por Da Silva. Quando soubemos que ele estava em Portugal pela primeira vez – por meio de fotos da esposa dele no Facebook –, eu imprimi, levei para o juiz e ele decretou a prisão preventiva. A Interpol o capturou no fim de 2014 e ele ficou um ano preso preventivamente aqui. Em outubro de 2015, Marcus Vinicius resolveu falar. Na frente do juiz, ele confirmou tudo o que tinha dito em delegacia, confessando e apontando a participação dos demais.
Marcos Aurélio Silva – E também falou sobre o próprio medo?
Também, o que casa perfeitamente com as provas técnicas. A presença dele no júri, se ele vier, será muito boa. Mas, se ele não vier, há também elementos suficientes para seguir normalmente com o julgamento. Caso condenado, ele será extraditado de novo e volta para cumprir a pena.
Euler de França Belém – A polícia chegou a descobrir quanto custou o crime?
No depoimento, Marcus Vinicius chega a dizer que recebeu R$ 9 mil. Mas o que teria havido de vantagem para os demais não se descobriu.
Euler de França Belém – Nenhum dos demais confessa nada, negam tudo sempre?
Sim, o único que confessou foi Marcus Vinicius.
Euler de França Belém – Um dos réus, Da Silva, chegou a alegar problemas mentais?
Sim. Ocorre que eles haviam sido mandados para júri em agosto de 2014. Recorreram ao Tribunal de Justiça e a decisão foi confirmada em abril de 2015. A partir daí, começaram os recursos – ao STJ [Superior Tribunal de Justiça], STF [Supremo Tribunal Federal] –, o que se encerrou em 2018. Então, para atrasar o andamento, Da Silva deu entrada no que se chama incidente de insanidade. Juntou alguns laudas de um psiquiatra particular e alegou que estava com esquizofrenia, algum problema mental. A junta médica do TJ é muito abarrotada de trabalho, então demoraram alguns meses para fazer o exame. O laudo concluiu que, na verdade, ele estava simulando a doença.
Euler de França Belém – Valério Luiz não usava armas?
Não, meu pai nunca andou armado. Entretanto – e isso vai ser levado ao júri, também –, alguns dias antes do crime, ouvi um barulho estranho e fui verificar o que era. Vi meu pai com uma Taser [arma utilizada para imobilizar seu alvo]. Ele nunca tinha usado aquilo na vida. Acho que ele não sabia que eu estava em casa e ficou meio constrangido quando o questionei, disse para mim que era “para proteção”. Acho que ele já esperava que algo fosse acontecer, provavelmente não tinha ideia de que seria aquela operação de guerra.
Elder Dias – Ele nunca relatou alguma ameaça?
Para mim, não. Mas, pensando hoje, pai não relataria ameaças para os filhos, né? Já para minha madrasta, Lorena, ele chegou a falar alguma coisa.
Valério Luiz Filho, em entrevista à equipe do Jornal Opção: “Meu pai era carinhoso. Ele me ajudou a construir a autoconfiança” | Foto: Fernando Leite / Jornal Opção
Marcos Aurélio Silva – Como era seu pai em casa, com vocês?
Eu tive uma infância muito boa, muito tranquila e feliz. Meu pai era muito carinhoso com a gente. Uma coisa que ele sempre fazia era demonstrar um grande respeito comigo, até incompatível com a idade. Os adultos sempre tendem a não se importar com o que as crianças falam, mas ele sempre me ouvia como alguém cuja opinião era levada em consideração. Isso sempre me estimulou bastante e ajudou a construir minha autoconfiança.
Euler de França Belém – Valério não era explosivo com vocês, como costumava passar pelo temperamento na TV?
Não, com a gente, não. Meu pai era muito reservado na vida pessoal. Tinha alguns momentos de intempestividade, sim, e provavelmente por isso era tão discreto. Quem é mais sistemático geralmente fica mais na sua, não dá tanta abertura, apesar de não deixar de ser educado e cortês. No dia a dia, ele não tinha aquela postura que tinha no microfone, onde buscava o que achava o tom adequado para as críticas que fazia.
Agora, existe um ponto que entra nisso: meu pai era das Testemunhas de Jeová. Eu também fui, até os 18 anos. A gente ia três vezes ao templo por semana, fazia aquele serviço de pregação de casa em casa – provavelmente até visitei algum de vocês (risos) –, essas coisas.
Euler de França Belém – Nos campos de concentração, as Testemunhas de Jeová eram as pessoas que mais resistiam.
Existe isso mesmo. Hoje não sou mais, por não concordar com os dogmas, hoje não me filio a alguma religião. Mas nunca obstinação de meus irmãos de fé daquela época. E meu pai foi assim, até a morte. As Testemunhas de Jeová, como muitas denominações religiosas, acreditam que possuam a verdade, fazendo a distinção entre “nós” e “o mundo”. Meu pai levou isso às últimas consequências, de forma religiosa, refletia em sua profissão, a ponto de, quando emitia uma opinião que considerava ter embasamento, quando acreditava estar mesmo certo, achar que não precisava negociar nada, não precisava medir as palavras. Talvez até por isso sua fala saía de forma tão contundente.
Euler de França Belém – É comum a demora de dez anos para um julgamento?
No nosso caso – em que há advogados, promotores de Justiça, assistente de acusação em cima, o tempo inteiro –, não é comum. Atrasou tanto porque, realmente, os réus têm poder de resistência. Recorreram em tudo que puderam – esse episódio de Da Silva, por exemplo, protelou um ano.
Marcos Aurélio Silva – O poder econômico influenciou nessa demora? Ou seja, um réu mais pobre talvez não tivesse condição de prorrogar por tanto tempo o julgamento?
Isso conta bastante. Eles recorreram exatamente de tudo que puderam, como eu disse: foi para o TJ, depois para o STJ, depois para o STF. Teve uma ocasião no STF, inclusive, no fim de 2017, em que o ministro Ricardo Lewandowski concedeu uma liminar, numa canetada, anulando processos no Brasil inteiro. Na época, fiquei sem saber o que fazer. Enfim, me acalmei, entrei em contato com algumas organizações com que temos relação a algum tempo. Conseguimos publicar na primeira página do Jota [um dos principais veículos jurídicos do País] e também encaixamos duas matérias no “Estadão”, no blog do Fausto Macedo. A gente mostrou que Maurício Sampaio havia sido beneficiado por Lewandowski em outra decisão liminar, em que ele retornou para o cartório após havia sido afastado, com o concursado (para o cartório) praticamente empossado.
Paralelamente, fui a Brasília e consegui falar com uma das subprocuradoras-gerais da República para pedir que ela recorresse, já que eu não poderia atuar em habeas-corpus. Ela recorreu e, de modo até surpreendente, na volta do recesso, em fevereiro de 2018, a coisa refluiu e o próprio Lewandowski revogou a liminar e negou a alegação deles.
Euler de França Belém – Como foi a alegação de que não havia auditório em Goiânia que desse condições para o julgamento?
Eu achei algo muito estranho aquilo. Nunca tinha visto aquilo. O Tribunal de Goiás não é pequeno, é um tribunal de médio porte. Um juiz [Jesseir Coelho de Alcântara] dizer que não tinha condição de fazer um júri… senti que o próprio tribunal ficou um tanto constrangido com essas declarações do juiz. Na época, o juiz disse que a segurança era frágil, que não tinha estrutura para os jurados etc. Eu me reuni com a Comissão de Direitos Humanos da OAB, também com o procurador-geral de Justiça, e a gente pediu providências para o presidente do TJ-GO, que chegou até a fazer uma reforma em um dos auditórios, do Fórum Cível, onde também tem júri. O dr. Jesseir se deu por suspeito e saiu do processo, que foi para o juiz que está com o caso, Lourival Machado. Ele havia marcado o júri para 23 de junho de 2020, mas tudo ficou suspenso por causa da pandemia. Agora, o júri foi marcado para o plenário do Tribunal de Justiça, que é o local mais amplo que há no Judiciário. Ficou até estranho, porque o lugar é muito grande e, até o momento, não há autorização para acesso ao público – haverá apenas transmissão pelo YouTube.
Marcos Aurélio Silva – Como está a situação dos policiais acusados do crime frente à corporação?
O sargento Da Silva, salvo engano, já está reformado, mas continuava ministrando aulas na Academia da Polícia Militar, como instrutor de tiro. Já Figuerêdo segue trabalhando normalmente, em Senador Canedo. Chegou a sofrer um procedimento administrativo na PM, para apurar a conduta dos policiais, mas a corregedoria interna não tem meios de investigação como a Justiça e a Polícia Civil têm. Nós, aliás, atravessamos um pedido à Corregedoria da PM pela suspensão até a decisão judicial, para evitar, ainda, que houvesse alguma decisão mais corporativista.
Sim, temos medo de – não hoje ou amanhã –, mas alguma represália no futuro. Nós tomamos nossas precauções. Morávamos em uma casa, no Jardim América, e assim que houve o crime nos mudamos para um apartamento. Há cuidados que vamos precisar ter para sempre”
Marcos Aurélio Silva – E sua família, como convive com essa situação? Vocês se sentem ameaçados ou com medo?
Nós tomamos nossas precauções. Morávamos em uma casa, no Jardim América, e assim que houve o crime nos mudamos para um apartamento. Sobre ameaças, elas se dão geralmente em outro contexto, quando não se quer que algo seja dito, quando alguém não quer que algo vá a público. Depois que a coisa já estourou, mesmo se me matassem agora, ainda assim teria o júri na segunda-feira – e talvez com consequências mais sérias. Mas, sim, temos medo de – não hoje ou amanhã –, mas alguma represália no futuro. Por exemplo, os PMs, sendo condenados, serão automaticamente expulsos da corporação, mas vão continuar por aí. Então, há cuidados que vamos precisar ter para sempre.
Euler de França Belém – O luto por uma pessoa assassinada é diferente de outros lutos. Como sua família atravessou – e atravessa – esse processo?
Quando a morte vem por causas naturais, como foi o caso de meu avô [Manoel de Oliveira, o Mané, nome que foi referência da imprensa esportiva em Goiás, que morreu no ano passado, de câncer], traz um sentimento de aceitação, por ser, de certa forma, da natureza da vida e das coisas que assim aconteça. No caso de meu pai não foi assim. Ele foi brutalmente retirado da vida muito novo ainda e isso gerou, pelo menos naquele momento, mais uma sensação de revolta do que de luto, propriamente.
O luto por meu pai veio aos poucos, porque não é só a perda naquele momento. À medida que nossas vidas vão se desenrolando, a gente vai sentido a falta da pessoa em situações nas quais gostaria que aquela pessoa estivesse presente. Meu pai não conheceu nenhum de seus três netos. Eu tenho um filho, minhas irmãs, cada uma, também têm. Minha esposa, por exemplo, ele não chegou a conhecer. Têm várias coisas que eu já fiz, e as quais gostaria que ele estivesse junto de nós, mas que ele não teve essa oportunidade. Então, nesse caso, o luto em si com o tempo até se agrava. Claro que não com aquele sentimento esmagador da época em que tudo aconteceu, mas não é algo que passa.
Elder Dias – O sr. falou em revolta, que foi o que sentiu quando do assassinato. Como foi o dia, o que o sr. lembra?
Eu me lembro vivamente. Tinha 24 anos e me lembro de estar de pé diante daquela cena. Estava claro que tinha sido uma execução. Vocês sabem, todos nós, no decorrer de nossa vida, fazemos promessas para nós mesmos: ou emagrecer, ou fazer determinado curso ou outros pequenos planos. Algumas a gente sabe até que provavelmente não vai cumprir e outras a gente tem certeza de que vai levar até o fim. Naquele dia, ao olhar para meu pai naquele carro e dizer para mim mesmo: “Quem fez isso vai pagar”. É uma das poucas vezes na vida em que se fala uma coisa para si mesmo com uma convicção incontornável, porque não tem como continuar convivendo consigo mesmo se não levar aquilo adiante.
Euler de França Belém – Nesse período, de quase dez anos, o sr. também se tornou outra pessoa. O que o sr. fez durante esse tempo?
O que aconteceu influenciou claramente minhas escolhas, meus objetos de interesse. Eu tinha me formado em Direito, ido para Recife e havia voltado para Goiânia depois de um ano morando lá, trabalhando em um escritório de advocacia tributária. Conversei com meu pai para a gente tentar montar um escritório nosso aqui. Ele estava me apresentando pessoas e, na época, eu também estava estudando para um concurso da Procuradoria-Geral do Estado, que veio a ser realizado no ano seguinte. Então, eram planos normais de um bacharel em Direito, queria ter tempo de escrever, tinha publicado um livro de poesias em 2010. Eu queria ter tempo para me dedicar à literatura. Agora, concluindo o mestrado no Programa de Pós-Graduação em Filosofia da UFG [Universidade Federal de Goiás], devo fazer o doutorado na área de Direito.
Euler de França Belém – O que você estudou no mestrado?
Meu mestrado em Filosofia parte de um julgamento, o de Eichmann [Otto Adolf Eichmann, um dos principais responsáveis pela deportação de judeus para os campos de concentração nazistas]. Minha linha de pesquisa é o conceito de banalidade do mal, de acordo com a obra de Hannah Arendt [escritora e filósofa alemã de origem judaica, que escreveu “Eichmann em Jerusalém” e criou o conceito de “banalidade do mal” a partir do julgamento do nazista]. Minha especialização havia sido em Criminologia e Segurança Pública, na qual estudei muitas das circunstâncias que levaram àquele estado de coisas que produziu a morte de meu pai. Aquilo não aconteceu do nada. Como era possível ter um Comando de Missões Especiais daquela forma, com aqueles policiais com histórico de atrocidades no mesmo contingente e com autoridades incrivelmente permissivas com isso? Como um homem como Maurício Sampaio chegou ao nível de poder e influência que tinha? Como foi possível chegar àquela conjuntura a ponto de alguém achar que poderia mandar matar um jornalista e escapar da justiça? Posso dizer que ele [Maurício] estava quase certo disso [de que sairia impune].
Euler de França Belém – No livro de Hannah Arendt, ela fala de Eichmann como um homem do Estado legal, um funcionário administrativo que cumpria ordens absurdas. Já uma biografia mais recente [“Eichmann Before Jerusalem”, ou “Eichmann Antes de Jerusalém”, em português], de Bettina Stangneth, relata que, por conta própria, Eichmann continuou mandando judeus para o campo de Auschwitz. Ou seja, ele não seria um funcionário administrativo comum, uma figura secundária. Como aplicar essa ideia no caso específico do crime contra Valério Luiz?
Elder Dias – Por exemplo, os intermediários e executores, por já serem ligados de alguma forma ao acusado de mandante, não teriam feito apenas uma “tarefa” a mais?
Arendt associa a banalidade do mal à ausência de reflexão sobre os próprios atos. Ela diz que um dos principais freios éticos seria este: conviver consigo mesmo em relação ao que fez, funcionar como seu próprio juiz, chegar em casa, colocar a cabeça no travesseiro e dormir tranquilo. Então, ela coloca que há algumas pessoas que sistematicamente evitam esse encontro consigo mesmas, não pensam nunca sobre o que fazem. Esse tipo de gente não tem qualquer limite: o que ela faz hoje, amanhã já esqueceu. São as mais perigosas.
Nós somos acostumados a pensar que o mal precisa ter motivações profundas. Muitas vezes me perguntavam: por que mataram seu pai? Quando eu respondia que eram por comentários esportivos, diziam “mas é mesmo? É tão pouco!”. É como se, para fazer um mal tão grande, precisaria de uma motivação também grave. Para nós aqui nesta mesa, matar uma pessoa é algo do outro mundo, mas para esse tipo de gente, não. Eles já conviviam em um universo em que matar alguém era uma coisa comum. Já tinham acesso fácil aos meios de violência, porque os homens mais violentos do Estado estavam à mão, logo ali. E outra questão: pela condição financeira e de poder, não encaravam as outras pessoas como seus pares. São estes os dois pontos para que a banalidade do mal aconteça: criar um ambiente no qual as pessoas não precisam pensar sobre o que estão fazendo e desumanizar as vítimas desse mal, colocando-as como menores.
“A defesa alega que primeiro elegeram o culpado e depois foram atrás das provas. A gente observa que obviamente é o contrário” | Foto: Fernando Leite / Jornal Opção
Marcos Aurélio Silva – Um podcast chamado “Pistoleiros”, da Globo, fala sobre o grupo conhecido como Escritório do Crime, de milicianos do Rio de Janeiro. Aborda a execução da vereadora Marielle Franco, mas vai bem além disso. Enquanto o sr. colocava essa correlação, me lembrei de como ocorreram as ligações naquele meio carioca: pessoas do jogo do bicho, do futebol, das escolas de samba e que passavam a ter ligações com militares. Em sua cabeça, haveria aqui em Goiânia algum paralelo com o que ocorre no Rio?
Para mim, existia um projeto abrangente de poder. Sampaio, por exemplo, era na época sócio de uma rádio, estava no comando de um cartório que lhe rendia milhões de reais por mês e cujo faturamento era aumentado por suas relações com um juiz [Ari Ferreira de Queiroz], que acabou sendo punido pelo CNJ [Conselho Nacional de Justiça]. Estava também na direção de um clube de futebol e estava tentando – isso era uma das hipóteses de meu pai na época – conseguir a presidência da Federação Goiana de Futebol.
Da mesma forma, no próprio Atlético, havia muita gente poderosa entre os demais dirigentes: Valdivino de Oliveira, presidente do clube, que havia sido secretário do DF e depois foi deputado federal; Jovair Arantes, à época deputado federal e articulador da bancada da bola; e o tenente-coronel Urzêda, que estava à frente do Comando de Missões Especiais (CME) da PM.
Euler de França Belém – Como era a questão da inspeção veicular no Detran ligada ao cartório de Maurício Sampaio?
O juiz Ari de Queiroz deu uma especial interpretação ao Código Civil, de modo que o Detran, apesar de órgão estadual, teria de fazer todos os registros de financiamento de veículo na Comarca de Goiânia. Portanto, na prática, todos os veículos financiados em Goiás tinham de ser registrado no cartório que, naquele momento, estava no comando de Maurício Sampaio. Cartorários do interior entraram com mandados de segurança para ter direito a isso e, por alguma razão, todos os mandados caíram exatamente para Ari de Queiroz, que negava tudo. Por causa dessa decisão dando essa espécie de monopólio a Sampaio, a demanda do cartório aumentou demais. Nesse contexto, fizeram um sistema de ligação direta do cartório com o Detran, que era ilegal, porque operava fora dos meios oficiais.
Eu entrei com ação popular contra, pedindo a destituição de Sampaio do cartório. Logo depois, o Ministério Público de Goiás (MP-GO) entrou com ações civis públicas no mesmo sentido. Quando isso ocorreu, o presidente do TJ-GO na época suspendeu essa liminar de Queiroz que beneficiava Sampaio, no uso de uma prerrogativa excepcional prevista em lei.
Elder Dias – No mesmo dia do assassinato de Valério Luiz, houve outro homicídio marcante em Goiânia, que vitimou o advogado Davi Sebba Ramalho, no qual também há envolvimento de policiais. O sr. tem acompanhado esse caso?
Na verdade, o assistente de acusação do caso Davi Sebba, Allan Hanemann, é meu amigo. Ele é também professor da UFG no polo da cidade de Goiás. Eu o conheci na atividade jurídica, principalmente na questão dos direitos humanos. Também convivi muito com Pedro Ivo Sebba, irmão de Davi. Naquele período, a polícia estava fora de controle, havia tido a Operação Sexto Mandamento [que investigou um grupo de extermínio na PM] no ano anterior [fevereiro de 2011]. Lembro-me de uma capa do jornal “O Popular” – uma das mais icônicas, em minha opinião – com a frase “Mato por satisfação”, que era o trecho de um diálogo interceptado pela Polícia Federal, de um policial militar com um comandante, falando algo como “sem novidades, capitão, um pouquinho de sangue na farda é bom, né? Mato por satisfação”. Por conta daquela capa, as viaturas da Rotam, na época, fizeram um processo de intimidação em da sede da então Organização Jaime Câmara [hoje Grupo Jaime Câmara], com os giroflex ligados. Foi o que levou o então governador Marconi Perillo (PSDB) a dissolver o batalhão da Rotam. O pessoal estava completamente louco, a coisa estava tão fora de controle, que foi uma das primeiras vezes, senão a primeira, que o Conselho dos Direitos da Pessoa Humana fez uma sessão fora de Brasília, vindo a Goiânia no segundo semestre de 2012. Foi a partir disso que surgiu o encaminhamento de federalizar casos de crimes em Goiás. Na época, o procurador-geral da República, Roberto Gurgel, recebeu uma carta, se sensibilizou e fez o pedido de um dos casos para o STJ. Minha família e a de Davi Sebba também foram incluídos na lista, mas nossos processos, ainda que lentamente, tiveram andamento, então não justificava a federalização.
Marcos Aurélio Silva – Como surgiu a ideia de criar o Instituto Valério Luiz e o que ele tem feito?
É o nome que a gente deu para uma associação simples, que reúne advogados, jornalistas, ativistas e amigos em geral. A ideia surgiu em 2013, quando sentimos que tínhamos de nos organizar de forma a poder pressionar mais efetivamente pela solução do caso, não apenas de forma pessoal, para não ficar algo personificado. Durante esse tempo, conseguimos atuar de forma bastante consistente, acompanhando outros casos até o tribunal do júri. Uma reunião que fizemos à época, com a então ministra Maria do Rosário [da Secretaria dos Direitos Humanos], foi especialmente produtiva, porque levamos o quadro que estava ocorrendo em Goiás e desenvolveu uma série de sugestões para políticas públicas. Tudo isso serviu para que o Brasil fosse denunciado na Corte Interamericana por causa do descaso com os direitos humanos dos jornalistas no Brasil.
Euler de França Belém – Mané de Oliveira, seu avô, foi a vida inteira um homem batalhador. No período em que ficou doente, ele chegou a falar com o sr. sobre o caso?
Meu avô era um otimista patológico. Ele não chegou àquele momento de aceitar a própria finitude. Durante o tempo inteiro, ele lutou para sair daquela situação, mesmo com a doença já em um estágio avançado. Houve apenas uma vez em que ele me ligou, de manhã, e chorou ao telefone. Disse que não estava tudo bem e que não conhecia meu filho ainda e que tinha esse desejo. Então, ele foi lá em casa, a gente conversou, mas naquele dia a gente não falou do caso do meu pai. Eu também não queria falar desse assunto num tom que pudesse passar a ideia de que ele não fosse estar mais aqui, me pareceu um pouco cruel fazer assim. Teve um dia no hospital em que a situação se agravou muito, ele chegou a ter, acredito, até uma parada cardíaca, porque ele estava muito agoniado, não queria ficar no leito. A coisa escalou até ele realmente falecer. Foi tudo muito rápido, também.
Deveria ter sido uma coisa natural, acontecer um crime dessa forma e todos se movimentarem, especialmente as autoridades, com as pessoas que fizeram isso indo logo a julgamento. Mas não, precisei gastar dez anos de minha vida para que isso acontecesse”
Euler de França Belém – Ele chegou a pedir para não desistir da luta?
Ele não chegava a me pedir isso expressamente, porque era algo meio tácito entre nós. Mas uma coisa que não me esqueço é de quando você, Euler, me disse “não fica só nisso, faça outras coisas”. É que existe o luto quanto a isso também: é um sentimento um pouco amargo, no sentido de que eu precisei me concentrar muito nesta luta, porque os obstáculos eram muitos e enormes. Foi preciso fazer esse combate feroz porque as resistências pareciam ser infinitas. O que me deixa um pouco triste e amargo é que não deveria ter sido assim. Deveria ter sido uma coisa natural, acontecer um crime dessa forma e todos se movimentarem, especialmente as autoridades, com as pessoas que fizeram isso indo logo a julgamento. Mas não, precisei gastar dez anos de minha vida para que isso acontecesse. Ao mesmo tempo, a gente sente orgulho pelo que fez e também uma gratidão a quem realmente colaborou.
Euler de França Belém – Apesar da demora, o sr. está satisfeito com o trabalho feito pela polícia e pela Justiça?
Sim e não. Houve gente que tivemos de enfrentar durante esse tempo. O delegado Manoel Borges, por exemplo, tentou interferir no processo. O então juiz Ari Queiroz acabou aposentado compulsoriamente pelo CNJ [Conselho Nacional de Justiça], estava beneficiando Maurício Sampaio. Teve também aquele episódio com Lewandowski. Enfim, houve várias circunstâncias em que sentimos que as pessoas estavam usando suas prerrogativas públicas para impedir um desfecho justo. E isso nos feria demais.
Por outro lado, houve os delegados que fizeram sua tarefa de forma exemplar, como Wellington Carvalho e Adriana Ribeiro, que conduziram o inquérito e fizeram seu trabalho com lisura. Todos os membros do Ministério Público que atuaram no caso, inclusive os três promotores que estarão no júri – Maurício de Camargos, Renata de Oliveira e Sebastião Martins – e os anteriores, com Paulo Pereira e Eni Lamounier. Todos sempre atuaram de forma correta. Os vários juízes que, durante todo esse tempo, tomaram decisões que, tenho certeza, implicaram risco pessoal. Enfim, a todos os que exerceram bem sua função eu tenho muita gratidão. Pode ser simplesmente cumprir o dever por parte de alguém que exerce uma função pública, mas a gente consegue perceber o tamanho do bem que se faz e da repercussão que se tem.
Euler de França Belém – E a imprensa, cobriu o caso com correção?
Em sua imensa maioria, sim. Meu avô tinha 50 anos de jornalismo em Goiás, todo mundo o conhecia e muitos iniciaram a carreira com ele. Meu pai também passou por vários veículos de comunicação. Enfim, havia uma relação que talvez tenha ajudado nesse empenho. Embora também tivessem havido dissabores, com um jornalista ou outro que soltava um artigo contrário, ao qual eu mesmo fazia questão de responder. Mas foi coisa localizada, sempre tivemos um amplo apoio da imprensa daqui.
Já a imprensa nacional, nem tanto. Saía alguma coisa, ocasionalmente, principalmente em mídia impressa. Mas da sociedade civil organizada nacional tivemos apoio, sim. Porque não é questão de tomar determinado lado: é que houve um fato que ocorre e, sinto dizer, para os que serão julgados, mas todos os elementos estão do nosso lado. Não tem como apagar a história. Há fatos estabelecidos. Desde 2012 eu ouço quem quer que esteja em defesa dos acusados falando que a verdade vai aparecer, que vão descobrir os verdadeiros criminosos. Nunca aconteceu nada, nada que mudasse o rumo das investigações. O que era lá no começo continua sendo da mesma fora agora. Lá era isso e hoje ainda é isso, a mesma história.
Marcos Aurélio Silva – Qual será a linha da defesa?
Vai ser basicamente tentar desqualificar a investigação, tentar álibis para os acusados e negar, partindo para o “in dubio pro reo” [“na dúvida, em favor do réu”, em latim]. Sempre foi isso, na verdade.
Euler de França Belém – No caso de condenação, há a possibilidade de alguma indenização?
Com a condenação pelo júri, existe uma ação civil chamada “ex delicto”, pela qual se pode pegar a sentença e processar cada um deles na área cível. Pela lei, quem produz o dano é obrigado a indenizar. Nem haveria outro processo, porque, se já foi reconhecido isso pela Justiça criminal, a questão é apenas entrar com uma petição na Cível solicitando que seja afixada uma indenização cabível.
Euler de França Belém – O sr. pretende ingressar com essa ação?
Pretendo, sim, para todos eles. Agora, se vão ter condições de arcar com isso, não sei.
Euler de França Belém – Qual é o legado que vai ficar de toda essa história?
Quando somos mais novos, somos educados a lutar para mudar o mundo, mas talvez seja tão nobre quanto isso lutar para que o mundo não acabe. Naquele período, do começo da década passada, as coisas por aqui estavam em um estado inacreditável de corrupção das instituições, da polícia, de tudo. Estava sem limites. Veja o trabalho que isso deu, o tempo que nos foi tirado, o que ocorreu com minha família, por, naquele ambiente, ter surgido pessoas que acreditavam ter poder de vida e morte sobre os outros. Do ponto de vista cívico, então, a lição que eu tiro é de que não podemos desanimar e que, mesmo que não seja para mudar o mundo, nosso dever é ficar zelando para deixá-lo habitável, digno, para não chegar ao ponto de um Sampaio da vida decidir sobre a vida dos outros. Espero que fique também a lição de que a justiça é possível.
O advogado Valério Luiz de Oliveira Filho narra o calvário que percorre há quase dez anos em busca de justiça para seu pai, o jornalista Valério Luiz, assassinado em 2012. O julgamento do crime acontece nesta segunda (14/3)
por Valério Luiz de Oliveira Filho /Ponte
O crime
Valério Luiz foi assassinado dentro do carro (Foto: Laerte Junior)
5 de julho de 2012, quase 14h. O programa terminou, o jornalista Valério Luiz está prestes a sair da Rádio Jornal 820 AM, onde trabalha, no setor Serrinha, bairro de Goiânia (GO). Segundo informações do inquérito policial, Urbano Malta já se encontra na esquina em frente, a postos, com um celular pré-pago nas mãos. Assim que Valério sai do portão em direção ao carro, Urbano faz uma rápida ligação, e uma moto, que estava parada no começo da rua, acelera para pegar o jornalista a tempo. Valério acionara a ignição, estava manobrando para tomar o rumo de casa, quando, da janela esquerda, seis tiros o atingem. O Ford Ka preto chegou a andar mais alguns metros, desgovernado, até parar no meio da rua, em posição diagonal.
De dentro da rádio, ouviram os estampidos. O primeiro colega a correr para a rua foi Alípio Nogueira, que avistou Urbano espiando Valério Luiz baleado dentro do carro. “Liga pro Da Silva”, disse Urbano a Alípio, que não entendeu o pedido, e ligou para uma ambulância. Minutos depois, porém, quem chegou foi um comboio de viaturas de polícia especializada, cujos policiais imediatamente começaram a intimidar trabalhadores de uma obra contígua, que poderiam ter visto demais. Rapidamente a notícia se espalhou, e a rua foi sendo tomada por peritos criminais, autoridades e curiosos.
Dias antes, o sargento da PM Djalma Gomes da Silva estava, na companhia de Urbano, comendo espetinho no açougue de um informante da PM, Marquinhos, pequeno meliante da região. O sargento disse a Marcus que precisaria de sua ajuda para “passar um susto” em determinado sujeito, a mando do patrão de Urbano. Não tardou até que Urbano retornasse ao açougue, munido de dois celulares. Haviam sido habilitados no CPF de um terceiro, e Marcus devia fazer a guarda de um deles, ficando ainda encarregado de providenciar, e deixar de prontidão, uma camiseta, um capacete e uma moto discretos.
No dia 4 de julho de 2012, o sargento Da Silva passa no açougue de Marcus e deixa um revólver calibre 38 prata, cromado. Não podiam esperar mais. O patrão estava pressionando. Por isso, no dia seguinte, o cabo Ademá Figuerêdo chegou ao açougue, pouco antes das 14h, no banco do passageiro de uma viatura descaracterizada do Comando de Missões Especiais (CME), grupamento de elite da PM no qual trabalhava juntamente com Da Silva. O militar vestiu a camiseta e o capacete, pegou a arma e o celular, subiu na moto e foi cumprir a ordem.
Naquele dia, almocei em casa e estava esperando meu pai. Como ele não costumava enrolar no estúdio após o fim do programa e a rádio ficava perto de onde morávamos, no máximo até 14h15 o Ford Ka preto costumava apontar no nosso portão. Lembro de olhar no relógio do celular, que marcava 14h22, e pensar que meu pai estava atrasado. Naquele mesmo instante, a tela acendeu sua luz azul: era uma chamada de Lorena, minha madrasta, que raramente me ligava. “Valerinho, pelo amor de Deus, vem aqui pra rádio que seu pai tomou um tiro!”, disse ela, arfando, e desligou.
Tentei retornar, e nada. Contato então Pedro Gomes, administrador da rádio. “Você está em casa? Espera aí que vou mandar um carro da rádio te buscar. Seu pai tomou uns tiros aqui”. O plural me saltou aos ouvidos. Fui para a porta esperar, e logo apareceu o Uno branco plotado, com motorista, e o banco do passageiro vazio. Assim que me sento, sinto uma mão vir de trás e tocar levemente meu ombro, como numa condolência. Era Elisvânia, coordenadora financeira da rádio. Ali, pressenti o pior. No caminho, muitas pessoas me ligavam, perguntavam se eu estava bem, mas evasivamente.
Quando o Uno chegou à esquina da Teixeira de Freitas, rua da rádio, não pôde continuar, devido ao excesso de gente. Desci e continuei o trajeto a pé. À medida que me aproximava, fui paulatinamente vendo as câmeras, alguns policiais, e as faixas amarelas, aquelas que colocam para isolar cenas de crime. Finalmente vi o Ford Ka preto parado na diagonal, as portas abertas com os vidros crivados de balas, e uma imagem que se impregnou particularmente em mim: o pé do meu pai pendurado para fora do carro, com o tênis cinza de corrida e a meia levantada dos quais eu sempre caçoava.
Fui eu quem precisou dar a notícia para minha irmã mais nova, que, a esta altura, me ligava sem parar: “Nosso pai morreu, Laura”. Quando meu avô Manoel chegou ao local, esbravejava, inconformado com a ausência de uma ambulância. Ao ser informado pelos colegas que não havia mais nada a se fazer, desabou: “Mataram meu filho! Mataram!”. Os gritos daquela voz poderosa e rasgada de velho radialista, tão conhecida dos goianos pelos 50 anos de profissão, consternavam as faces de todos, nas quais se via, como que estampada, a mesma pergunta: como as coisas chegaram a esse ponto?
O contexto
Há algumas semanas eu já notava algo de estranho com meu pai: falava em abandonar a profissão, em se mudar para a Patagônia, que não gostava mais daqui. Coisas que nunca falara antes. O ponto mais fora da curva, contudo, foi quando o flagrei testando uma pistola taser em casa, aquelas que dão choque. Constrangido, ele disse que era “para proteção”. Meu pai pressentia que uma represália estava para atingi-lo. Só não esperava, penso eu, que a brutalidade e a covardia seriam tamanhas, e que o poder do dinheiro mobilizaria até o aparato do Estado para lhe negar qualquer chance de defesa.
Meu avô, quando veio para Goiânia, ainda na década de 1960, trabalhar na Rádio Difusora, instalou-se em Campinas, bairro do Atlético Clube Goianiense. Meu pai, portanto, cresceu ali, nos arredores do Estádio Antônio Accioly, e se tornou atleticano. Provavelmente por isso, suas críticas jornalísticas eram mais contundentes quando se tratava do “Dragão Campineiro”, que experimentara uma ascensão meteórica desde o ano de 2008, saindo da série C para a série A do campeonato brasileiro, mas, em 2012, enfrentava uma má fase na competição, além de crises na sua diretoria.
“O Atlético pode estar na série A, mas não é time de série A, não”, disse Valério em um dos seus comentários na televisão. Denunciava também que o vice-presidente do clube, Maurício Sampaio, pagava a torcida organizada para pichar os muros do próprio estádio com impropérios contra jogadores e treinadores que porventura caíssem no desagrado da diretoria, forçando assim tais profissionais a romperem unilateralmente os contratos, deixando seus respectivos postos sob condições mais vantajosas, do ponto de vista financeiro, para o Atlético, que então não arcava com multas rescisórias.
Valério era o único jornalista de Goiás com coragem para falar abertamente sobre a causa oculta da ascensão meteórica do Atlético: uma injeção de dinheiro por “patrocinadores tenebrosos”, como ele os chamava: Linknet, envolvida no escândalo que derrubou José Roberto Arruda do Governo do Distrito Federal após a Operação Caixa de Pandora, da Polícia Federal, e Delta Construções, protagonista da famosa Operação Monte Carlo, que resultou na cassação do então Senador Demóstenes Torres (DEM-GO) e na prisão do bicheiro Carlinhos Cachoeira, ambos amigos pessoais de Sampaio.
Valério Luiz, o filho (autor deste texto) e o pai covardemente assassinado
Talvez não por acaso, Valdivino de Oliveira, enquanto presidente do Atlético Goianiense, foi secretário da Fazenda do Governo Arruda e posteriormente eleito deputado federal pelo PSDB. Outro deputado federal, Jovair Arantes, então líder do PTB na Câmara e principal articulador da “bancada da bola”, era membro do Conselho Deliberativo do Dragão Campineiro. Valério defendia a tese de que o Atlético, por meio dos patrocínios, era usado para lavagem de dinheiro e, com os escândalos da Caixa de Pandora e Monte Carlo, poderia ter suas asas de cera derretidas e cair para a série B.
Meu pai era um cronista esportivo. Não tinha a intenção de fazer denúncias de cunho político ou criminal. E assim teria sido, se o futebol fosse só futebol. O problema é que, no Brasil, as diretorias dos clubes costumam estar entranhadas nas estruturas de poder local, quando não são os próprios políticos e os grandes empresários que, por trás dos panos ou de papel passado, dirigem os times. E Valério queria dar as razões verdadeiras da notícia, sem enganar a audiência. Qual seria o sentido de comentar, por exemplo, a qualidade técnica de um jogador comprado para não entrar em campo?
Esse era o teor de outra das denúncias: a diretoria do Atlético, empresários ligados ao clube e particularmente Sampaio, estariam usando recursos do Dragão para a aquisição de jogadores que mal seriam testados, serviriam apenas de lucro em futuras negociações com outros cartolas. André Isac, colega de bancada do meu pai, conta que, dias antes do crime, chegou ao estúdio com uma lista de jogadores comprados e jamais utilizados pelo Atlético. Já preocupado com o clima de animosidade, Valério disse “André, deixa eu te pedir uma coisa: não mexe com isso. Essas pessoas são muito perigosas”.
Àquela altura, o Atlético Clube Goianiense havia enviado uma carta aos veículos de comunicação nos quais meu pai trabalhava, proibindo as respectivas equipes jornalísticas de adentrarem nas dependências do clube, bem como de entrevistar jogadores e funcionários, enquanto Valério Luiz permanecesse no ar. Assinada por Valdivino de Oliveira e Maurício Sampaio, a carta chamava Valério de “persona non grata”. Corriam boatos de propostas financeiras pela demissão do jornalista, e Adson Batista, então treinador e hoje presidente do Atlético, virava a cara para os repórteres.
O clima ficou ainda mais pesado quando um colega de meu pai, Charlie Pereira, foi forçado a sair do programa. Charlie trabalhava também na Rádio 730 (hoje Rádio Sagres), cujos sócios, na época, eram Sampaio, o advogado de Sampaio, Neilton Cruvinel Filho, e o apresentador Joel Datena, filho do popular José Luiz Datena. Charlie teve, então, de escolher. Daniel Santana, um dos coordenadores do programa no qual meu pai comentava, chegou a procurar Maurício para dissuadi-lo da absurda exigência, mas teria ouvido do rico cartola que “quem não está comigo está contra mim”.
Meu pai não resistiu, porém, à tentação de desferir uma última levada de críticas. Além de estar na zona de rebaixamento do brasileirão, o Atlético perdeu a final do campeonato goiano, naquele ano de 2012, para o Goiás Esporte Clube. Como era de costume, a diretoria campineira culpou a arbitragem e começou a acusar a Federação Goiana de Futebol de favorecer o time esmeraldino. Valério, então, abriu uma antiga ferida: disse que Adson e Sampaio estavam acostumados a “tentar comprar resultados”, como em 2007, quando teriam feito uma proposta para o time Barras, do Piauí.
Após a derrota no campeonato goiano, Maurício Sampaio anunciou que deixaria a Vice-Presidência do Atlético. Diante do anúncio, o diretor de comunicação do clube, o tenente-coronel da PM Wellington Urzêda, também colocou o cargo à disposição, em solidariedade. Quando as saídas dos dois foram abordadas pelo âncora do programa, já perto do encerramento, meu pai pediu dois minutos para comentar. Disse que Sampaio e Urzêda eram descartáveis no Atlético, e uma frase que ficaria marcada: “Em filme de aventura, quando o barco está afundando, os ratos são os primeiros a pular fora”.
Alguns dizem que, ali, foi assinada a sentença de morte. Por isso, quando a brutal execução de Valério Luiz irrompeu nos noticiários, todos sabiam muito bem qual era o contexto. André Isac conta que Felipe Furtado, então assessor de imprensa do Atlético, lhe telefonou alertando que o crime não deveria ser associado ao clube. E, na noite daquele 5 de julho, o telefone das redações dos jornais tocava com pessoas que, se identificando como policiais do outro lado da linha, tentavam plantar todo tipo de pistas falsas, como a de um suposto caso extraconjugal de Valério, que, claro, nunca existiu.
Duelo nos jornais, duelo nos tribunais
No dia 1º de fevereiro de 2013, recebo uma ligação do Euler Belém, editor-geral de um importante jornal da capital goiana: “Está sabendo das prisões no caso do seu pai?”. Eu ainda não estava sabendo. Corri para a Delegacia de Homicídios, já abarrotada pela imprensa, por advogados, delegados e agora também por nós, familiares. Falavam por alto de um açougueiro, de um homem chamado Urbano, de policiais militares. As peças do quebra-cabeça estavam se montando, mas parecia faltar uma. No dia seguinte, 2 de fevereiro, foi decretada a prisão temporária de Maurício Borges Sampaio.
A conclusão do inquérito chegara, mas somente depois de meses e meses de protestos, como quando, em 21 de julho de 2012, no Estádio Serra Dourada, os jogadores do Goiás Esporte Clube entraram em campo vestindo camisetas estampadas com a foto do meu pai e a inscrição: “Não deixem que o povo esqueça esse crime”. Faixas cobravam respostas das autoridades, e meu avô Manoel requereu empenho, pessoalmente, em diversas visitas à Secretaria de Segurança Pública. Temíamos muito que o inquérito fosse arquivado por falta de provas, se todas as providências não fossem tomadas a tempo.
Manoel de Oliveira, durante protesto em 2012: ele morreu no ano passado, sem ver justiça para seu filho | Foto: Arquivo pessoal
O medo não estivera restrito ao destino do inquérito. Naquele julho de 2012, uma carta anônima intitulada “Nada muda na PM goiana” caiu como uma bomba nas redações dos jornais, na Secretaria de Segurança e no meu coração. A denúncia abordava macabros assassinatos executados por policiais do Comando de Missões Especiais, mencionava uma olaria que supostamente servia para incinerar os corpos dos executados, e apontava o cabo Figuerêdo como autor dos disparos contra Valério, além de associar o crime às críticas do jornalista contra a diretoria do Atlético Goianiense.
Lembro vivamente de perambular, de um lado para o outro, me sentindo ridiculamente pequeno e impotente. Era esmagadora a sensação de que forças tão maiores, inclusive do próprio Estado, haviam montado uma operação de guerra para matar meu pai. Não hesitariam, pensei, em atingir a mim e ao restante da minha família. Foram meses de tensão, saindo à rua o mínimo possível. E a preocupação não se mostrou infundada, pois as investigações da Polícia Civil confirmaram o teor da carta e de fato identificaram o cabo Ademá Figuerêdo, do letal CME, como a pessoa que puxara o gatilho.
As investigações demonstraram ainda que o sargento Djalma Gomes da Silva e o cabo Ademá Figuerêdo eram seguranças de Maurício Sampaio, e que Da Silva inclusive mantinha os filhos matriculados, sem o pagamento de mensalidades, em uma escola infantil de propriedade do cartola. Urbano também era funcionário de Sampaio, uma espécie de faz-tudo, e exercia vigilância sobre a rotina de entrada e saída do alvo, Valério Luiz, a partir de uma discreta casa, ocupada sem aluguel, exatamente em frente à rádio. A casa, como tantos imóveis em Goiânia, era propriedade de Maurício.
Maurício Borges Sampaio o mandante
As quebras de sigilo telefônico mostraram um intenso fluxo de ligações entre todos os acusados no dia do crime, o que, somado ao arcabouço probatório de mais de 500 páginas de inquérito, possibilitou ao Ministério Público denunciar, em 27 de fevereiro de 2013, Urbano de Carvalho Malta, Djalma Gomes da Silva e Marcus Vinícius Pereira Xavier como articuladores do homicídio; Ademá Figuerêdo Aguiar Filho como o executor dos disparos; e Maurício Borges Sampaio como o mandante. No início de março, todos estavam presos preventivamente, e havia uma boa expectativa de justiça.
Protesto diante da sede administrativa do Governo do Estado de Goiás, em 5 de julho de 2013 | Foto: Arquivo pessoal
Acontece que Sampaio, então dono de uma poderosa emissora de rádio e um dos homens mais ricos do Brasil, tinha condições de se defender, dentro e fora dos tribunais. Começaram a pipocar artigos, de conhecidas figuras venais do jornalismo goiano, defendendo sua soltura. Artigos contra os quais pedi direito de resposta e contraditei um a um, pessoalmente. No Tribunal de Justiça de Goiás, impetravam um habeas corpus atrás do outro. A chuva de pedidos de soltura só cessou quando conseguiram liberar Sampaio através de um depoimento “novo” que, depois se verificou, era forjado.
A Polícia Civil anulou o documento e afastou temporariamente o delegado responsável pela manobra processual, Manoel Borges. Mas a soltura se manteve. E Manoel acabou reintegrado às suas funções. Quanto ao andamento da ação penal do caso Valério Luiz, com o réu apontado como mandante solto, as defesas dos demais acusados pediram a soltura de seus respectivos clientes, e foram atendidos. Ocorre que havia uma ameaça de morte de Da Silva contra Marquinhos, e este, portanto, fugiu. Não compareceu a nenhuma das audiências de instrução e nem ao seu próprio interrogatório.
Açougueiro Marcus Vinícius Pereira Xavier
Só mais de um ano depois descobri, através do Facebook, que o fugitivo estava em Portugal, na região de Caldas da Rainha. Haviam fotos de Marcus passeando com a família pela Europa, uma delas até mesmo agradecendo a Deus pela “segunda chance”. Imediatamente imprimi tudo e informei o juiz do caso, que prontamente decretou a prisão preventiva. O mandado chegou até ao Ministério das Relações Exteriores e o nome de Marcus Vinícius Pereira Xavier foi incluído na Lista Vermelha da Interpol. No fim daquele ano (2014), Marquinhos foi, enfim, capturado e extraditado.
Todas essas surreais circunstâncias, que acompanharam e ainda acompanham o processo desde o princípio, me fizeram perceber que nos seria impossível chegar a um desfecho justo enquanto Sampaio permanecesse na sua maior fonte de poder e influência: um multimilionário cartório, que herdara do pai, Waldir Sampaio, e que ocupava ilegalmente, sem concurso, desde 1988. A renda do tabelionato ainda era aumentada por uma série de decisões judiciais escusas de um juiz chamado Ari de Queiroz, graças a quem o cartorário chegou a ser intitulado, por um grande jornal, como o “czar do papel”.
Entre as decisões estava uma que permitia ao cartório, que registrava protestos, cobrar emolumentos (taxas) com base na tabela dos tabelionatos de imóveis, mais cara. A decisão mais famosa, contudo, foi a que concedeu a Maurício uma espécie de monopólio de registro de contratos de financiamento de veículos em território goiano. Se alguém quisesse financiar um veículo em Santa Teresinha de Goiás, extremo norte do Estado, deveria se dirigir ao cartório WSampaio e registrar o contrato. Intentamos, então, uma ação popular, à qual se seguiram ações civis públicas por parte do Ministério Público.
Ainda em 2013, conseguimos o afastamento de Sampaio do cartório. Em 2015, o juiz Ari de Queiroz foi aposentado compulsoriamente pelo Conselho Nacional de Justiça, justamente sob acusações de beneficiar indevidamente o ex-cartorário. Também no ano de 2015, a vitória mais esperada: embora com todos os réus já respondendo processo em liberdade, o Tribunal de Justiça de Goiás enviou, definitivamente, Sampaio e os outros quatro a júri popular pelo assassinato do jornalista Valério Luiz. Era o encerramento de uma importante etapa, mas o começo de outra que se mostrou igualmente difícil: marcar o julgamento.
O calvário até o júri
Apesar de, no que diz respeito ao cartório, termos conseguido o afastamento liminar de Sampaio logo em 2013, todos os recursos da nossa ação popular foram finalizados apenas em 2021. Com a decisão que enviou os réus a júri no caso Valério Luiz, ocorreu algo parecido. Moveram recursos ao STJ e ao STF, e optamos por aguardar seus respectivos julgamentos, para evitar qualquer chance da sessão do júri, uma vez instalada, ser suspensa por qualquer liminar de Brasília. Por meses fui a tais tribunais superiores, na condição de advogado, pedir celeridade aos ministros.
No Superior Tribunal de Justiça (STF), a irresignação dos acusados foi exemplarmente fulminada pelo ministro Felix Fischer. No fim de 2017, contudo, um dia antes do recesso judiciário, veio uma surpresa do STF: em liminar no Habeas Corpus nº 144.270, o ministro Ricardo Lewandowski anulou praticamente todo o processo, lançando uma sombra de impunidade sobre o caso. Eu já vinha bastante calejado de surpresas desagradáveis, considerando que, durante os julgamentos dos recursos dos réus em Goiás, até um conhecido padre, amigo de Sampaio, apareceu no tribunal para falar bem do réu a magistrados católicos.
Mantive a calma e contatei entidades parceiras na luta pela liberdade de expressão no país, como Artigo 19, Abraji e Instituto Vladimir Herzog. Em uma ação conjunta de comunicação, publicamos artigos em alguns dos principais jornais do país, conscientizando a comunidade jurídica sobre o desacerto da decisão e o risco que representava para os comunicadores brasileiros. Também contatei a Procuradoria-Geral da República, que recorreu da liminar. Em 1º de fevereiro de 2018, o ministro Lewandowski refluiu, restabelecendo o júri para todos os acusados.
Os percalços, no entanto, não pararam por aí. No mesmo ano de 2018, o sargento Djalma Gomes da Silva ingressou com uma petição alegando insanidade. O processo foi então suspenso para exames pela Junta Médica do Tribunal, o que levou mais de um ano. Ao fim e ao cabo, concluiu-se que o PM estava simulando doença mental. Após a conclusão do exame, nada mais impedia, juridicamente, a realização da sessão do júri. Por isso, qual não foi nossa surpresa quando o juiz encarregado, Jesseir Alcântara, alegou que o Tribunal de Goiás não tinha condições físicas para abrigar o julgamento.
Jesseir argumentou que a estrutura das salas de Júri estava precária para evento de tamanha monta, além de contar com “segurança frágil”. Reuni-me então com a Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil – Seccional Goiás (OAB-GO), com o procurador-geral de Justiça de Goiás, e pedidos de providências foram encaminhados à Presidência do Tribunal, que chegou a reformar um dos seus auditórios. Jesseir acabou se dando por suspeito no processo, e o novo condutor, juiz Lourival Machado, marcou o júri para 23 de junho de 2020. Algumas semanas antes, contudo, explodiu a pandemia de Covid-19.
As medidas sanitárias permitiram que o júri fosse remarcado apenas para este ano, 2022, na data próxima de 14 de março. Quase dez anos após aquele sombrio 5 de julho de 2012. E mesmo com toda essa demora, digo que os obstáculos narrados não teriam sido ultrapassados sem uma forte mobilização da imprensa e da sociedade civil organizada na cobrança por respostas. Chegamos a apresentar painéis no famoso Congresso Internacional de Jornalismo Investigativo da Abraji e, a convite da Artigo 19, também em sessão da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, nos EUA.
Até hoje realizamos, todo dia 5 de julho, um protesto por justiça nas ruas de Goiânia. Tais mobilizações não restaram, claro, sem reações. Nos anos de 2014 e 2015, tivemos de conviver com páginas e perfis anônimos no Twitter e no Facebook cujo objetivo era difamar a vítima, Valério Luiz, bem como nós, familiares. Em março de 2015, conseguimos uma decisão judicial que ordenou, aos escritórios das citadas redes sociais no Brasil, a exclusão das páginas. Com a proximidade do júri, as atenções precisam estar redobradas, tanto por um julgamento escorreito quanto por nossa segurança.
Meu pai, comentando futebol, chegou, ainda que intuitivamente, a uma conclusão acertada: o que estava acontecendo em 2012 era a tentativa de tomada da imprensa, do Judiciário e do próprio Estado goianos por um grupo de poder no centro do qual estava o cartola e cartorário Sampaio, e o Atlético Goianiense era só a ponta do inceberg, o braço da rede de influências no futebol. Não por acaso, toda essa rede precisou ser enfrentada no caminho da responsabilização dos assassinos. O “caso Valério Luiz” talvez seja a ilustração do coronelismo incrustado nas elites não só de Goiás, mas do país.
A quadrilha dos intocáveis e covardese cruéis assassinos do jornalista Valário Luiz: o milionário tabelião Maurício Sampaio, os policiais militares Ademá Figueredo Aguiar Filho e Djalma Gomes da Silva, o motorista Urbano de Carvalho Malta e o açougueiro Marcus Vinícius Pereira Xavier, o Marquinhos. Eles são réus no caso Valério Luiz, cronista assassinado em julho de 2012