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O CORRESPONDENTE

Os melhores textos dos jornalistas livres do Brasil. As melhores charges. Compartilhe

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O CORRESPONDENTE

01
Abr23

Instituto Vladimir Herzog lança exposição sobre vítima da ditadura que tornou-se símbolo do combate à tortura

Talis Andrade
 
 
 
Assassinato de Alexandre Vannucchi Leme foi primeiro revés da ditadura |  Agência Brasil
 
Vídeo Lenio Streck: "Democracia ficou por um triz por causa do que ocorreu na Lava Jato"

 

Em parceria com o Google Arts e Culture, o Instituto Vladimir Herzog lança hoje a exposição virtual Alexandre Vannucchi Leme: eu só disse o meu nome. Feita em memória aos 50 anos do assassinato do estudante por agentes da ditadura militar, a iniciativa, explica Gabrielle Abreu, historiadora e coordenadora da área de Memória, Verdade e Justiça do Instituto Vladimir Herzog, busca "reacender o debate acerca da ausência de punição aos autores de graves violações de direitos humanos na ditadura militar".

Alexandre tinha 22 anos e cursava o 4º ano de Geologia na Universidade de São Paulo quando foi preso em 16 de março de 1973, sob a acusação de integrar a Ação Libertadora Nacional (ALN). Levado para a sede do DOI-Codi na capital paulista, ele foi torturado sob o comando do então major Carlos Alberto Brilhante Ustra.

No dia seguinte à prisão, Alexandre foi encontrado morto por um carcereiro. Os policiais do DOI-Codi alegaram que o estudante havia se suicidado.

 

Cova rasa

 

Os pais de Alexandre só souberam do assassinato pela imprensa, em 23 de março. As autoridades passaram a alegar que Alexandre morreu após ser atropelado enquanto tentava fugir de policiais. Seu corpo havia sido sepultado como indigente, sem caixão, no Cemitério de Perus.

Há 50 anos, a USP perdia Alexandre Vannucchi Leme, estudante torturado até  a morte pela ditadura – Jornal da USP
 
 
 
 

Com a repercussão do caso, o Instituto de Geociências da USP aprovou um decreto de luto e paralisação e organizou uma comissão para apurar a morte e as prisões de outros estudantes. A missa de sétimo dia de Alexandre foi celebrada pelo arcebispo dom Paulo Evaristo Arns, em 30 de março, na Catedral da Sé. 

Primeiro grande protesto depois da instauração do Ato Institucional nº 5, em dezembro de 1968, o ato religioso reuniu mais de 3 mil pessoas.

Primo de segundo grau do estudante e coordenador da exposição, o jornalista Camilo Vannuchi afirma que a morte de Alexandre foi considerada por agentes da repressão um “tiro no pé”, pois consolidou a luta por justiça às vítimas da ditadura. Nesse processo, teve destaque a atuação dos pais de Alexandre, Egle e José, e dos advogados Mário Simas e José Carlos Dias.

 

A revolta com o assassinato de Alexandre também fortaleceu o movimento estudantil, impulsionando, em 1976, a refundação do DCE-Livre da USP, que foi batizado em homenagem ao estudante. Hoje, uma Escola Estadual de Primeiro Grau em Ibiúna, uma Escola Municipal de Educação Infantil em São Paulo e uma praça nas imediações da casa onde Alexandre residia, em Sorocaba, também levam o nome do estudante assassinado.

Com imagens, áudios e textos, a exposição sobre o assassinato do estudante também aborda seu legado na luta por direitos humanos. Ao todo, são 20 itens, entre fotos, cartas, trabalhos universitários e documentos pessoais, que constituem uma memorabilia de Alexandre Vannucchi.

 
Alexandre Vannuchi Leme: jovem, estudante, morto pela ditadura |  Amazon.com.br
 
 

Como curiosidade, vale destacar que Alexandra Itacarambi, filha do fundador da Revista IMPRENSA, Sinval Itacarambi, recebeu esse nome em homenagem ao estudante assassinado por agentes da ditadura.

25
Mar23

O bom combate: recordando os advogados que resistiram à ditadura militar

Talis Andrade

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Por Danilo Pereira Lima /ConJur

 

No próximo dia 31 de março, o golpe de 1964 completa 59 anos. É sempre importante recordar que não faltaram juristas que colaboraram com a ditadura militar. Doutrinadores, juízes, OAB etc., exerceram papeis destacados na configuração da legalidade autoritária utilizada na institucionalização da ditadura. Contudo, na outra margem do rio, também é importante recordar que um pequeno número de advogados combateu o bom combate em defesa da vida e da liberdade dos presos políticos. Nas palavras de D. Paulo Evaristo Arns, "um grupo de profissionais do Direito que, naquela época de muitos temores, arriscaram suas próprias vidas e carreiras profissionais para se dedicarem a defender, na grande maioria dos casos gratuitamente, as vítimas da violência política" [1].

Com uma pequena margem de manobra e fazendo uso da interpretação mais liberal possível do aparato jurídico utilizado pela repressão [2], os advogados dos presos políticos conseguiram estabelecer uma forma de resistência.

Desde o golpe, os militares e seus juristas começaram a traçar uma engenharia constitucional que, além de favorecer a repressão, também procurava oferecer ao regime um verniz de Estado de Direito para angariar legitimidade perante a opinião pública, seja internamente ou internacional. Era importante mostrar para as nações ocidentais que o Brasil permitia a existência de dois partidos (governo e oposição); que os Poderes funcionavam normalmente; que os presidentes militares não agiam como os caudilhos existentes na América Latina; que os presos políticos eram devidamente processados na Justiça Militar; e que seus recursos inclusive poderiam chegar até o órgão de cúpula do Poder Judiciário, o Supremo Tribunal Federal.

Isso não quer dizer que a ditadura brasileira deixou de usar a estratégia da guerra suja contra seus opositores. O sequestro, a tortura, o encarceramento, a utilização de sítios clandestinos, o assassinato e o desaparecimento também fizeram parte das engrenagens de seus órgãos de repressão. Em vários casos o regime sequer demonstrou alguma preocupação em formalizar a prisão e abrir um processo na Justiça Militar. Foi o que aconteceu com o comunista David Capistrano da Costa, que, ao tentar retornar para o Brasil em 1974, acabou assassinado num dos principais centros clandestinos de tortura do regime, a conhecida casa da morte de Petrópolis. Ainda segundo relato prestado por um ex-integrante do DOI-Codi, o agente Marival Dias Chaves do Canto, o corpo de Capistrano foi esquartejado e jogado num rio [3].

As prisões muitas vezes aconteciam sem qualquer tipo de controle judicial. Os órgãos de repressão não precisavam pedir autorização ao Judiciário para realizar uma busca e apreensão ou para efetuar uma prisão, pois no momento em que entrava o trabalho da informação e da contrainformação nada podia ser formalizado através de um inquérito. Como muitas vezes a prisão funcionava como um sequestro, os advogados não recebiam qualquer informação sobre a situação de seus clientes. O encontro entre o preso político e seu defensor ocorria somente quando aquele era remetido à Secretaria de Segurança Pública.

De 1964 até o final do ano de 1968 ainda existia uma chance considerável dos presos políticos serem libertados por meio do habeas corpus. Após a suspensão desse remédio constitucional para crimes enquadrados na lei de segurança nacional, os advogados tiveram que buscar outros meios não apenas para defender a liberdade dos presos políticos, como também para levantar informações sobre suas localizações, já que a suspensão do habeas corpus possibilitou a ampliação do número de encarcerados e criou enormes dificuldades para que os advogados localizassem seus clientes.

Foi a partir daí que os advogados passaram a apresentar petições à Justiça Militar que tinham o formato de habeas corpus, mas não podiam ser chamadas de habeas corpus. Eram os chamados habeas corpus de localização [4]. Se a petição não era suficiente para alcançar a liberdade do preso político, pelo menos ela servia para retirá-lo das sombras e forçar um registro formal da sua situação. De acordo com o advogado Mario de Passos Simas, "nós (os advogados) nos valíamos de tudo, de mil requerimentos, de centenas de petições e reclamávamos perícias, invocávamos autoridades estrangeiras, entidades internacionais como a Anistia Internacional. Tudo que era válido era exercido" [5].

Como bem observou D. Paulo Evaristo Arns, "[...] um dos maiores esteios dos presos e de suas famílias eram seus advogados" [6]. Reunindo pessoas de diversas tendências ideológicas, como liberais, conservadores e socialistas, esses advogados estabeleceram uma convergência política e jurídica fundamental para uma resistência não apenas dentro Justiça Militar, mas também por meio do debate feito pela imprensa; das denúncias de tortura feitas em organismos internacionais; da defesa da anistia; e da construção de pontes para a redemocratização. Os advogados da resistência não chegaram a formar uma organização para a defesa dos presos políticos, mas, sem dúvida alguma, ajudaram a movimentar a resistência civil contra a ditadura.

- - -

[1] ARNS, Paulo Evaristo. Prefácio. In: SÁ, Fernando; MUNTEAL, Oswaldo; MARTINS, Paulo Emílio. Os advogados e a ditadura de 1964: a defesa dos perseguidos políticos no Brasil. Rio de Janeiro: Editora Vozes e PUC Rio, 2010, p. 8.

[2] Foi nessa conjuntura autoritária que o uso alternativo do direito surgiu como um meio de resistência dos juristas contra a ditadura. De acordo com Lenio Streck, "o movimento do direito alternativo se colocava, então, como uma alternativa contra o status quo. Era a sociedade contra o Estado. Por isso, em termos teóricos, era uma mistura de marxistas, positivistas fáticos, jusnaturalistas de combate, todos comungando de uma luta em comum: mesmo que o direito fosse autoritário, ainda assim se lutava contra a ditadura buscando 'brechas da lei', buscando atuar naquilo que se chamam de 'lacunas' para conquistar uma espécie de 'legitimidade fática'". Para mais detalhes, ver sua entrevista concedida para o Instituto Humanitas Unisinos: Uma análise sociológica do direito. Disponível em: http://www.ihuonline.unisinos.br/index.php?option=com_content&view=article&id=2758&secao=305. Acessado em: 24/03/2023.

[3] Sobre o brutal assassinato de David Capistrano, ver: Comissão da Verdade do estado de São Paulo. Disponível em: http://comissaodaverdade.al.sp.gov.br/mortos-desaparecidos/david-capistrano-da-costa. Acessado em: 24/3/2023.

[4] FERNANDES, Fernando Augusto Henriques. Voz humana: a defesa perante os tribunais da República. Rio de Janeiro: Revan, 2004, p. 224. De acordo com Nilo Batista, "O habeas corpus, depois do AI-5, se converteu num macabro teste de sobrevivência dos presos. Você requeria um habeas corpus e indicava como autoridades coatoras o Cenimar, o CISA, o DOI-Codi e o Dops. Quando algum deles dizia que o paciente estava preso, significava que estava vivo. Quando a resposta vinha negativa, como no caso do Stuart (Angel Jones), era um mau presságio porque a pessoa tinha sido morta, tinha sido executada, morrido na tortura". SPIELER, Paula. Entrevista com Nilo Batista. In: SPIELER, Paula; QUEIROZ, Rafael Mafei Rabelo (coord.). Advocacia em tempos difíceis: ditadura militar 1964-1985. Curitiba: Edição do autor, 2013, p. 653. Disponível em: http://bibliotecadigital.fgv.br/dspace/bitstream/handle/10438/13745/Advocacia%20em%20tempos%20dif%C3%ADceis.pdf?sequence=1. Acessado em: 24/3/2023.

[5] MOURA, Ana Maria Straube de Assis; GONZAGA, Tahirá Endo. Mario de Passos Simas: mais que um advogado, um patrono. In: SÁ, Fernando; MUNTEAL, Oswaldo; MARTINS, Paulo Emílio. Os advogados e a ditadura de 1964: a defesa dos perseguidos políticos no Brasil. Rio de Janeiro: Editora Vozes e PUC Rio, 2010, p. 80.

[6] ARNS, Paulo Evaristo. Prefácio. In: SÁ, Fernando; MUNTEAL, Oswaldo; MARTINS, Paulo Emílio. Os advogados e a ditadura de 1964: a defesa dos perseguidos políticos no Brasil. Rio de Janeiro: Editora Vozes e PUC Rio, 2010, p. 8.

11
Jul22

Herzog: 40 anos da morte (documentário)

Talis Andrade

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A morte do jornalista Vladimir Herzog em uma prisão do DOI-CODI, em São Paulo, completa 40 anos no dia 25 de outubro e o Observatório da Imprensa revisita o episódio que marcou o processo de luta pela abertura política durante a ditadura. Vlado ou Vladimir, como era conhecido, foi preso, torturado e morto sob a alegação de pertencer ao Partido Comunista Brasileiro. A morte foi encenada para parecer suicídio, mas a farsa foi tão flagrante que o Sociedade Cemitério Israelita nem considerou a hipótese de enterrar o corpo na área reservada aos suicidas, como determina a religião judaica. Um ato ecumênico conduzido pelo cardeal D. Paulo Evaristo Arns, pelo rabino Henry Sobel e pelo pastor James Wright, seis dias depois da morte de Vladimir Herzog, reuniu 8 mil pessoas e se transformou num protesto contra os militares. “Aquele foi um momento de união de forças a partir do qual ficou claro para o regime que a sociedade civil caminharia determinadamente para a reconstrução da democracia”, diz o jornalista Audálio Dantas.

Depois da morte, a luta prosseguiu até 1979 quando a família conseguiu a condenação da União pelo assassinato do jornalista na Justiça, mas só recebeu a certidão de óbito em 2013. O Observatório revisita o episódio quatro décadas depois para lembrar que o assassinato de Vladimir Herzog simboliza o ódio, a intolerância, discriminação e todas as formas de violências que ainda sobrevivem na sociedade.

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Exército admite que provas do caso Vladimir Herzog podem ter sido destruídas

por Joseanne Guedes

A história do jornalista Vladimir Herzog, o Vlado, é icônica para entender os métodos adotados pelos militares durante a Ditadura Militar. Suspeito de manter ligação com o PCB (Partido Comunista Brasileiro) — que atuava ilegalmente na época, ele se apresentou ao DOI-CODI (Destacamento de Operações de Informação — Centro de Operações de Defesa Interna) espontaneamente na manhã do dia 25 de outubro de 1975, um sábado. Horas depois o SNI (Serviço Nacional de Informações) anunciou seu suicídio.

A foto emblemática de seu corpo, feita por Silvaldo Leung Vieira, mostra Vlado pendurado por um cinto em uma cela. Suas pernas estão dobradas, o que impossibilita o suicídio. Além disso, o cinto — que o Exército alegou ser o instrumento usado para a prática — não fazia parte do uniforme, um macacão. A família, há quase 42 anos, questiona a versão apresentada pelo Exército brasileiro. Eles questionam a falta de informação sobre a morte de Vlado. Não sabe quem colheu o seu depoimento e muito menos quem o matou. No mesmo ano da morte de Herzog, o jornalista Rodolfo Konder também estava preso em uma cela no DOI-CODI. Quando foi solto, foi o primeiro a denunciar o assassinato do amigo, enquanto o regime militar tentava emplacar a versão de suicídio.

Em 2012, o juiz Márcio Martins Bonilha Filho, da 2ª Vara de Registros Públicos do TJ-SP (Tribunal de Justiça de São Paulo), determinou a retificação do atestado de óbito de Vlado, para fazer constar que sua “morte decorreu de lesões e maus-tratos sofridos em dependência do II Exército – SP (Doi-Codi)”, atendendo a um pedido feito pela Comissão Nacional da Verdade. A família de Herzog foi quem solicitou que fosse retirada da causa da morte a asfixia mecânica, constava no laudo necroscópico e no atestado.

Agora, uma matéria do portal R7 indicou que Exército do Brasil pode ter destruídos provas que poderiam incriminar os responsáveis pelo assassinato do jornalista. Através da Lei de Acesso à Informação, o veículo pediu informações sobre funcionários que estariam no DOI-CODI, em São Paulo, na data da morte de Vladimir Herzog. A proposta era, a partir dos dados dos militares presentes, fazer uma possível análise do culpado pelo crime.

Em resposta, o Exército invoca o decreto nº 79.099, de 6 de janeiro de 1977, e afirma que tal determinação “permitia a destruição de documentos sigilosos, bem como os eventuais termos de destruição, pela autoridade que os elaborou ou pela autoridade que detivesse a sua custódia.” A declaração acrescenta que “não foi localizado qualquer registro da documentação solicitada no Comando do Exército” e completa afirmando que “tais documentos, se existiram, foram destruídos pelas razões acima expostas.”

O filho mais velho de Vlado — e diretor executivo do Instituto em homenagem — Ivo Herzog comenta a resposta. “Eu acho que é covardia do Exército não ter coragem de assumir os atos que cometeu no passado. Uma instituição madura deve reconhecer o que fez no passado, se ela fez um julgamento, certo ou errado, que ela assuma esse julgamento.”

Ao lado da mãe, Clarice Herzog, Ivo foi em maio deste ano à Corte Interamericana de Direitos Humanos para exigir uma resposta. A expectativa da família é de que o Estado brasileiro seja penalizado pela prisão arbitrária, tortura e morte do jornalista. “A sentença deve sair até o final do ano”, explica. Ivo Herzog completa. “A gente tem que andar pra frente e a gente só vai andar pra frente quando reconhecermos o que aconteceu no passado. E essa recusa do Exército e do próprio Estado brasileiro não colabora em nada para o aprimoramento da sociedade.”

Vladimir Herzog foi jornalista, professor e cineasta brasileiro. Nasceu em 27 de junho de 1937 na cidade de Osijsk, na Croácia (na época, parte da Iugoslávia), morou na Itália e emigrou para o Brasil com os pais em 1942. Foi criado em São Paulo e naturalizou-se brasileiro. Estudou Filosofia na Universidade de São Paulo (USP) e iniciou a carreira de jornalista em 1959, no jornal O Estado de S. Paulo. Nessa época, achou que seu nome de batismo, Vlado, não soava bem no Brasil e decidiu passar a assinar como Vladimir.

 

*As informações são de Peu Araújo, do R7, e do site Memórias da Ditadura

G1 > Política - NOTÍCIAS - Justiça arquiva pedido de investigação de caso  Herzog

06
Jul22

TESTEMUNHOS DE MULHERES: UMA REFLEXÃO SOBRE OS TRAUMAS, TORTURAS E RESSENTIMENTOS SOFRIDOS DURANTE A DITADURA MILITAR NO BRASIL

Talis Andrade

Elas Resistem, Elas Existem | Roda de Conversa com Criméia Almeida,  Amelinha Teles e Dulce Muniz - YouTube

 

por Ana Cristina Rodrigues Furtado

 

Esse trabalho tem o objetivo de fazer uma reflexão sobre os testemunhos de Maria Amélia Teles e Criméia Almeida, ambas são irmãs. Elas foram integrantes do Partido Comunista do Brasil PCdoB, lutaram na guerrilha do Araguaia, foram presas e torturadas na Operação Bandeirantes Oban no período da ditadura militar no Brasil.

Para esse trabalho nos deteremos nas fontes audiovisuais que possuem o formato de depoimentos, são eles, Ditadura Depoimento Maria Amélia Teles e SBT Amor e Revolução Criméia Almeida Depoimento, ambos produzidos em 2011.

Essas mulheres narram a partir de suas experiências as dores, rancores, ressentimentos, e as consequências que essas prisões e torturas tiveram nas suas vidas e de seus filhos. Nesse sentido propomos pensar as torturas as quais foram submetidas, e os traumas acarretados nessas mulheres.

Na última década da ditadura militar no Brasil, muitas vítimas testemunhas começaram a emergir com o objetivo de narrarem as suas histórias ou a de familiares, companheiros e amigos que haviam sido torturados, presos, mortos, exilados ou desaparecido durante esse período.

Assim, os discursos dessas vítimas-testemunhas eram repletos, de suas duras experiências naqueles dias, as quais ainda estavam guardadas vivamente em suas memórias. Logo, com o fim da ditadura militar, explodiu uma gama enorme de relatos que buscavam (re)

Esses crimes e vários tipos de violências só foram possíveis de serem revelados pelo fato desses eventos traumáticos terem permanecido em suas memórias. E foi através do ato de lembrar e narrar que as experiências dessas pessoas puderam ser contadas, logo, na busca de não esquecer é que muitas experiências traumáticas foram narradas através de vários formatos de filmes.

A exemplo, dos depoimentos Ditadura Depoimento 1 Maria Amélia Teles e SBT Amor e Revolução Criméia Almeida Depoimento 6, ambos produzidos em 2011. A partir do ato de testemunhar realizado por Amélia Teles e Criméia Almeida, e ao falarem das torturas sofridas, algo que marcou não só as suas vidas, como também, a de seus filhos podemos perceber os mais variados tipos de sentimentos que perpassam os discursos desses sujeitos, como trauma, ressentimentos, silêncios, dor, luto e reparação do passado.

 

Os sujeitos que revelaram esses crimes foram aqueles que participaram ativamente ou passivamente da luta política, como também, por pessoas que pararam para ouvir o testemunho de um familiar, amigo e companheiro. Assim, vários sujeitos começaram a narrar suas histórias a partir das suas experiências. Portanto, o testemunho só é possível de ser construído através da experiência, tendo o sujeito visto, ouvido ou passado por aquele momento. “Os crimes das ditaduras foram exibidos em meio a um florescimento de discursos testemunhais [...]”. (SARLO, 2007: 46).

Os discursos que emergem nas fontes audiovisuais elaboradas desde o final desse período ditatorial, giram em torno de vários elementos, entre eles estão a segundo Jeanne Gagnebin a “memória traumática”, “[...] gênero tristemente recorrente do século XX [...]” (BRESCIANI E NAXARA, (Org.), 2004: 86).

Essas “memórias traumáticas” são compostas dos traumas nunca superados, dos ressentimentos, da incerteza quanto achar algum familiar ou amigo vivo, a luta em mostrar para a sociedade os crimes que haviam ocorrido no Brasil, às lembranças de sofrimentos que podem ou não serem esquecidas, a luta por uma reparação do passado e justiça.

A experiência do choque acarreta o trauma e possibilita que ele seja imposto nas pessoas. Essas experiências foram impostas aos ex-militantes políticos, a exemplo de Amélia

Teles e Criméia Almeida a partir de prisões e muitas sessões de torturas, em que muitos outros companheiros de luta política foram a óbito, ou estão desaparecidos.

Logo é a partir do trauma que a “memória traumática” é construída, a qual pode levar os sujeitos a silenciarem e buscarem o esquecimento, ou pode também servi para lutarem contra o esquecimento, utilizando essa memória em favorecimento das pessoas que sofreram como foi o caso dos presos e desaparecidos políticos.

A experiência do trauma para essas mulheres serviu não para silenciarem, mas para lutarem contra todos os crimes e torturas que sofreram e todas as torturas psicológicas que viram os filhos sofrerem, a exemplo de Amélia Teles e seu esposo César Teles. Foram submetidas a muitas dessas experiências dentro da Operação Bandeirantes – Oban, “Sua missão consistia em “identificar”, localizar e capturar os elementos integrantes dos grupos subversivos..., com a finalidade de destruir ou pelo menos neutralizar as organizações a que pertençam”. (JOFFLY, 2013: 42).

Nesse sentido esse trabalho tem como objetivo fazer uma reflexão sobre os testemunhos de Amélia Teles e Criméia Almeida. A partir de fontes audiovisuais em formato de depoimentos, são eles, Ditadura Depoimento 1 Maria Amélia Teles, SBT Amor e Revolução Criméia Almeida Depoimento 6, ambos produzidos em 2011 para serem passados após o final dos capítulos da telenovela brasileira Amor e Revolução.

Assim propomos pensar além da estrutura fílmica com seus variados elementos que compõem a narrativa, as experiências traumáticas vivenciadas por essas duas mulheres vítimas-testemunhas da ditadura militar no Brasil, como suas dores, ressentimentos, rancores, os traumas e, buscarmos perceber os tipos de torturas, as quais foram submetidas, e as consequências que as torturas e prisões acarretaram nas suas vidas e na de seus filhos, e como isso afetou as suas vidas.

 

As Vítimas-Testemunhas como narradoras das suas histórias

 

Os depoimentos Ditadura Depoimento 1 Maria Amélia Teles, SBT Amor e Revolução Criméia Almeida Depoimento 6, foram retirados do Youtube e são apenas dois exemplos dos vários que foram produzidos para serem passados após o final dos capítulos da telenovela brasileira Amor e Revolução. Produzida e transmitida pela rede de televisão SBT, de 05 de abril de 2011 a 13 de janeiro de 2012, na faixa de 22 horas. Foi escrita por Tiago Santiago e teve em sua direção Reynaldo Boury, Luiz Antônio Piá e Marcus Coqueiro.

Essa produção foi muito representativa na teledramaturgia brasileira do País, pois teve como enredo central a ditadura militar abordando o período que começa na década de 1960 e vai até meados de 1980. Ela foi ambientada no Rio de Janeiro e em São Paulo, a trama inicia representando o Golpe Militar de 1964, reconhecido pelos militares como a “revolução” de 31de março de 1964.

Dentro desse recorte temporal eles buscaram retratar a história de pessoas que foram a favor, como também aquelas que foram contra a ditadura. Dentre os temas abordados estão os movimentos sociais e políticos, a luta armada, os ideais de democracia e liberdade tão almejados por muitos militantes políticos na época, as mudanças comportamentais, a música, moda, a chegada da televisão, ou seja, a cultura em seus diversos aspectos nesse período.

No dia 09 de março de 2011 a emissora de televisão SBT, exibiu durante cinco minutos, cenas da trama, fazendo um resumo da história da telenovela. Essas cenas foram vistas na época como uma crítica a Rede Globo de televisão, em que foi acusada em parte de ter sido favorecida pela ditadura militar, e de ter apoiado os militares.

A vinheta de abertura mostrava estudantes, jornalistas, artistas, políticos, dentre outros, desaparecendo em cena, fazendo assim uma alusão ao que ocorreu na ditadura militar, em que muitas pessoas com essas profissões e escolhas políticas foram presas, exiladas, mortas e desaparecidas. Essa abertura foi embalada ao som de Roda Viva, autoria de Chico Buarque, pela banda MPB-4.

O primeiro depoimento gravado foi o de José Dirceu (ex-deputado do PT). Este iniciou sua militância política em movimentos estudantis em1965, foi preso em 1968, Ibiúna SP, durante uma tentativa de realizar o Congresso da União Estadual dos Estudantes UNE.

Em 1969, as organizações guerrilheiras Movimento Revolucionário 8 de Outubro MR-8 e a Ação Libertadora Nacional ALN, sequestraram o embaixador norte-americano Charles Burke Elbrick, e em troca, exigiram que uma lista de prisioneiros políticos fossem libertados, entre eles estava José Dirceu, os presos foram para o México, de lá seguiram caminho para Cuba e Paris, José Dirceu se exilou em Cuba, voltou para o Brasil definitivamente em 1975, vivendo clandestinamente por um bom tempo.

Seu depoimento durou cerca de 70 minutos, mas somente alguns trechos foram transmitidos ao final de alguns capítulos da telenovela. Todos os depoimentos que foram transmitidos não ultrapassaram o tempo de cinco minutos, sendo assim, as falas eram editadas pela produção. Muitos ex-militantes políticos não deram seus depoimentos, por conta das falas serem editadas e pelo fato de terem receio de que suas falas fossem mudadas na edição do vídeo.

Os depoimentos possuem uma construção narrativa, simples e parecidas, no qual os depoentes foram colocados em um estúdio, sentados, para narrarem as suas histórias. A câmera mostra boa parte das vezes, os depoentes de cintura pra cima, ou seja, apenas meio corpo, e foca nos movimentos que esses sujeitos fazem com as mãos, no rosto, principalmente quando eles começam a falar de momentos traumáticos que vivenciaram. O tempo de duração é pequeno, mas é o suficiente para mostrar através desses testemunhos os diversos tipos de sofrimentos e violências vividos por essas vítimas-testemunhas.

No pano de fundo aparece na maioria desses depoimentos uma imagem colorida com o nome tortura, matérias de jornais, dentre outros elementos, que buscam retratar o período da ditadura militar, mas em Ditadura Depoimento 1 Maria Amélia Teles, tem como imagem de fundo, prédios em preto e branco.

As imagens dos depoimentos são coloridas, e as vítimas-testemunhas logo nos primeiros segundos já começam a narrar as suas histórias. No momento em que elas começam a falar das prisões, das torturas sofridas, dos vários tipos de violências é introduzida como trilha sonora a música Para Não Dizer que Não Falei das Flores de Geraldo Vandré, mas passa apenas a melodia.

É importante ressaltar que o espaço para a gravação dos depoimentos e para a sua transmissão era pra todos aqueles que se sentissem prejudicados pela ditadura militar, como também, para aqueles que eram a favor dela, ou seja, o espaço estava aberto para qualquer segmento da sociedade.

A partir de julho de 2011, os depoimentos deixaram de ser transmitidos, segundo a equipe da telenovela, havia somente depoimentos de pessoas que foram contra a ditadura militar, e que haviam sofrido torturas, prisões e exílios nesse período. Podemos notar que havia sim depoimentos de pessoas que foram a favor da ditadura, só que pouquíssimos.

O depoimento Ditadura Depoimento 1 Maria Amélia Teles, foi exibido no dia da estréia da telenovela. Ela e Criméia Almeida são irmãs e foram presas no ano de 1972 e torturadas na Operação Bandeirantes Oban. Ambas eram integrantes do Partido Comunista do Brasil PCdoB e lutaram, na Guerrilha do Araguaia. O fim da guerrilha se deu com o resultado que favoreceu os militares “resultando mortos mais de 50 militantes do PC do B, após cruel repressão que se abateu sobre a população de toda a região”. (ARNS, 1985: 99).

Maria Amélia Teles foi presa juntamente com seu marido César Augusto Teles e mais um companheiro de militância Carlos Nicolau Danielli, enquanto eles eram torturados, os policias foram buscar seus dois filhos Edson Teles e Janaina Teles, ambos tinham na época 4 e 5 anos de idade respectivamente, e sua irmã Criméia Almeida que estava grávida de seis meses, e mesmo assim sofreu torturas, principalmente as psicológicas, como também, as crianças. Lembrando que “As capturas eram cercadas de um clima de terror, do qual não se poupavam pessoas isentas de qualquer suspeita...” (ARNS, 1985: 77), muito menos as crianças filhas e filhos de militantes políticos.

No início do seu depoimento Maria Amélia Teles fala de sua prisão e das torturas sofridas, ela diz:

Quando eu fui presa né, ou fomos presos né, porque era eu, meu companheiro e mais um dirigente do partido comunista, nos fomos e logo encaminhados pras salas de tortura, sempre nua eles arrancavam sua roupa o tempo todo né, alias eu tinha sido torturada a noite toda nua, e eu estava urinada, com vômito, eu tinha levado choque no ânus, vagina, nos seios, no umbigo, nos ouvidos, dentro da boca, eu só não levei choque dento do nariz e dentro dos olhos. (Ditadura Depoimento 1 Maria Amélia Teles, 2011).

Falar sobre as torturas sofridas e sua prisão ainda não é algo fácil para ela, podemos perceber os vários tipos de sentimentos desencadeados ao começar a falar de suas “memórias traumáticas”, como o trauma e o sofrimento que aquela experiência acarretou em sua vida. Através de sua fala, entre pausas e repetições de expressões, vemos que falar sobre esses acontecimentos traumáticos ainda é algo sensível e que meche com muitas emoções, com as dores silenciadas, como também, percebe-se o anseio por uma reparação do passado e restituição de direitos.

Movimento Guerrilheiro que se deu na região Amazônica, ao longo do Rio Araguaia, em finais da década de 1960 e início de 1970. Movimento criado pelo PCdoB Partido Comunista Brasileiro, com o objetivo de fomentar uma luta revolucionária, mas foi combatido pelas forças armadas.

Refletindo um pouco mais sobre esse depoimento, podemos pensar nas inúmeras formas de torturas que foram colocadas em prática pelos órgãos da repressão, a exemplo, do choque elétrico, da cadeira de dragão, dentre os quais Maria Amélia Teles foi submetida, o afogamento, os insetos e animais, o pau-de-arara, dentre outros. Esses vários tipos de torturas são mostrados na obra Brasil: Nunca Mais, a partir de depoimentos retirados de processos políticos, de pessoas que haviam sido presas e torturadas no período da ditadura militar.

A obra Brasil: Nunca Mais, foi produto de uma pesquisa feita por um pequeno grupo de especialistas, que teve como liderança o Cardeal Dom Paulo Evaristo Arns da Diocese de São Paulo. Essa pesquisa foi iniciada em 1979, dentro da descrição e do sigilo necessário, pois, a abertura política ainda estava sendo pensada.

Suas principais fontes para esse estudo foram documentos produzidos pelas próprias autoridades da época, os quais conseguiram as cópias de 707 processos políticos completos e outros incompletos, todos tinham transitado pela Justiça Militar Brasileira, e alguns passaram também pelo Superior Tribunal Militar STM, entre o período de 1964 a 1979.

A pesquisa durou cinco anos, e as pessoas que fizeram parte da equipe não revelaram seus nomes, pois tinham receio de serem presas ou torturadas. Foi a partir dessa pesquisa que houve a produção do livro Brasil: Nunca Mais, o qual foi e ainda é de muita importância para entendermos um pouco das experiências traumáticas vivenciadas por tantas vítimas da ditadura militar no Brasil.

Retomando o elemento da tortura, podemos pensar que a tortura não era legalizada dentro da lei, a Lei de Segurança Nacional colocava a pena de morte para alguns casos específicos, mas não legalizava a tortura, nem o assassinato e nem as invasões a domicílio, por isso que em certa medida tentaram camuflar e esconder várias mortes e desaparecimentos de pessoas. Logo, a ideia era desestruturar a personalidade do preso, a tortura existe para anular o inimigo, e ela se sofisticou com a criação dos Doi-Codi.

Justificada pela urgência de se obter informações, a tortura visava imprimir à vítima a destruição moral pela ruptura dos limites emocionais que se assentam

Cadeira elétrica revestida de zinco ligada a terminais elétricos, na qual os presos eram sentados nus, ao ser ligada na energia o zinco transmitia choques elétricos em todo o corpo, e em alguns casos também colocavam um balde de metal na cabeça do preso, para que também essa parte do corpo sofresse choques.

Barra de ferro que era atravessada entre os punhos amarrados e a dobra do joelho, a barra era colocada entre duas mesas, e o corpo ficava pendurado a 20 ou 30 centímetros do solo.

 Essa lei foi criada em 1967, a qual amparava o Conselho de Segurança Nacional, tornava qualquer cidadão um suspeito ou vigilante, diante de crimes políticos.

 

Sobre relações efetivas de parentesco

 

Assim, crianças foram sacrificadas diante dos pais, mulheres grávidas tiveram seus filhos abortados, esposas sofreram para incriminar seus maridos. (ARNS, 1985: 43).

Os militares que torturam Maria Amélia Teles, a qual sofreu vários tipos de torturas físicas, como também, psicológicas, buscaram ir ao íntimo da suas emoções quando sequestraram seus dois filhos e sua irmã Criméia Almeida que na época estava grávida, e os levaram para a Oban. Os torturadores levaram as crianças para verem seus pais após terem sido torturados, a sua mãe ainda estava na cadeira de dragão quando eles foram levados a sala de tortura para vê-la.

[...] eu estava com na na cadeira de dragão..., e então eu estava bastante machucada e cheia de hematomas, e minha filha quando entraram dentro do operação, bobo botaram dentro da operação, meu filho com cinco anos minha filha com tha, a minha filha com cinco anos e o meu filho com quatro ano, passaram na sala pra ver o pai e depois trouxeram na minha, na sala onde eu tava sendo interrogada e torturada pra que eles me vissem, então ela me perguntou: Por que você ta azul e o pai ta verde?, E de repente eu fui olhar po meu corpo e eu me dei conta que eu tava da cor dessa calça aqui, eu tava roxa toda roxa... (Ditadura Depoimento 1 Maria Amélia Teles, 2011).

Em sua fala vemos que as torturas psicológicas eram muito fortes, e essas marcaram não só a vida dos adultos, mas também a daquelas crianças, que viram seus pais muitos machucados, e ainda ficaram por algum tempo em uma casa da repressão que até hoje não descobriram qual foi. Segundo Amélia Teles seus filhos tiveram reflexos dessas torturas em suas vidas, ainda crianças os problemas já começaram a aparecer, pois ela diz que seu filho voltou a ser bebê, e a menina amadureceu cedo demais.

Sua irmã Criméia Almeida que foi presa grávida de seis meses, sofreu muitas torturas psicológicas, alguns militares ameaçavam dizendo que se o seu bebê nascesse de cor branca e fosse do sexo masculino eles levariam para criá-lo, e segundo ela, ao nascer seu filho tinha os olhos azuis e a cor branca. Essa foi outra criança que já na barriga sofreu com as torturas realizadas em sua mãe. “Meu filho tinha soluços na barriga, meu filho tem soluços até hoje com 37 anos, qualquer tensão ela se manifesta com soluços”. (SBT Amor e Revolução Criméia Almeida Depoimento 6, 2011).

Ao nascer os militares não deixava que ela o amamentasse, levavam o bebê algumas vezes e depois de algum tempo o traziam para a mãe, e sempre chegava doente. Foi muito complicado pra ela reaver o bebê, até quando os militares entregaram a criança para a mãe de Criméia Almeida. Através de alguns trechos das falas dessas duas mulheres, refletimos sobre como esse período de repressão e autoritarismo militar, desencadeou muita dor, traumas e sofrimentos na vida de tantas famílias, e na vida de tantas crianças, que muitas nem sabiam o que estava se passando naquele momento.

Pensar em todas as arbitrariedades cometidas pelos órgãos da repressão, como os vários tipos de crimes e violências, nos fazem questionar até que ponto os militares desrespeitaram todos os direitos humanos, os quais são assegurados pela Declaração Universal dos Direitos Humanos, a qual assegura que os seres humanos não podem ser torturados. Eles feriram a própria ética militar e implantaram as suas próprias regras, tudo isso para os militares, em nome de uma aniquilação do “terrorismo” que as “esquerdas” estavam realizando.

 

Considerações Finais

 

Não se consolida uma democracia com cadáveres em sepulto e nós temos muitos. (Maria Amélia, Ditadura Depoimento 1 Maria Amélia Teles, 2011).

Pra minha família e nós que perdemos essa guerra, que perdemos nossos familiares, a gente tá sempre disponível pra contar essa história, porque nós não nos envergonhamos. (Crimeia Almeida, SBT Amor e Revolução Criméia Almeida Depoimento 6, 2011).

A primeira fala coloca em cheque o regime democrático que foi instaurado no Brasil a partir de meados da década de 1980. Para a depoente só é possível consolidar uma democracia, quando as histórias das vítimas que morreram e também das que ficaram vivas forem expostas e forem reparadas e punidas, mas isso é algo problemático, pois as histórias estão sendo narradas, mas as punições e reparações ainda são tímidas.

Esses “cadáveres em sepulto” se referem aos que não sobreviveram, mas são também os ressentimentos e traumas, que ainda estão guardados na memória daqueles que sobreviveram a esses acontecimentos traumáticos, que nem o tempo e os silêncios foram capazes de apagá-los, logo luta-se pela reparação desses “cadáveres”, que não querem ser esquecidos na história.

[...] os grandes crimes do século XX, situados nos limites da representação, erigem- se em nome de todos os acontecimentos que deixaram sua impressão traumática nos corações e nos corpos: protestam que foram e, nessa condição, pedem para ser ditos, narrados, compreendidos. (RICOUER, 2007: 505).

As vítimas precisaram assumir seus papeis, para mostrarem os “cadáveres em sepulto”, e para protestarem pelas marcas que haviam abalado as suas vidas. Mas há também, as marcas do corpo, e essas foram impostas através das torturas, as quais se tornaram uma das maiores impulsionadoras dos traumas e ressentimentos, falar de ambos não foi algo fácil, mas foi essencial para se recuperar os direitos políticos e jurídicos.

A segunda fala aborda justamente as perdas, essas se dão pelas mortes de familiares e companheiros de luta política, como pela perda da luta travada contra a ditadura militar, e segundo o depoimento de Crimeia Almeida essas perdas precisam ser protestadas e punidas, por isso que há todo um trabalho de memória, em volta desses acontecimentos traumáticos.

É interessante notar que elas não se envergonham de serem consideradas vítimas, e nem de exporem as experiências traumáticas que vivenciaram. Logo contar, essas histórias é uma maneira de mostrar esses “cadáveres” para a sociedade. E dizer a quem quiser ouvir, que eles não foram esquecidos, eles estão presentes, e vão continuar por muito tempo.

Os relatos dessas vítimas-testemunhas narram os vários tipos de tortura tanto físicas como psicológicas, as prisões, as solturas, como também, falam do fato de não saberem onde seus filhos estavam, de ouvirem os policiais dizendo que não ia devolvê-los, ou trazendo eles muito doentes. E das sequelas que permaneceram ao longo do tempo, como é o caso de Criméia Almeida, que ainda na barriga seu filho tinha soluços, não superando isso na fase adulta, tendo esse problema quando passa por momentos de tensão.

Essas vítimas narram as suas experiências “[...] chamamos experiência o que pode ser posto em relato, algo vivido que não só se sofre, mas se transmite. Existe experiência quando a vítima se transforma em testemunha”. (SARLO, 2007: 26). Apesar das dores e sofrimentos esses crimes não foram capazes de anular o relato, o qual consolidou-se no testemunho.

Assim, o sujeito e a experiência estão interligados, pois o segundo precisa do primeiro para existir. O testemunho só foi capaz de se consolidar pelo fato da experiência ter existido, e para que ela seja mostrada é preciso haver o trabalho da narração, este se faz através da linguagem, a qual dar voz as experiências que estavam silenciadas.

Vemos assim, através desses depoimentos outro tipo de narrativa, aquela que é construída pela própria vítima, ou seja, ela começa a significar o seu passado, lançando o seu próprio olhar sobre ele. Antes o que era silenciado, pode ser restaurado e “ressuscitado”, que foi a memória como dever, mas também, como campo de conflito, esta última se dá pelo dilema entre os que ainda mantêm em suas lembranças os crimes de Estado, e aqueles que querem esquecer e passarem para uma nova etapa da história.

Segundo Beatriz Sarlo “Mas, antes de celebrar esse sujeito que voltou a vida, convém examinar os argumentos que decretaram sua morte, quando sua experiência e representação foram criticadas e declaradas impossíveis”. (2007: 30). Os silêncios e esquecimentos que foram impostos por muitos anos, reprimiam e recalcavam as experiências desses sujeitos. A Lei da Anistia serviu em parte para instaurar o esquecimento sobre essas memórias e lembranças.

Suas experiências e memórias foram declaradas impossíveis e colocadas a prova, mas isso não impediu que esses sujeitos (re) surgissem, e restaurasse o discurso da “primeira pessoa”, este se tornou “matéria-prima”. Falar em “primeira-pessoa” foi essencial para conhecermos partes da história de nosso País, pois, através dessas narrativas podemos perceber em que tipo de governo a sociedade estava inserida e como tantas pessoas se tornaram vítimas dessa ditadura.

No século XXI, esses narradores já se auto-intitulam como vítimas da ditadura militar, e mostram através de seus depoimentos o porquê de poderem ser chamadas assim. Eles se designam assim, pelo fato de se darem conta que o que passaram feria até mesmos as normas pregadas pelos direitos humanos, que feriam as suas dignidades, e os seus sentimentos políticos e morais. Elas se deram conta que viveram atrocidades difíceis de serem narradas.

Logo o conceito de vítima, não é atribuído apenas aqueles que morreram nos “porões da ditadura”, mas também, aqueles que sobreviveram a tantas torturas, prisões e maus tratos. As próprias famílias buscam atribuir esse conceito aos entes que foram perdidos, mas também, buscam heroicizar esses sujeitos.

Os discursos dessas vítimas vão exalar seus ressentimentos, ódios, dores e traumas, e isso vai contribuir para uma restauração da esfera de direitos, que até então essas pessoas haviam perdido. Logo a memória se consolida no discurso testemunhal desses sujeitos como um dever moral, mas também, político e jurídico.

 Lei de No 6.683, de 28 de agosto de 1979, anistiava pessoas que haviam cometido crimes eleitorais, políticos, com direitos políticos suspensos, servidores e militares do poder judiciário e legislativo, pessoas vinculadas ao poder público, dentre outras, entre o período de 02 de setembro de 1961 a 15 de agosto de 1979.

Referências
ARNS, Dom Paulo Evaristo. Brasil: Nunca Mais. Petropólis: Vozes, 9o Ed., 1985.

BRESCIANI, Stella, NAXARA, Márcia (org.). Memória e (res) sentimento: indagações sobre questão sensível. In: Memória e Esquecimento: Linguagens e Narrativas. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 2004, pp. 85-94.

JOFFILY, Mariana. Engrenagem. In: No centro da engrenagem os interrogatórios na operação Bandeirante e no DOI de São Paulo (1969-1975). São Paulo: Edusp, 2013, pp. 38/97.

MATTOS, Vanessa. O Estado contra o povo: a atuação dos Esquadrões da morte em São Paulo (1968-1972). In: Esquadrões da morte e “limpeza social”: meios de implantação da violência do Estado. Mestrado em História. São Paulo: PUC, 2011, pp. 25/50.

RICOUER, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Tradução Alain Françóis Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2007.

SARLO, Beatriz. Tempo Passado: cultura da memória e guinada subjetiva. Tradução Rosa Freire d’Aguiar – São Paulo: Companhia das Letras; Belo Horizonte,: UFMG, 2007.

Filmes

Ditadura Depoimento 1 Maria Amélia Teles. Direção: Reynaldo Boury, Luiz Antônio Piá e Marcus Coqueiro, Brasil, 2011.

SBT Amor e Revolução Criméia Almeida Depoimento 6. Direção: Reynaldo Boury, Luiz Antônio Piá e Marcus Coqueiro, Brasil, 2011.

 

EDSON E JANAÍNA TELES

Edson Teles e Janaína de Almeida Teles são ex-presos políticos e filhos dos antigos militantes do Partido Comunista do Brasil (PCdoB), Maria Amélia de Almeida Teles, a Amelinha, e César Augusto Teles. Ainda crianças, respectivamente com 4 e 5 anos, foram sequestrados pela Operação Bandeirante (Oban) e levados à prisão junto de seus pais, em dezembro de 1972.

Durante o período de detenção assistiram à mãe e ao pai serem vítimas de sistemáticas violações. Também presenciaram os dois sendo torturados pelo major do exército Carlos Alberto Brilhante Ustra, então comandante do DOI-Codi.

Em 2005, em decorrência das violações de que foi vítima, a família Teles moveu um processo contra Carlos Alberto Brilhante Ustra. Em 2008, ele foi condenado e declarado publicamente “torturador” pela Justiça.

Hoje, Edson Teles é professor universitário. Docente do curso de Filosofia da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), dedica parte de sua vida acadêmica ao estudo das ditaduras, dos direitos humanos, da memória política e de outros temas relacionados. Entre outras obras publicadas, organizou, com o filósofo Vladimir Safatle o livro “O que resta da ditadura: A exceção brasileira”.

O que resta da ditadura: a exceção brasileira eBook : Safatle, Vladimir,  Teles, Edson: Amazon.com.br: Livros

 

Como o irmão, Janaína de Almeida Teles segue carreira acadêmica. É doutora em História Social pela Universidade de São Paulo (USP). Faz pesquisas sobre aparelhos repressivos de Estado, ditaduras na América Latina, mortos e desaparecidos políticos e outros temas correlatos. Também é autora e organizadora de livros sobre a ditadura, citados em diversas obras da literatura especializada nacional e internacional.

Em parceria, os dois irmãos também organizaram, com auxílio da socióloga Cecília MacDowell Santos, o livro “Desarquivando a ditadura: memória e justiça no Brasil”.

LINKS

FRASES

  • “A cultura da impunidade persiste e há uma prática da violência por parte do sistema de segurança pública que herdamos da ditadura. Até hoje ocorrem torturas nas delegacias, instituições de detenção de adolescentes, no sistema prisional.”, César Teles.

 
 
 
04
Abr22

O Golpe de 1964 e a volta dos que não foram (com documentários relevantes)

Talis Andrade

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Por Carla Teixeira 

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 A ordem do dia publicada pelo ministério da Defesa é um alerta sobre o avanço da ditadura no Brasil do século XXI. Ao tentar reescrever a história, o conteúdo assinado pelo milico de pijama, general Braga Netto, e pelos três comandantes das forças armadas mostra o passivo político deixado pela redemocratização acomodada e conciliada com a escória da humanidade. Jair Bolsonaro é o atual projeto de poder do Exército para a volta dos que não foram. Não passa de um subproduto da ditadura, a marmita que os comandantes utilizam para continuarem se refastelando com o orçamento e os cargos de Estado. Os Oficiais são a vanguarda dos marajás da República.

 Nos anos 1960, durante o contexto da Guerra Fria, o combate ao “comunismo” foi alçado como bandeira de luta pelos grupos antipopulares no Brasil – isso já acontecia desde Getúlio Vargas. A mídia corporativa e os inúmeros espaços de convivência social da classe média ofereciam à população uma impressão aterrorizante dos comunistas com a intenção de levar a indignação coletiva para o apoio à solução autoritária.

 Imaginariamente, os “vermelhos” foram alçados para uma posição de força muito maior do que a real. Toda a esquerda foi classificada como “comunista” num país que já não tinha um Partido Comunista legalizado desde 1947. A ideia de que poderia haver a implantação de um “regime totalitário” no Brasil, por parte do presidente João Goulart, não passou de mais uma mentira contada para justificar o avanço autoritário comandado pelas forças armadas, em geral, e pelo Exército, especificamente.

O avanço das propostas para as reformas de base (agrária, eleitoral, urbana etc) defendidas por Goulart poderiam ampliar a participação popular nas decisões do Estado, garantindo a cidadania para uma multidão de flagelados. Na vasta historiografia brasileira produzida sobre o período, é consenso que o golpe de 1964 não foi para conter a “implantação de um regime totalitário no Brasil”, mas sim para derrotar as esquerdas, matar, prender ou exilar suas principais lideranças e impedir a realização de um projeto de República que buscasse incluir o povo através de um modelo democrático e popular.

 O registro deixado pelos principais canais de comunicação durante a ditadura mostra a subserviência dos jornais que abriram mão da liberdade de expressão para garantir a liberdade de propriedade num país de analfabetos e miseráveis. Os benefícios que os donos das mídias corporativas recebiam tinham como contrapartida um tratamento jornalístico brando, sem críticas aos governos militares. A grande imprensa deixou de fazer jornalismo para fazer propaganda.

A partir de 31 de março de 1964, o país conviveu com prisões ilegais, perseguições políticas, torturas, assassinatos e desaparecimento dos opositores do governo. Na economia, houve uma brutal concentração de renda com o aumento da desigualdade social e da violência urbana. Não havia órgãos de controle e a corrupção era a regra. O “milagre econômico” dos anos 1970 converteu-se na “maldita inflação” dos anos 1980. Desgastados junto à população, os militares deixaram o poder num amplo acordo que jamais puniu os torturadores e os assassinos que atuaram sob as ordens dos comandantes das forças armadas e dos generais que presidiram a República entre 1964 e 1985.

 Mesmo após tudo isso, chegamos a 2022 com os comandantes das forças armadas afirmando que após 1964 “a sociedade brasileira conduziu um período de estabilização, de segurança, de crescimento econômico e de amadurecimento político, que resultou no restabelecimento da paz no país, no fortalecimento da democracia, na ascensão do Brasil no concerto das nações e na aprovação da anistia ampla, geral e irrestrita pelo Congresso Nacional”. Uma afronta à verdade histórica, uma afronta ao Brasil e a todos os mortos daquele período.

 Desde o início da Nova República, com a Constituição de 1988, os militares jamais admitiram os crimes cometidos durante a ditadura militar. Ressentidos com a Comissão Nacional da Verdade, apoiaram o golpe de 2016 e se associaram a um parlamentar medíocre, mau militar, para ascender num governo genocida que até aqui matou quase 700 mil brasileiros durante a pandemia e jogou 20 milhões na miséria e na fome. No século XX e XXI, o Exército brasileiro segue matando e flagelando seu povo em benefício do projeto de poder da corporação.

Ao invés de pedirem desculpas ao Brasil e aos brasileiros, rogam para si o mérito da democracia quando a história mostra que as forças armadas sempre foram o principal ponto de veto ao apronfundamento democrático em nosso país. Com raras exceções, os Oficiais em geral estiveram a serviço do latifúndio, do capital privado nacional e estrangeiro, especialmente dos Estados Unidos. Como jamais foram responsabilizados pelos crimes que cometeram (como houve na Argentina, por exemplo), os militares brasileiros seguem preconizando a delinquência de farda que mata e corrompe sem maiores consequências.

 A nota assinada pelo candidato a vice-presidente da República e pelos três comandantes das forças armadas não é apenas a defesa de uma versão da história do Brasil, mas o anúncio de um projeto político de poder que subjuga a sociedade civil aos interesses da caserna. Os militares estão em centenas de cargos no governo e não vão largar o osso. O golpe de 2016 foi a recidiva do golpe de 1964. Enquanto não enfrentarmos, entre outras, a questão do projeto de Defesa para o país e o papel reservado às forças armadas, seguiremos lidando com a desenvoltura de militares da ativa que, armados, querem fazer política. É ano eleitoral. A mobilização popular em diversos setores da sociedade é o único caminho para promover um amplo debate que coloque os militares em seu devido lugar, pondo fim aos delírios autoritários daqueles que não merecem a farda que usam.

Indicações de leitura: Rodrigo Patto Sá Motta. “As Universidades e o regime militar: cultura política brasileira e modernização autoritária”. Zahar, 2014.

Pedro Henrique Pedreira Campos. “Estranhas Catedrais: as empreiteiras Brasileiras e a Ditadura Civil-Militar: 1964-1988”. EdUFF, 2015

Carlos Fico. “O golpe de 1964. Momentos Decisivos”, FGV, 2014

Carlos Marighella. “Por que resisti à prisão”. 2ª edição. Editora Brasiliense, 1994. 

Indicações de filmes/documentários: JANGO (Dir. Silvio Tendler, 1984) - Disponível para acesso em: https://www.youtube.com/watch?v=SaU6pIBv9f4

O DIA QUE DUROU 21 ANOS (Dir. Camilo Tavares, 2013) - https://www.youtube.com/watch?v=ltawI64zBEo

CIDADÃO BOILESEN (Dir. Chaim Lotewski, 2009) - Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=yGxIA90xXeY&t=1s

RETRATO FALADO DO GUERRILHEIRO (Dir. Silvio Tendler, 2001) – Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=4BP-OMjP08Q&t=3s

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27
Mar22

Morre um torturador: encoberto pela mídia, isento pela Justiça, condenado pela História

Talis Andrade

BESTAS=FERAS. A santíssima trindade da tortura na ditadura de 1964 – Morreu Pedro Seelig:  como o coronel Brilhante Ustra e o delegado Fleury, todos impunes
 

 

Durante os anos mais turbulentos da ditadura militar de 1964, Seelig resumia na sua figura de delegado mais temido do Departamento de Ordem Política e Social (DOPS) o estágio supremo de violência e bestialidade

27
Jul20

Igreja: 152 bispos criticam “economia que mata” do governo Bolsonaro

Talis Andrade

São Franscisco, Portinari

"Carta ao Povo de Deus" denuncia os desmandos do governo e retoma a defesa dos direitos humanos que caracterizam a Igreja da Teologia da Libertação ...

Igreja Católica encabeçada por Dom Paulo Evaristo Arns, Pedro Casaldáliga e Helder Câmara teve papel relevante na luta pelos direitos humanos e pela democracia durante a ditadura militar. Em tempos de grave autoritarismo como o que vivemos, a Igreja católica resolveu se manifestar novamente. No texto, chamado de “Carta ao Povo de Deus”, os bispos dizem que o Brasil atravessa um dos momentos mais difíceis de sua história, vivendo uma “tempestade perfeita”. Ela combinaria uma crise sem precedentes na saúde e um “avassalador colapso na economia” com a tensão sofre “fundamentos da República, provocada em grande medida pelo Presidente da República [Jair Bolsonaro] e outros setores da sociedade, resultando numa profunda crise política e de governança”
 

O documento critica  “discursos anticientíficos, que tentam naturalizar ou normalizar o flagelo dos milhares de mortes pela COVID-19”  e chama a atenção para o “caos socioeconômico que se avizinha, com o desemprego e a carestia que são projetados para os próximos meses, e os conchavos políticos que visam à manutenção do poder a qualquer preço. Esse discurso não se baseia nos princípios éticos e morais, tampouco suporta ser confrontado com a Tradição e a Doutrina Social da Igreja.”

A Igreja Católica retoma sua tradição profética, tão valorizada pela Teologia da Libertação, e junta sua voz ao movimentos sociais e democráticos que lutam contra as políticas de morte comandadas pelo governo Bolsonaro.  

 

“Carta ao Povo de Deus”


“Somos bispos da Igreja Católica, de várias regiões do Brasil, em profunda comunhão com o Papa Francisco e seu magistério e em comunhão plena com a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, que no exercício de sua missão evangelizadora, sempre se coloca na defesa dos pequeninos, da justiça e da paz. Escrevemos esta Carta ao Povo de Deus, interpelados pela gravidade do momento em que vivemos, sensíveis ao Evangelho e à Doutrina Social da Igreja, como um serviço a todos os que desejam ver superada esta fase de tantas incertezas e tanto sofrimento do povo.

Evangelizar é a missão própria da Igreja, herdada de Jesus. Ela tem consciência de que “evangelizar é tornar o Reino de Deus presente no mundo” (Alegria do Evangelho, 176). Temos clareza de que “a proposta do Evangelho não consiste só numa relação pessoal com Deus. A nossa reposta de amor não deveria ser entendida como uma mera soma de pequenos gestos pessoais a favor de alguns indivíduos necessitados […], uma série de ações destinadas apenas a tranquilizar a própria consciência. A proposta é o Reino de Deus […] (Lc 4,43 e Mt 6,33)” (Alegria do Evangelho, 180). Nasce daí a compreensão de que o Reino de Deus é dom, compromisso e meta.

É neste horizonte que nos posicionamos frente à realidade atual do Brasil. Não temos interesses político-partidários, econômicos, ideológicos ou de qualquer outra natureza. Nosso único interesse é o Reino de Deus, presente em nossa história, na medida em que avançamos na construção de uma sociedade estruturalmente justa, fraterna e solidária, como uma civilização do amor.

O Brasil atravessa um dos períodos mais difíceis de sua história, comparado a uma “tempestade perfeita” que, dolorosamente, precisa ser atravessada. A causa dessa tempestade é a combinação de uma crise de saúde sem precedentes, com um avassalador colapso da economia e com a tensão que se abate sobre os fundamentos da República, provocada em grande medida pelo Presidente da República e outros setores da sociedade, resultando numa profunda crise política e de governança.

Este cenário de perigosos impasses, que colocam nosso País à prova, exige de suas instituições, líderes e organizações civis muito mais diálogo do que discursos ideológicos fechados. Somos convocados a apresentar propostas e pactos objetivos, com vistas à superação dos grandes desafios, em favor da vida, principalmente dos segmentos mais vulneráveis e excluídos, nesta sociedade estruturalmente desigual, injusta e violenta. Essa realidade não comporta indiferença.

É dever de quem se coloca na defesa da vida posicionar-se, claramente, em relação a esse cenário. As escolhas políticas que nos trouxeram até aqui e a narrativa que propõe a complacência frente aos desmandos do Governo Federal, não justificam a inércia e a omissão no combate às mazelas que se abateram sobre o povo brasileiro. Mazelas que se abatem também sobre a Casa Comum, ameaçada constantemente pela ação inescrupulosa de madeireiros, garimpeiros, mineradores, latifundiários e outros defensores de um desenvolvimento que despreza os direitos humanos e os da mãe terra. “Não podemos pretender ser saudáveis num mundo que está doente. As feridas causadas à nossa mãe terra sangram também a nós” (Papa Francisco, Carta ao Presidente da Colômbia por ocasião do Dia Mundial do Meio Ambiente, 05/06/2020).

Todos, pessoas e instituições, seremos julgados pelas ações ou omissões neste momento tão grave e desafiador. Assistimos, sistematicamente, a discursos anticientíficos, que tentam naturalizar ou normalizar o flagelo dos milhares de mortes pela COVID-19, tratando-o como fruto do acaso ou do castigo divino, o caos socioeconômico que se avizinha, com o desemprego e a carestia que são projetados para os próximos meses, e os conchavos políticos que visam à manutenção do poder a qualquer preço. Esse discurso não se baseia nos princípios éticos e morais, tampouco suporta ser confrontado com a Tradição e a Doutrina Social da Igreja, no seguimento Àquele que vê io “para que todos tenham vida e a tenham em abundância” (Jo 10,10).

Analisando o cenário político, sem paixões, percebemos claramente a incapacidade e inabilidade do Governo Federal em enfrentar essas crises. As reformas trabalhista e previdenciária, tidas como para melhorarem a vida dos mais pobres, mostraram-se como armadilhas que precarizaram ainda mais a vida do povo. É verdade que o Brasil necessita de medidas e reformas sérias, mas não como as que foram feitas, cujos resultados pioraram a vida dos pobres, desprotegeram vulneráveis, liberaram o uso de agrotóxicos antes proibidos, afrouxaram o controle de desmatamentos e, por isso, não favoreceram o bem comum e a paz social. É insustentável uma economia que insiste no neoliberalismo, que privilegia o monopólio de pequenos grupos poderosos em detrimento da grande maioria da população.

O sistema do atual governo não coloca no centro a pessoa humana e o bem de todos, mas a defesa intransigente dos interesses de uma “economia que mata” (Alegria do Evangelho, 53), centrada no mercado e no lucro a qualquer preço. Convivemos, assim, com a incapacidade e a incompetência do Governo Federal, para coordenar suas ações, agravadas pelo fato de ele se colocar contra a ciência, contra estados e municípios, contra poderes da República; por se aproximar do totalitarismo e utilizar de expedientes condenáveis, como o apoio e o estímulo a atos contra a democracia, a flexibilização das leis de trânsito e do uso de armas de fogo pela população, e das leis do trânsito e o recurso à prática de suspeitas ações de comunicação, como as notícias falsas, que mobilizam uma massa de seguidores radicais.

O desprezo pela educação, cultura, saúde e pela diplomacia também nos estarrece. Esse desprezo é visível nas demonstrações de raiva pela educação pública; no apelo a ideias obscurantistas; na escolha da educação como inimiga; nos sucessivos e grosseiros erros na escolha dos ministros da educação e do meio ambiente e do secretário da cultura; no desconhecimento e depreciação de processos pedagógicos e de importantes pensadores do Brasil; na repugnância pela consciência crítica e pela liberdade de pensamento e de imprensa; na desqualificação das relações diplomáticas com vários países; na indiferença pelo fato de o Brasil ocupar um dos primeiros lugares em número de infectados e mortos pela pandemia sem, sequer, ter um ministro titular no Ministério da Saúde; na desnecessária tensão com os outros entes da República na coordenação do enfrentamento da pandemia; na falta de sensibilidade para com os familiares dos mortos pelo novo coronavírus e pelos profissionais da saúde, que estão adoecendo nos esforços para salvar vidas.

No plano econômico, o ministro da economia desdenha dos pequenos empresários, responsáveis pela maioria dos empregos no País, privilegiando apenas grandes grupos econômicos, concentradores de renda e os grupos financeiros que nada produzem. A recessão que nos assombra pode fazer o número de desempregados ultrapassar 20 milhões de brasileiros. Há uma brutal descontinuidade da destinação de recursos para as políticas públicas no campo da alimentação, educação, moradia e geração de renda.

Fechando os olhos aos apelos de entidades nacionais e internacionais, o Governo Federal demonstra omissão, apatia e rechaço pelos mais pobres e vulneráveis da sociedade, quais sejam: as comunidades indígenas, quilombolas, ribeirinhas, as populações das periferias urbanas, dos cortiços e o povo que vive nas ruas, aos milhares, em todo o Brasil. Estes são os mais atingidos pela pandemia do novo coronavírus e, lamentavelmente, não vislumbram medida efetiva que os levem a ter esperança de superar as crises sanitária e econômica que lhes são impostas de forma cruel. O Presidente da República, há poucos dias, no Plano Emergencial para Enfrentamento à COVID-19, aprovado no legislativo federal, sob o argumento de não haver previsão orçamentária, dentre outros pontos, vetou o acesso a água potável, material de higiene, oferta de leitos hospitalares e de terapia intensiva, ventiladores e máquinas de oxigenação sanguínea, nos territórios indígenas, quilombolas e de comunidades tradicionais (Cf. Presidência da CNBB, Carta Aberta ao Congresso Nacional, 13/07/2020).

Até a religião é utilizada para manipular sentimentos e crenças, provocar divisões, difundir o ódio, criar tensões entre igrejas e seus líderes. Ressalte-se o quanto é perniciosa toda associação entre religião e poder no Estado laico, especialmente a associação entre grupos religiosos fundamentalistas e a manutenção do poder autoritário. Como não ficarmos indignados diante do uso do nome de Deus e de sua Santa Palavra, misturados a falas e posturas preconceituosas, que incitam ao ódio, ao invés de pregar o amor, para legitimar práticas que não condizem com o Reino de Deus e sua justiça?

O momento é de unidade no respeito à pluralidade! Por isso, propomos um amplo diálogo nacional que envolva humanistas, os comprometidos com a democracia, movimentos sociais, homens e mulheres de boa vontade, para que seja restabelecido o respeito à Constituição Federal e ao Estado Democrático de Direito, com ética na política, com transparência das informações e dos gastos públicos, com uma economia que vise ao bem comum, com justiça socioambiental, com “terra, teto e trabalho”, com alegria e proteção da família, com educação e saúde integrais e de qualidade para todos. Estamos comprometidos com o recente “Pacto pela vida e pelo Brasil”, da CNBB e entidades da sociedade civil brasileira, e em sintonia com o Papa Francisco, que convoca a humanidade para pensar um novo “Pacto Educativo Global” e a nova “Economia de Francisco e Clara”, bem como, unimo-nos aos movimentos eclesiais e populares que buscam novas e urgentes alternativas para o Brasil.

Neste tempo da pandemia que nos obriga ao distanciamento social e nos ensina um “novo normal”, estamos redescobrindo nossas casas e famílias como nossa Igreja doméstica, um espaço do encontro com Deus e com os irmãos e irmãs. É sobretudo nesse ambiente que deve brilhar a luz do Evangelho que nos faz compreender que este tempo não é para a indiferença, para egoísmos, para divisões nem para o esquecimento (cf. Papa Francisco, Mensagem Urbi et Orbi, 12/4/20).

Despertemo-nos, portanto, do sono que nos imobiliza e nos faz meros espectadores da realidade de milhares de mortes e da violência que nos assolam. Com o apóstolo São Paulo, alertamos que “a noite vai avançada e o dia se aproxima; rejeitemos as obras das trevas e vistamos a armadura da luz” (Rm 13,12).

O Senhor vos abençoe e vos guarde. Ele vos mostre a sua face e se compadeça de vós.
O Senhor volte para vós o seu olhar e vos dê a sua paz! (Nm 6,24-26).

São Francisco, Militão dos Santos

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