Vídeo Lenio Streck: "Democracia ficou por um triz por causa do que ocorreu na Lava Jato"
Em parceria com o Google Arts e Culture, o Instituto Vladimir Herzog lança hoje a exposição virtual Alexandre Vannucchi Leme: eu só disse o meu nome. Feita em memória aos 50 anos do assassinato do estudante por agentes da ditadura militar, a iniciativa, explica Gabrielle Abreu, historiadora e coordenadora da área de Memória, Verdade e Justiça do Instituto Vladimir Herzog, busca "reacender o debate acerca da ausência de punição aos autores de graves violações de direitos humanos na ditadura militar".
Alexandre tinha 22 anos e cursava o 4º ano de Geologia na Universidade de São Paulo quando foi preso em 16 de março de 1973, sob a acusação de integrar a Ação Libertadora Nacional (ALN). Levado para a sede do DOI-Codi na capital paulista, ele foi torturado sob o comando do então major Carlos Alberto Brilhante Ustra.
No dia seguinte à prisão, Alexandre foi encontrado morto por um carcereiro. Os policiais do DOI-Codi alegaram que o estudante havia se suicidado.
Cova rasa
Os pais de Alexandre só souberam do assassinato pela imprensa, em 23 de março. As autoridades passaram a alegar que Alexandre morreu após ser atropelado enquanto tentava fugir de policiais. Seu corpo havia sido sepultado como indigente, sem caixão, no Cemitério de Perus.
Com a repercussão do caso, o Instituto de Geociências da USP aprovou um decreto de luto e paralisação e organizou uma comissão para apurar a morte e as prisões de outros estudantes. A missa de sétimo dia de Alexandre foi celebrada pelo arcebispo dom Paulo Evaristo Arns, em 30 de março, na Catedral da Sé.
Primeiro grande protesto depois da instauração do Ato Institucional nº 5, em dezembro de 1968, o ato religioso reuniu mais de 3 mil pessoas.
Primo de segundo grau do estudante e coordenador da exposição, o jornalista Camilo Vannuchi afirma que a morte de Alexandre foi considerada por agentes da repressão um “tiro no pé”, pois consolidou a luta por justiça às vítimas da ditadura. Nesse processo, teve destaque a atuação dos pais de Alexandre, Egle e José, e dos advogados Mário Simas e José Carlos Dias.
A revolta com o assassinato de Alexandre também fortaleceu o movimento estudantil, impulsionando, em 1976, a refundação do DCE-Livre da USP, que foi batizado em homenagem ao estudante. Hoje, uma Escola Estadual de Primeiro Grau em Ibiúna, uma Escola Municipal de Educação Infantil em São Paulo e uma praça nas imediações da casa onde Alexandre residia, em Sorocaba, também levam o nome do estudante assassinado.
Com imagens, áudios e textos, a exposição sobre o assassinato do estudante também aborda seu legado na luta por direitos humanos. Ao todo, são 20 itens, entre fotos, cartas, trabalhos universitários e documentos pessoais, que constituem uma memorabilia de Alexandre Vannucchi.
Como curiosidade, vale destacar que Alexandra Itacarambi, filha do fundador da Revista IMPRENSA, Sinval Itacarambi, recebeu esse nome em homenagem ao estudante assassinado por agentes da ditadura.
No próximo dia 31 de março, o golpe de 1964 completa 59 anos. É sempre importante recordar que não faltaram juristas que colaboraram com a ditadura militar. Doutrinadores, juízes, OAB etc., exerceram papeis destacados na configuração da legalidade autoritária utilizada na institucionalização da ditadura. Contudo, na outra margem do rio, também é importante recordar que um pequeno número de advogados combateu o bom combate em defesa da vida e da liberdade dos presos políticos. Nas palavras de D. Paulo Evaristo Arns, "um grupo de profissionais do Direito que, naquela época de muitos temores, arriscaram suas próprias vidas e carreiras profissionais para se dedicarem a defender, na grande maioria dos casos gratuitamente, as vítimas da violência política"[1].
Com uma pequena margem de manobra e fazendo uso da interpretação mais liberal possível do aparato jurídico utilizado pela repressão [2], os advogados dos presos políticos conseguiram estabelecer uma forma de resistência.
Desde o golpe, os militares e seus juristas começaram a traçar uma engenharia constitucional que, além de favorecer a repressão, também procurava oferecer ao regime um verniz de Estado de Direito para angariar legitimidade perante a opinião pública, seja internamente ou internacional. Era importante mostrar para as nações ocidentais que o Brasil permitia a existência de dois partidos (governo e oposição); que os Poderes funcionavam normalmente; que os presidentes militares não agiam como os caudilhos existentes na América Latina; que os presos políticos eram devidamente processados na Justiça Militar; e que seus recursos inclusive poderiam chegar até o órgão de cúpula do Poder Judiciário, o Supremo Tribunal Federal.
Isso não quer dizer que a ditadura brasileira deixou de usar a estratégia da guerra suja contra seus opositores. O sequestro, a tortura, o encarceramento, a utilização de sítios clandestinos, o assassinato e o desaparecimento também fizeram parte das engrenagens de seus órgãos de repressão. Em vários casos o regime sequer demonstrou alguma preocupação em formalizar a prisão e abrir um processo na Justiça Militar. Foi o que aconteceu com o comunista David Capistrano da Costa, que, ao tentar retornar para o Brasil em 1974, acabou assassinado num dos principais centros clandestinos de tortura do regime, a conhecida casa da morte de Petrópolis. Ainda segundo relato prestado por um ex-integrante do DOI-Codi, o agente Marival Dias Chaves do Canto, o corpo de Capistrano foi esquartejado e jogado num rio [3].
As prisões muitas vezes aconteciam sem qualquer tipo de controle judicial. Os órgãos de repressão não precisavam pedir autorização ao Judiciário para realizar uma busca e apreensão ou para efetuar uma prisão, pois no momento em que entrava o trabalho da informação e da contrainformação nada podia ser formalizado através de um inquérito. Como muitas vezes a prisão funcionava como um sequestro, os advogados não recebiam qualquer informação sobre a situação de seus clientes. O encontro entre o preso político e seu defensor ocorria somente quando aquele era remetido à Secretaria de Segurança Pública.
De 1964 até o final do ano de 1968 ainda existia uma chance considerável dos presos políticos serem libertados por meio do habeas corpus. Após a suspensão desse remédio constitucional para crimes enquadrados na lei de segurança nacional, os advogados tiveram que buscar outros meios não apenas para defender a liberdade dos presos políticos, como também para levantar informações sobre suas localizações, já que a suspensão do habeas corpus possibilitou a ampliação do número de encarcerados e criou enormes dificuldades para que os advogados localizassem seus clientes.
Foi a partir daí que os advogados passaram a apresentar petições à Justiça Militar que tinham o formato de habeas corpus, mas não podiam ser chamadas de habeas corpus. Eram os chamados habeas corpus de localização [4]. Se a petição não era suficiente para alcançar a liberdade do preso político, pelo menos ela servia para retirá-lo das sombras e forçar um registro formal da sua situação. De acordo com o advogado Mario de Passos Simas, "nós (os advogados) nos valíamos de tudo, de mil requerimentos, de centenas de petições e reclamávamos perícias, invocávamos autoridades estrangeiras, entidades internacionais como a Anistia Internacional. Tudo que era válido era exercido"[5].
Como bem observou D. Paulo Evaristo Arns, "[...] um dos maiores esteios dos presos e de suas famílias eram seus advogados"[6]. Reunindo pessoas de diversas tendências ideológicas, como liberais, conservadores e socialistas, esses advogados estabeleceram uma convergência política e jurídica fundamental para uma resistência não apenas dentro Justiça Militar, mas também por meio do debate feito pela imprensa; das denúncias de tortura feitas em organismos internacionais; da defesa da anistia; e da construção de pontes para a redemocratização. Os advogados da resistência não chegaram a formar uma organização para a defesa dos presos políticos, mas, sem dúvida alguma, ajudaram a movimentar a resistência civil contra a ditadura.
- - -
[1] ARNS, Paulo Evaristo. Prefácio. In: SÁ, Fernando; MUNTEAL, Oswaldo; MARTINS, Paulo Emílio. Os advogados e a ditadura de 1964: a defesa dos perseguidos políticos no Brasil. Rio de Janeiro: Editora Vozes e PUC Rio, 2010, p. 8.
[2] Foi nessa conjuntura autoritária que o uso alternativo do direito surgiu como um meio de resistência dos juristas contra a ditadura. De acordo com Lenio Streck, "o movimento do direito alternativo se colocava, então, como uma alternativa contra o status quo. Era a sociedade contra o Estado. Por isso, em termos teóricos, era uma mistura de marxistas, positivistas fáticos, jusnaturalistas de combate, todos comungando de uma luta em comum: mesmo que o direito fosse autoritário, ainda assim se lutava contra a ditadura buscando 'brechas da lei', buscando atuar naquilo que se chamam de 'lacunas' para conquistar uma espécie de 'legitimidade fática'". Para mais detalhes, ver sua entrevista concedida para o Instituto Humanitas Unisinos: Uma análise sociológica do direito. Disponível em: http://www.ihuonline.unisinos.br/index.php?option=com_content&view=article&id=2758&secao=305. Acessado em: 24/03/2023.
[4] FERNANDES, Fernando Augusto Henriques. Voz humana: a defesa perante os tribunais da República. Rio de Janeiro: Revan, 2004, p. 224. De acordo com Nilo Batista, "O habeas corpus, depois do AI-5, se converteu num macabro teste de sobrevivência dos presos. Você requeria um habeas corpus e indicava como autoridades coatoras o Cenimar, o CISA, o DOI-Codi e o Dops. Quando algum deles dizia que o paciente estava preso, significava que estava vivo. Quando a resposta vinha negativa, como no caso do Stuart (Angel Jones), era um mau presságio porque a pessoa tinha sido morta, tinha sido executada, morrido na tortura". SPIELER, Paula. Entrevista com Nilo Batista. In: SPIELER, Paula; QUEIROZ, Rafael Mafei Rabelo (coord.). Advocacia em tempos difíceis: ditadura militar 1964-1985. Curitiba: Edição do autor, 2013, p. 653. Disponível em: http://bibliotecadigital.fgv.br/dspace/bitstream/handle/10438/13745/Advocacia%20em%20tempos%20dif%C3%ADceis.pdf?sequence=1. Acessado em: 24/3/2023.
[5] MOURA, Ana Maria Straube de Assis; GONZAGA, Tahirá Endo. Mario de Passos Simas: mais que um advogado, um patrono. In: SÁ, Fernando; MUNTEAL, Oswaldo; MARTINS, Paulo Emílio. Os advogados e a ditadura de 1964: a defesa dos perseguidos políticos no Brasil. Rio de Janeiro: Editora Vozes e PUC Rio, 2010, p. 80.
[6] ARNS, Paulo Evaristo. Prefácio. In: SÁ, Fernando; MUNTEAL, Oswaldo; MARTINS, Paulo Emílio. Os advogados e a ditadura de 1964: a defesa dos perseguidos políticos no Brasil. Rio de Janeiro: Editora Vozes e PUC Rio, 2010, p. 8.
A morte do jornalista Vladimir Herzog em uma prisão do DOI-CODI, em São Paulo, completa 40 anos no dia 25 de outubro e o Observatório da Imprensa revisita o episódio que marcou o processo de luta pela abertura política durante a ditadura. Vlado ou Vladimir, como era conhecido, foi preso, torturado e morto sob a alegação de pertencer ao Partido Comunista Brasileiro. A morte foi encenada para parecer suicídio, mas a farsa foi tão flagrante que o Sociedade Cemitério Israelita nem considerou a hipótese de enterrar o corpo na área reservada aos suicidas, como determina a religião judaica. Um ato ecumênico conduzido pelo cardeal D. Paulo Evaristo Arns, pelo rabino Henry Sobel e pelo pastor James Wright, seis dias depois da morte de Vladimir Herzog, reuniu 8 mil pessoas e se transformou num protesto contra os militares. “Aquele foi um momento de união de forças a partir do qual ficou claro para o regime que a sociedade civil caminharia determinadamente para a reconstrução da democracia”, diz o jornalista Audálio Dantas.
Depois da morte, a luta prosseguiu até 1979 quando a família conseguiu a condenação da União pelo assassinato do jornalista na Justiça, mas só recebeu a certidão de óbito em 2013. O Observatório revisita o episódio quatro décadas depois para lembrar que o assassinato de Vladimir Herzog simboliza o ódio, a intolerância, discriminação e todas as formas de violências que ainda sobrevivem na sociedade.
Exército admite que provas do caso Vladimir Herzog podem ter sido destruídas
A história do jornalista Vladimir Herzog, o Vlado, é icônica para entender os métodos adotados pelos militares durante a Ditadura Militar. Suspeito de manter ligação com o PCB (Partido Comunista Brasileiro) — que atuava ilegalmente na época, ele se apresentou ao DOI-CODI (Destacamento de Operações de Informação — Centro de Operações de Defesa Interna) espontaneamente na manhã do dia 25 de outubro de 1975, um sábado. Horas depois o SNI (Serviço Nacional de Informações) anunciou seu suicídio.
A foto emblemática de seu corpo, feita por Silvaldo Leung Vieira, mostra Vlado pendurado por um cinto em uma cela. Suas pernas estão dobradas, o que impossibilita o suicídio. Além disso, o cinto — que o Exército alegou ser o instrumento usado para a prática — não fazia parte do uniforme, um macacão. A família, há quase 42 anos, questiona a versão apresentada pelo Exército brasileiro. Eles questionam a falta de informação sobre a morte de Vlado. Não sabe quem colheu o seu depoimento e muito menos quem o matou. No mesmo ano da morte de Herzog, o jornalista Rodolfo Konder também estava preso em uma cela no DOI-CODI. Quando foi solto, foi o primeiro a denunciar o assassinato do amigo, enquanto o regime militar tentava emplacar a versão de suicídio.
Em 2012, o juiz Márcio Martins Bonilha Filho, da 2ª Vara de Registros Públicos do TJ-SP (Tribunal de Justiça de São Paulo), determinou a retificação do atestado de óbito de Vlado, para fazer constar que sua “morte decorreu de lesões e maus-tratos sofridos em dependência do II Exército – SP (Doi-Codi)”, atendendo a um pedido feito pela Comissão Nacional da Verdade. A família de Herzog foi quem solicitou que fosse retirada da causa da morte a asfixia mecânica, constava no laudo necroscópico e no atestado.
Agora, uma matéria do portal R7 indicou que Exército do Brasil pode ter destruídos provas que poderiam incriminar os responsáveis pelo assassinato do jornalista. Através da Lei de Acesso à Informação, o veículo pediu informações sobre funcionários que estariam no DOI-CODI, em São Paulo, na data da morte de Vladimir Herzog. A proposta era, a partir dos dados dos militares presentes, fazer uma possível análise do culpado pelo crime.
Em resposta, o Exército invoca o decreto nº 79.099, de 6 de janeiro de 1977, e afirma que tal determinação “permitia a destruição de documentos sigilosos, bem como os eventuais termos de destruição, pela autoridade que os elaborou ou pela autoridade que detivesse a sua custódia.” A declaração acrescenta que “não foi localizado qualquer registro da documentação solicitada no Comando do Exército” e completa afirmando que “tais documentos, se existiram, foram destruídos pelas razões acima expostas.”
O filho mais velho de Vlado — e diretor executivo do Instituto em homenagem — Ivo Herzog comenta a resposta. “Eu acho que é covardia do Exército não ter coragem de assumir os atos que cometeu no passado. Uma instituição madura deve reconhecer o que fez no passado, se ela fez um julgamento, certo ou errado, que ela assuma esse julgamento.”
Ao lado da mãe, Clarice Herzog, Ivo foi em maio deste ano à Corte Interamericana de Direitos Humanos para exigir uma resposta. A expectativa da família é de que o Estado brasileiro seja penalizado pela prisão arbitrária, tortura e morte do jornalista. “A sentença deve sair até o final do ano”, explica. Ivo Herzog completa. “A gente tem que andar pra frente e a gente só vai andar pra frente quando reconhecermos o que aconteceu no passado. E essa recusa do Exército e do próprio Estado brasileiro não colabora em nada para o aprimoramento da sociedade.”
Vladimir Herzog foi jornalista, professor e cineasta brasileiro. Nasceu em 27 de junho de 1937 na cidade de Osijsk, na Croácia (na época, parte da Iugoslávia), morou na Itália e emigrou para o Brasil com os pais em 1942. Foi criado em São Paulo e naturalizou-se brasileiro. Estudou Filosofia na Universidade de São Paulo (USP) e iniciou a carreira de jornalista em 1959, no jornal O Estado de S. Paulo. Nessa época, achou que seu nome de batismo, Vlado, não soava bem no Brasil e decidiu passar a assinar como Vladimir.
*As informações são de Peu Araújo, do R7, e do site Memórias da Ditadura
Esse trabalho tem o objetivo de fazer uma reflexão sobre os testemunhos de Maria Amélia Teles e Criméia Almeida, ambas são irmãs. Elas foram integrantes do Partido Comunista do Brasil – PCdoB, lutaram na guerrilha do Araguaia, foram presas e torturadas na Operação Bandeirantes – Obanno período da ditadura militar no Brasil.
Para esse trabalho nos deteremos nas fontes audiovisuais que possuem o formato de depoimentos, são eles, Ditadura Depoimento Maria Amélia Teles e SBT Amor e Revolução Criméia Almeida Depoimento, ambos produzidos em 2011.
Essas mulheres narram a partir de suas experiências as dores, rancores, ressentimentos, e as consequências que essas prisões e torturas tiveram nas suas vidas e de seus filhos. Nesse sentido propomos pensar as torturas as quais foram submetidas, e os traumas acarretados nessas mulheres.
Na última década da ditadura militar no Brasil, muitas vítimas testemunhas começaram a emergir com o objetivo de narrarem as suas histórias ou a de familiares, companheiros e amigos que haviam sido torturados, presos, mortos, exilados ou desaparecido durante esse período.
Assim, os discursos dessas vítimas-testemunhas eram repletos, de suas duras experiências naqueles dias, as quais ainda estavam guardadas vivamente em suas memórias. Logo, com o fim da ditadura militar, explodiu uma gama enorme de relatos que buscavam (re)
Esses crimes e vários tipos de violências só foram possíveis de serem revelados pelo fato desses eventos traumáticos terem permanecido em suas memórias. E foi através do ato de lembrar e narrar que as experiências dessas pessoas puderam ser contadas, logo, na busca de não esquecer é que muitas experiências traumáticas foram narradas através de vários formatos de filmes.
A exemplo, dos depoimentos Ditadura Depoimento 1 Maria Amélia Teles e SBT Amor e Revolução Criméia Almeida Depoimento 6, ambos produzidos em 2011. A partir do ato de testemunhar realizado por Amélia Teles e Criméia Almeida, e ao falarem das torturas sofridas, algo que marcou não só as suas vidas, como também, a de seus filhos podemos perceber os mais variados tipos de sentimentos que perpassam os discursos desses sujeitos, como trauma, ressentimentos, silêncios, dor, luto e reparação do passado.
Os sujeitos que revelaram esses crimes foram aqueles que participaram ativamente ou passivamente da luta política, como também, por pessoas que pararam para ouvir o testemunho de um familiar, amigo e companheiro. Assim, vários sujeitos começaram a narrar suas histórias a partir das suas experiências. Portanto, o testemunho só é possível de ser construído através da experiência, tendo o sujeito visto, ouvido ou passado por aquele momento. “Os crimes das ditaduras foram exibidos em meio a um florescimento de discursos testemunhais [...]”. (SARLO, 2007: 46).
Os discursos que emergem nas fontes audiovisuais elaboradas desde o final desse período ditatorial, giram em torno de vários elementos, entre eles estão a segundo Jeanne Gagnebin a “memória traumática”, “[...] gênero tristemente recorrente do século XX [...]” (BRESCIANI E NAXARA, (Org.), 2004: 86).
Essas “memórias traumáticas” são compostas dos traumas nunca superados, dos ressentimentos, da incerteza quanto achar algum familiar ou amigo vivo, a luta em mostrar para a sociedade os crimes que haviam ocorrido no Brasil, às lembranças de sofrimentos que podem ou não serem esquecidas, a luta por uma reparação do passado e justiça.
A experiência do choque acarreta o trauma e possibilita que ele seja imposto nas pessoas. Essas experiências foram impostas aos ex-militantes políticos, a exemplo de Amélia
Teles e Criméia Almeida a partir de prisões e muitas sessões de torturas, em que muitos outros companheiros de luta política foram a óbito, ou estão desaparecidos.
Logo é a partir do trauma que a “memória traumática” é construída, a qual pode levar os sujeitos a silenciarem e buscarem o esquecimento, ou pode também servi para lutarem contra o esquecimento, utilizando essa memória em favorecimento das pessoas que sofreram como foi o caso dos presos e desaparecidos políticos.
A experiência do trauma para essas mulheres serviu não para silenciarem, mas para lutarem contra todos os crimes e torturas que sofreram e todas as torturas psicológicas que viram os filhos sofrerem, a exemplo de Amélia Teles e seu esposo César Teles. Foram submetidas a muitas dessas experiências dentro da Operação Bandeirantes – Oban, “Sua missão consistia em “identificar”, localizar e capturar os elementos integrantes dos grupos subversivos..., com a finalidade de destruir ou pelo menos neutralizar as organizações a que pertençam”. (JOFFLY, 2013: 42).
Nesse sentido esse trabalho tem como objetivo fazer uma reflexão sobre os testemunhos de Amélia Teles e Criméia Almeida. A partir de fontes audiovisuais em formato de depoimentos, são eles, Ditadura Depoimento 1 Maria Amélia Teles, SBT Amor e Revolução Criméia Almeida Depoimento 6, ambos produzidos em 2011 para serem passados após o final dos capítulos da telenovela brasileira Amor e Revolução.
Assim propomos pensar além da estrutura fílmica com seus variados elementos que compõem a narrativa, as experiências traumáticas vivenciadas por essas duas mulheres vítimas-testemunhas da ditadura militar no Brasil, como suas dores, ressentimentos, rancores, os traumas e, buscarmos perceber os tipos de torturas, as quais foram submetidas, e as consequências que as torturas e prisões acarretaram nas suas vidas e na de seus filhos, e como isso afetou as suas vidas.
As Vítimas-Testemunhas como narradoras das suas histórias
Os depoimentos Ditadura Depoimento 1 Maria Amélia Teles, SBT Amor e Revolução Criméia Almeida Depoimento 6, foram retirados do Youtube e são apenas dois exemplos dos vários que foram produzidos para serem passados após o final dos capítulos da telenovela brasileira Amor e Revolução. Produzida e transmitida pela rede de televisão SBT, de 05 de abril de 2011 a 13 de janeiro de 2012, na faixa de 22 horas. Foi escrita por Tiago Santiago e teve em sua direção Reynaldo Boury, Luiz Antônio Piá e Marcus Coqueiro.
Essa produção foi muito representativa na teledramaturgia brasileira do País, pois teve como enredo central a ditadura militar abordando o período que começa na década de 1960 e vai até meados de 1980. Ela foi ambientada no Rio de Janeiro e em São Paulo, a trama inicia representando o Golpe Militar de 1964, reconhecido pelos militares como a “revolução” de 31de março de 1964.
Dentro desse recorte temporal eles buscaram retratar a história de pessoas que foram a favor, como também aquelas que foram contra a ditadura. Dentre os temas abordados estão os movimentos sociais e políticos, a luta armada, os ideais de democracia e liberdade tão almejados por muitos militantes políticos na época, as mudanças comportamentais, a música, moda, a chegada da televisão, ou seja, a cultura em seus diversos aspectos nesse período.
No dia 09 de março de 2011 a emissora de televisão SBT, exibiu durante cinco minutos, cenas da trama, fazendo um resumo da história da telenovela. Essas cenas foram vistas na época como uma crítica a Rede Globo de televisão, em que foi acusada em parte de ter sido favorecida pela ditadura militar, e de ter apoiado os militares.
A vinheta de abertura mostrava estudantes, jornalistas, artistas, políticos, dentre outros, desaparecendo em cena, fazendo assim uma alusão ao que ocorreu na ditadura militar, em que muitas pessoas com essas profissões e escolhas políticas foram presas, exiladas, mortas e desaparecidas. Essa abertura foi embalada ao som de Roda Viva, autoria de Chico Buarque, pela banda MPB-4.
O primeiro depoimento gravado foi o de José Dirceu (ex-deputado do PT). Este iniciou sua militância política em movimentos estudantis em1965, foi preso em 1968, Ibiúna – SP, durante uma tentativa de realizar o Congresso da União Estadual dos Estudantes – UNE.
Em 1969, as organizações guerrilheiras Movimento Revolucionário 8 de Outubro – MR-8 e a Ação Libertadora Nacional – ALN, sequestraram o embaixador norte-americano Charles Burke Elbrick, e em troca, exigiram que uma lista de prisioneiros políticos fossem libertados, entre eles estava José Dirceu, os presos foram para o México, de lá seguiram caminho para Cuba e Paris, José Dirceu se exilou em Cuba, voltou para o Brasil definitivamente em 1975, vivendo clandestinamente por um bom tempo.
Seu depoimento durou cerca de 70 minutos, mas somente alguns trechos foram transmitidos ao final de alguns capítulos da telenovela. Todos os depoimentos que foram transmitidos não ultrapassaram o tempo de cinco minutos, sendo assim, as falas eram editadas pela produção. Muitos ex-militantes políticos não deram seus depoimentos, por conta das falas serem editadas e pelo fato de terem receio de que suas falas fossem mudadas na edição do vídeo.
Os depoimentos possuem uma construção narrativa, simples e parecidas, no qual os depoentes foram colocados em um estúdio, sentados, para narrarem as suas histórias. A câmera mostra boa parte das vezes, os depoentes de cintura pra cima, ou seja, apenas meio corpo, e foca nos movimentos que esses sujeitos fazem com as mãos, no rosto, principalmente quando eles começam a falar de momentos traumáticos que vivenciaram. O tempo de duração é pequeno, mas é o suficiente para mostrar através desses testemunhos os diversos tipos de sofrimentos e violências vividos por essas vítimas-testemunhas.
No pano de fundo aparece na maioria desses depoimentos uma imagem colorida com o nome tortura, matérias de jornais, dentre outros elementos, que buscam retratar o período da ditadura militar, mas em Ditadura Depoimento 1 Maria Amélia Teles, tem como imagem de fundo, prédios em preto e branco.
As imagens dos depoimentos são coloridas, e as vítimas-testemunhas logo nos primeiros segundos já começam a narrar as suas histórias. No momento em que elas começam a falar das prisões, das torturas sofridas, dos vários tipos de violências é introduzida como trilha sonora a música Para Não Dizer que Não Falei das Flores de Geraldo Vandré, mas passa apenas a melodia.
É importante ressaltar que o espaço para a gravação dos depoimentos e para a sua transmissão era pra todos aqueles que se sentissem prejudicados pela ditadura militar, como também, para aqueles que eram a favor dela, ou seja, o espaço estava aberto para qualquer segmento da sociedade.
A partir de julho de 2011, os depoimentos deixaram de ser transmitidos, segundo a equipe da telenovela, havia somente depoimentos de pessoas que foram contra a ditadura militar, e que haviam sofrido torturas, prisões e exílios nesse período. Podemos notar que havia sim depoimentos de pessoas que foram a favor da ditadura, só que pouquíssimos.
O depoimento Ditadura Depoimento 1 Maria Amélia Teles, foi exibido no dia da estréia da telenovela. Ela e Criméia Almeida são irmãs e foram presas no ano de 1972 e torturadas na Operação Bandeirantes – Oban. Ambas eram integrantes do Partido Comunista do Brasil – PCdoB e lutaram, na Guerrilha do Araguaia. O fim da guerrilha se deu com o resultado que favoreceu os militares “resultando mortos mais de 50 militantes do PC do B, após cruel repressão que se abateu sobre a população de toda a região”. (ARNS, 1985: 99).
Maria Amélia Teles foi presa juntamente com seu marido César Augusto Teles e mais um companheiro de militância Carlos Nicolau Danielli, enquanto eles eram torturados, os policias foram buscar seus dois filhos Edson Teles e Janaina Teles, ambos tinham na época 4 e 5 anos de idade respectivamente, e sua irmã Criméia Almeida que estava grávida de seis meses, e mesmo assim sofreu torturas, principalmente as psicológicas, como também, as crianças. Lembrando que “As capturas eram cercadas de um clima de terror, do qual não se poupavam pessoas isentas de qualquer suspeita...” (ARNS, 1985: 77), muito menos as crianças filhas e filhos de militantes políticos.
No início do seu depoimento Maria Amélia Teles fala de sua prisão e das torturas sofridas, ela diz:
Quando eu fui presa né, ou fomos presos né, porque era eu, meu companheiro e mais um dirigente do partido comunista, nos fomos e logo encaminhados pras salas de tortura, sempre nua eles arrancavam sua roupa o tempo todo né, alias eu tinha sido torturada a noite toda nua, e eu estava urinada, com vômito, eu tinha levado choque no ânus, vagina, nos seios, no umbigo, nos ouvidos, dentro da boca, eu só não levei choque dento do nariz e dentro dos olhos. (Ditadura Depoimento 1 Maria Amélia Teles, 2011).
Falar sobre as torturas sofridas e sua prisão ainda não é algo fácil para ela, podemos perceber os vários tipos de sentimentos desencadeados ao começar a falar de suas “memórias traumáticas”, como o trauma e o sofrimento que aquela experiência acarretou em sua vida. Através de sua fala, entre pausas e repetições de expressões, vemos que falar sobre esses acontecimentos traumáticos ainda é algo sensível e que meche com muitas emoções, com as dores silenciadas, como também, percebe-se o anseio por uma reparação do passado e restituição de direitos.
Movimento Guerrilheiro que se deu na região Amazônica, ao longo do Rio Araguaia, em finais da década de 1960 e início de 1970. Movimento criado pelo PCdoB Partido Comunista Brasileiro, com o objetivo de fomentar uma luta revolucionária, mas foi combatido pelas forças armadas.
Refletindo um pouco mais sobre esse depoimento, podemos pensar nas inúmeras formas de torturas que foram colocadas em prática pelos órgãos da repressão, a exemplo, do choque elétrico, da cadeira de dragão, dentre os quais Maria Amélia Teles foi submetida, o afogamento, os insetos e animais, o pau-de-arara, dentre outros. Esses vários tipos de torturas são mostrados na obra Brasil: Nunca Mais, a partir de depoimentos retirados de processos políticos, de pessoas que haviam sido presas e torturadas no período da ditadura militar.
A obra Brasil: Nunca Mais, foi produto de uma pesquisa feita por um pequeno grupo de especialistas, que teve como liderança o Cardeal Dom Paulo Evaristo Arns da Diocese de São Paulo. Essa pesquisa foi iniciada em 1979, dentro da descrição e do sigilo necessário, pois, a abertura política ainda estava sendo pensada.
Suas principais fontes para esse estudo foram documentos produzidos pelas próprias autoridades da época, os quais conseguiram as cópias de 707 processos políticos completos e outros incompletos, todos tinham transitado pela Justiça Militar Brasileira, e alguns passaram também pelo Superior Tribunal Militar – STM, entre o período de 1964 a 1979.
A pesquisa durou cinco anos, e as pessoas que fizeram parte da equipe não revelaram seus nomes, pois tinham receio de serem presas ou torturadas. Foi a partir dessa pesquisa que houve a produção do livro Brasil: Nunca Mais, o qual foi e ainda é de muita importância para entendermos um pouco das experiências traumáticas vivenciadas por tantas vítimas da ditadura militar no Brasil.
Retomando o elemento da tortura, podemos pensar que a tortura não era legalizada dentro da lei, a Lei de Segurança Nacionalcolocava a pena de morte para alguns casos específicos, mas não legalizava a tortura, nem o assassinato e nem as invasões a domicílio, por isso que em certa medida tentaram camuflar e esconder várias mortes e desaparecimentos de pessoas. Logo, a ideia era desestruturar a personalidade do preso, a tortura existe para anular o inimigo, e ela se sofisticou com a criação dos Doi-Codi.
Justificada pela urgência de se obter informações, a tortura visava imprimir à vítima a destruição moral pela ruptura dos limites emocionais que se assentam
Cadeira elétrica revestida de zinco ligada a terminais elétricos, na qual os presos eram sentados nus, ao ser ligada na energia o zinco transmitia choques elétricos em todo o corpo, e em alguns casos também colocavam um balde de metal na cabeça do preso, para que também essa parte do corpo sofresse choques.
Barra de ferro que era atravessada entre os punhos amarrados e a dobra do joelho, a barra era colocada entre duas mesas, e o corpo ficava pendurado a 20 ou 30 centímetros do solo.
Essa lei foi criada em 1967, a qual amparava o Conselho de Segurança Nacional, tornava qualquer cidadão um suspeito ou vigilante, diante de crimes políticos.
Sobre relações efetivas de parentesco
Assim, crianças foram sacrificadas diante dos pais, mulheres grávidas tiveram seus filhos abortados, esposas sofreram para incriminar seus maridos. (ARNS, 1985: 43).
Os militares que torturam Maria Amélia Teles, a qual sofreu vários tipos de torturas físicas, como também, psicológicas, buscaram ir ao íntimo da suas emoções quando sequestraram seus dois filhos e sua irmã Criméia Almeida que na época estava grávida, e os levaram para a Oban. Os torturadores levaram as crianças para verem seus pais após terem sido torturados, a sua mãe ainda estava na cadeira de dragão quando eles foram levados a sala de tortura para vê-la.
[...] eu estava com na na cadeira de dragão..., e então eu estava bastante machucada e cheia de hematomas, e minha filha quando entraram dentro do operação, bobo botaram dentro da operação, meu filho com cinco anos minha filha com tha, a minha filha com cinco anos e o meu filho com quatro ano, passaram na sala pra ver o pai e depois trouxeram na minha, na sala onde eu tava sendo interrogada e torturada pra que eles me vissem, então ela me perguntou: – Por que você ta azul e o pai ta verde?, E de repente eu fui olhar po meu corpo e eu me dei conta que eu tava da cor dessa calça aqui, eu tava roxa toda roxa... (Ditadura Depoimento 1 Maria Amélia Teles, 2011).
Em sua fala vemos que as torturas psicológicas eram muito fortes, e essas marcaram não só a vida dos adultos, mas também a daquelas crianças, que viram seus pais muitos machucados, e ainda ficaram por algum tempo em uma casa da repressão que até hoje não descobriram qual foi. Segundo Amélia Teles seus filhos tiveram reflexos dessas torturas em suas vidas, ainda crianças os problemas já começaram a aparecer, pois ela diz que seu filho voltou a ser bebê, e a menina amadureceu cedo demais.
Sua irmã Criméia Almeida que foi presa grávida de seis meses, sofreu muitas torturas psicológicas, alguns militares ameaçavam dizendo que se o seu bebê nascesse de cor branca e fosse do sexo masculino eles levariam para criá-lo, e segundo ela, ao nascer seu filho tinha os olhos azuis e a cor branca. Essa foi outra criança que já na barriga sofreu com as torturas realizadas em sua mãe. “Meu filho tinha soluços na barriga, meu filho tem soluços até hoje com 37 anos, qualquer tensão ela se manifesta com soluços”. (SBT Amor e Revolução Criméia Almeida Depoimento 6, 2011).
Ao nascer os militares não deixava que ela o amamentasse, levavam o bebê algumas vezes e depois de algum tempo o traziam para a mãe, e sempre chegava doente. Foi muito complicado pra ela reaver o bebê, até quando os militares entregaram a criança para a mãe de Criméia Almeida. Através de alguns trechos das falas dessas duas mulheres, refletimos sobre como esse período de repressão e autoritarismo militar, desencadeou muita dor, traumas e sofrimentos na vida de tantas famílias, e na vida de tantas crianças, que muitas nem sabiam o que estava se passando naquele momento.
Pensar em todas as arbitrariedades cometidas pelos órgãos da repressão, como os vários tipos de crimes e violências, nos fazem questionar até que ponto os militares desrespeitaram todos os direitos humanos, os quais são assegurados pela Declaração Universal dos Direitos Humanos, a qual assegura que os seres humanos não podem ser torturados. Eles feriram a própria ética militar e implantaram as suas próprias regras, tudo isso para os militares, em nome de uma aniquilação do “terrorismo” que as “esquerdas” estavam realizando.
Considerações Finais
Não se consolida uma democracia com cadáveres em sepulto e nós temos muitos. (Maria Amélia, Ditadura Depoimento 1 Maria Amélia Teles, 2011).
Pra minha família e nós que perdemos essa guerra, que perdemos nossos familiares, a gente tá sempre disponível pra contar essa história, porque nós não nos envergonhamos. (Crimeia Almeida, SBT Amor e Revolução Criméia Almeida Depoimento 6, 2011).
A primeira fala coloca em cheque o regime democrático que foi instaurado no Brasil a partir de meados da década de 1980. Para a depoente só é possível consolidar uma democracia, quando as histórias das vítimas que morreram e também das que ficaram vivas forem expostas e forem reparadas e punidas, mas isso é algo problemático, pois as histórias estão sendo narradas, mas as punições e reparações ainda são tímidas.
Esses “cadáveres em sepulto” se referem aos que não sobreviveram, mas são também os ressentimentos e traumas, que ainda estão guardados na memória daqueles que sobreviveram a esses acontecimentos traumáticos, que nem o tempo e os silêncios foram capazes de apagá-los, logo luta-se pela reparação desses “cadáveres”, que não querem ser esquecidos na história.
[...] os grandes crimes do século XX, situados nos limites da representação, erigem- se em nome de todos os acontecimentos que deixaram sua impressão traumática nos corações e nos corpos: protestam que foram e, nessa condição, pedem para ser ditos, narrados, compreendidos. (RICOUER, 2007: 505).
As vítimas precisaram assumir seus papeis, para mostrarem os “cadáveres em sepulto”, e para protestarem pelas marcas que haviam abalado as suas vidas. Mas há também, as marcas do corpo, e essas foram impostas através das torturas, as quais se tornaram uma das maiores impulsionadoras dos traumas e ressentimentos, falar de ambos não foi algo fácil, mas foi essencial para se recuperar os direitos políticos e jurídicos.
A segunda fala aborda justamente as perdas, essas se dão pelas mortes de familiares e companheiros de luta política, como pela perda da luta travada contra a ditadura militar, e segundo o depoimento de Crimeia Almeida essas perdas precisam ser protestadas e punidas, por isso que há todo um trabalho de memória, em volta desses acontecimentos traumáticos.
É interessante notar que elas não se envergonham de serem consideradas vítimas, e nem de exporem as experiências traumáticas que vivenciaram. Logo contar, essas histórias é uma maneira de mostrar esses “cadáveres” para a sociedade. E dizer a quem quiser ouvir, que eles não foram esquecidos, eles estão presentes, e vão continuar por muito tempo.
Os relatos dessas vítimas-testemunhas narram os vários tipos de tortura tanto físicas como psicológicas, as prisões, as solturas, como também, falam do fato de não saberem onde seus filhos estavam, de ouvirem os policiais dizendo que não ia devolvê-los, ou trazendo eles muito doentes. E das sequelas que permaneceram ao longo do tempo, como é o caso de Criméia Almeida, que ainda na barriga seu filho tinha soluços, não superando isso na fase adulta, tendo esse problema quando passa por momentos de tensão.
Essas vítimas narram as suas experiências “[...] chamamos experiência o que pode ser posto em relato, algo vivido que não só se sofre, mas se transmite. Existe experiência quando a vítima se transforma em testemunha”. (SARLO, 2007: 26). Apesar das dores e sofrimentos esses crimes não foram capazes de anular o relato, o qual consolidou-se no testemunho.
Assim, o sujeito e a experiência estão interligados, pois o segundo precisa do primeiro para existir. O testemunho só foi capaz de se consolidar pelo fato da experiência ter existido, e para que ela seja mostrada é preciso haver o trabalho da narração, este se faz através da linguagem, a qual dar voz as experiências que estavam silenciadas.
Vemos assim, através desses depoimentos outro tipo de narrativa, aquela que é construída pela própria vítima, ou seja, ela começa a significar o seu passado, lançando o seu próprio olhar sobre ele. Antes o que era silenciado, pode ser restaurado e “ressuscitado”, que foi a memória como dever, mas também, como campo de conflito, esta última se dá pelo dilema entre os que ainda mantêm em suas lembranças os crimes de Estado, e aqueles que querem esquecer e passarem para uma nova etapa da história.
Segundo Beatriz Sarlo “Mas, antes de celebrar esse sujeito que voltou a vida, convém examinar os argumentos que decretaram sua morte, quando sua experiência e representação foram criticadas e declaradas impossíveis”. (2007: 30). Os silêncios e esquecimentos que foram impostos por muitos anos, reprimiam e recalcavam as experiências desses sujeitos. A Lei da Anistiaserviu em parte para instaurar o esquecimento sobre essas memórias e lembranças.
Suas experiências e memórias foram declaradas impossíveis e colocadas a prova, mas isso não impediu que esses sujeitos (re) surgissem, e restaurasse o discurso da “primeira pessoa”, este se tornou “matéria-prima”. Falar em “primeira-pessoa” foi essencial para conhecermos partes da história de nosso País, pois, através dessas narrativas podemos perceber em que tipo de governo a sociedade estava inserida e como tantas pessoas se tornaram vítimas dessa ditadura.
No século XXI, esses narradores já se auto-intitulam como vítimas da ditadura militar, e mostram através de seus depoimentos o porquê de poderem ser chamadas assim. Eles se designam assim, pelo fato de se darem conta que o que passaram feria até mesmos as normas pregadas pelos direitos humanos, que feriam as suas dignidades, e os seus sentimentos políticos e morais. Elas se deram conta que viveram atrocidades difíceis de serem narradas.
Logo o conceito de vítima, não é atribuído apenas aqueles que morreram nos “porões da ditadura”, mas também, aqueles que sobreviveram a tantas torturas, prisões e maus tratos. As próprias famílias buscam atribuir esse conceito aos entes que foram perdidos, mas também, buscam heroicizar esses sujeitos.
Os discursos dessas vítimas vão exalar seus ressentimentos, ódios, dores e traumas, e isso vai contribuir para uma restauração da esfera de direitos, que até então essas pessoas haviam perdido. Logo a memória se consolida no discurso testemunhal desses sujeitos como um dever moral, mas também, político e jurídico.
Lei de No 6.683, de 28 de agosto de 1979, anistiava pessoas que haviam cometido crimes eleitorais, políticos, com direitos políticos suspensos, servidores e militares do poder judiciário e legislativo, pessoas vinculadas ao poder público, dentre outras, entre o período de 02 de setembro de 1961 a 15 de agosto de 1979.
Referências ARNS, Dom Paulo Evaristo. Brasil: Nunca Mais. Petropólis: Vozes, 9o Ed., 1985.
BRESCIANI, Stella, NAXARA, Márcia (org.). Memória e (res) sentimento: indagações sobre questão sensível. In: Memória e Esquecimento: Linguagens e Narrativas. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 2004, pp. 85-94.
JOFFILY, Mariana. Engrenagem. In: No centro da engrenagem os interrogatórios na operação Bandeirante e no DOI de São Paulo (1969-1975). São Paulo: Edusp, 2013, pp. 38/97.
MATTOS, Vanessa. O Estado contra o povo: a atuação dos Esquadrões da morte em São Paulo (1968-1972). In: Esquadrões da morte e “limpeza social”: meios de implantação da violência do Estado. Mestrado em História. São Paulo: PUC, 2011, pp. 25/50.
RICOUER, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Tradução Alain Françóis – Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2007.
SARLO, Beatriz. Tempo Passado: cultura da memória e guinada subjetiva. Tradução Rosa Freire d’Aguiar – São Paulo: Companhia das Letras; Belo Horizonte,: UFMG, 2007.
Filmes
Ditadura Depoimento 1 Maria Amélia Teles. Direção: Reynaldo Boury, Luiz Antônio Piá e Marcus Coqueiro, Brasil, 2011.
SBT Amor e Revolução Criméia Almeida – Depoimento 6. Direção: Reynaldo Boury, Luiz Antônio Piá e Marcus Coqueiro, Brasil, 2011.
EDSON E JANAÍNA TELES
Edson Teles e Janaína de Almeida Telessão ex-presos políticos e filhos dos antigos militantes do Partido Comunista do Brasil (PCdoB), Maria Amélia de Almeida Teles, a Amelinha, e César Augusto Teles. Ainda crianças, respectivamente com 4 e 5 anos, foram sequestrados pela Operação Bandeirante (Oban) e levados à prisão junto de seus pais, em dezembro de 1972.
Durante o período de detenção assistiram à mãe e ao pai serem vítimas de sistemáticas violações. Também presenciaram os dois sendo torturados pelo major do exército Carlos Alberto Brilhante Ustra, então comandante do DOI-Codi.
Hoje, Edson Teles é professor universitário. Docente do curso de Filosofia da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), dedica parte de sua vida acadêmica ao estudo das ditaduras, dos direitos humanos, da memória política e de outros temas relacionados. Entre outras obras publicadas, organizou, com o filósofo Vladimir Safatle o livro“O que resta da ditadura: A exceção brasileira”.
Como o irmão, Janaína de Almeida Teles segue carreira acadêmica. É doutora em História Social pela Universidade de São Paulo (USP). Faz pesquisas sobre aparelhos repressivos de Estado, ditaduras na América Latina, mortos e desaparecidos políticos e outros temas correlatos. Também éautora e organizadora de livros sobre a ditadura, citados em diversas obras da literatura especializada nacional e internacional.
“A cultura da impunidade persiste e há uma prática da violência por parte do sistema de segurança pública que herdamos da ditadura. Até hoje ocorrem torturas nas delegacias, instituições de detenção de adolescentes, no sistema prisional.”, César Teles.
Aordem do dia publicada pelo ministério da Defesa é um alerta sobre o avanço da ditadura no Brasil do século XXI. Ao tentar reescrever a história, o conteúdo assinado pelo milico de pijama, general Braga Netto, e pelos três comandantes das forças armadas mostra o passivo político deixado pela redemocratização acomodada e conciliada com a escória da humanidade. Jair Bolsonaro é o atual projeto de poder do Exército para a volta dos que não foram. Não passa de um subproduto da ditadura, a marmita que os comandantes utilizam para continuarem se refastelando com o orçamento e os cargos de Estado. Os Oficiais são a vanguarda dos marajás da República.
Nos anos 1960, durante o contexto da Guerra Fria, o combate ao “comunismo” foi alçado como bandeira de luta pelos grupos antipopulares no Brasil – isso já acontecia desde Getúlio Vargas. A mídia corporativa e os inúmeros espaços de convivência social da classe média ofereciam à população uma impressão aterrorizante dos comunistas com a intenção de levar a indignação coletiva para o apoio à solução autoritária.
Imaginariamente, os “vermelhos” foram alçados para uma posição de força muito maior do que a real. Toda a esquerda foi classificada como “comunista” num país que já não tinha um Partido Comunista legalizado desde 1947. A ideia de que poderia haver a implantação de um “regime totalitário” no Brasil, por parte do presidente João Goulart, não passou de mais uma mentira contada para justificar o avanço autoritário comandado pelas forças armadas, em geral, e pelo Exército, especificamente.
O avanço das propostas para as reformas de base (agrária, eleitoral, urbana etc) defendidas por Goulart poderiam ampliar a participação popular nas decisões do Estado, garantindo a cidadania para uma multidão de flagelados. Na vasta historiografia brasileira produzida sobre o período, é consenso que o golpe de 1964 não foi para conter a “implantação de um regime totalitário no Brasil”, mas sim para derrotar as esquerdas, matar, prender ou exilar suas principais lideranças e impedir a realização de um projeto de República que buscasse incluir o povo através de um modelo democrático e popular.
O registro deixado pelos principais canais de comunicação durante a ditadura mostra a subserviência dos jornais que abriram mão da liberdade de expressão para garantir a liberdade de propriedade num país de analfabetos e miseráveis. Os benefícios que os donos das mídias corporativas recebiam tinham como contrapartida um tratamento jornalístico brando, sem críticas aos governos militares. A grande imprensa deixou de fazer jornalismo para fazer propaganda.
A partir de 31 de março de 1964, o país conviveu com prisões ilegais, perseguições políticas, torturas, assassinatos e desaparecimento dos opositores do governo. Na economia, houve uma brutal concentração de renda com o aumento da desigualdade social e da violência urbana. Não havia órgãos de controle e a corrupção era a regra. O “milagre econômico” dos anos 1970 converteu-se na “maldita inflação” dos anos 1980. Desgastados junto à população, os militares deixaram o poder num amplo acordo que jamais puniu os torturadores e os assassinos que atuaram sob as ordens dos comandantes das forças armadas e dos generais que presidiram a República entre 1964 e 1985.
Mesmo após tudo isso, chegamos a 2022 com os comandantes das forças armadas afirmando que após 1964 “a sociedade brasileira conduziu um período de estabilização, de segurança, de crescimento econômico e de amadurecimento político, que resultou no restabelecimento da paz no país, no fortalecimento da democracia, na ascensão do Brasil no concerto das nações e na aprovação da anistia ampla, geral e irrestrita pelo Congresso Nacional”. Uma afronta à verdade histórica, uma afronta ao Brasil e a todos os mortos daquele período.
Desde o início da Nova República, com a Constituição de 1988, os militares jamais admitiram os crimes cometidos durante a ditadura militar. Ressentidos com a Comissão Nacional da Verdade, apoiaram o golpe de 2016 e se associaram a um parlamentar medíocre, mau militar, para ascender num governo genocida que até aqui matou quase 700 mil brasileiros durante a pandemia e jogou 20 milhões na miséria e na fome. No século XX e XXI, o Exército brasileiro segue matando e flagelando seu povo em benefício do projeto de poder da corporação.
Ao invés de pedirem desculpas ao Brasil e aos brasileiros, rogam para si o mérito da democracia quando a história mostra que as forças armadas sempre foram o principal ponto de veto ao apronfundamento democrático em nosso país. Com raras exceções, os Oficiais em geral estiveram a serviço do latifúndio, do capital privado nacional e estrangeiro, especialmente dos Estados Unidos. Como jamais foram responsabilizados pelos crimes que cometeram (como houve na Argentina, por exemplo), os militares brasileiros seguem preconizando a delinquência de farda que mata e corrompe sem maiores consequências.
A nota assinada pelo candidato a vice-presidente da República e pelos três comandantes das forças armadas não é apenas a defesa de uma versão da história do Brasil, mas o anúncio de um projeto político de poder que subjuga a sociedade civil aos interesses da caserna. Os militares estão em centenas de cargos no governo e não vão largar o osso. O golpe de 2016 foi a recidiva do golpe de 1964. Enquanto não enfrentarmos, entre outras, a questão do projeto de Defesa para o país e o papel reservado às forças armadas, seguiremos lidando com a desenvoltura de militares da ativa que, armados, querem fazer política. É ano eleitoral. A mobilização popular em diversos setores da sociedade é o único caminho para promover um amplo debate que coloque os militares em seu devido lugar, pondo fim aos delírios autoritários daqueles que não merecem a farda que usam.
Indicações de leitura:Rodrigo Patto Sá Motta. “As Universidades e o regime militar: cultura política brasileira e modernização autoritária”. Zahar, 2014.
Pedro Henrique Pedreira Campos. “Estranhas Catedrais: as empreiteiras Brasileiras e a Ditadura Civil-Militar: 1964-1988”. EdUFF, 2015
Carlos Fico. “O golpe de 1964. Momentos Decisivos”, FGV, 2014
BESTAS=FERAS. A santíssima trindade da tortura na ditadura de 1964 – Morreu Pedro Seelig: como o coronel Brilhante Ustra e o delegado Fleury, todos impunes
Durante os anos mais turbulentos da ditadura militar de 1964, Seelig resumia na sua figura de delegado mais temido do Departamento de Ordem Política e Social (DOPS) o estágio supremo de violência e bestialidade
por Luiz Cláudio Cunha - Jornal GGN
O delegado de polícia Pedro Carlos Seelig morreu em Porto Alegre na terça-feira, 8 de março, fulminado por um infarto aos 88 anos, com sequelas da covid. Ficou dois meses internado, até sair para morrer em sua casa de vidros coloridos e revestimento de azulejo no bairro da Tristeza, zona sul da capital. Algum leitor desatento dos burocráticos, ineptos registros dos principais jornais e portais da internet poderia imaginar que era apenas a morte encoberta de um policial irrelevante, que não merecia mesmo a atenção da imprensa. Grave erro.
Durante os anos mais turbulentos da ditadura militar de 1964, Seelig resumia na sua figura de delegado mais temido do Departamento de Ordem Política e Social (DOPS) o estágio supremo de violência e bestialidade que a repressão política disseminou pelo Rio Grande do Sul e pelo Brasil. Foi o mais notório e intimidante torturador gaúcho, símbolo maior do terror de Estado que lhe garantiu lugar eterno no panteão dos grandes patifes da repressão brasileira. Seelig formou, ao lado do coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, chefe do Departamento de Operações de Informações-Centro de Operações e Defesa Interna (DOI-CODI) do II Exército, e do delegado Sérgio Fleury, do DOPS de São Paulo, a santíssima trindade da tortura brasileira.
Ganhou espaço merecido na lista definitiva dos 377 brasileiros acusados de graves violações dos direitos humanos cometidas durante os 21 anos do regime militar de 1964-85, segundo o relatório final da Comissão Nacional da Verdade (CNV). Ali se misturam generais-presidente e sargentos, coronéis e inspetores, diplomatas e médicos legistas, policiais militares e civis e até um ex-piloto de companhia aérea. No topo da cadeia de comando da repressão, foram denunciados os 53 militares que comandaram o aparato repressivo brasileiro nas duas décadas de violência como política de Estado: os cinco generais-presidentes (Castello Branco, Costa e Silva, Médici, Geisel e Figueiredo) e os três ministros-militares da Junta Militar que governou o país por dois meses em 1969. Além deles, como cúmplices, são citados seis ministros do Exército, sete da Marinha, cinco da Aeronáutica, três chefes do Serviço Nacional de Informações (SNI), oito do Centro de Informações do Exército (CIE), onze do Centro de Informações da Marinha (CENIMAR) e cinco do Centro de Informações de Segurança da Aeronáutica (CISA).
Logo abaixo, na pirâmide da repressão, são apontados pela CNV outros 84 militares, policiais e um diplomata, responsáveis em diferentes níveis pela gestão do aparato repressivo. O número 71 da lista é o coronel Brilhante Ustra, que organizou e comandou entre 1970 e 1974 o DOI-CODI paulistano da rua Tutoia, o mais letal do país, onde morreram 51 pessoas sob tortura. Finalmente, completando a relação dos torturadores, estão os 240 militares e policiais com responsabilidade direta naviolência física, os torturadores que fizeram o serviço sujo dos porões. Fleury é o número 367 da lista e Seelig, o 333.
O fã de Fleury
Quando estourou o golpe de 1964, Seelig estava há três meses no lugar certo: o DOPS de Porto Alegre. Aos 23 anos, tinha trocado o quepe de motorista de ônibus pela boina vermelha, a jaqueta, a calça cáqui com listra vermelho e o negro cassetete de borracha da tropa de choque da antiga Guarda Civil da capital gaúcha, formada por lutadores profissionais para dispersar tumultos. Aos 29, entrou na Polícia Civil como escrivão de 3ª classe. No primeiro semestre de 1964, teve uma rápida passagem pelo DOPS, antes de passar cinco anos na ronda de delegacias do interior. Com o curso de delegado, voltou para a capital e para o DOPS em junho de 1969, quando o país já amargava seis meses de AI-5.
Foi destacado para o Serviço de Investigações da sensível Divisão de Segurança Social do DOPS, cada vez mais atarefada pelo aquecido clima político nas ruas e universidades. No mês seguinte, julho, nascia em São Paulo a Operação Bandeirantes (OBAN), a mãe dos DOI-CODI, que integraria militares e policiais no estágio mais sofisticado e virulento da repressão política, excitada pelo combate mais intenso à luta armada nos centros urbanos.
Seelig era discípulo do colega mais famoso de São Paulo, o delegado do DOPS Sérgio Fleury, que ganhou fama internacional por sua ligação visceral com os meliantes do Esquadrão da Morte, de onde tirou o know-how para eliminar os militantes mais radicais da esquerda. Ficou amigo de um astro em ascensão na comunidade de informação, o major Carlos Alberto Brilhantes Ustra, antes ainda de sua notoriedade como comandante do sangrento DOI-CODI em São Paulo. Inspirado nesses notáveis exemplos, Seelig foi promovido em 1970, aos 36 anos, para a direção da Divisão de Segurança Social do DOPS, tornando-se o homem mais importante da repressão gaúcha no momento buliçoso em que o Estado convivia com sete organizações da luta armada: VPR, ALN, VAR-Palmares, M3G, POC, M-26 e FLN.
Nas duas maiores capitais brasileiras, Rio de Janeiro e São Paulo, o combate à guerrilha urbana era tarefa do Exército e seus DOI-CODI, onde morreram pelo menos 81 das 339 pessoas assassinadas sob tortura na ditadura – 51 no DOI paulistano da rua Tutoia, 30 no DOI carioca da rua Barão de Mesquita. Segundo documentos recolhidos pela Comissão Nacional da Verdade, os dois locais concentravam quase um quarto (23,8%) das vítimas oficiais do regime militar. No Rio Grande do Sul, essa tarefa literalmente bruta não sujou as mãos do DOI-CODI local. A missão foi delegada a Pedro Seelig e sua comprovada eficiência repressiva. Em janeiro de 1971, na fervura da política local, o DOPS de Seelig contabilizava a prisão de 256 esquerdistas e a apreensão de 15 metralhadores, 49 pistolas, nove automóveis, 27 mil dólares e milhares de cruzeiros (a moeda da época). Investigou 13 assaltos a banco praticados pela esquerda. Esquadrinhou a frustrada tentativa de sequestro do cônsul estadunidense Curtis Cutter por um comando desarrumado da Vanguarda Popular Revolucionária (VPR).
Na passarela do DOPS
O policial mais famoso do Rio Grande do Sul não tinha o figurino desgrenhado de um meganha rastaquera de filme noir : um ‘tira’ balofo de uma delegacia qualquer da periferia, com a barriga saltando dos botões torturados pela obesidade, a gravata cafona desarrumada e frouxa no pescoço gordo, o suor escorrendo pelo rosto. Nada disso. Seelig contrariava o padrão folclórico.
Em uma rua elegante, o vaidoso Seelig poderia ser confundido com um executivo arrogante e descolado da avenida Paulista ou do centro financeiro de Wall Street. Porte atlético, pose de galã, exibia músculos em vez de gordura espalhados pelo corpo esguio de mais de um metro e oitenta. Tinha alfaiate próprio e preferênciapor ternos de corte justo e conjuntos esportivos, tipo safári, nada comuns em delegacias. Pelo talhe elegante, Seelig parecia predestinado à passarela iluminada de modelo de loja de grife, não aos corredores sombrios das celas da repressão.
Sua alinhada cabeleira precocemente grisalha, repartida ao meio, caía em ondas disciplinadas sobre o pescoço, escoltando duas abundantes costeletas que quase escondiam as orelhas. O rosto anguloso, mais retangular, exibia traços duros, esculpidos por cinzel prussiano. Grossas sobrancelhas, mais escuras que os cabelos, acentuavam a frieza dos olhos, separados por um nariz maciço que ressaltava o tom marcial do rosto. O perfil nasal se impunha sobre os lábios finos e o queixo quadrado. A pele mais escura da face mostrava que os pelos rígidos da barba resistiam à lâmina matinal com rebeldia crônica, quase subversiva.
Aos sábados, passava rapidamente pelo DOPS, no segundo andar do Palácio da Polícia, sede da Secretaria de Segurança, na avenida Ipiranga, vestido imaculadamente de branco. Ninguém estranhava. Era o dia em que Seelig, sem demanda extra na delegacia, saía dali para jogar tênis no clube.
Olívio Lamas Baru Derkin/Coojornal Ricardo Chaves
Delegado Pedro Seelig era outro fora do ambiente funesto do DOPS: vaidoso, elegante, garboso, aprumado
No trabalho, conforme testemunho de sobreviventes, Seelig sabia alternar a fala mansa com o rigor e a rudeza necessários para extrair o máximo possível de informações dos presos políticos no tempo mínimo indispensável. Na sala de tortura do DOPS, apesar do capuz de praxe que os presos usavam para não identificar os torturadores, a presença de Seelig era antecipada pelo odor torturante do perfume dedo-duro que usava e pelo codinome ‘Major’ com que era tratado pelos subordinados. Com um sotaque levemente carioca, que ele achava ser moderno e charmoso, tentava ser claro e direto pelo uso de gíria e de palavrões dos mais jovens.
Em novembro de 1977, o repórter Rafael Guimarães, empossado dias antes no comando do centro acadêmico da faculdade de Jornalismo da PUC gaúcha, caiu numa blitz da Brigada Militar na avenida Independência, perto de casa. Com o uniforme da época – calça Lee, tênis, camiseta e bolsa a tiracolo –, Rafael parecia o suspeito de sempre. O caldo entornou quando acharam na bolsa um exemplar do jornal de esquerda Movimento, um livro de teoria política, um caderno de anotações e uma papelada em xerox com um título eloquente: “A redemocratização do país pelo desmantelamento do aparelho repressivo”. Foi levado direto para o DOPS de Seelig. Depois das perguntas de praxe do escrivão de plantão, apareceu o delegado. Rafael, hoje escritor e dono de uma bem-sucedida editora de livros, conta em depoimento publicado em 2021 no jornal eletrônico não.til:
Até que ele entrou na sala. Quer dizer, primeiro, entrou o perfume, depois o homem magro, mais baixo que eu pensava, cabelo grisalho repartido no meio, moderno na época, mas hoje absolutamente ridículo. Pedro Carlos Seelig, o símbolo da repressão no Rio Grande do Sul, o mais frio, eficiente e covarde torturador de que se tem notícia nestes pagos.
Na época, ainda era um mito. Só aparecia em fotos distantes e desfocadas e nos relatos dolorosos de dezenas de homens e mulheres por ele torturadas. Quando entrou, eu soube imediatamente de quem se tratava. Literalmente, tremi nas bases. Olhou para mim com desprezo e mostrou um desenho numa das páginas do meu caderno de anotações:
– Que mapa é esse? –. Era um mapa que tinha desenhado semanas antes, com base nas informações de um caminhoneiro, para chegar a uma cidadezinha na fronteira norte do estado onde eu tinha feito uma matéria sobre o cultivo da citronela, uma planta que serve de matéria prima para a produção de perfumes. Certamente, a mente paranoica da repressão via naquele mapa mal feito um plano subversivo ou um futuro foco de guerrilha. Não contive um esboço de sorriso com tal absurdo, que ele naturalmente percebeu:
– Tá rindo de quê? –. Comecei a contar a história da citronela, mas ele interrompeu:
– Olha pra mim quando fala. Que idade tu tem, seu merda? Teu pai sabe que tu anda metido nessas coisas? –. “Metido em quê”, eu ia dizer, mas calei. Seelig me olhava fixo, esfregava um lábio no outro e flexionava os dedos das mãos. Baixei os olhos e me senti o maior covarde da face da terra.
Ele saiu e não mais entrou. O escrivão faz mais umas perguntas que eu respondi de forma triste e desanimada. Sobrevivi sem sequelas físicas ao encontro com o temível Pedro Seelig, o ‘Pedrão’, ao contrário de tantos que apanharam, sofreram castigos hediondos e desapareceram em suas mãos.
O susto mortal no filho
A partir do segundo semestre de 1970, fase mais aguda da repressão política do recém-empossado governo do general Médici, os presos do DOPS de Seelig foram obrigados a usar capuz nos interrogatórios. O Instituto Médico Legal recebeu ordens superiores para não mais exigir de presos oriundos do DOPS de Seelig a anamnese, o histórico clínico do paciente anterior ao exame de corpo de delito. O objetivo era claro: convencer os médicos legistas a esquecer a fase de duro interrogatório aplicado pelo time do ‘Pedrão’.
Apesar do recato forçado, Seelig ganhou da imprensa o título de ‘Fleury dos Pampas’, seu sanguinário modelo do DOPS paulistano. A face violenta do delegado gaúcho está marcada pelas cicatrizes da Justiça na sua machucada folha funcional: em 1957, Seelig foi processado por crime de lesões corporais e, em 1958, por agressão. O momento mais difícil de sua carreira ocorrera em 1973, quando enfrentou uma CPI na Assembleia Legislativa e a ameaça de julgamento pelo Tribunal de Júri de Porto Alegre em processo de homicídio qualificado, acusado da morte por afogamento de seu filho adotivo, Luís Alberto Pinto Arébalo, de 17 anos.
Na manhã do dia 6 de fevereiro de 1973, suspeito de ter roubado uma pequena quantia em dinheiro de uma associação comunitária presidida por Seelig, o menor foi levado para uma das celas do DOPS para ganhar “um susto” – por ordem do pai adotivo. Passou por duas sessões de pancada na “fossa”, a principal sala de torturas no fundo do corredor do DOPS. Arébalo apanhou por meia hora. À tarde, ao ouvir a voz do delegado, chamou por ele. Seelig abriu a porta e se espantou com o que viu.
– O que fizeram contigo, cara? Não era pra fazer isso com o guri… – disse, olhando contrariado para três caras feias de sua equipe. Quando Seelig saiu, eles devolveram Arébalo à “fossa”. Mais vinte minutos de pau, desta vez enfiando uma mangueira de água na boca. O garoto se afogou, passou a noite agonizando, tremendo de frio, respirando mal, com dores no peito. Enrolado em um cobertor, suava diante de um grande ventilador ligado o tempo todo. Horas depois, mais machucado do que assustado, Arébalo foi transferido às pressas para o Hospital Sanatório Partenon. Sussurrou para a irmã Celsa, chefe do serviço de triagem do hospital:
– Aqueles caras me bateram…. Aqueles caras lá, né! – Morreu quatro horas depois, no dia 8 de fevereiro, e não foi de susto. O laudo de necropsia disse que Arébalo sucumbiu por “insuficiência respiratória aguda, consecutiva a afogamento parcial”, antecedida por traumas que debilitaram o jovem. O afogamento, escreveram osegistas, foi comprovado pela presença de plâncton mineral nos assustados pulmões do rapaz.
Arquivo Coojornal Ilustração Edgar Vasques Carlos Rodrigues
Arébalo, o filho de 17 anos, morreu afogado na tortura do DOPS: devia ser só um ‘susto’, rezava Seelig.
Indiferente a essas líquidas evidências, a maioria governista na CPI desensopou a denúncia e concluiu secamente – por quatro votos da ARENA governista contra três do MDB oposicionista – que Seelig poderia no máximo ser acusado de ‘abuso de autoridade’. Na Justiça, o juiz Luiz Carlos Castello Branco, alegando ‘falta de provas’, impronunciou o delegado. A defesa alegou que o ventilador assassino é que causou a pneumonia fatal no garoto. Emotivo, Seelig chorou perante a família e os amigos policiais. Humilde, dobrou-se diante dos fotógrafos dos jornais, persignado em um banco de igreja, e orou contrito na missa pela alma do finado filho adotivo. Parecia um pai devastado, não um delegado incriminado.
A mão amiga e verde-oliva
Seelig, no entanto, tinha mais fé na força terrena do que no conforto divino. Especialmente na força verde-oliva. Rosto compungido ainda de dor, pouco antes da sentença complacente do caso Arébalo, o delegado submeteu-se a uma reconfortante cerimônia castrense: a entrega solene pelo Exército da “Medalha do Pacificador”, honraria militar concedida sempre por indicação de um general e entregue apenas àqueles que se destacaram na luta contra a subversão. Ele tinha o amparo da força terrestre da ditadura, fiel ao seu lema: “Braço forte, mão amiga”.
Ricardo Chaves
Seelig e seu braço forte: o Exército vê o pacificador, não o torturador
O delegado, ao contrário do filho, era imune a sustos. Pedro Seelig era um dos intocáveis do regime. Depois do caso Arébalo, o delegado teve por duas vezes a refrescante sensação da boa imagem junto à opinião pública. Em 1974, quando ainda respondia ao processo por homicídio, Seelig comandou uma espetaculosa operação policial para libertar o estudante Alexandre Möeller das mãos de seus sequestradores. Depois que a família pagou o resgate, o garoto, de 13 anos, acabou sendo resgatado por agentes da Polícia Rodoviária Federal. Em 1977, em nova ação sensacional, Seelig coordenou as investigações sobre seis crianças de um bairro da capital, o Cristo Redentor, sequestradas pelo comerciário Santino Ferreira – mas o sequestrador, em outro desfecho frustrante para o delegado, acabou sendo preso por uma anônima patrulha da Brigada Militar.
Nessa época, o Internacional era o grande time do país, com Paulo Roberto Falcão, Paulo César Carpegiani, Batista, Manga e don Elias Figueroa. Para desespero dos gremistas, já acumulava o segundo título de campeão brasileiro de futebol. Era comum então encontrar Seelig, fanático torcedor colorado, nos vestiários do estádio Beira-Rio confraternizando com jogadores e dirigentes após as grandes vitórias, que ele assistia confortavelmente instalado em uma das cabines reservadas à imprensa
Durante o campeonato gaúcho de 1978, ele mesmo organizou o esquema de segurança do time colorado em alguns jogos mais arriscados do interior. O delegado circulava pelos corredores do DOPS e pelo gramado do Beira-Rio com muita familiaridade. Seu grande amigo e estrela principal do Inter, o meio-campo Falcão, era o terceiro melhor jogador do mundo em 1982 e 1983, segundo a revista inglesa World Soccer. O volante foi escalado em 2021 na melhor seleção brasileira de todos os tempos, ganhando a camisa 5 de um meio de campo de luxo que divide com Didi e Pelé, segundo a eleição de 170 jornalistas e narradores profissionais de esporte selecionados pela revista Placar.
Falcão tinha como procurador o então preparador físico do time, Reinaldo Jorge Salomão – filho de um cunhado de Seelig e também delegado do DOPS. O craque colorado retribuía sua presença no estádio visitando-o no DOPS.
– Olha, eu sou suspeito pra falar do Pedro, porque sou muito amigo dele. Conheci ele em 1972, no tempo em que o Salomão estava nos juvenis. Sou amigo dele desde 1974, quando às vezes eu ia lá na polícia. Até hoje a gente sai, vamos a festas juntos. Ele é bem relacionado – dizia Falcão, driblando com a elegância habitual as perguntas incômodas da imprensa.
O time do carcará
JB Scalco Olívio Lamas
Falcão e Seelig, dois amigos elegantes: só o craque não batia no seu local de trabalho
No futebol, ao contrário da leveza e classe de craque de Falcão, Seelig era um zagueiro de estilo duro e botocudo, que maltratava mais os adversários do que a bola. Como provaria depois no DOPS, gostava de bater. Por isso, alto e vigoroso, era o temido capitão do time de futebol da Secretaria de Segurança, nos idos de 1967. A família trazia a polícia no sangue: tinha uns dez ou doze parentes com o sobrenome Seelig servindo na corporação. Dava para formar um time – e formava.
A parentada integrava uma unida e exclusiva equipe doméstica chamada Carcará. Além do sobrenome, o que dava harmonia ao time era o lema – inspirado na música de 1965 de João do Valle – que atemorizava os adversários: “pega, mata e come”. O comissário de polícia Omar Seelig, primo-irmão de Pedro, definiu assim o time familiar para os repórteres Najar Tubino e Caco Schmidt, do semanário Coojornal, em 1979:
– No Carcará, do umbigo pra baixo é canela! Quando o cara não dá pau, a gente chama e diz: “Meu filho, qual é o teu negócio? Vai pra casa e bota uma sainha, vai…”
Passados 43 anos, essa corajosa reportagem de primeira página do bravíssimo semanário da Cooperativa dos Jornalista de Porto Alegre ainda é a única, solitária investigação sobre Seelig. O resto da imprensa calou-se, por quatro décadas, intimidada pela fama do personagem maior da tortura.
Arquivo CooJornal
A reportagem corajosa: um feito ainda inédito, passados 43 anos
No jogo bruto do DOPS, o estilo de atuação de Seelig ficou mais doloroso do que o do Carcará. Dos cabelos para baixo, tudo era canela, ninguém usava sainha, era puro pau. Em 1969, ao mesmo tempo em que nascia em São Paulo a Operação Bandeirantes, era criada em Porto Alegre a Divisão Central de Investigações (DCI). Quando a OBAN virou DOI-CODI, no ano seguinte, a DCI continuou ocupando o espaço central da repressão no sul. Na verdade, havia algumas diferenças.
Em São Paulo, o DOI-CODI, com a parceria do DOPS, fazia tudo – da análise das informações aos pedidos de busca e combate nas ruas, passando pela sangrenta fase de interrogatórios e torturas. Em Porto Alegre a DCI do coronel Attila Rohrsetzer processava as informações e coordenava o combate à subversão, mas delegava ao DOPS de Pedro Seelig o serviço sujo e perigoso – o suplício dos interrogatórios e as operações externas de combate. Embora formalmente ligada ao secretário de Segurança, a DCI se reportava diretamente ao comandante do III Exército e à 2ª Seção do Estado-Maior, ligados ao CIE em Brasília. O que o DOPS e o DOI-CODI somavam em São Paulo se concentrava em Porto Alegre, com vigor redobrado, na DCI e seu braço executor, o DOPS. Ou seja, o delegado Pedro Seelig era sozinho, em Porto Alegre, o que o delegado Sérgio Fleury e o coronel Brilhante Ustra representavam juntos em São Paulo em termos de truculência.
Os estádios dos torturados
Quase metade dos casos de tortura no Rio Grande do Sul que chegaram ao Superior Tribunal Militar (STM), instância máxima dos inquéritos contra presos políticos,aconteceu no quintal de trabalho de Seelig. Nunca se saberá o número exato de vítimas, porque nem todas as denúncias chegaram a Brasília. Segundo levantamento feito pelo projeto Brasil Nunca Mais, da Arquidiocese de São Paulo do cardeal Paulo Evaristo Arns, nos primeiros treze anos da ditadura – de 1964 a 1977 – houve 6.016 denúncias de torturas em todo o país, espalhadas ao longo de 707 processos julgados pelo STM.
Em uma simples conta aritmética, isso representa cerca de 8,5 denúncias de maus-tratos em cada causa levada ao tribunal. Quando o cardeal Arns acusou a ocorrência de 502 casos de tortura no DOI-CODI de São Paulo, o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, que comandou aquele inferno na fase mais dura, entre 1970 e 1974, ironizou:
– Não foram 502, foram mais de três mil pessoas que passaram lá. E ficam sempre inventando denúncias de torturas não comprovadas…
Nos 21 anos do regime militar brasileiro passaram 25 mil presos pelos cárceres da ditadura, que exilou outros dez mil. O Brasil Nunca Mais afirma que “dificilmente houve pessoas que passaram pelos processos de elaboração dos inquéritos policial-militares sem terem sido torturadas”. Se cada um desses presos representasse um processo, seria possível fazer uma estimativa assustadora sobre as fronteiras sempre imprecisas, ocultas, inóspitas da tortura. Nessa conta, segundo as projeções feitas sobre os números do STM, o Brasil contabilizaria 212 mil casos de tortura – o que lotaria quatro vezes a Arena ou o Beira-Rio, os estádios de Grêmio e Internacional, cada um com capacidade para 55 mil espectadores.
O quadro de denúncias formalizadas na Justiça Militar no período de 1964 a 1977 – mais da metade das duas décadas de ditadura – fotografa o endurecimento do regime ao longo do tempo. Em 1964, ano do golpe, houve 203 acusações de maus-tratos, número que se reduziu em 1965 (84 casos) e em 1966 (66 casos). Chegou ao seu ponto mais baixo em 1967 (50 casos) quando Costa e Silva sucedeu a Castello Branco. Voltou a subir em 1968 (85 casos) e em 1969 foi vinte vezes maior do que a marca de dois anos antes: 1.027 denúncias de tortura – segundo a meticulosa tese de mestrado de 2006 da historiadora da UFRGS Caroline Silveira Bauer – Avenida João Pessoa, 2050 – 3º andar: terrorismo de Estado e ação política do DOPS-RS (1964-1982).
O país tinha irrompido o ano já sob o império do AI-5, e 1969 acabou com o Brasil governado por uma patética junta militar, que ocupou por dois meses o vazio de poder provocado pelo derrame que matou Costa e Silva. O ano seguinte, 1970, que marca a promoção de Seelig como diretor da Divisão de Segurança Social do DOPS, registra também a estreia retumbante do general Médici e o ápice dos porões da repressão: foram 1.206 denúncias de tortura.
A taxa se manteve em nível elevado no período restante dos Anos de Chumbo: 788 denúncias de tortura em 1971, 749 em 1972 e 736 em 1973. Caiu dramaticamente no último ano de Médici, 1974, quando se registraram apenas 67 casos. A violência voltou a explodir em 1975, no primeiro ano do general Geisel no Planalto, com 585 casos de tortura – quase dez vezes mais do que o saldo do derradeiro ano de Médici no Planalto.
RS, maior concentração da tortura
Os parcos registros do STM assinalam apenas 122 denúncias de tortura no Rio Grande Sul nesses treze anos iniciais de ditadura. Embora distantes da realidade, os números mostram percentualmente o peso do DOPS de Seelig no terrorismo de Estado. Um total de 48 casos, 43% do total, se localizam nas dependências do segundo andar do Palácio da Polícia, quintal onde reinava Seelig e seus asseclas.
A pancadaria no DOPS de Seelig não era um exagero individual da repartição. Era uma prática institucional do regime, que acabava chancelando por cima o que se cometia por baixo. No mesmo período, o balanço do STM mostra outros 17 casos de torturas espalhados por sete quartéis diferentes de guarnições do Exército em quatro cidades distintas do Rio Grande do Sul – Livramento, Santo Ângelo, Cruz Alta e Porto Alegre. Trinta denúncias de tortura atingiram quartéis da Brigada Militar em Passo Fundo, Três Passos e na capital gaúcha.
A extensa fronteira seca do Rio Grande do Sul com o Uruguai e Argentina e o fato dos principais líderes depostos em 1964 terem se asilado em solo uruguaio explicam, historicamente, a alta concentração militar que fez do III Exército (hoje Comando do Sul) a guarnição mais poderosa do país, com as unidades reforçadas –especialmente Santa Maria, no centro do Estado, sede do maior destacamento blindado e de uma importante base aérea, com dois esquadrões aéreos de caça AMX, outro de helicópteros Black Hawk e um de aeronaves não tripuladas.
Ainda assim, é surpreendente que esteja no Rio Grande do Sul a maior concentração de instalações identificadas pela Comissão Nacional da Verdade como centros de tortura ou, na elegante terminologia da CNV, “locais de graves violações de direitos humanos (1964-1985)”. Os 230 centros revelados no país se espalham por 23 Estados (as exceções são Mato Grosso, Acre, Rondônia e Roraima) e o RGS é o primeiro da lista, com 39 locais de tortura, superando até mesmo o Rio de Janeiro (38) e São Paulo (26).
Veja o mapa da CNV:
Relatório CNV, Volume I, Cap. 15, pg 830
RS, campeão nacional de centros de tortura: o DOPS de Seelig é o maior e mais sangrento dos 39 no Estado
O trio parada dura de Seelig
É impossível dimensionar, com precisão, o tamanho do circo de horrores que Seelig imprimiu, com sangue, suor e lágrimas, na carne e na alma de tanta gente que passou por suas mãos. Nessa tarefa desalmada, teve ao seu lado um trio diabólico de policiais truculentos que obedeciam cegamente suas ordens e o poupavam de maiores esforços físicos. Os outros batiam por ele, mas seu perfume angustiante estava sempre ali, na sala de torturas, pairando acima dos corpos, excitando os comparsas, envenenando o ambiente de miséria e terror.
O trio era formado por três inspetores: Nilo Hervelha, Nelson Pires e Itacy Vicente, que atendia pelo sugestivo apelido de ‘Mão-de-Ferro’. Todos os três foram parceiros na sessão de tortura no DOPS com mangueira e ventilador que levou o jovem Arébalo à morte, após o ‘susto’ ordenado por Seelig, seu devotado pai adotivo.
O pior deles era Hervelha, codinome ‘Silvestre’, considerado o mais sádico e violento de um trio temido pelos sobressaltados frequentadores, nada voluntários, daquele martírio em terra gaúcha. Hervelha tanto fez e aconteceu, sob as ordens de Seelig, que acabou arranjando um lugar na lista de 377 torturadores do relatório final da CNV: é o número 318.
Bernardo Jardim Ribeiro/Sul21 Correio do Povo
João Carlos Bona Garcia e seu torturador
João Carlos Bona Garcia era um jovem de 24 anos, militante da Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), quando foi preso em abril de 1970 na feroz blitz da repressão desencadeada duas semanas após o frustrado sequestro do cônsul dos Estados Unidos. Foi levado diretamente para o DOPS de Seelig. Ele lembrou sua agonia no livro de memórias, Verás que um filho teu não foge à luta, lançado em 1989:
Entrei encapuzado e quando me tiraram o capuz vi sangue nas paredes, sangue no piso, pessoas ensanguentadas jogadas no chão e se arrastando, rostos inchados, corpos cheios de marcas e feridas, olhos em fogo, bocas contraídas mostrando coágulos no lugar dos dentes, gemidos e soluços, uivos de dor. Lembrei imediatamente do matadouro. Tive a sensação de estar num matadouro de gente.
No dia seguinte, marcado pelas queimaduras de ponta de cigarro, Bona Garcia foi levado para a “fossa”, a mesma sala do DOPS onde Arébalo começou a morrer. Bona Garcia conta:
Havia um gerador elétrico manual, a ‘maricota’, para dar choques elétricos. Conforme a velocidade na manivela, a voltagem ia subindo, até mais de trezentos volts (…) Foram me amarrando fios nas orelhas e dando choques na cabeça. A primeira vez dá uma sensação terrível. Com o choque nas orelhas se perde a visão, na hora fica tudo escuro (…) O pessoal da polícia ficava à volta, enlouquecido, gritando de prazer. Especialmente o Nilo Hervelha. Era o mais sádico, um dos piores torturadores, o mais cruel. Era também ligado ao tráfico de drogas. Durante as torturas chegava ao orgasmo. (…) Já o major Attila Rohrsetzer mostrava uma volúpia especial torturando mulheres. Especialmente nos seios e órgãos genitais.
Seelig e Hervelha devem ter ficado perplexos com os caprichos da História que, em apenas duas décadas, viraram o mundo de Bona Garcia de cabeça para baixo.
Na ditadura, Bona Garcia era assaltante de banco, terrorista e inimigo dos militares. Participou de duas ações da VPR atacando os carros pagadores do Banco do Brasil e do Bradesco. Foi banido do país, em janeiro de 1971, no grupo de setenta esquerdistas enviados para o Chile de Salvador Allende em troca do embaixador da Suíça, Giovanni Bücher, sequestrado no Rio de Janeiro por um comando da VPR liderado por Carlos Lamarca.
Na democracia, o ex-assaltante de banco virou executivo de banco. Em 1998, foi diretor do Banrisul, o banco estatal gaúcho, e presidente do Sindicato dos Bancos do Rio Grande do Sul. No regime civil, o subversivo caçado pela repressão, odiado pelos quartéis e banido pela ditadura virou subchefe da Casa Civil em 1986 do governador Pedro Simon e chefe da Casa Civil em 1998 do governador Antônio Britto. Acabou juiz da corte militar gaúcha no mesmo ano: o inacreditável ex-preso político e ex-torturado Bona Garcia sobreviveu a Seelig e a Hervelha e chegou em 2002 à presidência do Tribunal de Justiça Militar do Rio Grande do Sul. Morreu em 2021, aos 74 anos, vítima da covid-19.
Igor Sperotto/ExtraClasse Correio do Povo
Nilce Azevedo Cardoso e seu torturador
– Tira a roupa! – foi a primeira frase que a moça de 27 anos ouviu, no DOPS, logo após ser sequestrada em uma parada de ônibus no centro de Porto Alegre, na manhã de 11 de abril de 1972. Nilce Azevedo Cardoso, uma paulista que sonhava ser bailarina, ingressou na faculdade de Física quando a violência atravessou sua vida: “Entrei na USP em 1964 e, junto comigo, entraram os tanques do Exército”, dizia. No fim da década de 60 mudou-se para a capital gaúcha, já como militante da Ação Popular (AP), ligada à Igreja Católica. Em depoimento à Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa gaúcha, em 1997, ela contou:
O delegado Pedro Seelig, junto com Nilo Hervelha e outros, arrancou minhas roupas. Perguntaram meu nome e eu disse: Nilce Azevedo Cardoso. Vieram então socos de todos os lados. Insistiram na pergunta, com socos na boca do estômago e do tórax. Mal podendo falar, eu disse que meu nome estava na carteira de identidade. Aumentou a violência. Ligaram fios e vieram os choques. Fiquei muda daí para a frente
Seelig mandou levar Nilce Cardoso para o pau-de-arara
Eram pontapés na cabeça e choques por todo o corpo. Minha indignação cresceu violentamente quando resolveram queimar minha vagina e meu útero. Enfiaram os fios e deram muitos choques. A dor, raiva, ódio, misturados com um sentimento de impotência, criaram-me um quadro assustador. E eu seguia muda. A raiva era tanta que eu não conseguia gritar (…). Quando eu pensava que estava morrendo, eles me tiraram dali (…).
Quando acharam que já estava melhor, eles me penduraram novamente. O meu sangue jorrava e eles enfiaram a mão pela minha vagina com jornais. Colocaram uma bacia no chão e o sangue continuava a cair. Molharam meu corpo e me arrebentaram com socos e choques. Não sei quanto tempo isso durou nem quantas vezes aconteceu esse ritual macabro. Assombrava-me ao perceber que, nos intervalos, eles comiam, conversavam, como se há instantes não estivessem cometendo aquelas atrocidades.
Nilce sofreu uma parada cardíaca. Ao tentar reanimá-la os policiais do DOPS acabaram provocando um esmagamento do seio e uma fratura no tórax. Foi levada para o Hospital Militar, ficou lá oito dias em coma. Depois voltou para o DOPS. Foi transferida para o DOI-CODI de Brilhante Ustra, em São Paulo, para novas sessões de pancada.
Voltou ao Sul e só escapou daquela tormenta de seis meses de suplício com o alvará de soltura, em julho de 1972. Tornou-se psicopedagoga e militante dos direitos humanos, trabalhando na Clínica do Testemunho, projeto que acolhe sobreviventes da ditadura, como ela. Morreu no dia 21 de fevereiro passado, aos 77 anos, 15 dias antes de Pedro Seelig.
O pintor pré-morto
Paulo Mello era um pacato pintor na praia de Xangri-lá, no litoral gaúcho, até ser preso em outubro de 1973. O DOPS não esquecera que meses antes ele integrava o MR-26, o movimento clandestino que o ex-sargento Manoel Raimundo Soares tentou infiltrar nos quartéis antes de aparecer boiando e com as mãos amarradas às costas nas águas do rio Jacuí. Foi recebido efusivamente no DOPS de Porto Alegre por Nilo Hervelha, que berrava enquanto o espancava:
– Brizolista! Comunista! Vais morrer nas minhas mãos, me fizeste de bobo muitas vezes!
O ex-tenente do Exército José Wilson da Silva, assessor de Leonel Brizola antes do golpe, relata no livro O tenente vermelho, de 1987, o que aconteceu com Paulo Mello:
Na primeira noite Pedro Seelig voltou para ver como andava o “serviço”. A sessão era debaixo da maior pancadaria. No segundo dia foi para a ‘fossa’, um cubículo sujo, escuro, com muitas marcas de sangue que Hervelha fazia questão de mostrar que tinha sido de outra pessoa que “quis bancar a durona”. (…) No “tratamento” junto com choques elétricos eram-lhe aplicados murros na cara e pauladas nas costas. Quebraram-lhe a boca várias vezes, passou pelo “telefone”, sangrava muito pelo nariz e ouvidos, o corpo todo inchado. Mesmo assim, não cedendo ao desejo das bestas, colocaram-no no pau-de-arara(…).
Num dia em que as forças estavam lhe faltando, chamaram o médico (…). [O médico] examinou-o, deu-lhe um remédio e disse a Seelig que não o espancasse mais, que o estado [de Mello] era de pré-morte.
Os boatos de que havia morrido debaixo de pau obrigaram o DOPS de Seelig a provar que Paulo Mello estava, ao menos, semivivo. Decidiram quebrar sua incomunicabilidade e permitir uma única visita – da mulher e do filho. Antes tiveram o cuidado de lavar e limpar o preso para lhe dar um aspecto mais apresentável. Não adiantou.
Ele surgiu diante da família com sangue purgando pelos ouvidos, olhos e nariz, além de hematomas no corpo. Ao ver o pai naquele estado, mais pré-morto do que semivivo, o filho sentiu-se mal. Teve que ser atendido por um médico. O pintor e ex-guerrilheiro foi libertado condicionalmente em 1975. Estava com os rins destroçados, os ouvidos rompidos, os nervos em frangalhos. Sofreu um derrame cerebral, ficou com o lado esquerdo do corpo paralisado. Paulo Mello nunca mais pintou.
DOI-CODI rejeita torturado do DOPS
Hilário Gonçalves Pinha, dirigente do PCB no Sul, foi preso em março de 1975 pelo Exército. Passou um mês incomunicável, mas ileso, na Polícia Federal e daí foi entregue ao DOPS de Seelig. Seu calvário começou ali, numa equipe de torturadores que incluía o irremediável Nilo Hervelha, o bate-estaca de Seelig. Pinha passou por sessões de afogamento, choque elétrico e pancada. Teve a barriga pisoteada, quatro costelas quebradas e os intestinos e o fígado rompidos em várias partes. Na madrugada de 24 de abril, desmaiado, com o abdômen inchado pela mistura de seis quilos de sangue e fezes, Pinha foi transportado pelo DOPS de Seelig até a base aérea de Canoas, requisitado pela Justiça Militar de São Paulo.
O estado dele era tão deplorável que o piloto da FAB, um oficial da Aeronáutica, exigiu uma prévia inspeção médica do paciente e o acompanhamento de um enfermeiro militar no voo. O preso estava tão machucado que nem o DOI-CODI de São Paulo quis receber aquela mercadoria tão estragada, ainda sem assistência médica. Ao ser transferido para o DOI-CODI de Ustra, o chefe do Estado-Maior do II Exército, general Antônio Ferreira Marques, exigiu um ofício atestando as condições deploráveis do preso remetido pelo DOPS de Seelig. O médico do DOI-CODI o mandou para o pronto-socorro e lá perceberam que ele precisava de uma cirurgia de emergência. Acabou sofrendo cinco intervenções cirúrgicas no abdômen no prazo de um mês no Hospital das Clínicas. Perdeu 80% dos intestinos e a capacidade de trabalhar. Devolvido a Porto Alegre em julho de 1975, Pinha foi submetido a mais quatro cirurgias no abdômen no Hospital Militar.
Em 1979, entrou com uma inédita ação pelas torturas sofridas. Em dezembro de 1981, o juiz Moacir Álvares, da 2ª Vara Federal de Porto Alegre, condenou a União como responsável pelos danos físicos produzidos pela tortura em Hilário Pinha. Foi o primeiro preso político do país a ter reconhecido o direito à indenização pelos maus-tratos da ditadura. Hilário Pinha morreu de câncer em Porto Alegre em 2006. Tinha 79 anos.
Naquela manhã de agosto de 1971, a estudante de Economia da UFRGS Marinês Grando, às vésperas de completar 24 anos, só conhecia a fama de truculência do inspetor Nilo Hervelha. Seria apresentada minutos depois ao seu estilo de trabalho, ao ser arrastada para um Fusca estacionado na avenida Salgado Filho, no centro de Porto Alegre, onde encontrou o companheiro preso cinco dias antes. Começou a apanhar já no banco de trás do carro, no curto trajeto de dez minutos até o DOPS de Seelig.
Hervelha lhe dava tapas no rosto e socos nos seios. Ao descer do carro foi levada ao segundo andar, passou por uma espécie de guichê e ingressou em uma sala grande, sem móveis, sem janela. Ali tudo escureceu. Sua cabeça foi coberta com um capuz, que dificultava a respiração com o forte fedor do vômito de presos anteriores. Ela foi despida e ficou por algumas horas em pé, rodando como pião sob gritos, ameaças, piadas obscenas e pontapés no traseiro. De repente, mudou o cenário.
Marinês, sempre encapuzada, foi levada através de um corredor com salas menores de um lado e outro e, no final, um banheiro. A superpopulação de presos obrigara o DOPS a transformar algumas salas em celas, onde jogaram colchões no chão para os presos dormirem, sempre com a luz acesa. Chegou enfim à sala de interrogatório – e a escuridão do capuz foi subitamente trocada pelo clarão ofuscante do holofote jogado sobre seu corpo nu, que tremia de frio, vergonha e medo.
Arquivo pessoal Correio do Povo
Marinês Grando e seu torturador
O holofote libidinoso na ruiva nua
Com cabelos ruivos e lisos, Marinês tinha pele clara, um rosto fino e uma fisionomia triste. Sob o brilho do holofote, ela percebia o intenso vai-e-vem na sala, como contou ao autor deste texto, em depoimento em 2008 para o livro Operação Condor: o Sequestro dos Uruguaios:
O interrogatório se prolongou pela noite adentro com muitas presenças, todas masculinas, todos agitados, entrando e saindo pela única porta daquela sala claustrofóbica, sem janelas. Eles todos no escuro e eu, nua, sob os holofotes. Diziam que queriam ver como era uma mulher ruiva, riam e batiam palmas. Na escuridão do lado de lá dava para eu distinguir a figura bem trajada do delegado Pedro Seelig, posicionado diante do bando de machos excitados e à frente do interrogatório.
Agitados pela rara visão daquela bela mulher de curvas bem delineadas no esplendor de seus 24 anos, toda nua e toda ruiva, eles se divertiam. Marinês chegoua pensar que seria estuprada, pelo grau de excitação no ar, mas ninguém a tocou. No limite entre a luz e a treva, o delegado Seelig, de terno e gravata, parecia controlar o foco de luz do holofote que lambia, libidinoso, o seu corpo indefeso.
Naquele teatro que misturava violência e degradação, Seelig fazia o papel do brincalhão, tentando se mostrar gentil e afável em meio a tanta sordidez. Durante todo o tempo, entre risos e piadinhas, Marinês ouvia perguntas sobre o POC (Partido Operário Comunista), suas ligações políticas e a atuação do grupo junto ao movimento estudantil.
Quando o show terminou, o holofote foi desligado e ela colocada em uma cela com outra mulher, uma paulista da luta armada que havia sido violentada nos cárceres do DOI-CODI de Ustra. Estava toda arrebentada pela tortura e, ainda assim, era ‘tratada’ por um médico do DOPS para aguentar a sessão seguinte de suplício. Desestruturada pela violência, ela imediatamente procurou o colo de Marinês. Embora adulta, a jovem encolhida em posição fetal comportava-se como um bebê desamparado, em busca do conforto materno.
A expressão melancólica de Marinês ficou ainda mais triste.
Na quinta-feira, 12, dois policiais levaram Marinês de volta ao seu apartamento. Entraram com a chave da presa e reviraram tudo, recolhendo alguns livros e deixando para trás tudo bagunçado. No dia seguinte Marinês completou 24 anos. A notícia se espalhou pelos corredores e celas do departamento. Todo mundo queria ver, de perto, aquela moça azarada que fazia aniversário em uma sexta-feira, 13 de agosto – e ainda presa no DOPS.
Marinês foi liberada quarenta dias após sua prisão. Ela saiu da cadeia enquadrada na Lei de Segurança Nacional, com hematomas na alma mais fundos que as dores no corpo. Ela perdeu o emprego na clínica médica onde trabalhava. Não houve explicação. Nem precisava.
Em liberdade, continuava vigiada e seguida a todo momento. Certo dia, em uma rua meio deserta do bairro Floresta, um sujeito de uns 25 anos se aproximou e lhe falou ao pé do ouvido:
– Eu te vi nua, eu te vi nua, eu te vi nua!…
Era um dos “machos do DOPS de Seelig”, que ela não reconhecia. Marinês saiu dali correndo, apavorada. Perdeu todas as cadeiras do semestre no curso da faculdade. Amigos esfumaram-se, parentes afastaram-se. Conseguiu um emprego provisório em um órgão de pesquisa estadual. Meses depois ele tornou-se a Fundação de Economia e Estatística (FEE), vinculada à Secretaria de Planejamento estadual, que a contratou como economista em 1974. Três anos mais tarde, ela fazia um doutorado na Universidade de Paris I quando se viu, inesperadamente, no centro da guerra de estrelas em Brasília entre Geisel e Frota.
Marinês era um dos 97 “comunistas” infiltrados na administração pública, segundo a lista dedo-duro que o general Sylvio Frota, ministro do Exército, divulgou na tarde de 12 de outubro de 1977, horas depois de ser demitido pelo presidente Ernesto Geisel. Nove nomes da lista atuavam no Rio Grande do Sul, quatro deles eram economistas na FEE – entre os quais Marinês Grando e uma colega chamada Dilma Rousseff. Marinês só não foi demitida, como os outros três, porque estudava na França, protegida por um acordo internacional que lhe garantia ficar por lá até a poeira baixar. Ela só voltou da França em outubro de 1978 – sete anos após sua prisão, às vésperas da anistia.
O tour de terror de Seelig
O DOPS de Seelig estava em temporada de caça ao POC, integrado por Marinês. O DOPS localizou três ‘aparelhos’ da organização em Porto Alegre e prendeu 30 militantes, entre eles sete universitários das federais de Porto Alegre e Santa Maria. Um dos comandantes do POC era casado com a secretária de um dos jornalistas mais famosos do Rio Grande e do Brasil: Paulo Totti, 33 anos, o respeitado chefe da sucursal da revista Veja em Porto Alegre, que depois teria fulgurante carreira em São Paulo e Rio, nas redações de Veja, Gazeta Mercantil, Jornal do Brasil, O Globo e Valor Econômico. Seelig avisou a sucursal que queria ouvir Totti, naquele momento fazendo uma cobertura jornalística na Argentina. “É um simples esclarecimento de rotina, coisa rápida”, tranquilizou Seelig.
Quando Totti voltou a Porto Alegre, na manhã de terça-feira, 10 de agosto de 1971, lá estavam no aeroporto a mulher e os dois filhos, de sete e quatro anos – e um cidadão elegante de terno, gravata e cabelos grisalhos, que ele não conhecia, mas se apresentou:
– Sou o delegado Pedro Seelig, do DOPS. Tu estás convidado a ir até lá hoje à tarde – falou, com a fidalguia de um recepcionista que dá as boas-vindas ao turista recém-chegado. Simpático, passou a mão na cabeça dos dois filhos de Totti, de sete e quatro anos, voltou a encará-lo e elogiou:. – Teus filhos são muito bonitos. E não falte, hein?
Ricardo Chaves Correio do Povo
Paulo Totti e seu torturador
À tarde, atendendo ao cordial convite de Seelig, Totti se apresentou no DOPS acompanhado pelo gerente da Editora Abril, Michel Barzilai. A dupla foi recebida cortesmente por Seelig, que os levou até sua sala, no segundo andar do DOPS. O delegado voltou a dizer que precisava de Totti para responder apenas algumas perguntas, que exigiriam só algumas horas de permanência ali.
– Ele será bem tratado – tranquilizou.
No embalo, escancarando um sorriso, Barzilai tentou ajudar:
– O Totti só pensa em trabalhar, delegado. Ele é um cara pacífico…
Seelig emendou, retribuindo o sorriso:
– Todos dizem isso, mas tu precisas ver os trabucões que eles usam – replicou, sem esclarecer quem eram “eles”. Barzilai ainda sorria quando o delegado o levou até a porta e o despediu com um abraço e um rijo aperto de mão. Mal fechou a porta, ao se virar Seelig já se transformara. Totti se levantava da cadeira quando o sorriso do delegado simpático à porta se desfez de repente. Seelig, de rosto crispado, aproximou-se e lhe desferiu uma violenta cutilada no ombro esquerdo. O golpe inesperado com a parte externa da mão direita do policial atirou Totti de volta à cadeira. A pancada doeu. Totti ficou surpreso com a violência repentina. Seelig sorriu:
– O que é isso, Totti? Não me leve a mal. É só pra mostrar que aqui a coisa é mais dura do que parece…
– Vou te mostrar nossas instalações – emendou o delegado, percorrendo os corredores do DOPS com o orgulho de quem mostra o conforto de um estabelecimento cinco estrelas. Apresentou as celas e uma delas, no final de uma sala grande, escancarou o inferno daquela hospedaria fora de catálogo: havia dois presos ali, pendurados no pau-de-arara como dois frangos expostos na vitrine.
Um deles era uma mulher pequena, encolhida, totalmente nua, que soluçava em um ritmo cansado. Ignês Maria Serpa de Oliveira, 21 anos, a Martinha da VAR-Palmares, estava naquele antro há quatro meses. Parecia ter chorado muito, durante muito tempo, e o soluço agora era sua última demonstração de alento. Seelig nem olhou para ela. Perguntou ao sujeito que estava ao lado, comandando o interrogatório:
– Tudo bem aí? Alguma novidade? – falou, como quem confere mecanicamente a mercadoria na prateleira. O homem respondeu com um grunhido, que soou como um “até agora, nada”, e Seelig entendeu. Fechou a porta e conduziu Totti para uma nova atração da casa: abriu a porta de outra sala e, com um gesto de mão, mostrou a cena à sua frente. Um homem no pau-de-arara, com a cueca vermelha de sangue. Na cadeira ao lado, outro preso, sentado, com os pés amarrados e fios enrolados em torno dos dedos. Tinha o rosto todo machucado, um dos olhos parecia saltar da órbita ensanguentada.
A visitação parecia ter chegado ao fim. Seelig levou Totti a uma cela onde havia mais duas pessoas e um beliche. Apontou para a parte superior da cama: – Tu vais ficar aqui, por enquanto. Amanhã vamos conversar. Acho que não vou precisar te levar para aquelas celas que visitamos há pouco, né? – disse, em tom que fundia ironia e ameaça.
Totti na “cadeira do dragão”
Nada aconteceu no resto do dia. Na manhã seguinte, quarta-feira, 11, Seelig voltou. Pediu que Totti descrevesse toda a sua vida, contasse o que pensava da política, do governo, do regime.
A “cadeira do dragão” é uma cadeira pesada, com assento, apoio dos braços e espaldar revestidos de zinco. Os pés e os pulsos de quem ali senta são amarrados e as pernas empurradas para trás por uma travessa de madeira. Na parte traseira existe um terminal onde se acopla o magneto que transmite a corrente elétrica, gerada manualmente pela manivela conectada a um dínamo. A “pimentinha” dos torturadores ardia no corpo dos torturados, graças aos cem volts que produziam uma corrente de dez amperes. Uma voltagem duas vezes menor já produz fibrilação ventricular. Com a pele molhada ou a voltagem aplicada diretamente na pele por eletrodos, uma carga de apenas quarenta volts pode ser letal. Um choque de meros dezesseis volts, aplicados diretamente no coração, leva à morte. A ponta dos fios conectados ao dínamo era fixada em pontos sensíveis do corpo – como o mamilo, situado exatamente sobre o músculo cardíaco. (Continua)
"Carta ao Povo de Deus" denuncia os desmandos do governo e retoma a defesa dos direitos humanos que caracterizam a Igreja da Teologia da Libertação ...
Igreja Católica encabeçada por Dom Paulo Evaristo Arns, Pedro Casaldáliga e Helder Câmara teve papel relevante na luta pelos direitos humanos e pela democracia durante a ditadura militar. Em tempos de grave autoritarismo como o que vivemos, a Igreja católica resolveu se manifestar novamente. No texto, chamado de “Carta ao Povo de Deus”, os bispos dizem que o Brasil atravessa um dos momentos mais difíceis de sua história, vivendo uma “tempestade perfeita”. Ela combinaria uma crise sem precedentes na saúde e um “avassalador colapso na economia” com a tensão sofre “fundamentos da República, provocada em grande medida pelo Presidente da República [Jair Bolsonaro] e outros setores da sociedade, resultando numa profunda crise política e de governança”
O documento critica “discursos anticientíficos, que tentam naturalizar ou normalizar o flagelo dos milhares de mortes pela COVID-19” e chama a atenção para o “caos socioeconômico que se avizinha, com o desemprego e a carestia que são projetados para os próximos meses, e os conchavos políticos que visam à manutenção do poder a qualquer preço. Esse discurso não se baseia nos princípios éticos e morais, tampouco suporta ser confrontado com a Tradição e a Doutrina Social da Igreja.”
A Igreja Católica retoma sua tradição profética, tão valorizada pela Teologia da Libertação, e junta sua voz ao movimentos sociais e democráticos que lutam contra as políticas de morte comandadas pelo governo Bolsonaro.
“Carta ao Povo de Deus”
“Somos bispos da Igreja Católica, de várias regiões do Brasil, em profunda comunhão com o Papa Francisco e seu magistério e em comunhão plena com a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, que no exercício de sua missão evangelizadora, sempre se coloca na defesa dos pequeninos, da justiça e da paz. Escrevemos esta Carta ao Povo de Deus, interpelados pela gravidade do momento em que vivemos, sensíveis ao Evangelho e à Doutrina Social da Igreja, como um serviço a todos os que desejam ver superada esta fase de tantas incertezas e tanto sofrimento do povo.
Evangelizar é a missão própria da Igreja, herdada de Jesus. Ela tem consciência de que “evangelizar é tornar o Reino de Deus presente no mundo” (Alegria do Evangelho, 176). Temos clareza de que “a proposta do Evangelho não consiste só numa relação pessoal com Deus. A nossa reposta de amor não deveria ser entendida como uma mera soma de pequenos gestos pessoais a favor de alguns indivíduos necessitados […], uma série de ações destinadas apenas a tranquilizar a própria consciência. A proposta é o Reino de Deus […] (Lc 4,43 e Mt 6,33)” (Alegria do Evangelho, 180). Nasce daí a compreensão de que o Reino de Deus é dom, compromisso e meta.
É neste horizonte que nos posicionamos frente à realidade atual do Brasil. Não temos interesses político-partidários, econômicos, ideológicos ou de qualquer outra natureza. Nosso único interesse é o Reino de Deus, presente em nossa história, na medida em que avançamos na construção de uma sociedade estruturalmente justa, fraterna e solidária, como uma civilização do amor.
O Brasil atravessa um dos períodos mais difíceis de sua história, comparado a uma “tempestade perfeita” que, dolorosamente, precisa ser atravessada. A causa dessa tempestade é a combinação de uma crise de saúde sem precedentes, com um avassalador colapso da economia e com a tensão que se abate sobre os fundamentos da República, provocada em grande medida pelo Presidente da República e outros setores da sociedade, resultando numa profunda crise política e de governança.
Este cenário de perigosos impasses, que colocam nosso País à prova, exige de suas instituições, líderes e organizações civis muito mais diálogo do que discursos ideológicos fechados. Somos convocados a apresentar propostas e pactos objetivos, com vistas à superação dos grandes desafios, em favor da vida, principalmente dos segmentos mais vulneráveis e excluídos, nesta sociedade estruturalmente desigual, injusta e violenta. Essa realidade não comporta indiferença.
É dever de quem se coloca na defesa da vida posicionar-se, claramente, em relação a esse cenário. As escolhas políticas que nos trouxeram até aqui e a narrativa que propõe a complacência frente aos desmandos do Governo Federal, não justificam a inércia e a omissão no combate às mazelas que se abateram sobre o povo brasileiro. Mazelas que se abatem também sobre a Casa Comum, ameaçada constantemente pela ação inescrupulosa de madeireiros, garimpeiros, mineradores, latifundiários e outros defensores de um desenvolvimento que despreza os direitos humanos e os da mãe terra. “Não podemos pretender ser saudáveis num mundo que está doente. As feridas causadas à nossa mãe terra sangram também a nós” (Papa Francisco, Carta ao Presidente da Colômbia por ocasião do Dia Mundial do Meio Ambiente, 05/06/2020).
Todos, pessoas e instituições, seremos julgados pelas ações ou omissões neste momento tão grave e desafiador. Assistimos, sistematicamente, a discursos anticientíficos, que tentam naturalizar ou normalizar o flagelo dos milhares de mortes pela COVID-19, tratando-o como fruto do acaso ou do castigo divino, o caos socioeconômico que se avizinha, com o desemprego e a carestia que são projetados para os próximos meses, e os conchavos políticos que visam à manutenção do poder a qualquer preço. Esse discurso não se baseia nos princípios éticos e morais, tampouco suporta ser confrontado com a Tradição e a Doutrina Social da Igreja, no seguimento Àquele que vê io “para que todos tenham vida e a tenham em abundância” (Jo 10,10).
Analisando o cenário político, sem paixões, percebemos claramente a incapacidade e inabilidade do Governo Federal em enfrentar essas crises. As reformas trabalhista e previdenciária, tidas como para melhorarem a vida dos mais pobres, mostraram-se como armadilhas que precarizaram ainda mais a vida do povo. É verdade que o Brasil necessita de medidas e reformas sérias, mas não como as que foram feitas, cujos resultados pioraram a vida dos pobres, desprotegeram vulneráveis, liberaram o uso de agrotóxicos antes proibidos, afrouxaram o controle de desmatamentos e, por isso, não favoreceram o bem comum e a paz social. É insustentável uma economia que insiste no neoliberalismo, que privilegia o monopólio de pequenos grupos poderosos em detrimento da grande maioria da população.
O sistema do atual governo não coloca no centro a pessoa humana e o bem de todos, mas a defesa intransigente dos interesses de uma “economia que mata” (Alegria do Evangelho, 53), centrada no mercado e no lucro a qualquer preço. Convivemos, assim, com a incapacidade e a incompetência do Governo Federal, para coordenar suas ações, agravadas pelo fato de ele se colocar contra a ciência, contra estados e municípios, contra poderes da República; por se aproximar do totalitarismo e utilizar de expedientes condenáveis, como o apoio e o estímulo a atos contra a democracia, a flexibilização das leis de trânsito e do uso de armas de fogo pela população, e das leis do trânsito e o recurso à prática de suspeitas ações de comunicação, como as notícias falsas, que mobilizam uma massa de seguidores radicais.
O desprezo pela educação, cultura, saúde e pela diplomacia também nos estarrece. Esse desprezo é visível nas demonstrações de raiva pela educação pública; no apelo a ideias obscurantistas; na escolha da educação como inimiga; nos sucessivos e grosseiros erros na escolha dos ministros da educação e do meio ambiente e do secretário da cultura; no desconhecimento e depreciação de processos pedagógicos e de importantes pensadores do Brasil; na repugnância pela consciência crítica e pela liberdade de pensamento e de imprensa; na desqualificação das relações diplomáticas com vários países; na indiferença pelo fato de o Brasil ocupar um dos primeiros lugares em número de infectados e mortos pela pandemia sem, sequer, ter um ministro titular no Ministério da Saúde; na desnecessária tensão com os outros entes da República na coordenação do enfrentamento da pandemia; na falta de sensibilidade para com os familiares dos mortos pelo novo coronavírus e pelos profissionais da saúde, que estão adoecendo nos esforços para salvar vidas.
No plano econômico, o ministro da economia desdenha dos pequenos empresários, responsáveis pela maioria dos empregos no País, privilegiando apenas grandes grupos econômicos, concentradores de renda e os grupos financeiros que nada produzem. A recessão que nos assombra pode fazer o número de desempregados ultrapassar 20 milhões de brasileiros. Há uma brutal descontinuidade da destinação de recursos para as políticas públicas no campo da alimentação, educação, moradia e geração de renda.
Fechando os olhos aos apelos de entidades nacionais e internacionais, o Governo Federal demonstra omissão, apatia e rechaço pelos mais pobres e vulneráveis da sociedade, quais sejam: as comunidades indígenas, quilombolas, ribeirinhas, as populações das periferias urbanas, dos cortiços e o povo que vive nas ruas, aos milhares, em todo o Brasil. Estes são os mais atingidos pela pandemia do novo coronavírus e, lamentavelmente, não vislumbram medida efetiva que os levem a ter esperança de superar as crises sanitária e econômica que lhes são impostas de forma cruel. O Presidente da República, há poucos dias, no Plano Emergencial para Enfrentamento à COVID-19, aprovado no legislativo federal, sob o argumento de não haver previsão orçamentária, dentre outros pontos, vetou o acesso a água potável, material de higiene, oferta de leitos hospitalares e de terapia intensiva, ventiladores e máquinas de oxigenação sanguínea, nos territórios indígenas, quilombolas e de comunidades tradicionais (Cf. Presidência da CNBB, Carta Aberta ao Congresso Nacional, 13/07/2020).
Até a religião é utilizada para manipular sentimentos e crenças, provocar divisões, difundir o ódio, criar tensões entre igrejas e seus líderes. Ressalte-se o quanto é perniciosa toda associação entre religião e poder no Estado laico, especialmente a associação entre grupos religiosos fundamentalistas e a manutenção do poder autoritário. Como não ficarmos indignados diante do uso do nome de Deus e de sua Santa Palavra, misturados a falas e posturas preconceituosas, que incitam ao ódio, ao invés de pregar o amor, para legitimar práticas que não condizem com o Reino de Deus e sua justiça?
O momento é de unidade no respeito à pluralidade! Por isso, propomos um amplo diálogo nacional que envolva humanistas, os comprometidos com a democracia, movimentos sociais, homens e mulheres de boa vontade, para que seja restabelecido o respeito à Constituição Federal e ao Estado Democrático de Direito, com ética na política, com transparência das informações e dos gastos públicos, com uma economia que vise ao bem comum, com justiça socioambiental, com “terra, teto e trabalho”, com alegria e proteção da família, com educação e saúde integrais e de qualidade para todos. Estamos comprometidos com o recente “Pacto pela vida e pelo Brasil”, da CNBB e entidades da sociedade civil brasileira, e em sintonia com o Papa Francisco, que convoca a humanidade para pensar um novo “Pacto Educativo Global” e a nova “Economia de Francisco e Clara”, bem como, unimo-nos aos movimentos eclesiais e populares que buscam novas e urgentes alternativas para o Brasil.
Neste tempo da pandemia que nos obriga ao distanciamento social e nos ensina um “novo normal”, estamos redescobrindo nossas casas e famílias como nossa Igreja doméstica, um espaço do encontro com Deus e com os irmãos e irmãs. É sobretudo nesse ambiente que deve brilhar a luz do Evangelho que nos faz compreender que este tempo não é para a indiferença, para egoísmos, para divisões nem para o esquecimento (cf. Papa Francisco, Mensagem Urbi et Orbi, 12/4/20).
Despertemo-nos, portanto, do sono que nos imobiliza e nos faz meros espectadores da realidade de milhares de mortes e da violência que nos assolam. Com o apóstolo São Paulo, alertamos que “a noite vai avançada e o dia se aproxima; rejeitemos as obras das trevas e vistamos a armadura da luz” (Rm 13,12).
O Senhor vos abençoe e vos guarde. Ele vos mostre a sua face e se compadeça de vós. O Senhor volte para vós o seu olhar e vos dê a sua paz! (Nm 6,24-26).