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O CORRESPONDENTE

Os melhores textos dos jornalistas livres do Brasil. As melhores charges. Compartilhe

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O CORRESPONDENTE

27
Jul23

Dois campos de concentração que farão você pensar melhor sobre o Brasil da ditadura militar

Talis Andrade

 

Indígena é exibido no instrumento de tortura conhecido como pau-de-arara em Belo Horizonte em 1970, durante a cerimônia de graduação da primeira turma da Guarda Rural Indígena. Foto: Jesco von Puttkamer.

 

Minas Gerais terra do comandante civil do golpe o governador e banqueiro Magalhães Pinto e de dois campos de concentração brasileiros: um deles para indígenas, o outro para deficientes mentais. Veja como esses dois campos são retratos da sociedade disciplinar teorizada pelo general Mourão que de Juiz de Fora partiu com suas tropas para a aventura golpista de primeiro de abril de 1964. Os campos de concentração do Brasil

Corpos explorados, mutilados, abusados e arbitrariamente confinados durante uma sangrenta ditadura: se a primeiro momento isso parece ser uma descrição da Segunda Guerra Mundial, na verdade se trata de dois campos de concentração mineiros, duas aproximações drásticas da miséria que o nazi-fascismo oferecia para seus excluídos. O Reformatório Krenak, em Resplendor, e o Hospital Colônia, em Barbacena, são os palcos do terror oferecido pela construção da ordem pós-golpe militar. O primeiro, uma prisão indígena; o segundo, um sanatório aos moldes das descrições de Foucault sobre a época clássica, em “Vigiar e Punir“. As informações são da Agência Pública e do Diário de Pernambuco.

 

Reformatório Krenak: uma prisão de índios

 

Após a falência institucional da SPI (Serviço de Proteção aos Índios) em 1967, denunciada por corrupção e inoperância, e a criação da FUNAI (Fundação Nacional do Índio), o Executivo do estado de Minas Gerais passou a ser o órgão responsável pela garantia da ordem e da assistência às aldeias locais naquele local: naquele mesmo ano, o nascimento Reformatório Agrícola Indígena Krenak acontece sem nenhuma publicação em jornais ou em portarias. Seu funcionamento e tudo que acontecia lá dentro era mantido em sigilo, típico da administração militar, que também era responsável pelo local.

O Reformatório Krenak era um campo de concentração étnico onde índios de todas as regiões do país eram enviados para “reeducação”. Ashaninka e urubu-kaapor, do extremo-norte do país, e guaranis e kaingangs, do sul e sudeste eram submetidos à trabalhos forçados, torturas desumanas e péssimas condições de repouso e alimentação.

O fim da ditadura não foi sinônimo de resolução deste episódio terrível sobre os povos indígenas. Segundo Douglas Krenak, ex-coordenador do Conselho de Povos Indígenas de Minas Gerais (Copimg), “Em 2009, recebi um convite para participar das comemorações, em Belo Horizonte (MG), dos 30 anos da Anistia no Brasil. Havia toda uma discussão sobre a indenização dos que sofreram com a ditadura, mas a questão indígena não foi nem sequer lembrada”. A família de Douglas foi afetada diretamente pelo reformatório, “Meu avô foi preso no reformatório Krenak. Chegou a ser arrastado com o cavalo de um militar, amarrado pelos pés”.

Apesar de ser defendido por Osires Teixeira, senador pelo ARENA, em 1972 como um local em que os indígenas adquiriam conhecimento, aprendiam uma profissão e voltavam com mais saúde para sua tribos (em uma das raras declarações de agentes do Estado sobre a existência do reformatório), os relatos daqueles que lá viviam parecem discordar deste ponto de vista.

De acordo com Diógenes Ferreira dos Santos, índio pataxó levado ao Krenak em 1969, a rotina dos presos era constituída de trabalhos rurais pela manhã, um almoço, e mais trabalho até o fim do dia, depois jantavam coletivamente, tomavam banho e iam dormir. “Íamos até um brejo, com água até o joelho, plantar arroz”, relata. “Botavam a gente para arrancar mato, no meio das cobras, e os guardas ficavam em roda vigiando, todos armados”, revela João Batista de Oliveira, o João Bugre, da etnia Krenak.

O trabalho, descrito por Foucault como uma característica marcante do sistema prisional, que readéqua o confinado para a vida produtiva e para a moral do trabalho duro, era tão central a ponto de fazer parte dos relatórios rotineiros da instituição. Em uma ficha de acompanhamento de um índio karajá, a sua “lerdeza” e “indisposição para o trabalho” são marcadas como signos de sua inutilidade. “É um elemento fraco, parecendo até mesmo ser um retardado. Se pudesse, não faria nenhum serviço”, explicita a ficha.

Os relatórios também expõem o tratamento desumano promovido pelo reformatório, desde a falta de roupas limpas à escassez de comida, “Os índios confinados estão se alimentando de pura mandioca e inhame. Considerando-se a precariedade da alimentação, serão suspensos os trabalhos braçais”.

Hospital Colônia: o confinamento dos loucos

Hospital Colônia
Hospital Colônia. Foto: O Diário

A despeito de ter sido criado em 1903, o Hospital Psiquiátrico Colônia ganhou sua (má) fama nos anos de chumbo. em 1979,  o psiquiatra reformista Franco Basaglia o comparou a um campo de concentração nazista, após uma visita, e toda a exposição do tratamento que os internos eram submetidos chocou a sociedade brasileira nos anos 80. Segundo os dados recolhidos pelo trabalho de Daniela Arbex, no livro “Holocausto Brasileiro“, de 1969 a 1980, 16 pessoas morriam por dia no hospital, que fora construído com capacidade para 200 leitos, mas que chegou a ter 5 mil pessoas em seu interior.

Em suas pesquisas, Arbex descobriu que os internos tinham os cabelos cortados e eram rebatizados ao chegar no hospital. Alguns comiam ratos, bebiam urina ou água de esgoto, dormir sobre o capim e eram espancados e violados pelo agentes internos. O frio, a fome ou as doenças fáceis de se pegar causavam a morte de vários indivíduos lá jogados, o tratamento com eletrochoques também estava nessa lista de causas de morte, que muitas vezes era forte o bastante para derrubar a rede de fornecimento de energia de Barbacena. “Havia uma omissão coletiva. Quem sabia dos atos violentos, ou participava deles, preferia fingir que aquilo não estava acontecendo. A violência foi naturalizada, banalizada”, diz a autora.

No período investigado, a venda de corpos foi um ponto notável. Mais de 1,8 mil corpos foram vendidos para universidades sem nenhum questionamento e geraram um lucro que, atualizado, seria o equivalente a R$ 600 mil. Estes corpos eram prontamente vendidos ou tratados em ácido, para que as ossadas fossem utilizáveis.

Luiz Alfredo, repórter fotográfico que captou as imagens utilizadas neste texto, ainda guarda em sua memória a impressão imediata ao entrar no hospital. “Cheguei em Barbacena sem saber direito o que estava fazendo e sem saber o que iria encontrar. De repente vi tudo aquilo. Fiz imagens chocantes”, conta.

Os loucos e os presos: confinados fora da ordem

Hospital Colônia e seus internos.
Hospital Colônia e seus internos. Foto: Psicologia Saúde

 

O Hospital Colônia e o Reformatório Krenak tinham vários pontos em comum: os internos eram tratados de forma desumana, não tinham a assistência mínima para a sobrevivência, passavam fome, não tinham vestimentas adequadas e seu funcionamento era completamente sigiloso – porém, há uma característica importante: ambos eram receptáculos dos anormais. Não somente daqueles que “deveriam” estar lá, mas de qualquer tipo de inadequado que pudesse ser colocado nas diretrizes dos locais.

O Krenak era o local de concentração para índios “viciosos”: homicidas, ladrões, consumidores de álcool (que na época era duramente repreendido pela FUNAI) e usuários de drogas eram encaminhados para o reformatório, porém, além desse tipo de interno, vítimas da prostituição, briguentos, indivíduos que conflitavam com os chefes dos postos da FUNAI, “pederastas” e “vadios” também eram encaminhados para reeducação.

O reformatório tinha uma função prática de manter o povo indígena dentro das regras morais do ocidente, representado pela ditadura militar e seus órgãos. Qualquer índio, na prática poderia ser preso, “não sabemos a causa real que motivou o seu encaminhamento, uma vez que não recebemos o relatório de origem”, relata um cabo do local ao escritório da Ajudância Minas-Bahia, sobre um índio xavante de bom comportamento, preso há cinco meses.

A historiadora Geralda Chaves Soares, que trabalhou no Conselho Indigenista Missionário (Cimi) conta que “uma das histórias contadas é a de dois índios urubu-kaápor que, no Krenak, apanharam muito para que confessassem o crime que os levou até lá. O problema é que eles nem sequer falavam português”. A língua tinha que ser aprendida na marra, pois somente o português era permitido – quando falavam em línguas indígenas, os guardas achavam que estavam falando sobre eles e os puniam.

João Bugre e o avô de Douglas Krenak, já citados, também foram vítimas da arbitrariedade militar. Segundo João, ele foi preso por transportar uma garrafa de pinga para dentro da aldeia, “muitos, como eu, não tinham feito nada. Tomei uma pinga. Será que uma pinga pode deixar alguém preso quase um ano?”, questiona. Já o avô de Krenak foi preso por atravessar as fronteiras permitidas pelo órgão, outra falta grave, “meu avô chegou a ser arrastado com o cavalo de um militar, amarrado pelos pés, porque tinha saído da aldeia”. José Alfredo de Oliveira, também Krenak, passou pela mesma situação, “eu, uma vez, fiquei 17 dias preso porque atravessei o rio sem ordem, e fui jogar uma sinuquinha na cidade”.

No Hospital Psiquiátrico Colônia, não só pessoas com distúrbios psiquiátricos diagnosticados eram internados, mas também homossexuais, prostitutas, mendigos, alcoólatras, epiléticos e meninas violentadas e/ou que perderam a virgindade antes do casamento.

hospital colonia imundo
Alguns bebiam urina ou água do esgoto. Foto: Diário de Pernambuco

 

Segundo Arthur Galvão Serra, mestre em psicologia, esta função dos internamentos não é um efeito colateral de uma suposta má administração, por não seguir à risca seus próprios discursos, “vemos que a cura aparecia nos discursos não porque os discursos são precisos e idôneos, mas sim porque ele favorecia essa prática de internação”, conta.

Desta forma, a internação era importante por servirem como dispositivos para a inclusão dos internos, assim como “a escola inclui jovens, o exército inclui desde homens jovens, até desenvolverem disciplina e normalização para ocuparem postos onde terão ‘mais liberdade'”. O poder, por meio de seus aparelhos e dispositivos, inscreve o sujeito na hierarquia, lhe dando possibilidade limitadas de ação que são todas incluídas naquilo que chamamos de “normal”.

Esses campos de concentração são locais de “inclusão em uma posição na sociedade”, diz Arthur Serra. Os internos precisam sentir na pele o ferro em brasa da disciplina, é por isso que o trabalho, como oposição à vida sem moral, negadora de deus e da sina do trabalho duro fora do éden, tem grande papel no Reformatório Krenak, da mesma forma, é por isso que se tenta dar aos internos do Hospital Colônia um fim lucrativo (vendendo seus corpos e ossadas), já que seus corpos não podem ser adaptados (ainda vivos) nas circunstâncias materiais que se encontravam naquele momento .

15
Jan23

O “Hino” ao Inominável, feito pra lembrar, pra sempre, o pior dos piores mandatários da nossa história; vídeo

Talis Andrade

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Redação Vio Mundo

- - -

No ar, o ”Hino” ao Inominável. Com letra de Carlos Rennó e música de Chico Brown e Pedro Luís.

Autoironicamente intitulada “hino”, é uma canção-manifesto contra a contra a candidatura de Jair Bolsonaro (PL) à presidência da República.

Num vídeo criado pelo Coletivo Bijari (versão integral, acima, tem 13min40), 30 artistas interpretam-na.

Entre eles, Wagner Moura, Bruno Gagliasso, Lenine, Zélia Duncan, Chico César, Paulinho Moska, Leci Brandão,  Marina Lima, Mônica Salmaso e Zélia Duncan.

Os versos falam de temas recorrentes no discurso do ex-capitão, como a ditadura militar, racismo, machismo,  destruição ambiental.

Citam literalmente ou se baseiam em declarações dadas pelo ‘inominável’ e encontradas na internet e em jornais.

“Feito pra lembrar, pra sempre, esses anos sob a gestão do mais tosco dos toscos, o mais perverso dos perversos, o mais baixo dos baixos, o pior dos piores mandatários da nossa história. E pra contribuir, no presente, pra não reeleição do inominável”, frisa o texto que acompanha o vídeo lançado nesse em 17-09-2022.

“Na íntegra, são 202 versos, mais o refrão, contra o ódio e a ignorância no poder no Brasil”, prossegue o texto.

Que arremata: “Porém, apesar dele – e do que, e de quem e quantos ele representa – a mensagem final é de luz, a luz que resiste, pois, como canta o refrão ‘Mas quem dirá que não é mais imaginável / Erguer de novo das ruínas o país?’”.

Letra completa do “Hino” do Inominável, de  Carlos Rennó

“Sou a favor da ditadura”, disse ele,
“Do pau de arara e da tortura”, concluiu.
“Mas o regime, mais do que ter torturado,
Tinha que ter matado trinta mil”.
E em contradita ao que afirmou, na caradura
Disse: “Não houve ditadura no país”.

E no real o incrível, o inacreditável
Entrou que nem um pesadelo, infeliz,
Ao som raivoso de uma voz inconfiável
Que diz e mente e se desmente e se desdiz.

Disse que num quilombo “os afrodescendentes
Pesavam sete arrobas” – e daí pra mais:
Que “não serviam nem pra procriar”,
Como se fôssemos, nós negros, animais.
E ainda insiste que não é racista
E que racismo não existe no país.

Como é possível, como é aceitável
Que tal se diga e fique impune quem o diz?
Tamanha injúria não inocentável,
Quem a julgou, que júri, que juiz?

Disse que agora “o índio está evoluindo,
Cada vez mais é um ser humano igual a nós.
Mas isolado é como um bicho no zoológico”,
E decretou e declarou de viva voz:
“Nem um centímetro a mais de terra indígena!,
Que nela jaz muita riqueza pro país”.

Se pronuncia assim o impronunciável
Tal qual o nome que tal “hino” nunca diz,
Do inumano ser, o ser inominável,
Do qual emanam mil pronunciamentos vis.

Disse que se tivesse um filho homossexual,
Preferiria que o progênito “morresse”.
Pruma mulher disse que não a estupraria,
Porque “você é feia, não merece”.
E ainda disse que a mulher, “porque engravida”,
“Deve ganhar menos que o homem” no país.

Por tal conduta e atitude deplorável,
Sempre o comparam com alguns quadrúpedes.
Uma maldade, uma injustiça inaceitável!
Tais animais são mais afáveis e gentis.

Mas quem dirá que não é mais imaginável
Erguer de novo das ruínas o país?

Chamou o tema ambiental de “importante
Só pra vegano que só come vegetal”;
Chamou de “mentirosos” dados científicos
Do aumento do desmatamento florestal.
Disse que “a Amazônia segue intocada,
Praticamente preservada no país”.

E assim negou e renegou o inegável,
As evidências que a Ciência vê e diz,
Da derrubada e da queimada comprovável
Pelas imagens de satélites.

E proclamou : “Policial tem que matar,
Tem que matar, senão não é policial.
Matar com dez ou trinta tiros o bandido,
Pois criminoso é um ser humano anormal.
Matar uns quinze ou vinte e ser condecorado,
Não processado” e condenado no país.

Por essa fala inflexível, inflamável,
Que só a morte, a violência e o mal bendiz,
Por tal discurso de ódio, odiável,
O que resolve são canhões, revólveres.

“A minha especialidade é matar,
Sou capitão do exército”, assim grunhiu.
E induziu o brasileiro a se armar,
Que “todo mundo, pô, tem que comprar fuzil”,
Pois “povo armado não será escravizado”,
Numa cruzada pela morte no país

E num desprezo pela vida inolvidável,
Que nem quando lotavam UTIs
E o número de mortos era inumerável,
Disse “E daí? Não sou coveiro”. “E daí?”

“Os livros são hoje ‘um montão de amontoado’
De muita coisa escrita”, veio a declarar.
Tentou dizer “conclamo” e disse “eu canclomo”;
Não sabe conjugar o verbo “concl…amar”.
Clamou que “no Brasil tem professor demais”,
Tal qual um imbecil pra imbecis.

Vigora agora o que não é ignorável:
Os ignorantes ora imperam no país
(O que era antes, ó pensantes, impensável)…
Quem é essa gente que não sabe o que diz?

Mas quem dirá que não é mais imaginável
Erguer de novo das ruínas o país?

Chamou de “herói” um coronel torturador
E um capitão miliciano e assassino.
Chamou de “escória” bolivianos, haitianos…
De “paraíba” e “pau de arara” o nordestino.
E diz que “ser patrão aqui é uma desgraça”,
E diz que “fome ninguém passa no país”.

Tal qual num filme de terror, inenarrável,
Em que a verdade não importa nem se diz,
Desenrolou-se, incontível, incontável,
Um rol idiota de chacotas e pitis.

Disse que mera “fantasia” era o vírus
E “histeria” a reação à pandemia;
Que brasileiro “pula e nada no esgoto,
Não pega nada”, então também não pegaria
O que chamou de “gripezinha” e receitou (sim!),
Sim, cloroquina, e não vacina, pro país.

E assim sem ter que pôr à prova o improvável,
Um ditador tampouco põe pingo nos is,
E nem responde, falador irresponsável,
Por todo ato ou toda fala pros Brasis.

E repetiu o mote “Deus, pátria e família”
Do integralismo e da Itália do fascismo,
Colando ao lema uma suspeita “liberdade”…
Tal qual tinha parodiado do nazismo
O slogan “Alemanha acima de tudo”,
Pondo ao invés “Brasil” no nome do país.

E qual num sonho horroroso, detestável,
A gente viu sem crer o que não quer nem quis:
Comemorarem o que não é memorável,
Como sinistras, tristes efemérides…

Já declarou: “Quem queira vir para o Brasil
Pra fazer sexo com mulher, fique à vontade.
Nós não podemos promover turismo gay,
Temos famílias”, disse com moralidade.
E já gritou um dia: “Toda minoria
Tem de curvar-se à maioria!” no país.

E assim o incrível, o inacreditável,
Se torna natural, quanto mais se rediz,
E a intolerância, essa sim intolerável,
Nessa figura dá chiliques mis.

Mas quem dirá que não é mais imaginável
Erguer de novo das ruínas o país?

Por vezes saem, caem, soam como fezes
Da sua boca cada som, cada sentença…
É um nonsense, é um caô, umas fake-news,
É um libelo leviano ou uma ofensa.
Porque mal pensa no que diz, porque mal pensa,
“Não falo mais com a imprensa”, um dia diz.

Mas de fanáticos a horda lamentável,
Que louva a volta à ditadura no país,
A turba cega-surda surta, insuportável,
E grita “mito!”, “eu autorizo!”, e pede “bis!”

E disse “merda, bosta, porra, putaria,
Filho da puta, puta que pariu, caguei!”
E a cada internação tratando do intestino
E a cada termo grosso e um “Talquei?”,
O cheiro podre da sua retórica
Escatológica se espalha no país.

“Sou imorrível, incomível e imbrochável”,
Já se gabou em sua tão caracterís-
Tica linguagem baixo nível, reprovável,
Esse boçal ignaro, rei de mimimis.

Mas nada disse de Moise Kabagambe,
O jovem congolês que foi aqui linchado.
Do caso Evaldo Rosa, preto, musicista,
Com a família no automóvel baleado,
Disse que a tropa “não matou ninguém”, somente
“Foi um incidente” oitenta tiros de fuzis…

“O exército é do povo e não foi responsável”,
Falou o homem da gravata de fuzis,
Que é bem provável ser-lhe a vida descartável,
Sendo de negro ou de imigrante no país.

Bradou que “o presidente já não cumprirá
Mais decisão” do magistrado do Supremo,
Ao qual se dirigiu xingando: “Seu canalha!”
Mas acuado recuou do tom extremo,
E em nota disse: “Nunca tive intenção
(Não!) De agredir quaisquer Poderes” do país.

Falhou o golpe mas safou-se o impeachável,
Machão cagão de atos pusilânimes,
O que talvez se ache algum herói da Marvel
Mas que tá mais pra algum bandido de gibis.

Mas quem dirá que não é mais imaginável
Erguer de novo das ruínas o país?

E sugeriu pra poluição ambiental:
“É só fazer cocô, dia sim, dia não”.
E pra quem sugeriu feijão e não fuzil:
“Querem comida? Então, dá tiro de feijão”.
É sem preparo, sem noção, sem compostura.
Sua postura com o posto não condiz.

No entanto “chega! […] vai agora [inominável]”,
Cravou o maior poeta vivo, no país,
E ecoou o coro “fora, [inominável]!”
E o panelaço das janelas nas metrópoles!

E numa live de golpista prometeu:
“Sem voto impresso não haverá eleição!”
E praguejou pra jornalistas: “Cala a boca!
Vocês são uma raça em extinção!”
E no seu tosco português ele não pára:
Dispara sempre um disparate o que maldiz.

Hoje um mal-dito dito dele é deletável
Pelo Insta, Face, YouTube e Twitter no país.
Mas para nós, mais do que um post, é enquadrável
O impostor que com o posto não condiz.

Disse que não aceitará o resultado
Se derrotado na eleição da nossa história,
E: “Eu tenho três alternativas pro futuro:
Ou estar preso, ou ser morto ou a vitória”,
Porque “somente Deus me tira da cadeira
De presidente” (Oh Deus proteja esse país!”).

Tivéssemos um parlamento confiável,
Sem x comparsas seus cupinchas, cúmplices,
E seu impeachment seria inescapável,
Com n inquéritos, pedidos, CPIs.

………………………………………………………………

Não há cortina de fumaça indevassÁvel
Que encubra o crime desses tempos inci-vis
E tampe o sol que vem com o dia inadiÁvel
E brilha agora qual farol na noite gris.
É a esperança que renasce onde HÁ véu,
De um horizonte menos cinza e mais feliz.
É a passagem muito além do instagramÁvel
Do pesadelo à utopia por um triz,
No instante crucial de liberdade instÁvel
Pros democráticos de fato, equânimes,
Com a missão difícil mas realizável
De erguer das cinzas como fênix o país.

E quem dirá que não é mais imaginável
Erguer de novo das ruínas o país?

Mas quem dirá que não é mais imaginável
Erguer de novo das ruínas o país?

“Hino” ao Inominável

Produção e direção musical: Xuxa Levy

Produção e direção artística: Carlos Rennó

Colaboração musical e artística: Pedro Luís e Chico Brown

Intérpretes

André Abujamra

Arrigo Barnabé

Bruno Gagliasso

Caio Prado

Cida Moreira

Chico Brown

Chico César

Chico Chico

Dexter

Dora Morelenbaum

Héloa

Hodari

Jorge Du Peixe

José Miguel Wisnik

Leci Brandão

Lenine

Luana Carvalho

Marina Íris

Marina Lima

Monica Salmaso

Paulinho Moska

Pedro Luís

Péricles Cavalcanti

Preta Ferreira

Professor Pasquale

Ricardo Aleixo

Thaline Karajá

Vitor da Trindade

Wagner Moura

Zélia Duncan

Músicos:

Ana Karina Sebastião: baixo
Cauê Silva : percussão
Fábio Pinczowski: teclados
Juba Carvalho: percussão
Léo Mendes: guitarra
Thiago Silva: bateria
Webster Santos: violões
Xuxa Levy: máquina de escrever e programações

Participação especial: violoncelista Jacques Morelenbaum

Vídeo:

Coletivo Bijari
Edição: Guilherme Peres
Direção de fotografia: Toni Nogueira

20
Jul22

Torturadas pela ditadura por não seguirem o exemplo das Mulheres de Atenas

Talis Andrade

Luta, substantivo feminino: mulheres torturadas, desaparecidas... -  9788560814381 - Livros na Amazon Brasil

por José Levino

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Uma ditadura militar foi instalada no Brasil (1964-1985) para impedir a implantação das reformas de base que mudariam a estrutura econômica em vista da construção de uma nação soberana e com um modelo econômico voltado para dentro e preocupado com a melhoria das condições de vida para todo o povo. Claro que o novo modelo feria os interesses dos grandes monopólios estrangeiros e seus aliados internos e que esta foi a causa da instalação do regime ditatorial.

No projeto das reformas de base, nada havia de comunismo. Mas este foi o fantasma levantado para angariar o apoio popular e lançar uma campanha de orações por todo o país, com o apoio de setores das Igrejas Católica e Evangélica, pedindo proteção contra a ameaça vermelha.

Discordou do regime, era comunista e vítima de perseguição. Militava ou apoiava alguma organização política de oposição, estava sujeito à prisão legal ou ilegal, às torturas nas casas da morte clandestinas ou mesmo nos porões da repressão oficial.

A tortura existe desde tempos imemoriais como método de combate aos inimigos ou adversários. Mas, com o tempo, foi se sofisticando para não deixar marcas físicas que pudessem comprovar sua aplicação. Tornou-se “tortura científica”. De modo que, não passa de deboche e vilipêndio a afirmação do presidente Bolsonaro de que aguarda um exame de raios-x da mandíbula da ex-presidente Dilma Rousseff para comprovar a fratura decorrente da tortura.

Capitão reformado do Exército (1973-1988), Bolsonaro sabe muito bem que as corporações militares não faziam exames para analisar os efeitos de suas torturas, as sequelas deixadas nos corpos dos que escaparam. Se bem que as principais marcas ficaram foi na alma. O torturador mais famoso e temido, Sérgio Paranhos Fleury, delegado do Dops de São Paulo, que chegou a ser convocado para prestar “serviços” em todo o país, disse para uma de suas vítimas mais famosas, Frei Tito: “Nós vamos te quebrar por dentro”.  Dito e feito. O frade escapou fisicamente, mas não conseguiu viver com as lembranças terríveis da “sucursal do inferno”, e cometeu suicídio.

Quarenta e cinco mulheres constam da lista de mortos e desaparecidos elaborada pela Comissão Nacional da Verdade. Centenas foram vítimas das torturas. Vinte e sete têm seus depoimentos registrados na publicação LUTA, SUBSTANTIVO FEMININO, editada pela Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres da Secretaria Especial de Direitos Humanos, Editora Caros Amigos, São Paulo, 2010. Elas não apresentam raios-x, mas seu testemunho confirmado por companheiras/os presos na mesma época e, em alguns casos, até por torturadores que deram seu depoimento para a Comissão da Verdade, assumiram o crime e disseram que fariam tudo de novo. Outros dizem que o erro foi não eliminar todos os presos políticos.

Todos os depoimentos são muito expressivos, mas vamos destacar neste artigo a síntese de alguns, pois o espaço exige uma amostra, apenas.

 

Aborto no quinto dia de sofrimento

 

IZABEL FÁVERO militava na VAR-Palmares. Professora universitária, foi presa com seu companheiro e sogros em Nova Aurora, cidade do interior paranaense, em 1970. Foram torturados a noite toda na frente uns dos outros. Saquearam a casa e levaram tudo, até a roupa de cama. Transferidos para o Batalhão de Fronteira em Nova Iguaçu, as torturas prosseguiram, executadas pelo capitão Júlio Cerda Mendes e pelo tenente Mário Expedito Otresk, que aplicaram pau de arara e choques elétricos. Sabiam que ela estava grávida, mas isso não significava nada para os torturadores. Abortou no quinto dia de sofrimento. Daí, foram levados para o Dops do Rio de Janeiro, onde a tortura foi praticada por policiais com o emblema do Esquadrão da Morte. Levados de volta para Foz do Iguaçu, depois Porto Alegre (Dops). Izabel escapou, mas ficaram as consequências. Durante anos, não conseguia dormir direito, acordava transpirando, passava noites sem pregar os olhos.

 

“Filho dessa raça não deve nascer”

 

HECILDA FONTELES, professora universitária, também estava grávida quando ocorreu sua prisão em Brasília, no ano de 1971. Sob socos e pontapés, ouvia os agentes dizerem: “Filho dessa raça não deve nascer”. Foi levada para o Pelotão de Investigações Criminais (PIC) e submetida à tortura dos “refletores”, pela qual a pessoa é mantida a noite inteira com uma luz forte no rosto. Conduzida para o Batalhão da Polícia do Exército do Rio de Janeiro, conheceu a Cadeira do Dragão. Trata-se de uma cadeira elétrica semelhante àquelas em que são executadas as sentenças de morte nos EUA, só que o torturador controla o nível dos choques para manter a vítima sob intenso sofrimento, mas viva. Ela conta: “Os fios subiam pelas pernas e eram amarrados nos seios. As sensações eram indescritíveis – calor, frio, asfixia. Além disso, batiam no rosto, no pescoço, nas pernas”. De volta a Brasília, jogaram-na numa cela cheia de baratas que roíam seu corpo; conseguiu tirar o sutiã e encobrir a boca e os ouvidos. Levada para o Hospital de Brasília, sentindo as dores do parto, o médico, irritadíssimo, fez um corte sem anestesia. Apesar das condições, Paulo Fontelles Filho sobreviveu.

 

Pau de arara e estupro

 

GILSE COSENZA era recém-formada em Serviço Social e militava na Ação Popular (AP) quando foi presa, em junho de 1969, em Belo Horizonte. Ficou três meses numa solitária, sendo interrogada sob tortura: choque elétrico, afogamento, pau de arara, espancamento, tortura sexual. Manuseavam o corpo, apagavam ponta de cigarro nos seios. À noite, levaram-na de olhos vendados para um posto policial afastado, numa estrada, onde foi torturada de sete da noite até o amanhecer, sem intervalo. Eles tinham um cassetete cheio de pontinhos que usavam para espancar os pés e as nádegas enquanto estava no pau de arara, de cabeça para baixo. “Quando estava muito arrebentada, um torturador me tirou do pau de arara. Caí no chão. Nessa situação, fui estuprada pelo sargento Leo, da Polícia Militar. Depois, como não dei as informações que queriam, ameaçavam trazer minha filha de quatro meses para ser torturada de formas terríveis na minha frente”.

MARIA DO SOCORRO DIÓGENES, professora, militava no Partido Comunista Brasileiro Revolucionário (PCBR). Foi presa no Recife, em abril de 1972. Arrancaram toda a sua roupa e a sentaram no chão molhado. Passou por afogamento várias vezes, com a cabeça encapuzada mergulhada numa água suja. O corpo ficou todo preto de tanto ser pisado. Foi colocada várias vezes no pau de arara. Abusavam sexualmente com choques nos seios, na vagina, passavam a mão. Foi torturada diariamente durante um mês. Uma vez simularam sua morte. Arrastaram-na pela madrugada e a colocaram num camburão onde tinha corda, pá, ferramentas. Pararam num lugar esquisito, só para aterrorizar.

JESSIE JANE, professora, foi militante da Ação Libertadora Nacional (ALN). Era estudante secundarista quando foi presa em 1º de julho de 1970, no Rio de Janeiro (RJ). “Minha filha nasceu em setembro de 1976, durante o Governo Geisel. Eu tive de fazer o parto num hospital privado, fiz uma cesariana, sofri muita pressão. Eles diziam que tinha de fazer como na Indonésia: matar os comunistas até a terceira geração para eles não existirem mais. E depois, a entrega da minha filha foi muito difícil. Eu a entreguei para a minha sogra, pois minha família estava toda no exílio. Foi a pior coisa da minha vida, a mais dolorida. A separação de uma criança com três meses é muito dura para uma mãe, é horrível. É uma coisa que nunca se supera. É um buraco. De toda a minha história, essa é a mais dramática. A minha gravidez resultou do primeiro caso de visita íntima do Rio de Janeiro. Meu marido estava preso na Ilha Grande e, quando da passagem do Governo Médici para o Geisel, havia uma reivindicação para que nos encontrássemos. Fazia cinco anos que não nos víamos. Foi nessa conjuntura que eu fiquei grávida. A nossa prisão foi muito violenta. Fomos levados para o DOI-Codi, onde fomos muito torturados. As torturas foram tudo que você pode imaginar. Pau de arara, choque, violência sexual, pancadaria generalizada. Quando chegamos lá, tinha um corredor polonês. Todas as mulheres que passaram por ali sofreram com a coisa sexual. Isso era usado o tempo todo”.

 

INÊS ETIENNE ROMEU era bancária e militava na VPR. Foi presa em maio de 1971, em São Paulo, e levada para a Casa da Morte, em Petrópolis (RJ). Pancadas e choques elétricos marcaram sua recepção. Disseram que não queriam informação alguma, apenas matá-la de forma lenta e cruel, como merecem os terroristas. Foi estuprada. Era obrigada a limpar a cozinha completamente nua, ouvindo gracejos e obscenidades grosseiras. Inês só foi libertada após a Anistia, em 1979 e identificou seis torturadores. Morreu aos 61 anos em seu apartamento, num acidente muito suspeito.

“O objetivo da tortura é esse: vilipendiar você como pessoa, para que seu corpo, sua vontade percam o controle e você se sinta um montão de carne, ossos, merda, dor e medo”, afirmou Lilian Celiberti, uruguaia, militante do Partido da Vitória do Povo (PVP), sequestrada em Porto Alegre, em novembro de 1978.

Constituição Federal de 1988, art. 5º, XLIII: a lei considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia a prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos, por eles respondendo os mandantes, os executores e os que, podendo evitá-los, se omitirem”.

 

 

02
Jul22

Carol Benjamin abrindo a Caixa Preta da Ditadura

Talis Andrade

 

 

“Dizer a palavra não é um ato verdadeiro se isso não está ao mesmo tempo associado ao direito de auto expressão e de expressão do mundo, de criar e recriar, de decidir e escolher e, finalmente, participar do processo histórico da sociedade. Na cultura do silêncio as massas são ‘mudas’, isto é, elas são proibidas de criativamente tomar parte na transformação da sociedade e, portanto, proibidas de ser.” 

 Paulo Freire, Ação Cultural para a Liberdade, 1970

 

 

A saga de três gerações da família Benjamin, atravessada pela Ditadura Militar, é o foco de “Fico Te Devendo Uma Carta Sobre o Brasil” (Daza Filmes, 2019, 88min), de Carol Benjamin. Em sua estréia como diretora de um longa-metragem documental, Carol “investiga a persistência do silêncio como ferramenta de apagamento da memória”, como sintetiza a sinopse oficial. 

cultura do silenciamento asfixia a democracia, ensinou Paulo Freire, proibindo as massas de ser. Já a produção cinematográfica brasileira mais relevante de nossa época é aquela que rasga as mordaças, afronta a História Oficial escrita pelos opressores, e vai abrindo caminhos para a autêntica participação social.

Uma das histórias que estão no âmago do documentário é a prisão ilegal do pai de Carol, César Benjamin (click e acessa os artigos dele publicados pela Ed. Contraponto): aos 17 anos de idade, ele tornou-se preso político da Ditadura empresarial-militar instalada no país com o Golpe de 64. Aprisionado em Agosto de 1971, ficou 3 anos e meio em uma cela solitária. Depois, mais 2 anos em prisão comum. 

Por pressão da Anistia Internacional, que o declarou o “Preso Político do Ano” em 1975, César consegue ser deportado para a Suécia em 1976, indo ao encontro de seu irmão mais velho, Cid Benjamin, que também havia sido preso político da ditadura e já morava à época em Estocolmo.  

A avó de Carol e mãe de César, Iramaya Benjamin, também manifesta-se como figura histórica de relevância: o filme a celebra em sua infatigável luta em prol da anistia ampla, geral e irrestrita para os perseguidos pelo terrorismo de Estado. 

 

 

Na crítica publicada pela Revista Cult, destaca-se que “o prisma que Carol procura mover e contar é o das cartas trocadas entre Iramaya e Marianne Eyre, membra da Anistia Internacional em Estocolmo, na Suécia, onde César se exilou quando saiu da prisão até a anistia falseada de João Batista Figueiredo (em 1979), quando pôde retornar ao Brasil.” (Por Manoel Ricardo de Lima, Out. 2020)

Carol Benjamin vai em uma jornada de reconstrução de uma história que não é só familiar, é coletiva. Para tal fim precisa ir até a Suécia, pesquisar nos arquivos da Anistia Internacional de Estocolmo, em busca de pistas que lhe permitam compreender melhor os destinos de seu pai, seu tio e sua avó, realizando um belíssimo filme “composto de muitos falares e alguns silenciares” (como escreveu Carlos Alberto Matos). 

Deste modo, este filme-ensaio se alça à dimensão de uma reflexão poética e filosófica sobre a memória (individual e coletiva, entretecidas). É uma obra audiovisual de sabor um tanto Proustiana, um Em Busca do Tempo Perdido que se passa nos anos-de-chumbo: Carol quer capturar os rastros e vestígios que o regime militar quis rasgar, entregar para as novas gerações as caixas pretas já todas arrombadas, disponíveis para que possamos dar vazão às verdades que os opressores de ontem e hoje desejam mudas e mortas.

Para juntar os cacos e construir com eles seu caleidoscópio fílmico, Carol precisa afrontar o silêncio, tanto aquele imposto pelo regime autoritário e opressor (que deseja massas mudas e esforça-se por extinguir a efetiva participação popular no poder) quanto o calar-se que acomete os traumatizados. Protagonista de seu próprio filme, Carol Benjamin se coloca na postura audaciosa de quem quer abrir uma série de caixas pretas e, como Audre Lorde, quer afirmar que não é o silêncio que vai nos proteger. 

Assim como fez Petra Costa em Democracia e Vertigem, Carol não tem pudores de narrar em primeira pessoa do singular uma saga familiar que ela sabe ser de importância coletiva. Os silêncios familiares que ela vivencia, sem saber explicar ao certo, instigam-na a decifrar o mistério num mergulho imersivo na Psiquê dos presos políticos da ditadura. Explora assim, com evocações de Fernando Pessoa e planos sombrios, em que as grades confinantes na tela convivem com uma voz em off que busca dar carnalidade à vivência do encarcerado.

Uma hipótese desponta: aqueles que foram torturados, maltratados, postos no pau-de-arara, expostos às mais horrendas formas de degradação humana, acabaram saindo do confinamento torturante imposto pela ditadura com uma atitude de trancamento em sua subjetividade, uma atitude que se manifesta por sintomas de afasia, uma dificuldade tremenda para expressar as vivências de sofrimento indizível impostos pelo aparato ditatorial de repressão. 

Para além dos esforços hercúleos que o preso precisa realizar para manter a sanidade mental e não surtar, há a crônica dos interesses intelectuais do jovem César Benjamin, de seu devir-filósofo, de sua avidez pelo estudo. Detrás das grades, além de testemunhar a vida cotidiana das lagartixas e das aranhas que lhe acompanham na cela solitária, Benjamin traduz textos (como fez Lênin) e vai tornando-se  algo semelhante a um Gramsci brasileiro. Tentaram prendê-lo para calá-lo, mas não sabiam que sua mente se recusaria à servidão, que seria sempre curiosa, crítica, criativa. Apesar de sua situação kafkiana, preso sem ter sido processado, engulido por um cárcere ilegal e escandaloso.

Em um dos momentos de alívio cômico do filme, Iramaya relata que tentava levar livros para o filho no cárcere, mas quase todos eram proibidos. Os milicos não deixavam entrar nem mesmo O Pequeno Príncipe, nem mesmo obras sobre os filósofos pré-socráticos. Com uma ginga malandra digna de Garrincha, Iramaya um dia convenceu os carcereiros do filho a entregarem a ele uma obra de Althusser que fazia a análise crítica do marxismo. Aí passou…

Iramaya, no filme, é alçada a um status de heroína cívica brasileira, em um processo através do qual Carol Benjamin age de maneira Górkiana, revelando o devir de uma mulher que antes era pacata, casada com um oficial do Exército, mas que politizou-se diante das injustiças sofridas por sua prole.

Iramaya foi se engajando até tornar-se uma das lideranças mais importantes do país ao fundar o Comitê Brasileiro pela Anistia. Denunciou bravamente a tortura como crime hediondo e gritou em alto e bom som que torturadores não podem e não devem ser anistiados!

De algum modo, Iramaya Benjamin também evoca outras mães lationo-americanas que sofreram com a desaparição ou o assassinato, pelos Estados ditatoriais, como as célebres Madres de La Plaza de Mayo na Argentina

 

César, Iramaya e Cid Benjamin (1998)

 

Ousando também começar a decifrar a esfinge do presente e compreender porquê o Brasil está atravessando esta distopia grotesca que é o empoderamento do Bolsonarismo, Carol resolve dar voz a Brilhante Ustra, chefe do Departamento de Repressão da ditadura entre 1970 e 1974. O ídolo dos bolsonaristas foi o único mililtar brasileiro oficialmente reconhecido como um criminoso, violador sistemático dos direitos humanos fundamentais do cidadão brasileiro, e seu “A Verdade Sufocada” é um dos livros de cabeceira de Jair Messias Bolsonaro, seu admirador confesso. 

Quando Dilma Rousseff inaugurou a Comissão Nacional da Verdade, apontando sua importância para a “consolidação da democracia”, falou do “direito à verdade” e do “direito de prantear e sepultar” entes queridos.

César Benjamin, “sobrevivente de mim mesmo como um fósforo frio” (como ele gosta de dizer, com versos de Fernando Pessoa), veio a público para esquentar seu fósforo em fala pública para a CNV em 2021. Qualquer cidadão brasileiro deveria prestar atenção ao que ele revela nestas cenas que provam que o filme pode ser veículo para um testemunho histórico que deveríamos valorizar por todo o ensinamento que pode comunicar. 

Contra a cultura do silenciamento, Carol afirma que “os silêncios são as borrachas da História” – e a cineasta quer escrever uma história nova ao invés de trabalhar para o apagamento sistemático das biografias que Ustras e Bolsonaros gostariam de ver sepultadas no esquecimento. 

No Brasil da barbárie bolsofascista, desgovernado pelo monstro moral que faz apologia da tortura e diz que “quem procura osso é cachorro” para se referir aos pais e mães que demandam saber a verdade sobre seus entes queridos trucidados pela ditadura, Carol Benjamin abre caixas pretas e realiza a tarefa indispensável de resgate da memória com um fim prático: que nunca se esqueça, e “que aquele Brasil que houve nunca mais aconteça”, como diz Eric Nepomuceno:

 

“Há mães que até hoje, a cada vez que soa o telefone, a cada vez que alguém toca a campainha da porta, pensam: ‘É ele, é meu filho’. São mães que esperam por filhos que estão desaparecidos, que estão mortos; mas elas não se convencem, não querem se convencer. Querem ver ao menos o que restou de seus filhos. E pelo menos esse direitos essas mães têm. As famílias têm. O direito de não só ter a memória resgatada: de resgatar os restos dessas pessoas desaparecidas. Do que sobrou da sua dignidade. Esse é um ponto de honra da nossa geração. Que alguma vez poderá dizer: nunca mais. Um ponto de honra: resgatar a memória. Para que ninguém esqueça, para que nunca mais aconteça.” (NEPOMUCENO, Eric. A Memória de Todos Nós, 2015, pg 59)

Outro ingrediente importantíssimo do filme de Carol está em lembrar a todo cidadão brasileiro de uma das características mais sórdidas do processo repressivo no Brasil: as atrocidades cometidas pelo regime burguês-militar contra menores de idade e jovens universitários. A verdade intragável que Bolsonaristas e Ustristas querem esconder foi revelada em livros como Cativeiro Sem Fim, de Eduardo Reina, e é tema de reportagens assinadas por alguns dos melhores jornalistas brasileiros.

Os militares “mataram garotos”, como apontado pela reportagem de Cynara Menezes, do blog Socialista Morena, que “fez um levantamento por idade entre os mortos e desaparecidos e descobriu que 56% deles eram jovens como Edson Luis [assassinado em 1968 no Calabouço]: tinham menos de 30 anos de idade. 29%, ou quase um terço dos mortos e desaparecidos da ditadura, tinham menos de 25 anos. São esses meninos que os defensores do coronel Brilhante Ustra falam que pretendiam implantar a ‘ditadura do proletariado’ no País e por isso foram barbaramente torturados e executados.” (MENEZES, Cynara. Maio de 2016)

 

ASSISTA EM JORNALISTAS LIVRES: LIVE CONTRA A CENSURA (31/03/21) - #Ditaduranuncamais

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SAIBA MAIS:

O filme foi realizado pela produtora audiovisual Daza que Carol fundou em parceria com a atriz Leandra Leal e a roteirista Rita Toledo. Fazem parte do catálogo da Daza outros documentários como “As Mil Mulheres”, “Divinas Divas”, “Capoeira – Um Passo a Dois” e “Aquele Abraço”, além de alguns filmes de ficção.

 

OUTROS CONTEÚDOS PERTINENTES:

 
 

Podcast da 02 Filmes (In Jornalistas Livres, 29/03/2021)

23
Abr22

Presidente do Clube Militar ataca ministros do STF: 'togas não serviriam nem como pano de chão, pelo cheiro de podre que exalam'

Talis Andrade

Por 364 votos: Câmara derrota os ratos fascistas nesta sexta -  OEstadoAcre.com

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Daniel Silveira, soldado pm como qualquer outro soldado raso do Exército, da Marinha, da Aeronáutica, não pode frequentar os luxuosos e elitistas e segregadores e discriminadores e separados e distanciados clubes militares. Nem soldado, nem cabo, nem sargento, nem subtenente. São clubes restritos, privativos para os limpos de sangue. Exclusivamente para oficiais, a farda - que um dia servirá de mortalha - recheada de medalhas de guerras jamais acontecidas, travadas com inimigos imaginários, torturados na ditadura militar de Castelo Branco, Costa e Silva, Médici, Geisel e Figueiredo. Tempos de chumbo, de paus-de-arara, de cadeiras do dragão. De porões comandados por serie killers de nomes conhecidos: coronel Ustra, coronel Paulo Manhães e outras e outras altas patentes, os nomes citados nos áudios das sessões do Superior Tribunal MIlitar - STM. 

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Daniel Silveira soldado pode entrar para realizar os serviços considerados humilhantes: de cozinheiro, confeiteiro, servente, copeiro, garçom,  camareiro, carregador de mala, cabeleireiro, enfermeiro, costureiro, diferentes profissões a serviço de oficiais e familiares, notadamente as parasitas filhas solteiras, que recebem do Governo Civil ricas pensões vitalícias para a vida maneira dos gigolôs e filhos.

O presidente do Clube Militar, o general Eduardo José Barbosa, publicou nesta sexta-feira (22) no site da entidade um texto de apoio ao decreto de Jair Bolsonaro que deu indulto a Daniel Silveira.  

O baboso general aposentado repete o tom de desprezo aos ministros do Supremo, usado pelo ex-capitão que hoje ocupa a presidência da República.

Escreveu Barbosa: "Lamentável termos, no Brasil, ministros cujas togas não serviriam nem para ser usadas como pano de chão, pelo cheiro de podre que exalam".Image

 

ImageGilmar Fraga / Agencia RBS

Esse general tem a boca suja de arruaceiro. Tem a boca do protegido soldado pm Daniel Silveira, que possui mais grandeza, desde que conseguiu se eleger deputado federal. 

 

Nem técnicos, nem neutros: os militares na história recente brasileira |  Jornalistas Livres

20
Abr22

Presidente do STM desdenha da revelação de áudios que comprovam torturas na ditadura

Talis Andrade

 

 

Por g1 — Brasília

 

O presidente do Superior Tribunal Militar (STM), Luís Carlos Gomes de Mattos, desdenhou, em sessão do tribunal nesta terça-feira (19), da divulgação dos áudios dos anos 1970 de integrantes do próprio tribunal que comprovam a prática de tortura durante a ditadura militar.

Segundo ele, a divulgação dos áudios é "notícia tendenciosa" com o objetivo de "atingir" as Forças Armadas.

Resgatados pelo historiador Carlos Fico, titular de história do Brasil da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), os áudios foram revelados no último domingo (17), na coluna da jornalista Miriam Leitão no jornal "O Globo".

[A jornalista Miriam Leitão foi presa e torturada dentro de um quartel do Exército. Tem mais: o general Luiz Carlos Gomes de Mattos foi nomeado para o STM por Dilma Roussef, também presa e torturada pela ditadura. E condenada por um tribunal militar, quando estudante 

 

Dilma Rousseff é interrogada por militares em 19

 
Três últimos presidentes eleitos criticam Bolsonaro por ironizar tortura a  Dilma - Amambai Notícias - Notícias de Amambai e região.

 A corte militar que julga Dilma esconde a cara. Tinha nojo do serviço sujo. Vergonha histórica]

 

O Superior Tribunal Militar passou a gravar as sessões em 1975, mesmo as secretas. Até 1985, são 10 mil horas de material. Com autorização da Justiça, Carlos Fico conseguiu copiar todas as sessões das gravações, que estão sendo transcritas.

"Tivemos aí alguns comentários contra o nosso tribunal ou contra a Justiça Militar de maneira geral", declarou nesta terça-feira o presidente do STM, para quem a intenção da divulgação é "atingir Forças Armadas, Exército, Marinha, Aeronáutica".

Segundo ele, os ministros do Superior Tribunal Militar são "absolutamente transparentes" nos julgamentos.Image

 

Não tenho resposta nenhuma para dar. Simplesmente, ignoramos uma notícia tendenciosa daquela, que nós sabemos o motivo. Aconteceu durante a Páscoa. Garanto que não estragou a Páscoa de ninguém — porque a minha não estragou. Garanto que não estragou a Páscoa de nenhum de nós", afirmou.

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Gomes de Mattos se disse "incomodado" porque, na interpretação dele, do passado, "só varrem um lado, não varrem o outro". [Ainda bem que ele reconhece a sujeira do pau-de-arara, da cadeira do dragão e outros instrumentos de tortura varridos para longe, quando deviam ser parte de um museu, da triste memória de um Brasil cruel, desumano, da barbárie, da necropolítica. No mais sangue, muito sangue dos mártires da Liberdade, da Fraternidade, da Democracia, da Igualdade, sangue sagrado de heróis, de verdadeiros heróis. Assassinados pelos mesmos perversos, réprobos que enforcaram Tiradentes, que executaram Frei Caneca, e centenas de negros, de índios que lutaram pela Independência do Brasil]

"Apenas a gente fica incomodado que vira e mexe vem porque não têm nada para buscar. Hoje, vão rebuscar o passado. Agora, só varrem um lado, não varrem o outro. É sempre assim, já estamos acostumados com isso. Deixa para lá", declarou.Image

Para o presidente, as informações reveladas nos áudios são "besteiras" e "idiotices" para as quais, segundo ele, não devem ser dadas respostas.

"Nós temos a credibilidade do nosso povo, e isso aí é o mais importante. Às vezes dói, viu? Às vezes, dá vontade de você responder, sacudir, mostrar. Não adianta. Você vai sacudir, não vai adiantar nada, porque não muda. Passam-se os anos, e a pessoa diz a mesma coisa, as mesmas besteiras, as mesmas idiotices. E nós vamos ficar respondendo? Não, na minha opinião", disse.

Nos áudios, um general defende, por exemplo, a apuração do caso de uma grávida de três meses que sofreu aborto após choques elétricos na genitália.m outro trecho dos áudios, o ministro togado Waldemar Torres da Costa afirma durante um julgamento em 13 de outubro de 1976: "Começo a pedir a atenção dos meus eminentes pares para as apurações que são realizadas por oficiais das Forças Armadas. Quando as torturas são alegadas e às vezes impossíveis de ser provadas, mas atribuídas a autoridades policiais, eu confesso que começo a acreditar nessas torturas porque já há precedente "

Em julgamento no dia 19 de outubro de 1976, o almirante Julio de Sá Bierrenbach diz: "Quando aqui vem à baila um caso de sevícias, esse se constitui um verdadeiro prato para os inimigos do regime e para a oposição ao governo. Imediatamente, as agências telegráficas e os correspondentes os jornais estrangeiros, com a liberdade que aqui lhes é assegurada, disseminam a notícia e a imprensa internacional em poucas horas publicam os atos de crueldade e desumanidade que se passam no Brasil, generalizando e dando a entender que constituímos uma nação de selvagens".

Segundo Bierrenbach afirmou na ocasião, "não podemos admitir é que o homem, depois de preso, tenha a sua integridade física atingida por indivíduos covardes, na maioria das vezes, de pior caráter que o encarcerado".

Em entrevista a "O Globo", Carlos Fico explicou que, em 2006, o advogado Fernando Fernandes pediu ao STM acesso às gravações, mas não conseguiu e, então, acionou o Supremo Tribunal Federal, que determinou a liberação do conteúdo. O STM, porém, acrescentou Fico a "O Globo", não obedeceu a decisão e, em 2011, a ministra Cármen Lúcia determinou o acesso irrestrito aos autos, decisão posteriormente referendada pelo plenário

Por telefone, o professor informou ao g1 que desde 2018 analisa os áudios e já está na metade do processo, o que abrange o período entre 1975 e 1979. Carlos Fico acrescentou ainda que, embora algumas pessoas tentem negar que houve tortura na ditadura, cabe aos historiadores apresentar a história como ela é.

"Quando a gente vive tempos traumáticos, algumas pessoas tendem a criar memórias que as apaziguem com o passado. Outra coisa é a história. Não há dúvida que houve tortura, isso é óbvio. É até um pouco reiterativo, repetitivo dizer que houve tortura. Houve. Ponto final. Claro que houve. Outra coisa é a memória que algumas pessoas constroem, de negação da tortura", disse o historiador.

Em dezembro de 2014, a Comissão Nacional da Verdade divulgou um relatório no qual responsabilizou 377 pessoas por crimes cometidos durante a ditadura, entre os quais tortura e assassinatos. O documento também apontou 434 mortos e desaparecidos na ditadura; e 230 locais de violações de direitos humanos. Em manifestação divulgada na ocasião, o Clube Militar chamou o relatório de "coleção" de "calúnias" e de "absurdo".

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28
Mar22

Cadeira do dragão: o assento predileto no mobiliário de tortura do DOPS de Pedro Seelig

Talis Andrade

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II - Morre um torturador: encoberto pela mídia, isento pela Justiça, condenado pela História

 

por Luiz Cláudio Cunha - Jornal GGN

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Na “fossa”, onde Arébalo foi torturado, sempre havia uma mangueira e um balde por perto para jogar água no corpo nu do prisioneiro. Potencializado pela água, o choque produzia um espasmo que fazia com que a perna batesse com violência na travessa de madeira, causando mais dor e novos ferimentos.C:\Users\LCCunha\Documents\RASCUNHOS\SEELIG\SEELIG rezando missa Arébalo  12mar2022.jpg

 

A tortura tem som, tem dor, tem cheiro. A tortura fede

 

 

Duas vezes, em dias sucessivos, Totti sentiu o bafo quente e seco do dragão. A primeira foi no começo da tarde de quinta-feira, 12 de agosto – um dia depois de Marinês ser presa na esquina da avenida Borges de Medeiros. Ao sair da cela Totti foi encapuzado. O capuz mantém o anonimato do torturador, dá insegurança ao preso. Ele não sabe para onde vai. Alguém o pega pelo cotovelo e o conduz por um caminho desimpedido. De repente, mandam parar, como se houvesse um obstáculo. Ordenam virar à esquerda, depois à direita, dar um passo à frente, outro para o lado. O preso se desorienta. Alguns passos adiante Totti recebe ordem para sentar. Ele está ao lado de uma cadeira. Senta. Uma voz pergunta:

– Tu sabes onde nós estamos? Totti diz que não. A voz pergunta se ele sabe o que vai acontecer. Totti repete a negativa.

– Sabe sim – alguém responde. Ele sente quatro mãos diferentes mexendo em suas mãos. Há um encosto na cadeira para estender o braço, como se fosse tirar a pressão. Totti percebe duas alças de couro que se fecham sobre os antebraços. Está preso na cadeira. Alguma coisa é fixada no dedo anelar da mão direita, o quarto dedo, entre o médio e o mindinho, o “seu vizinho”. Ninguém mais toca na mão esquerda. Alguma coisa se agarra ao lóbulo da orelha esquerda. Totti sente pela respiração que três pessoas o rodeiam. O coração aperta, a garganta se contrai, a boca seca.

– Então, Totti, o que mais tu fazias no POC? – Nada, eu já disse. Nem sei direito o que é o POC – repete Totti.

 

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Paulo Totti e seu torturador

 

Ele ouve duas, três vezes o movimento de uma máquina. O rrrrrãããããã se acelera, depois não ouve mais nada. Só sente. Sente um tremor no dedo que sobe pela mão, corre pelo braço, atinge o lado direito do pescoço e desemboca no fundo do cérebro. Ao mesmo tempo um tremor parecido e oposto brota no lóbulo da orelha esquerda, daí desce para o pescoço, escorre pelo braço. O corpo todo se sacode.

– Este foi fraquinho – disse uma voz. Parecia um consolo.

– É isso aí – confirmou o delegado Seelig. – Vou mandar aumentar se tu não me disseres, se tu não me contares tudo o mais que tu tá escondendo…

A palavra do delegado era tranquila, técnica, sem emoção. Totti não tinha tempo de responder, a corrente aumentava. O choque agora vinha mais forte. A onda sacodia as costas, tremia a coluna, atingia os rins. A secura na boca aumentava junto com os tremores. Os choques se alternavam, entre o dedo da mão direita e o lóbulo da orelha esquerda. Às vezes os choques eram simultâneos.

– E o POC? – insistiu Seelig.

– Não sei, não sei – persistiu Totti, a boca seca pela corrente, os olhos úmidos pela dor.

– Este fresco tá chorando, mas ainda aguenta! – avisou alguém. Os choques continuaram. Talvez uns dez minutos, talvez uma eternidade. Uma pausa e um alívio.

– Quer água? – perguntou Seelig. Encostaram um copo nos seus lábios, Totti bebeu. Tiraram as garras da orelha e do dedo, soltaram as tiras de couro dos braços. Totti começou a mexer os dedos das mãos e dos pés para estimular a circulação. Ele está sentado na cadeira, descalço, com camisa, calça e cueca. Foi erguido e levado de volta para a cela. Fecharam a porta e mandaram tirar o capuz e jogá-lo pela abertura da porta de ferro por onde chegava a comida.

 

Só a tortura necessária

 

Ao cair da noite, o inspetor Nilo Hervelha apareceu na porta da cela com um recado de Seelig: Totti teria 24 horas para pensar melhor. O interrogatório recomeçaria pela manhã.

No dia seguinte, sexta-feira 13, ali pelas três horas da tarde, tudo de novo. Capuz, caminhada pelo corredor, o mesmo dedo, o mesmo lóbulo, os mesmos choques, a mesma secura, mais da mesma dor. Mais sofrimento. Desta vez, sem perguntas. Eles falavam somente entre si. Coisas técnicas, profissionais: bota o cabo aí, liga aqui, roda, mais força, isso. De repente, três ou quatro ondas de choque mais forte do que na véspera. Voltam as perguntas, focadas numa pessoa específica.

– E o rapaz? Onde ele está? Quem é que está escondendo ele em São Paulo?

Sem nenhuma pergunta sobre o POC, a tortura era agora para ver se eles pescavam algo que ainda não sabiam. Seelig dessa vez não estava lá. Mas a dor era maior, mais forte, mais duradoura. O tremor antes fazia bater o queixo, morder a língua, secar a boca. O tremor agora também doía, como uma coisa gelada, aguçada, pontiaguda, que penetrava simultaneamente pelas veias do braço direito e pelo pescoço esquerdo. Os músculos retesavam e relaxavam na passagem da corrente alternada, no estertor da dor inalterada, da respiração alterada. A bexiga se soltou, a urina verteu, molhando as calças, escorrendo pelo pé direito. Quando soltaram as tiras de couro, Totti não conseguia se levantar. Não se sustentava mais em pé. Eles o levantaram pelos braços e o carregaram até a cela. Totti se arrastou sem poder caminhar. Mandaram ele olhar para a parede quando tiraram o capuz e saem. Não voltaram mais. Não houve mais torturas. Só ficaram os choques.

No dedo, no lóbulo, na memória. Totti percebeu que, por alguma razão, ainda assim a manivela não girou na sua velocidade máxima. Entendeu pelo testemunho de outros presos que de alguma forma ele fora poupado da dor extrema que a cadeira causava. Seelig sabia com quem lidava. O próprio delegado confessou essa contenção, ao conjeturar certo dia:

– Totti, tu um dia vai dizer no jornal que o delegado Pedro Seelig só torturava o necessário. Já o Hervelha…

Sobraram as reticências do medo, o parêntese do terror. Seu carcará predileto, o truculento inspetor Nilo Hervelha, o mesmo que prendera Marinês, era o padrão da tortura desnecessária para o contido Seelig. No domingo à tarde, 15 de agosto, os presos que ainda podiam se locomover após tanta tortura foram levados para tomar banho de sol em uma espécie de laje ao ar livre no segundo andar do DOPS. Foi ali que Marinês viu Totti.

Naquele dia Totti conheceu uma jovem mineira de 21 anos da VAR-Palmares. Ela foi presa quando Seelig invadiu dois meses antes seu aparelho no bairro operário do Passo da Areia, na capital gaúcha. Era um pequeno apartamento de cozinha, quarto, banheiro e sala onde os agentes do DOPS encontraram uma maleta 007 com fundo falso. Dentro, 32 mil dólares.

Há controvérsias quanto ao destino final do dinheiro. Logo que descoberta, a maleta com os dólares foi entregue pelos policiais ao delegado. Dias depois, a dona da maleta foi levada para ser interrogada por outro delegado, Marcos Aurélio Reis. Queria saber quantos dólares havia na 007.

– Trinta e dois mil – respondeu ela.  – Quanto? – duvidou Reis. – Trinta e dois mil – repetiu a presa. – Tens certeza? – insistiu o delegado. – Tenho. – Puta que o pariu! O Pedro só me entregou quatro mil!…

A jovem foi mandada de volta para sua cela e logo depois reapareceu Seelig, furioso. Levou-a para a sala de tortura e disse que ela iria apreender a não bater com a língua nos dentes. Literalmente. Mandou aplicar-lhe choques na boca. Ela desmaiou. Quando acordou estava de volta à sua cela. Seelig nunca mais falou nisso. A jovem imaginou que ele e Marcos Aurélio tivessem refeito as contas e chegado a algum tipo de acordo.

 

A visita do irmão capitão

 

A face amena de Seelig desconcertava os presos do DOPS gaúcho. Eles temiam a repentina irrupção de seu lado violento. Certo dia, um preso foi retirado de sua cela. Seelig o mandara buscar, isso não parecia bom sinal. Diante do delegado ele se deparou com uma mala cheia de cortes de tecido colorido, que Seelig acabara de trazer do Rio. O que o delegado queria, desta vez, não doía:

– Preciso te ouvir: tu achas isso aqui bonito? Está na moda? – ouviu o preso, aliviado pela súbita condição de conselheiro de moda do delegado.

No caso de Totti, o delegado Seelig tinha motivos para se moderar no tratamento ao chefe da sucursal gaúcha da mais importante revista semanal brasileira. Os jornalistas se movimentavam em seu favor no Sindicato e pela Associação Riograndense de Imprensa (ARI).

O irmão de Totti, quatro anos mais velho que ele, veio de Vacaria para ver o que estava acontecendo. Não se falaram, porque a prisão era incomunicável. Os dois tinham graves divergências.

Totti era gremista, ele, colorado. Totti combatia a ditadura, o irmão participou do golpe de 64. Totti era jornalista, ele capitão da ativa do Exército. Ainda assim, o irmão de Totti foi corajoso ao ponto de percorrer o QG do III Exército para saber algo do irmão subversivo preso no DOPS. Um parentesco que não recomendava a carreira militar de ninguém, especialmente em uma ditadura anticomunista. Acabou na reserva do Exército como coronel e no interior de Vacaria como plantador de maçã.

Até o presidente da ARENA local, João Dêntice, andou preocupado com Totti. Chegou a falar com o chefe da polícia, nada além disso. Tanto esforço conjunto parece ter dado certo. No final da tarde de segunda-feira, 16 de agosto, Seelig mandou trazer Totti à sua sala. Parecia nervoso e apressado.

– Tu tens que assinar este documento para ser libertado hoje à noite. Se não assinar, vais ficar aqui. O documento era uma declaração de que Totti fora bem tratado no DOPS, uma contradição em termos que, naquele momento, não cabia levantar.

– O Alberto André, o presidente da ARI, vai vir aqui te buscar. Mas já houve casos da gente soltar um preso e ele depois ser sequestrado… – contou Seelig, em tom de ameaça. O delegado lembrou cinicamente o caso de um subversivo que, em 1966, fora preso pelo Exército, torturado pelo DOPS, libertado e desovado no rio Jacuí. Para não deixar dúvidas, identificou o nome: Manoel Raimundo Soares, o sargento das mãos amarradas.

Naquela segunda-feira de agosto de 1971, Totti viu o sol refletido no espelho de águas escuras do arroio Dilúvio da janela do segundo andar do DOPS. Mais que o sol, Totti viu as pessoas passando, apressadas. Livres.

Totti não precisou pensar muito. Assinou.

 

O fracasso internacional de Seelig

 

Sete anos depois, a carreira de sucesso de Pedro Seelig chegou ao fim com seu maior e mais conhecido fracasso: o sequestro de quatro uruguaios em Porto Alegre, em novembro de 1978, vítimas da Operação Condor, a secreta multinacional do terror que unia as cinco ditaduras do Cone Sul em ações repressivas clandestinas que nunca deixavam sobreviventes. O DOPS de Seelig era a parte brasileira de um movimento binacional com a repressão uruguaia, que enviou um comando à capital gaúcha para agir em sigilo em solo brasileiro.

Seelig não era apenas conivente, mas cúmplice no crime combinado das duas ditaduras. Atuou como braço executor na busca e captura de dois militantes uruguaios que viviam clandestinamente em Porto Alegre, buscando e transmitindo informações para a Europa sobre violências da ditadura de Montevidéu. A professora primária Lilián Celiberti, 29 anos, e o estudante de medicina Universindo Rodríguez Díaz, de 27 anos, eram os alvos centrais da Condor, que voava além-fronteiras com o mesmo instinto predador do ‘pega-mata-e-come’ do carcará.

                                                     Daniel Simões /Coojornal                                                                    Correio do Povo

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Universindo Rodríguez Díaz e Lilián Celiberti e seu torturador

A trapalhada de Seelig começou no final da manhã de domingo, 12 de novembro, quando ele pegou pelo braço a jovem uruguaia que aguardava um emissário descer do ônibus da empresa TTL, recém-chegado de Montevidéu, no box internacional da Rodoviária de Porto Alegre. Junto com o delegado brasileiro estava Glauco Yannone, um capitão uruguaio da secreta Compañia de Contrainformaciones, o braço executor local da Condor.

Seelig e Yannone embarcaram Lilián já encapuzada numa camionete Veraneio azul, rumo ao DOPS, na avenida Ipiranga.   Andando aos tropeções, meio carregada, a jovem percebeu que ingressavam em um edifício. Subiram alguns lances de escada, caminharam por um corredor e ela ouviu a porta da cela se fechar às suas costas. Tiraram suas roupas. Ainda em pé, despida, só com o capuz, sentiu na pele nua o frio da cela e o arrepio do medo. Alguém fixou presilhas de metal nos dedos das mãos e nas orelhas. O gelo aumentou quando jogaram água fria em seu corpo.

Ao som da manivela seus músculos se retesaram, antevendo a descarga da ‘maricota’, a máquina manual de choques elétricos, o apetrecho doméstico de todos os cárceres do Cone Sul. A manivela rodou cada vez mais rápida, acompanhada pela zoeira de perguntas gritadas, repetidas, agressivas. Eram formuladas em português, por brasileiros. Mas, entre uma e outra, infiltravam-se perguntas do capitão uruguaio, que ela reconhecia pela voz : – O que fazia na cidade? A quién conocías? Quem eram teus contatos? Dónde están tus compañeros?

No DOPS de Seelig, não havia tempo para respirar, para pensar, para responder. A carga elétrica intensa distendia os nervos, o controle muscular desaparecia, o aparelho digestivo se contraía, afrouxava. Ela sentiu o calor da urina e das fezes escorrendo perna abaixo. O medo se misturou a à vergonha. A tortura tem som, tem dor, tem cheiro. A tortura fede.

A manivela parou de repente, a descarga elétrica também. Mas o alívio cedeu lugar ao pavor. Alguém descobriu na sua bolsa o boleto da escola maternal. Junto, um endereço. Retiraram o capuz e ela viu o homem de cabelo grisalho, que pegou seu braço na Rodoviária, repetir em voz alta:

– Rua Botafogo, 621, apartamento 110, bloco 3… – leu o delegado, olhando para ela. Lílian se rendeu e falou pela primeira vez, ainda mais assustada.

– Bueno, esta es mi casa… Tenho dois filhos, mas vocês não podem fazer mal a eles. O delegado Seelig parece mais surpreso do que ela assustada.

– Dois filhos? Que idade?

– Três e oito anos – respondeu Lílian, certa de que a informação abalara o homem. Criança não costumava fazer parte do expediente de trabalho da repressão brasileira. O delegado pensou um pouco, olhou atravessado para o capitão uruguaio ao seu lado e tentou relaxar a presa.

– Não, não vai acontecer nada com teus filhos – completou o delegado, pela primeira vez em tom ameno. Seelig diz que ela iria para casa e lhe devolveu as roupas. Eles embarcaram de novo na Veraneio da polícia. Desta vez ela não usava capuz. Viu a cidade deserta, preguiçosa, ruminando o almoço relaxado de mais um domingo. Quando estacionaram em frente ao prédio, viu seus dois filhos, Camilo e Francesca. Na calçada, o garoto e a menina se surpreenderam ao ver a mãe desembarcar de uma camionete, acompanhada de homens que não conheciam. Seelig saiu na frente, entrou no andar térreo do bloco 3 e viu um rapaz moreno, de costas, trancando a porta do apartamento 110. Quando ele se voltou, deu de cara com a pistola de Seelig apontada para seu peito. O delegado foi seco: – Tu tá preso!

Alguém lhe tomou as chaves e reabriu o apartamento. Universindo foi empurrado de volta para dentro. Ligaram a TV portátil na sala com volume alto, mas ninguém prestou atenção. Era só para abafar o som seco dos golpes. Sentado em uma cadeira, algemado por trás, Universindo começou a apanhar. Levou muitos socos no estômago e pancadas na cabeça desferidas por um homem forte, negro, de mão pesada. Ninguém se apresentou, mas Universindo identificou uruguaios no grupo. Um deles, pelo nome: Yannone. Havia outro militar uruguaio, que ele não reconhecia. Gritam com ele e falam palavrões enquanto revistam o pequeno apartamento. Em certo momento, os uruguaios dizem que são integrantes das Forças Conjuntas. Seelig não batia, apenas perguntava. Queria saber quem estava com ele, quem eram seus contatos.

Os quatro, o casal e as duas crianças, embarcaram na camionete para voltar ao DOPS. Universindo foi levado a um quarto próximo, com uma mesa ao centro e uma janela que iluminava o ambiente. Não parecia uma cela. Começaram a fazer perguntas. Queriam saber com quem falava, onde estavam os outros uruguaios.  – No sé, yo no lo conozco – mentia Universindo.

 

Universindo no pau-de-arara

 

Os homens não gostaram da resposta. Começaram a bater. Algemado com as mãos para trás, sem capuz, Universindo viu os brasileiros se revezarem com o capitão Yannone na pancadaria. A cada golpe, arrancavam algo da vestimenta. Primeiro a camisa, depois as calças, os sapatos, as meias. Pouparam as cuecas. Batiam muito, batiam todos. Yannone batia mais.

Reprodução                                                            Correio do Povo

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Pau-de-arara: a ferramenta de trabalho favorita para tortura no DOPS de Pedro Seelig

 

Batia tanto que cansou. Então, sentou-se no chão, ao lado do preso algemado, e passou a socá-lo com força, com fúria. Tantos socos deixaram o punho do capitão uruguaio dolorido. Yannone então tirou o mocassim que calçava e continuou a golpear Universindo, desta vez com o salto do sapato. O capitão já não sentia dor. O preso agora sentia mais. Agora o salto do sapato do capitão doía cada vez mais no corpo machucado de Universindo. As respostas continuavam insatisfatórias. Tiraram as algemas e ataram as mãos aos tornozelos. Passaram uma barra de ferro entre os punhos amarrados e a dobra do joelho e o penduraram a uns cinquenta centímetros do chão.

De cabeça para baixo, Universindo parecia um frango assado. Ele estava provando agora o gosto amargo, sofrido, de uma genuína invenção brasileira: o pau-de-arara, um dos mais temidos instrumentos de tortura dos cárceres do Cone Sul, um legado verde-amarelo à civilização. As perguntas continuaram, os golpes também. A dormência se infiltrou pelas artérias e veias dos pés e mãos, sem o sangue que se acumula na cabeça rente ao chão. A dormência cedia lugar à dor, uma dor cada vez mais insuportável, indecifrável, intangível.

Para aumentar o sofrimento acoplaram eletrodos no braço, no pulso, na perna, na orelha, no dedo. Uma dezena de conexões diretas com a dor. Alguém pegou um balde, jogaram a água sobre o corpo seminu. O medo congela, a água fria enregela. A manivela gira mais rápida, os choques elétricos da ‘maricota’ provocam estertores, estremecem o corpo, as ideias, as convicções. Universindo lutava, resistia. Pensava na morte, no alívio, na paz. A morte seria o descanso.

Passou o tempo, parecia uma eternidade. Universindo foi pendurado pelo meio da tarde. Ficou lá até quase meia-noite de domingo. Horas com o corpo suspenso, a vida suspensa. De repente, o choque cessou, as perguntas cessaram, a vida cessou. Ele já não sentia o corpo, só sentia a dor. Tiraram seu corpo inerte do pau-de-arara e o deixaram no chão ensanguentado. Universindo parecia morto por dentro, por fora. Ficou ali, moribundo, até que alguém o olhou mais de perto. Chamaram gente da enfermaria para reanimá-lo.

A tortura deu uma trégua. Universindo pediu para ir ao banheiro. Tiraram as algemas e ele cambaleou rumo ao sanitário. Arrastou-se, trôpego. Os passos pareciam quilômetros, tudo doía. Abriu a tampa do vaso, imundo como aquele lugar, e sentiu um misto de dor e alívio acompanhar a contração da bexiga. Sentiu medo quando viu a cor escura da urina. Era vermelha, cor de sangue.

O organismo resiste à descarga elétrica e ao pau-de-arara descarregando no sangue a mioglobina, uma proteína muscular responsável pela reserva de oxigênio nos músculos. A respiração cortada pela tortura, o pulmão atravessado pela dor que endurece a musculatura, a sensação de sufocamento faz o corpo reagir. A mioglobina é liberada na circulação sanguínea junto com outras enzimas, sobrecarregando os rins e iniciando o processo de insuficiência renal aguda. O aumento da mioglobina no sangue é a marca líquida e certa da pancadaria, das lesões musculares, dos golpes com o punho fechado sobre os rins. O peito, arfante, sente falta do oxigênio vital para o corpo asfixiado, martirizado.

A proteína aparece, transborda, vaza para o sangue como um sinal de alerta, um pedido de socorro do organismo em choque, golpeado, agredido, que sucumbe à dormência da tortura. A mioglobina é um sinal de alerta, um sinal vermelho. Um sinal de sangue. Sangue na urina. Hematúria. Passados trinta minutos, o alerta se converte em ameaça letal. Universindo já estava ali há mais de quatro, cinco horas, pendurado como um naco de carne em um gancho de açougue.

A mioglobina liberada na corrente sanguínea passou a ser filtrada pelos rins. Eles não suportam a sobrecarga, começam a falhar. A proteína se decompõe no sangue, como uma toxina maligna que leva à insuficiência renal. Universindo não sabia, mas agora era vítima de rabdomiólise, que os médicos traduzem como uma síndrome causada por danos na musculatura do esqueleto, provocados por vazamento de mioglobina para o sangue. A urina cor castanho-avermelhada que Universindo via jorrar no vaso era a prova disso. A rabdomiólise vem acompanhada de convulsões, edemas, espasmos, calafrios, cãibras, febre, insuficiência renal e respiratória.

Nos textos de medicina, é um distúrbio que afeta uma em cada dez mil pessoas de qualquer idade. Na crônica da tortura, uma fatalidade que atinge dez de cada dez presos que passam pelo pau-de-arara. Universindo e sua urina cor de sangue eram a prova científica disso tudo. O efeito colateral de Seelig, do DOPS. Universindo, como milhares de vítimas que não sofreram a amargura da dor mas tiveram a ventura de sobreviver, era a sequela viva das ditadura, a chaga aberta do Cone Sul. A presa nas garras do Condor, a vítima do carcará.

 

O capitão e o delegado, especialistas da dor. E Bolsonaro: "minha especialidade é matar"

 

O delegado Pedro Seelig, em vida, tinha uma lamentável identidade com o presidente Jair Bolsonaro: ambos defendem a ditadura, apoiam a tortura e louvam os torturadores. Ambos admiram o coronel Brilhante Ustra, o homem do DOI-CODI. Na campanha presidencial, numa reunião com empresários em Porto Alegre em 2017, Bolsonaro definiu-se: “Sou capitão do Exército. Minha especialidade é matar! ”. Se tivesse o mesmo brilho intelectual, Seelig poderia parafrasear: “Sou delegado do DOPS. Minha especialidade é torturar!”.

 Gente como Universindo, Lilián, Totti, Marinês, Bona Garcia, Nilce Cardoso e tantos outros sentiram na carne, nas entranhas e na alma a insana habilidade de Seelig na tortura – que um dia, em depoimento ao CPDOC da Fundação Getúlio Vargas, o condescendente general Ernesto Geisel resumiu como “necessária, em certos casos, para obter confissões e, assim, evitar um mal maior”.

Apesar desse enorme prontuário de violências comprovadas por testemunhos e depoimentos oficiais, Pedro Seelig morreu impune, intocável, inacessível, intangível pela lei dos homens neste país consagrado pela impunidade aos crimes, políticos ou não. Como Ustra e Fleury, seus ilustres companheiros no pódio da tortura, Seelig sobreviveu ileso a um país cínico, incapaz de confrontar seus vilões e as iniquidades do regime militar. Após 21 anos de ditadura envergonhada ou escancarada, o Brasil, ao contrário de seus altivos vizinhos, é o único país do Cone Sul que não tem um único general, um só torturador denunciado, processado e condenado pelos crimes de violência e abuso contra os direitos humanos. (Continua)

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20
Set21

Cristina Serra e o jantar de Temer, na veia

Talis Andrade

 

por Fernando Brito

- - -

Cristina Serra, sempre competente como jornalista em seus 40 anos de carreira, se supera também como cronista política vigorosa, a mostrar que existe vida ética fora do relativismo moral – por nossas bandas, frequentemente um “relativismo imoral” –

Dá o tratamento que merecem Michel Temer e seus comensais no regabofe do deboche onde, mal saído o país de um momento tenso de conflito institucional e mergulhado numa imensa crise, caíram às gargalhadas com a imitação do monstro que acabava de ser, temporária e parcialmente contido.

Tudo se torna mais forte porque aquilo que Cristina descreve no texto a cartunista Marília Marz traduz de forma crua e espetacular.

 

Riem do que, senhores?

 

por Cristina Serra, na Folha de S. Paulo

O vídeo do recente jantar em homenagem a Michel Temer lembrou-me uma cena do filme “O Poderoso Chefão 3”, o último sobre a saga da família Corleone, dirigido por Francis Ford Coppola e estrelado por Al Pacino. A ficção mostra um encontro de mafiosos, num ambiente cafona e decadente em cada detalhe da decoração: cristais, pratarias, taças, lustres.

Semelhante também é a disposição dos personagens na cena: senhores cheirando a naftalina, em torno de uma grande mesa para tratar de negócios. No caso, aqui, para celebrar o “business as usual”, depois que Temer afivelou uma focinheira em Bolsonaro e deixou claro quem controla as rédeas do processo golpista que se desdobra desde 2016.

No vídeo, a anormalidade institucional do país, os ataques de Bolsonaro à democracia, à legalidade e ao STF, enfim, tudo o que joga o país no chão é tratado com chocante naturalidade. Na imitação que faz do presidente, um animador de auditório fala em instrumentos de tortura usados na escravidão, como a chibata, e o pau de arara, símbolo da violência na ditadura. Seguem-se risadas e aplausos.

 
Nunca um presidente cometeu tantos crimes de responsabilidade contra o povo. Estamos chegando a 600 mil mortos pela Covid. Doença, desemprego e fome dilaceram os sonhos de milhões de brasileiros, lançados ao desespero pelo governo que essa gente ajuda a manter no Palácio do Planalto. Ainda que mal pergunte, riem do que, senhores?
04
Mai21

Uma injustiça contra Paulo Guedes

Talis Andrade

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Ele mesmo se transformou de filho de funcionária pública, que estudou em escola pública, que cursou universidade pública, no monstro que quer a qualquer e todo custo destroçar as instituições públicas 

 

Por Eric Nepomuceno /Brasil-247

Paulo Guedes, o ex-funcionário de Augusto Pinochet que tem no currículo brasileiro um e apenas um destaque – sua bem sucedida atuação como especulador no mercado financeiro – disse que os que o acusam por ter dito que qualquer filho de porteiro com zero no vestibular entra em universidade estão querendo “criar um monstro” às custas do Estado.

Uma injustiça, disse ele. 

E concordo plenamente, apesar de ter dado prova inconteste de sua ignorância radical: há, sim, nota mínima para ser aprovado em vestibular.

Mas quem quer que seja que tenha o projeto de transformá-lo em um monstro está, na verdade, sendo um usurpador no melhor estilo de Temer. 

Contei num texto, repito aqui.

Em novembro de 2002, poucas semanas depois da eleição de Lula, eu estava em São Paulo. 

E resolvi almoçar numa cantina italiana do bairro de Higienópolis, onde costumava me encontrar com meu pai quando ia do Rio para visitá-lo. 

Escolhi uma mesa de canto. 

E, ao lado da minha, uma meia dúzia de engravatados comentava a eleição de Lula.

Pareciam advogados, agentes do mercado financeiro, enfim, gente de dinheiro. 

Os paletós estavam pendurados no respaldar da cadeira, as gravatas afrouxadas, dando sinais de um certo relaxamento.

Falavam alto, impossível não pescar uma frase aqui, outra acolá. Até que começaram a falar de Lula, e resolvi prestar atenção.

As menções iam de “pau-de-arara analfabeto” a “operariozinho de merda”, até que um – que achava natural comer enquanto bebia uísque com água – soltou a pérola: “Não serve nem para porteiro do meu prédio”.

Pois Paulo Guedes poderia perfeitamente estar naquela mesa, e certamente aplaudiria. 

Ninguém pode querer transformar semelhante besta em “monstro”: ele mesmo se transformou de filho de funcionária pública, que estudou em escola pública, que cursou universidade pública, no monstro que quer a qualquer e todo custo destroçar as instituições públicas. 

E, se tudo der certo, destroçar o próprio Estado.

Afinal, quem que não possa pagar um plano de saúde milionário acha que pode ter o direito de querer viver muito? Ter direito de, se ficar doente aos 88 anos e não tiver plano caríssimo de saúde, ser atendido às custas do Estado? Absurdo.

Em qualquer governo decente essa abjeção ambulante só passaria pela Esplanada dos Ministérios para tirar fotos e ponto final.

No pior governo da história da República ele se juntou a todas as nulidades indecentes e cúmplices: virou ministro.

Guedes é legítimo representante não apenas dos especuladores do mercado financeiro: também representa, e com brilho, gente como os cavalheiros daquela mesa de cantina em Higienópolis.

Continua, embora com intensidade muitíssimo menor, a contar com o apoio a classe asquerosa e daninha dos agentes dessa sacrossanta entidade invisível mas infinitamente poderosa, o tal de “mercado”.

Que não se tente transformar uma pilha de excremento moral em monstro. Ele é apenas cúmplice do Genocida. Isso e nada mais.

bolsonaro paulo guedes os moicanos de pinochet dit

 

25
Jan21

Violência sexual: o capítulo esquecido da ditadura militar

Talis Andrade
 
Estupros e outras torturas do tipo eram métodos comuns aplicados pelos agentes da repressão contra presos políticos
 
Marie Declercq
 

A ditadura militar durou 25 anos no Brasil e até hoje gera discussão na sociedade brasileira, inclusive porradaria. Por mais que o presidente eleito, Jair Bolsonaro, tente amenizar o golpe de Estado de 1964 chamando-o de "Revolução de 64", exaltando torturadores ou relativizando um período sombrio na história brasileira pautado por violações gravíssimas aos diretos humanos e `a democracia, não há como apagar a história de quem sobreviveu ao período.

Segundo o relatório final da Comissão Nacional da Verdade, divulgado em 2014, o número total de mortos e desaparecidos durante os 25 anos de regime militar é de 434 pessoas - mais de 6.500 colegas de farda também foram perseguidos pelo regime, e muitos também foram torturados. Não foram poucos os métodos utilizados nas sessões de torturas praticados por cerca de 377 agentes da repressão contra pessoas consideradas inimigas do regime. Nas horas intermináveis de "interrogatório", presos políticos denunciaram em seus relatos durante a Comissão Nacional da Verdade (CNV) espancamentos, choques elétricos, pau-de-arara, afogamentos, torturas psicológicas e, claro, estupros. A violência sexual, inclusive, era algo corriqueiro nos porões da ditadura. Especialmente contra mulheres.

Apesar de presentes e constantes, a violência sexual praticada pelos agentes de repressão, autorizados pelo alto escalão do regime para torturar qualquer suspeito, dificilmente é mencionada nos livros de história e outros registros mais corriqueiros sobre o período. Um dos desafios dos consultores, acadêmicos e especialistas que trabalharam na CNV foi justamente conseguir trazer à tona esses relatos.

"A violência sexual é um aspecto desconhecido da ditadura militar. Ainda hoje, mesmo depois da publicação relatório final da CNV, é algo que permanece pouco conhecido até porque é um tema tabu e carrega essa carga extra ao discutir", conta Glenda Mezzaroba, cientista política que coordenou o grupo de trabalho "Ditadura e Gênero" na CNV e autora do livro Um acerto de contas com o futuro: a anistia e suas conseqüências, um estudo do caso brasileiro. "

 

Segundo a cientista política, foi de extrema importância conceituar muito bem o que pode ser considerado violência sexual usando a conceituação de órgãos internacionais como a Organização Mundial de Saúde. Até porque na época do regime militar (e até hoje) o conceito de violência sexual e estupro estão muito presos em se houve ou não penetração. E os relatos colhidos evidenciam que houve, sim, violência sexual que não precisou envolver necessariamente a penetração na vagina ou ânus, "A maioria das vítimas não tinha essa noção de que ser obrigada a ficar nua no momento da prisão já é violência sexual," explica. "Nós observamos, inclusive, que tinha denúncias de violência sexual no livro que Carlos Marighella publicou em 1965, relatando choques elétricos nos órgãos genitais. Porém, não havia muita clareza na classificação dessas violências.1554242166464-anistia

capítulo reservado à violência sexual no relatório final da Comissão Nacional da Verdade publicado em 2014, mostrou como os agentes da repressão tinham um apreço macabro pela prática. Nos relatos, o ato inicial de desnudar o preso e colocá-lo perante outros agentes e espectadores era padrão. Seguiam então humilhações verbais, acusações e ameaças de morte e contra companheiros, familiares e amigos. Mulheres foram estupradas na frente de seus cônjuges como forma de fazê-lo entregar informações.

"Eu estava ali estava vulnerável, completamente vulnerável. Aí o cara entrou com a mão dentro da minha roupa e aí, bom, como qualquer outro abuso sexual, eu não vou ficar descrevendo detalhes, mas foi isso que aconteceu. A mão dele passou por tudo e não sei o quê. Ele dizia assim: 'Não, ela vai gozar, comigo ela vai gozar e ela vai falar'. Eu entrei num pânico tão grande que eu dizia assim: 'Me bota no pau de arara'. Olha se isso é coisa de gente normal."

O trecho acima foi extraído do depoimento de Ieda Akselrud de Seixas, filha de militantes mineiros, estuprada no DOI-CODI em 1971 quando toda sua família foi presa por envolvimento em movimentos revolucionários que lutavam contra o regime militar. Ieda, assim como diversas mulheres e homens, relata que demorou algum tempo para entender que o estupro que sofreu era também parte do método de tortura dos militares.

"Mas eu levei muito tempo para me tocar que aquilo era abuso sexual, sabe por quê? Eu minimizava aquele episódio porque, afinal, não era pau de arara, não era choque e não era cadeira do dragão. É muito louco isso! É muito louco," contou.
 

Os homens também eram submetidos à violências parecidas. Os grampos de metal para administrar o choque elétrico nos corpos das vítimas eram propositalmente presos na genitália e no ânus. "Tudo era mais suportável, mas o choque elétrico… E vou falar uma coisa que me ocorreu muitos anos depois, que é o sadismo dos torturadores. […] eles pegavam as partes mais sensíveis do corpo, que são as partes mais erógenas, mais sensíveis às relações amorosas, mais nervosas. Que são o pênis, os lábios, as partes mais sensíveis. É uma tragédia humana. Como é que as partes mais sensíveis, pessoais, íntimas, são também as partes que os algozes, os torturadores… Não sei como esses caras conseguem viver e dormir," contou José Carlos Zanetti, preso em maio de 1971, em Feira de Santana (BA).

Há relatos que mostram perícia distinta na tortura de grávidas, com a utilização de técnicas para evitar que abortassem ou efetivar o aborto, ou mesmo esterilizar uma mulher

Mulheres grávidas também não eram poupadas de torturas. Conforme o relatório da CNV, "há relatos que mostram perícia distinta na tortura de grávidas, com a utilização de técnicas e cuidados específicos quando se pretendia evitar que abortassem ou quando pretendiam efetivar o aborto, ou mesmo quando esterilizar uma mulher era o objetivo". Mulheres como Rosa Maria Barros dos Santos, presa e levada para o DOPS de Recife em janeiro de 1971, sofreram abortos induzidos sem qualquer consideração sobre o sofrimento da gestante. No caso de Rosa, lhe administraram AAS (medicamento contraindicado na gravidez) para acelerar seu aborto.

Flora Strozenberg era mãe de dois filhos pequenos quando foi raptada em 1974 pelos agentes da ditadura e levada até o DOI-CODI de São Paulo onde foi torturada. No seu relato, conta que foi obrigada a sentar numa cadeira ginecológica e levou choques na vagina. "É uma cadeira de ginecologista que eles pegam choque elétrico e botam [na vagina] com as seguintes palavras: 'Isto é para você nunca mais botar comunista no mundo'," contou.

Em depoimento prestado à CNV, Márcia Bassetto Paes conta que além dos choques que sofreu no Deops/SP em 1977, teve que se submeter a atos mais humilhantes na frente do colega Celso Giovanetti Brambilla. "Uma das coisas mais humilhantes, além dessas de choques na vagina, no ânus, no seio, foi que eu fui colocada em cima de uma mesa e fui obrigada a dançar para alguns policiais, nua. Enquanto isso, eles me davam choque. […] Celso estava sendo torturado ao lado, também com choque elétrico, me vendo nessa situação."

Maria Auxiliadora Lara Barcelos

Maria Auxiliadora Lara Barcelos, conhecida como "Dora" (foto) foi presa em 1969 e levada ao quartel da Polícia do Exército, na Vila Militar, onde foi despida, espancada, submetida a choques elétricos nos seios, vaginas e diversas partes do corpo. Ela foi banida para o Chile em 1971, mas precisou sair do país por causa da ditadura de Pinochet. Dora nunca se recuperou das sequelas emocionais deixadas pela tortura e se suicidou em 1976 aos 31 anos em Berlim Ocidental. 

O simples fato também de serem mulheres, militantes de esquerda ou não, já era também motivo para os militares xingarem e humilharem verbalmente as mulheres capturadas. O senso comum era que essas eram culpadas por estarem lá, visto que estava longe do seu papel de filha, esposa ou mãe. O ódio de gênero era evidente. Por isso, as xingavam de "puta", "vagabunda" e qualquer outro adjetivo que seja o contraponto de santa. Os dois únicos papeis cabíveis às mulheres na visão do regime.

"Pelo fato de você ser mulher, também você percebe que há talvez, às vezes, uma raiva muito maior, eu não sei se é pela questão de achar 'por que uma mulher está fazendo isso? Por que uma moça está fazendo isso?' E é uma forma, talvez, muito de querer te desqualificar de todas as maneiras. Inclusive, o mínimo que você ouve é que você é uma 'vaca”' São as boas-vindas. É a maneira como você é chamado," relatou Maria Aparecida Costa à CNV.1554241773303-33205806532_d5a0ee0f48_z

De acordo com o relatório final, a violência sexual não foi ocasional e sim disseminada como uma prática comum em toda a estrutura repressiva do regime. "Nos testemunhos analisados pelo grupo de trabalho “Ditadura e Gênero” são citados DEIC, DOI-CODI, DOPS, Base Aérea do Galeão, batalhões da Polícia do Exército, Casa da Morte (Petrópolis), Cenimar, CISA, delegacias de polícia, Oban, hospitais militares, presídios e quartéis," diz o item 37 pertencente ao capítulo 10 do relatório final da Comissão Nacional da Verdade.

A violência sexual não foi ocasional e sim disseminada como uma prática comum em toda a estrutura repressiva do regime

Fora as cicatrizes emocionais que a tortura deixou nas vítimas, há ainda algumas que carregaram uma grande culpa por terem cedido informações sobre companheiros durante as sessões de tortura. Essa questão também foi abordada pela equipe coordenada por Mezzaroba. Em um depoimento anônimo, uma mulher relata a grande culpa que sentiu ao não ter resistido a dor durante a tortura e revelado informações aos militares. Ela foi presa aos 19 anos.

"(…)Podemos ouvir na fala de muitos daqueles que passaram pela experiência de prisão e tortura, referindo-se a si mesmos, expressões como “resisti”, “não delatei”, “não entreguei ninguém”. Ou, referindo-se a outros, expressões do tipo: “ele não abriu nada”. (…) Expressões que se, por um lado, traduzem o sentimento de orgulho e honra daqueles que as dizem, carregam também consigo, implicitamente, mesmo que sutilmente, uma acusação dolorosa aos que, por alguma razão, não resistiram. Talvez não compreendam sua dor," contou a vítima em seu relato.

Mezzaroba conta que a dona do depoimento acima carregava uma carga de culpa, fora as consequências psicológicas inevitáveis de quem foi vítima da tortura promovida pelo Estado. "Ela trazia uma dor muito grande, inserida nessa lógica de que você deveria resistir e não entregar nada. Na verdade, tudo que acontece a partir da primeira violência na tortura, nada ali se torna responsabilidade da vítima depois disso. (…) ela foi vítima de uma violência inominável e incapaz de ser mensurável. Nada que acontece sob tortura é responsabilidade da vítima. Ali, o ser humano não tem mais controle sobre seu corpo. Entrar nesse tipo de coisa é uma bobagem e ajuda a perder o foco do que realmente é importante."

"Nada que acontece sob tortura é responsabilidade da vítima"

As tentativas de desclassificar e esvaziar a gravidade do fato que a violência sexual era autorizada e praticada por autoridades do Estado naquele período ainda persistem. Inês Etienne Romeu, a única sobrevivente da Casa da Morte, em Petrópolis, passou 96 dias presa no centro de tortura clandestina no Rio de Janeiro e foi estuprada pelo militar Antonio Waneir Pinheiro Lima, conhecido como Camarão. Em 2017, dois anos após a morte de Romeu, o juiz Alcir Luiz Lopes Coelho da Justiça Federal em Petrópolis, rejeitou a denúncia movida pelo Ministério Público Federal contra o militar sob o argumento de que desrespeitar a anistia "ofende a dignidade humana" e que o crime de estupro já havia prescrito.

Embora a Comissão Nacional da Verdade tenha feito um primoroso trabalho em reunir fatos, documentos oficiais e apurações sobre as violações cometidas pelos militares durante a ditadura, não houve ainda o julgamento das centenas de militares e autoridades envolvidas no regime.

"Desde o final da Segunda Guerra Mundial, as nações têm construindo arcabouços para lidar com violações de direitos humanos", diz Glenda. "O que se tem bastante claro hoje é que os estados que cometeram essas violações têm pelos menos quatro obrigações com vítimas: o dever de justiça que é identificar e punir os responsáveis; o dever da verdade, que é a abertura de arquivos dos períodos de repressão; o dever de reparar e de compensar, sobretudo simbolicamente com a construção de museus e espaços de memórias e também reparar financeiramente; e o dever de transformar as instituições e torná-las democráticas. O Brasil começou em partes esse trabalho."

Segundo a cientista política, ainda falta muito para que se desconstrua a narrativa criada em torno da Lei da Anistia e também em informar a população sobre as consequências reais da dita dura militar. "Ainda tem muito para se fazer no Brasil para lidar com o legado deixado pela ditadura", diz.

 

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