Sob o nariz dos militares
Apesar de o estado e a empresa negarem, a prostituição era encarada como necessidade para o bom andamento das obras – um canteiro majoritariamente composto de homens solteiros. Foto Jean Pavão para o Intercept Brasil
III - OS FILHOS ESQUECIDOS DE ITAIPU
ITAIPU SE RECUSAVA a assumir alguma responsabilidade ou discutir abertamente a zona de prostituição – ainda que a mudança no local das boates tenha ocorrido para atender aos seus interesses. E continua assim mesmo passados 45 anos. “Não temos registros de atuação da Itaipu para a remoção ou realocação de casas de prostituição em Foz do Iguaçu”, informou a empresa ao Intercept, por meio de e-mail.
Mas pesquisadores dizem outra coisa. “As autoridades da empresa e da cidade entenderam a necessidade de uma zona de tolerância que fosse suficientemente afastada do centro da cidade, facilmente acessível pela rodovia e ampla o suficiente para conter o número de casas necessárias para atender os milhares de trabalhadores da barragem que chegariam à fronteira”, diz John Howard White na sua tese de doutorado em filosofia da história pela Universidade do Novo México, dos EUA, sobre gênero e trabalho na fronteira entre Brasil e Paraguai.
“Os guardas de Itaipu controlavam os bordéis para que não acontecessem brigas e para que os trabalhadores não se embebedassem ao ponto de que quando voltassem ao trabalho pudessem sofrer ou ocasionar algum acidente”, salienta a geógrafa Patrícia Claudia Sotuyo no seu mestrado.
A zona de prostituição também era monitorada de perto pelo estado. Todas as trabalhadoras do sexo de Três Lagoas eram fichadas na Polícia Civil do Paraná. Eram cerca de 700 – mas, até o final da obra, esse número somou 10 mil.
O estado exercia controle sobre o corpo dessas mulheres ao emitir a “carteira de dançarina”, com foto e dados pessoais na frente e carimbos das visitas médicas no verso. Cabia à Polícia Civil, por meio do Fundo Especial de Reequipamento Policial, o Funrespol, o trabalho de fiscalizar os exames médicos das mulheres e cobrar as taxas de alvará das boates.
A prostituição em si não é proibida no Brasil, mas o Código Penal, de 1940, considera crime “tirar proveito da prostituição alheia, participando diretamente de seus lucros ou fazendo-se sustentar, no todo ou em parte, por quem a exerça”. A pena prevista é de reclusão de um a quatro anos, e multa.
“As mulheres, para trabalhar, tinham que trazer um documento na delegacia, e a gente fazia a carteirinha de bailarina, com o nome original e o nome fantasia”, disse o policial aposentado Genésio Aparecido da Silva, chefe do Funrespol entre 1978 e 1986. “Todos os meses você anotava. Se uma desse furo, você falava ‘olha, cadê o exame do mês passado?’. Então era bem cobrado, a exigência tinha que ser cumprida”.
Cada boate recolhia uma taxa mensal ao Funrespol, convertida depois em equipamentos para as forças policiais. Mesmo considerado marginal, o trabalho das prostitutas era revertido para a compra de armas, munições e viaturas que serviam aos órgãos estatais de repressão.
Havia uma escala para receber os donos das boates. “Os proprietários sabiam que pagavam um alvará de funcionamento, e a gente já avisava que as mulheres tinham que ir lá no Funrespol fazer a carteirinha”, lembra Genésio. No início do mês, os policiais faziam uma ronda pela cidade para cobrar as taxas. “Você fazia uma vistoria e chamava a proprietária ou o proprietário. Tinha que levar os documentos, senão podia fechar o estabelecimento”.
“Eles vinham fazer vistoria, boate por boate, mulher por mulher”, conta Dalva Alves Pereira, 63 anos, ex-gerente de boates que hoje mora com o marido em um conjugado de quarto e sala no bairro. “Nós fazíamos exame no ginecologista para ver se não tinha doenças venéreas. Nós pagávamos, fazíamos no posto [de saúde] e particular. Às vezes eles vinham colher aqui [o sangue]”, diz. “Para poder pagar o alvará tinha que levar o exame na delegacia. Todo mês tinha que levar os exames das mulheres, todas, na delegacia”.
Os militares tomaram o poder à força em 1964 não só com o objetivo de eliminar as esquerdas. Havia o pretenso projeto de um “Brasil Grande”, apoiado em obras colossais e numa sociedade de princípios morais, cristãos e conservadores, pontua o antropólogo José Miguel Nieto Olivar. No livro “Devir puta”, resultado do seu doutorado, ele constata que o estado foi complacente com prisões, torturas e mortes de prostitutas.
Mas, em Itaipu, os militares preferiram usar a prostituição ao seu favor. A equipe da delegacia de Foz do Iguaçu enviava relatórios mensais de arrecadação ao comando da Polícia Civil, em Curitiba. Não há registros de quanto dinheiro a prostituição vigiada em Três Lagoas rendeu à ditadura militar. (Continua)