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O CORRESPONDENTE

Os melhores textos dos jornalistas livres do Brasil. As melhores charges. Compartilhe

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O CORRESPONDENTE

18
Jul20

A Renda Básica Universal na América Latina e no Caribe, uma medida de vida ou morte após a pandemia

Talis Andrade

crise pobreza Cristian Topan.jpg

 

 


A pandemia está instalando, com maior ênfase, o debate sobre a possibilidade de garantir uma renda universal para toda a população. Até recentemente, era um slogan de grupos políticos e acadêmicos críticos e hoje faz parte da agenda da governança global.

A reportagem é de Alfredo Zaiat, publicada por Sputinik, 15-07-2020. A tradução é do Cepat.

O Presidente do Fórum Econômico Mundial (Davos), Klaus Martin Schwab, em encontro no qual participa o establishment financeiro e líderes das principais potências, incorporou esta iniciativa à agenda. É claro que essa ação não significa uma revisão ideológica do poder mundial, mas uma reação defensiva na busca de evitar o colapso do sistema, em razão de uma das crises mais graves da história.

Até o FMI está estudando. O diretor do Departamento de Assuntos Fiscais, o português Vítor Gaspar, explicou na última edição do relatório 'Monitor fiscal' que a renda básica universal "é uma das várias ideias que podem ser examinadas em resposta a essa crescente incerteza".

A Igreja Católica liderada pelo Papa Francisco também vem se pronunciado a favor da implementação de um salário universal que compense os efeitos excludentes de uma economia financeirizada.

Vacina
Como a experiência indica, as crises econômicas costumam ser melhor aproveitadas por setores do poder econômico para assentar bases de crescimento organizadas sobre pautas de maior desigualdade. Hoje, esse terreno está em disputa e a bateria de políticas, decisões públicas e comunitárias que estão sendo resolvidas determinará qual será a orientação a emergir dessa crise inédita.

Enquanto não for encontrada uma vacina eficaz para conter o coronavírus e a economia possa retornar a uma certa normalidade, é essencial implementar medidas que atenuem os efeitos da crise nos grupos sociais afetados. Nesse cenário, irrompeu com intensidade a ideia de uma renda básica universal. Seria uma medida paliativa em primeira instância e, em seguida, pode se tornar uma base para ampliação de direitos. É um debate global que não está resolvido.

Transferências

A Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (CEPAL) propõe que os governos garantam transferências monetárias temporárias imediatas para satisfazer necessidades básicas e sustentar o consumo das famílias.

A médio e longo prazo, o organismo reitera que o alcance dessas transferências deve ser permanente, ultrapassar as pessoas em situação de pobreza e chegar a amplos estratos da população que são muito vulneráveis a cair nela, o que permitiria avançar em direção a uma renda básica universal, para assegurar o direito básico à sobrevivência.

O relatório

O desafio social em tempos de Covid-19 detalha o impacto social e os desafios relacionados que a atual crise teria para os países da América Latina e do Caribe. Este documento propõe uma renda básica de emergência para ser implementada imediatamente, com a perspectiva de permanecer ao longo do tempo de acordo com a situação em cada país.

Isso é relevante, uma vez que se estima que a superação da pandemia levará tempo e as sociedades devem coexistir com o coronavírus, o que dificultará a reativação econômica e produtiva.

"A pandemia tornou visíveis problemas estruturais do modelo econômico e as deficiências dos sistemas de proteção social. Por esse motivo, devemos avançar para a criação de um Estado de bem-estar social com base em um novo pacto social que considere o fiscal, o social e o produtivo", disse Alicia Bárcena, secretária executiva da CEPAL.

Pobreza

A proposta de uma renda básica de emergência seria equivalente ao custo per capita de adquirir uma cesta básica de alimentos e outras necessidades básicas (uma quantia que determina a linha de pobreza de cada país), durante seis meses, para toda a população vulnerável.

A CEPAL calcula que deveria alcançar 215 milhões de pessoas, 34,7% da população regional. Isso implicaria um gasto adicional de 2,1% do PIB latino-americano para cobrir todas as pessoas que se encontram em situação de pobreza este ano.

"A pandemia exacerbou as dificuldades da população em satisfazer suas necessidades básicas. Portanto, é necessário garantir renda, segurança alimentar e serviços básicos a um grande grupo de pessoas cuja situação se tornou extremamente vulnerável e que não necessariamente estavam incluídos nos programas sociais existentes antes da pandemia", afirmou Bárcena.

O que é renda básica universal?

É uma renda periódica paga pelo Estado a cada pessoa, sendo um direito sem quaisquer condições. Essa renda corresponde a uma política social redistributiva. Os governos buscariam, assim, garantir um nível mínimo de renda para todas as pessoas e reduzir as desigualdades sociais.

Diferentemente de outras políticas de assistência social, na renda básica, o direito a essa renda não é determinado pela situação pessoal do beneficiário. Isso porque é considerado um direito pelo simples fato de ser um membro da sociedade.

Dessa maneira, a situação financeira, familiar e pessoal não impediria ninguém de acessar essa renda. No entanto, o valor recebido pode variar dependendo de certos fatores, dependendo das características específicas do programa de renda básica.

A ideia de renda básica universal não está desligada de uma reformulação geral dos critérios operacionais do Estado, da economia e das relações internacionais.

O exemplo da Espanha

O caso mais recente de implementação é a Espanha. O governo aprovou a renda mínima vital no último Conselho de Ministros. É um benefício com o objetivo de cobrir 80% das pessoas em extrema pobreza no país.

É uma medida que pode chegar a beneficiar mais de 850.000 famílias e será um benefício gerenciado através da Seguridade Social. Ao contrário de outros auxílios, é uma medida estrutural e indefinida.

Será uma rede de seguridade permanente para os mais vulneráveis e o dinheiro investido nessa medida é estimado em cerca de 3 bilhões de euros por ano.

A proposta na Argentina

A Argentina é um dos países da região onde se está definido um esquema de renda básica universal. O ministro do Desenvolvimento Social, Daniel Arroyo, informou que esse benefício estará vinculado ao mundo do trabalho.

Afirmou que não está pensando nisso como uma renda básica no "modelo europeu", que não é mais que um problema de renda, mas considera necessário acrescentar a complexidade que a situação argentina demanda: associá-la ao trabalho de quem recebe o dinheiro.

Arroyo sustenta que o problema social argentino não pode ser entendido sem o relacionar ao trabalho, renda e acesso a serviços, e que separar um do outro é um erro.

A base para implementar a renda básica na Argentina está dada nas 9 milhões de pessoas que recebem a Renda Familiar de Emergência, uma medida preparada no início da pandemia para atender setores vulneráveis.

Redistribuição

Um documento de pesquisa do Instituto de Pensamento e Políticas Públicas afirma que o poder da renda universal ou da renda cidadã ou de qualquer outro instrumento que permita democratizar a renda ao conjunto da população pode atrapalhar as relações de poder capitalistas.

O economista italiano Andrea Fumagalli explica que a renda como amortecedor e proteção social intervém na redistribuição da renda, uma vez que a riqueza produzida se distribui entre os fatores de produção que contribuíram para sua criação.

A diferença é fundamental para deixar claro que a reivindicação de renda básica incondicional é uma reivindicação social e sindical que afeta diretamente o processo de organização da produção e do trabalho.

Proteção

Para articular a proteção social a curto, médio e longo prazo, a CEPAL ressalta que, além de implementar medidas imediatas para responder à emergência, é necessário superar desafios operacionais, como a bancarização da população, o preenchimento de registros sociais, atualizá-los e interconectá-los.

A médio e longo prazo, deve ser garantido o exercício dos direitos através do fortalecimento do Estado de bem-estar e da provisão universal de proteção social, da introdução de um sistema de assistência, da implementação gradual e da busca e mecanismos inovadores de financiamento sustentável.

"Em vista das grandes lacunas históricas que a pandemia agravou, a CEPAL reitera que é hora de implementar políticas universais, redistributivas e de solidariedade com uma abordagem baseada em direitos", afirmou Alicia Bárcena.

"Gerar respostas emergenciais, a partir da proteção social, para evitar uma grave deterioração das condições de vida é inevitável na perspectiva de direitos e bem-estar", acrescentou, concluindo que "construir o Estado de bem-estar e sistemas de proteção social universais é chave para evitar mais uma década perdida” na América Latina e no Caribe.

 

23
Jun20

Rede das milícias digitais & financiadores secretos

Talis Andrade

III - Os subterrâneos

por Ricardo Musse

_ _ _

A construção da candidatura de Jair Bolsonaro, um processo iniciado em 2013 com o giro à direita das manifestações convocadas inicialmente com uma pauta de ampliação de direitos e do Estado do bem-estar social, se deu em larga medida fora do espaço público tradicional. Habitué de programas de entretenimento de baixa audiência na TV, Bolsonaro adquiriu peso político por conta do apoio de grupos que organizaram as manifestações “amarelo canarinho” contra Dilma Roussef e, sobretudo – soube-se apenas depois – devido a um impulsionamento em massa nas redes sociais.

Jair Bolsonaro replicou no Brasil o modelo de organização da direita neofascista do hemisfério norte. Para tanto contou com o apoio explícito de alguns think tanks dos EUA como a rede Atlas Network e o Instituto Ludwig von Mises [4], de organizações como a American Conservative Union (ACU) [5] e de teóricos como Matt Schlapp e de Steve Bannon. Operador da empresa Cambridge Analytica, famosa pelas suspeitas de manipulação de dados na eleição de Donald Trump e no Brexit, Steve Bannon indicou Eduardo Bolsonaro para comandar a seção sul-americana do The movement, uma associação fundada com o objetivo de conduzir ao poder partidos favoráveis à pauta de combate ao “globalismo” e adeptos de formas autoritárias de governo.

A instalação simultânea de três investigações sobre a indústria de fake news – (a) uma CPI no Congresso Nacional, (b) um inquérito no STF conduzido pelo ministro Alexandre de Moraes e (c) outra no bojo de uma ação em trânsito no TSE – indica que a direita tradicional resolveu recorrer ao arsenal que evitou colocar em ação durante o período de construção da candidatura de Jair M. Bolsonaro e também em 2018, fator decisivo para a eleição do ex-militar.

Com o afastamento da direita clássica do governo, o conflito político assumiu as feições de um jogo de poker, no qual se ignoram as cartas do adversário, o blefe correndo solto. O estilo de Bolsonaro é bastante previsível. Procura ao mesmo tempo distrair e desorientar o “inimigo” por meio da produção incessante de ruídos – numa sucessão de decretos, Medidas Provisórias e declarações estapafúrdias afirmadas, negadas em seguida e reafirmadas adiante etc. – e atemorizá-lo com reiteradas ameaças, numa política de “intimidação”.

A direita tradicional, reconfigurada e revigorada pela incapacidade do presidente de demonstrar preocupação com a pandemia e de se solidarizar com as famílias dos mortos, resolveu como se diz na gíria dos jogadores de poker “pagar para ver”. Adotou, para tanto, procedimentos distintos para neutralizar cada uma das três armas que Bolsonaro ameaçava sacar sempre que suas decisões não eram implantadas, seja por serem inconstitucionais seja por não terem obtido apoio político suficiente para a sua tramitação ou aprovação no Congresso.

O inquérito em andamento no STF enquadrou as milícias digitais por meio da efetivação de mandatos de busca e apreensão nas residências de seus principais operadores e de alguns de seus mais notórios financiadores. Essa rede constitui um elemento essencial do bolsonarismo não só por circularem mensagens que reforçam o vínculo afetivo (libidinal) entre o líder e a massa, mas também por disseminarem massivamente fake news alvejando seus adversários políticos.

Não se trata apenas disso, porém. O aprofundamento das investigações sobre o funcionamento da indústria de fake news se recuado no tempo até 2018 poderá comprovar denúncias da época da eleição de que a montagem e a operação dessas redes foram implantadas com o auxílio de know how, mão de obra e capital estrangeiro.

O código eleitoral brasileiro, na seção VI do Capítulo II, diz: “É vedado aos partidos políticos e às sua fundações receber, direta ou indiretamente, sob qualquer forma ou pretexto, doação, contribuição ou auxílio pecuniário ou estimável em dinheiro, inclusive por meio de publicidade de qualquer espécie, procedente de: I – origem estrangeira”.

A punição prevista é estipulada no artigo 28: “O Tribunal Superior Eleitoral, após trânsito em julgado de decisão, determina o cancelamento do registro civil e do estatuto do partido contra o qual fique provado: I – ter recebido ou estar recebendo recursos financeiros de procedência estrangeira” [6].

As duas outras cartas que Bolsonaro alega ter em mãos, e que muitos ainda avaliam que podem impedir o aprofundamento das investigações, são o apoio do presidente norte-americano e a suporte das Forças Armadas brasileiras.

A intensidade da pandemia nos EUA, a que se soma uma onda recente de manifestações gigantescas contra o racismo, minou a popularidade de Donald Trump a tal ponto que se prevê que ele muito dificilmente obterá a reeleição. A burocracia estatal norte-americana (pouco simpática a Trump) e a maioria democrata na Câmera dos representantes têm conseguido impedir que alguns projetos de Trump sejam efetivados, como é o caso da sempre prometida intervenção militar na Venezuela.

O nevoeiro que impedia o conhecimento da posição das Forças Armadas em relação ao anunciado golpe de Jair M. Bolsonaro contra o STF parece estar se dissipando. O jornal Valor econômico noticiou que houve, no dia 10 de junho, um encontro reservado do ministro do STF Gilmar Mendes com o comandante do Exército, o general Edson Leal Pujol, intermediado pelo ex-presidente Fernando Henrique Cardoso. Filho e neto de generais, amigo pessoal do casal Clinton, FHC é inegavelmente homem de confiança do establishment do Partido Democrata. Continua sendo também talvez o principal “formulador” e ideólogo do que restou da classe empresarial brasileira.

Em entrevista concedida no dia 16 de junho a Bruno Lupion e postada no portal da Deutsche Welle Brasil, indagado sobre o encontro com o general, o ministro Gilmar Mendes afirmou: “Estão fazendo uma autocrítica. Recentemente saíram pesquisas que indicam que está havendo uma identificação entre as Forças Armadas e o governo Bolsonaro, em tom negativo”[7]. E emendou com sua característica voz peremptória: “Tenho dito que as Forças Armadas não são milícias do presidente da República, nem de força política que o apoie”.

A escalada capitaneada por STF, TSE, MP-Rio contra alvos ligados a Jair Bolsonaro pode se desdobrar em quatro cenários possíveis: (a) ser contida por acordos de cúpula; (b) reorganização do governo controlando os ímpetos autoritários e o mandonismo do presidente; (c) o impeachment de Bolsonaro; (d) a anulação da eleição por irregularidades da campanha da chapa Bolsonaro/Mourão.

Os desdobramentos jurídicos e políticos desse conflito têm por solo quase que exclusivamente o campo restrito da classe dominante. O destino do governo Bolsonaro e o futuro próximo do país encontra-se nas mãos deles.

A classe trabalhadora por meio de sua representação política, seus movimentos sociais e sua representação política (o leque de partidos de centro-esquerda), constitui a única força efetivamente comprometida com a democracia no país. Se ela não conseguir sair das cordas, do isolamento político e social ao qual foi coercitivamente confinada continuaremos, com ou sem a família Bolsonaro, numa democracia de fachada, num regime pseudoconstitucional.

Notas

[1] Para um relato histórico da gênese das teorias da pós-modernidade cf. Perry Anderson. As origens da pós-modernidade. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1999.

[2] Para uma súmula da bibliografia sobre o neoliberalismo cf. Estevão Cruz & Juarez Guimarães, no site A Terra é Redonda: “Neoliberalismo e dialética negativa”.

[3] Refiro-me aqui à vertente tradicional do pós-modernismo que tem em Jean-François Lyotard um de seus expoentes. Comento as teorias de esquerda sobre a pós-modernidade no artigo “O debate marxista sobre a pós-modernidade”. In: Z Cultural, Ano VII, n. 3. Riode Janeiro, UFRJ, 2012.

[4] Kátia Gerab Baggio relata com precisão e acuidade os vínculos do Atlas Network com os organizadores dos protestos contra o governo de Dilma Roussef no artigo, postado no site A Terra é RedondaAtlas Network e o ultraneoliberalismo” .

[5] Eduardo Bolsonaro organizou no Brasil, em outubro de 2019, a reunião anual para a América Latina da ACU, a Conservative Political Action Conference (CPAC), com financiamento da Fundação Índigo (Instituto de Inovação e Governança), ligada ao PSL. Para um relato do evento cf. o artigo de Otávio Dias de Souza Ferreira, publicado no site A Terra é Redonda, A Internacional de extrema-direita”.

[6] Disponível aqui.

[7] Disponível aqui.

 

 

 

10
Abr20

Com medo da penúria e da morte? Bem-vindos ao mundo real

Talis Andrade

um estranho no ninho.jpg

 

A pandemia de covid-19 democratizou a insegurança e o receio do futuro que já afligia milhões de brasileiros. Resta saber se os abastados aprenderão alguma coisa com isso

 

por J.P. Cuenca

DW Deutsche Welle   

1.

Você vai até a janela, olha para o céu, estica o braço apontando o telefone para cima, fecha o olho esquerdo, olha o céu no quadro do telefone – é o mesmo. Você tira uma fotografia, a examina, volta a olhar para o céu: as nuvens desembestaram a mudar de lugar, o sol talvez agora lhe cegue um pouco.

Mas você estava lá, e por isso publica um instantâneo daquele céu onde não havia nada de especial, apenas o panorama difuso do círculo solar por trás de nuvens em contraluz, visto por uma nesga entre edifícios e antenas de São Paulo. As pessoas vão olhar sua fotografia, cada uma dentro de cada apartamento, e ler seu nome impresso no canto esquerdo sobre a imagem do céu nos cristais dos telefones, e pensar em você, talvez olhando pela janela – talvez sentindo o mesmo pavor.

Andamos assim, silenciando no meio das frases.

Especialmente, os privilegiados que hoje podem isolar-se em cápsulas domésticas. Nas últimas semanas, nossas horas foram ocupadas por tentativas de trabalho remoto, aulas online, ativismo de internet, drinks via zoom e houseparty – e uma enevoada sensação de luto antecipado. Até que percamos o emprego, enterremos nossos mortos ou, na melhor das hipóteses, tenhamos que nos confrontar com um mundo que ainda desconhecemos do outro lado desta quarentena.

São tempos estranhos? Talvez não mais que há três semanas – a diferença é que agora todos sabemos disso.

2.

Nas últimas décadas, o capitalismo tardio promoveu mudanças climáticas irreversíveis e um aumento exponencial na concentração de renda mundial. Pouco importava aos detentores dos meios de produção e do capital financeiro – e às classes médias que votam nos representantes daqueles no governo – que a política econômica de seus países causasse desigualdade, doenças e morte aos menos favorecidos.

No Brasil, o 1% mais rico hoje concentra 28,3% da renda total do país, segundo o Relatório de Desenvolvimento Humano (RDH) da ONU divulgado em dezembro do ano passado. É a segunda maior concentração de renda do mundo, apenas atrás do Catar, um emirado absolutista sem eleições legislativas desde os anos 1970 que usa a charia como sistema legal, onde mulheres supostamente adúlteras são punidas com chibatadas e relações homossexuais, com a pena de morte.

Essa combinação nefasta de concentração de renda e ameaças aos direitos humanos também encontra-se por aqui.

Ainda que, durante o recente ciclo do Partido dos Trabalhadores no poder, tal desigualdade tenha sido mitigada via programas de distribuição de renda e uma economia aquecida, os brasileiros moradores de periferias e favelas seguiram tendo direitos desrespeitados pelas polícias militares de todo o país, assim como os povos indígenas originários ameaçados por ruralistas, grileiros, milícias e superfaturadas obras de infraestrutura. E, se nossas favelas são guetificadas pelo Estado, o que dizer dos presídios brasileiros, verdadeiros campos de concentração para negros e pobres?

Abrindo o panorama, pesquisas do IBGE em 2017 e 2018 apontaram que 64,9% da população brasileira não têm pelo menos um dos seguintes direitos garantidos: educação, proteção social, moradia adequada, serviços de saneamento básico e comunicação (internet). A realidade é certamente pior: o relatório usa o conceito de autodeclaração e só inclui os brasileiros que tenham domicílios, excluindo moradores de rua. Entre mulheres negras ou pardas, sozinhas, e com filhos pequenos, o número é ainda maior: 81,3% . Entre idosos, são 80%.

pobre quarentena _fred.jpg

 

O Estado Democrático de Direito, garantido pela Constituição de 1988 e ameaçado pelo bolsonarismo, nunca foi democratizado no Brasil pós abertura – jamais chegou plenamente aos cantos menos favorecidos do país, mesmo sob governos supostamente de esquerda. E, com a guinada abertamente fascista da política brasileira depois do golpe de 2016, a situação, que já era trágica, piorou.

Em tempos de pandemia, talvez um pouco – apenas um pouco – do pesadelo distópico no qual já viviam milhões de brasileiros pareça agora democratizado. Insegurança financeira e ameaça constante à vida: antes tão normalizados quando no andar de baixo, agora motivos para ansiedade generalizada.

3.

A grande novidade não é a pandemia. É o fato de que as classes mais abastadas brasileiras possam enfrentar, pela primeira vez em gerações, circunstâncias em que sua casta superior não lhes oferece grande vantagem de sobrevivência.

No Brasil, hospitais particulares já sofrem estrangulamento semelhante ao SUS – e mal começamos a escalar a curva de casos e mortes. Tragédia com horizontalidade semelhante, talvez apenas durante guerras, sob bombardeio. O que nunca tivemos por aqui.

Quando isso tudo acabar, talvez a espera e o testemunho da catástrofe, a implosão do que entendíamos como vida normal, faça os abastados da Zona Sul do Rio de Janeiro e da Zona Oeste de São Paulo mais empáticos com quem convive com o medo de ver o chão abrindo sob seus pés desde que nasceu.

Mas não sei se eu apostaria nisso.

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