O correspondente do jornal francêsLe Mondeno Brasil, Bruno Meyerfeld, lança nesta segunda-feira (12), em Paris, o livro “Cauchemar brésilien” (Pesadelo brasileiro, em tradução livre) pela Editora Grasset. Baseada em reportagens pelo país, entrevistas e pesquisas sobre a história política do Brasil, a obra expõe a visão do jornalista sobre a personalidade e a trajetória do presidente brasileiro Jair Bolsonaro e as ações de seu governo.
“O Bolsonaro é uma figura diversa e muito complicada. Foi difícil atribuir um título só para esse personagem. Ele é um produto do interior do Brasil, do Rio de Janeiro, onde foi deputado durante muitos anos, e um produto da política de Brasília”, diz Meyerfeld sobre o processo que o levou a escolher o título da obra.
“Alguns dizem que ele é um doente, um louco, outros dizem que ele é um grande estrategista, que conseguiu criar uma configuração perfeita para chegar ao poder. Ao mesmo tempo, outros dizem que é um ditador, um fascista. Mas os que gostam dele dizem que ele é um democrata e que o STF o impede de governar”.
Finalmente o título do livro foi definido em uma conversa de bar no Rio, quando uma prima do jornalista expressou seu sentimento de que sob Bolsonaro os brasileiros vivem um verdadeiro pesadelo.
“Pesadelo é interessante porque é apavorante, parece surreal, mas fala muito sobre você e seu inconsciente. Acho isso uma característica muito forte do Bolsonaro e tão louco que pareça o bolsonarismo hoje, e especificamente o presidente, ele fala muito sobre a história do Brasil, a sociedade brasileira e suas raízes. Para mim, de certa forma, ele é um pesadelo”, diz o jornalista franco-brasileiro.
Sob o ponto de vista francês, a política do governo Bolsonaro para o meio ambiente é um dos pontos que justifica qualificar sua gestão de pesadelo. “Para os franceses, esse processo de destruição incrível que acontece na Amazônia é apavorante”, afirma. Mas, segundo Meyerfeld, para os brasileiros,as maiores críticas podem vir da gestão da Covid-19 e da crise econômica, agravada pela inflação alta, a taxa de desemprego e a fome que atinge 33 milhões de cidadãos.
No entanto, para o correspondente doLe Monde, que chegou ao Brasil em 2019, quando Bolsonaro assumiu o governo, o mais grave diz respeito à crise relacionada à democracia do país. “Os ataques do Bolsonaro, dos bolsonaristas e de seu governo contra as instituições e contra as urnas eleitorais e o sistema de votação brasileiro, que era um motivo de orgulho dos brasileiros até hoje, vão ter consequências no longo prazo”, avalia.
O grande número de armas em circulação no Brasil, estimado em 1 milhão, também são motivo de preocupação. “Essas armas vão ficar e poderão ter um impacto bastante grande nas relações sociais e no clima de violência que existe no Brasil”.
No texto, o autor alerta que o Brasil se transformou em uma espécie de “laboratório sobre os riscos do extremismo” e Bolsonaro é uma demonstração concreta do que o populismo de extrema direita é capaz de fazer, como a propagação da desconfiança na democracia e a utilização das redes sociais em um país que se encontra, segundo Bruno, em uma “bolha”. “Nessa bolha você pode fazer e falar o que quiser, exprimir qualquer tipo de opinião e está tudo bem. Tudo é muito extremo no Brasil porque às vezes você não tem o autocontrole, uma parte da sociedade brasileira se sente legítima para falar o que quiser”, afirma.
Bruno Meyerfeld refuta qualqueratribuição de Bolsonaro como “Trump Tropical”, em referência ao ex-presidente americano Donald Trump, ou de comparações com outros políticos populistas, como o húngaro Viktor Orban e a francesa Marine Le Pen, líder da extrema direita no país. “Isso é ignorar as especificidades do Brasil e do Bolsonaro. Ele é produto de uma história do Brasil moderno, da ditadura militar, da época da construção de Brasília também dos anos 1950 e 60, e de 30 anos de democracia. Ele tem características próprias”, garante.
França virou obstáculo
No livro de 361 páginas, Meyerfeld busca fornecer pistas de reflexão para os franceses que, na sua opinião, estão com uma certa dificuldade em acompanhar as mudanças que ocorreram no Brasil desde a ascensão de Jair Bolsonaro ao poder.
“Estou percebendo uma forma de incompreensão muito forte. O Brasil de alguns anos atrás era visto como um símbolo de desenvolvimento, progresso de uma democracia mais alegre e progressista, com um líder operário que conseguiu tirar milhões de pessoas da pobreza e de diminuir a taxa de desmatamento em 80%, era algo forte. Era uma democracia nova que estava dando certo. Hoje, com o Bolsonaro, que é visto aqui como o extremo do extremismo, um símbolo de desespero e retrocesso, as pessoas não entenderam muito bem a transição”, avalia.
Durante o processo da produção do livro, Bruno Meyerfeld tentou várias vezes entrevistar o presidente, mas sem sucesso. Segundo ele, Bolsonaro não tem uma relação difícil apenas com a imprensa brasileira, mas também com os jornalistas estrangeiros e particularmente franceses. O obstáculo é reflexo também deuma crise diplomática entre os dois países depois dos embates de Jair Bolsonaro com o francês Emmanuel Macron, um recorrente crítico das políticas ambientais em vigor no Brasil. “Há pessoas inclusive do primeiro escalão do governo [brasileiro] que têm bastante respeito, até são francófilas, mas tem uma certa dificuldade em demonstrar afinidade por causa dessa briga do presidente com Emmanuel Macron”, explica.
“Fui a Brasília várias vezes, falei com vários assessores e entendi muito rapidamente que Bolsonaro não iria dar uma entrevista a um jornalista francês”. O pior, segundo Bruno Meyerfeld, é que o presidente conseguiu expandir sua visão hostil sobre a França para diferentes regiões. “Muitos setores favoráveis ao presidente Bolsonaro têm uma antipatia e até uma certa raiva contra a França. Isso dificulta muito mais o meu trabalho”, explica.
O livro “Cauchemar Brésilien” é lançado às vésperas do 1° turno da eleição presidencial no Brasil, ocasião para os franceses entenderem melhor o clima político instaurado no país e que pode se tornar imprevisível. “Lula é favorito e tem grandes chances de ganhar, mas o Bolsonaro tem uma dinâmica muito forte e ninguém pode menosprezar as chances do atual presidente se reeleger. Oito meses atrás ele tinha perdido cerca de metade dos eleitores dele. Atualmente, a perda é entre 20% e 25% . Hoje ninguém ganha com 70% no segundo turno e a sociedade vai continuar bastante dividida no futuro, com certeza”, opina.
Ainda bem (será?) que o ator Will Smith não é brasileiro nem deputado federal.
Porque o deboche de Eduardo Bolsonaro às torturas que a jornalista Miriam Leitão sofreu na ditadura (“boazinha”, segundo o general Braga Netto), sendo colocada dentro de uma cela, nua, com uma cobra jibóia para aterrorizá-la, não é uma piada de mau gosto e ofensiva de um idota, como a que aconteceu noOscar, é a adesão tardia a uma agressão indigna de qualquer ser humano.
Míriam é uma adversária política da esquerda, hoje e há muito tempo, mas isso não é ser de esquerda ou de direita, é ser um monstro de vileza
E pior, desperta, como se pode observar noTwitter, a boçalidade das hordas bolsonaristas, que elogiam e naturalizam a tortura, um crime hediondo pela covardia e pelo sadismo.
Fazer, publicamente, apologia de fato criminoso é crime, diz o Código Penal, e não há razão para que o Ministério Público permaneça inerte, porque a tipicidade, segundo pacífico entre os juristas, quando dá em relação a fato concreto, que tenha ocorrido e não a um possível crime futuro, como é o caso.
Não se está sugerindo que se dê uma bofetada em Eduardo Bolsonaro, mas que se dê a devida resposta legal, até pelo exemplo de que não se pode fazer isso com a dignidade de um ser humano.
Mas Augusto Aras, com certeza, não é “A lenda”. É é só um daqueles zumbis do filme de terror que estamos vivendo.
As democracias não fazem guerra. Criam “zonas de paz” e resolvem os conflitos de forma pacífica. São sociedades que limitam o poder às regras e às Instituições do Estado de Direito; protegem o exercício pleno das liberdades fundamentais dos cidadãos; asseguram a alternância periódica dos governos, em competições eleitorais, submetidas a procedimentos legitimamente definidos.
O político e escritor sueco Per Ahlmark (1939-2018), no texto A tragédia da tolerância: a conciliação com as tiranias, publicado no livro A Intolerância (Ed. Bertrand Brasil: Rio de Janeiro, 2000), cita a conclusão do Professor da Universidade de Yale Bruce Russet (1935) que analisou todas as guerras entre países independentes: “É impossível identificar uma única guerra entre estados democráticos, a partir de 1815”.
Outro estudioso do assunto, Rudolph Rummel (1932-2014) chegou aos seguintes números de guerras ocorridas no referido período: democracias contra não-democracias, 155; não-democracias contra não-democracias, 198; democracias contra democracias. Zero.
Diante de tais evidências, é procedente afirmar que a ausência de guerra entre estados democráticos é uma lei empírica das relações internacionais. O risco está na erosão da democracia liberal e no fortalecimento dos regimes autoritários, comandados por lideranças capazes de desestabilizar o equilíbrio da ordem mundial.
Putin é o que Vargas Llosa chama, certa ironia, de “homens fortes” que no poder fazem apostas arriscadas. A primeira aposta é se fazer relevante diante da China e dos Estados Unidos; enfraquecer Biden; e, no limite, desafiar a OTAN, a paz mundial, optando pelo cenário beligerante.
No clima gelado da Rússia, Putin distribuiu calorosos afetos com o autocrata Viktor Orban a quem chamou de “melhor amigo do ocidente” e, em dueto com Xi Jinping, recitou: “a amizade entre os dois estados não tem limites”.
Simpático a Putin, o Presidente da Argentina Alberto Fernández optou pelo pragmatismo econômico, mas alfinetou os Estados Unidos para manter a mais importante peculiaridade de um “perfeito idiota latino-americano”.
Entre os dias 14 e 17, o Presidente Bolsonaro vai ao Kremlin. Têm muito em comum o ex-capitão Bolsonaro e o ex-coronel da polícia política da URSS, a KGB: ambos são líderes populistas, autoritários e com fome canina pelo poder. Há 22 anos no cargo, Putin pode ensinar a Bolsonaro sobre peripécias “constitucionais”. Com uma diferença: por aqui as urnas eletrônicas funcionam.
Saudade de Boris Yeltsin. Tudo terminaria em vodca. Tirania e loucura, irmãs siamesas, desconhecem limites. Diferente das tragédias do século XX, não restará narrador para a insanidade de uma guerra nuclear.
O jornal francês Libération traz uma longa entrevista nesta segunda-feira com Caetano Veloso, que explica as motivações estéticas e ideológicas de seu último disco, Meu Coco
Texto RFI
O jornal francêsLibérationtraz uma longa entrevista nesta segunda-feira (3) com Caetano Veloso. Aos 79 anos, o compositor e cantor baiano continua "convincente" em seu último disco, Meu Coco, assinala oLibé, que se interessou pelas motivações estéticas e ideológicas do novo álbum.
"Ele écapaz de associar em uma mesma canção tambores de maracatu, nuances de bossa-nova, arranjos de jazz, guitarras de rock e pitadas de pop. Outra característica típica da obra de Caetano é sua capacidade de sublimar o Brasil sem dar o menor sinal de nacionalismo", destaca o jornal francês.
Para o jornalista Jacques Denis, que entrevistou o cantor por telefone, Caetano é um homem "decididamente conectado ao nosso tempo, sem dúvida preocupado com o passado". "O mais carioca dos baianos cultiva com esplendor a arte do paradoxo, permanecendo, apesar dos anos, este pensador tropicalista que pretendia revolucionar a música popular brasileira ao colocá-la em contato com os ecos do mundo", avalia o crítico.
Na entrevista, Caetano evoca suas influências, que vão das conversas com João Gilberto à poesia concreta de Augusto de Campos. Ele explica, sobretudo, que o samba marca seu posicionamento estético.
Sobre a forte conotação política do disco Meu Coco, o baiano diz que as redes sociais propiciaram o surgimento da atual onda de extrema direita e aberrações políticas da pior espécie, como o presidente do Brasil, Jair Bolsonaro, além de Donald Trump e Victor Orbán, na Hungria. Mas Caetano está convencido de que apesar das fake news propagadas nas redes, e que sustentam esse movimento internacional ultraconservador, "essas ideias podres não conseguirão mudar o senso da história".
Contrariamente a alguns artistas que preferiram se afastar do debate político desde a eleição de Bolsonaro, Caetano afirma que continua conectado ao mundo e à criação artística. Ele diz que respeita quem não quer interferir no debate público, embora sua natureza seja diferente. Por isso, ele gravou Não Vou Deixar, a canção mais explicitamente política do novo disco, na qual se dirige diretamente ao presidente do Brasil.
As discussões sobre o fascismo têm ganhado nova importância nos últimos anos, tanto em debates de movimentos e organizações de esquerda quanto em meios universitários. O motivo é evidente para quem acompanha minimamente o cenário das crises mundial e brasileira. A ascensão de grupos e de governos de extrema-direita em países com diferentes condições políticas e econômicas fez com que o termo fascismo voltasse a ser amplamente utilizado.
No entanto, apesar da retomada do termo, restam muitas questões sobre sua pertinência para compreender e combater aqueles grupos e governos. Entre essas questões, é possível destacar as seguintes: quais as semelhanças e diferenças entre seus usos atuais e as discussões que atravessaram o século XX, período que assistiu ao florescimento de movimentos e regimes mais ou menos próximos ao modelo italiano, a origem de todos eles? Será que esse é mesmo um termo adequado para se compreender o que está acontecendo? Seria o fascismo um movimento e uma ideologia datados no tempo, isto é, vinculados à primeira metade do século XX? Ou estaríamos diante de formas renovadas de suas manifestações?
Também é possível afirmar com alguma dose de certeza que o termo “fascismo” não é consensual. Se não há muitas dúvidas em caracterizar os movimentos e regimes liderados por Mussolini e Hitler com a expressão, não se pode dizer o mesmo a respeito dos acontecimentos em diferentes lugares e períodos. A Espanha de Franco entre os anos 1930 e 1970 pode ser considerada um caso exemplar do fascismo tanto quanto o Japão das décadas de 1930? Seria possível caracterizar as ditaduras militares da América do Sul em meados do século XX da mesma forma que o regime grego da mesma época?
Além dessas questões, muito se discute a respeito de um neofascismo, levando-se em conta sobretudo as semelhanças com as formas de mobilização de grupos em sua maioria pequeno-burgueses e os atuais protestos contra a corrupção nos governos petistas e, mais recentemente, a favor de Jair Bolsonaro. Assim como seus antecessores, os manifestantes brasileiros apontam para a eliminação política e física de seus opositores de esquerda. Apesar dessa semelhança, também é possível se contrapor à caracterização da mais recente onda de direita no Brasil como neofascista. Afinal, grande parte dos apoiadores do atual presidente não reivindicam a herança fascista e não usam símbolos como os fascios ou suásticas. Ao contrário, em afirmações revisionistas e que beiram o delírio, alegam que o nazismo seria de esquerda.
Ainda sobre o paralelo entre a situação histórica das primeiras décadas do século anterior e o presente cenário político brasileiro, o sentido da expressão “fascismo” também é disputado se levarmos em conta uma análise da forma de governo e do estado, bem como sua relação com a forma pela qual a acumulação de capital ocorre em distintos períodos históricos. Por um lado, o caso alemão foi considerado por muitos observadores da época como um exemplo da intervenção ativa do Estado sobre os processos de acumulação e organização da força de trabalho nas plantas fabris, ao mesmo tempo em que o partido nazista se associava a grandes conglomerados capitalistas.
Por outro lado, é difícil dizer que o governo Bolsonaro preze por uma intervenção ativa na atual crise econômica, haja vista a política de preços dos combustíveis que favorece exclusivamente os acionistas da Petrobrás e procura levar à força sua privatização completa. É claro, o horizonte da acumulação alterou as atribuições do estado, que agora atua mais fortemente para garantir que as condições da financeirização possam continuar, reforçando ao mesmo tempo a precarização dos trabalhadores e sua transformação em empresários de si mesmos. O vínculo entre o Estado e o governo brasileiro e os grupos ligados a bancos e instituições financeiras não deixa de apresentar um traço em comum com o caso nazista. Contudo, alguns veem nos eventos nacionais um caso de aprofundamento de tendências autoritárias da política brasileira, ou, em chave distinta, um simples regime de destruição dos arranjos institucionais do Brasil firmados na Constituição de 1988 – que tentou, com passos muito tímidos, a construção de um estado de bem-estar por aqui.
Mais recentemente, nos últimos anos, o retorno da expressão “fascismo” ao vocabulário teórico e político não deixou de ser atravessado por polêmicas. Entre as mais significativas está a oposição com outro termo caro ao debate contemporâneo, “populismo”. Mais do que um simples adjetivo que descreve formas de regime político distintas das democracias representativas liberais, a palavra populismo procura, para muitos, captar as transformações das direitas contemporâneas. Assim, “fascismo” seria um termo adequado para descrever o que aconteceu entre as duas primeiras guerras mundiais, mas muito pouco preciso para se entender uma gama de organizações e governos que vão desde Donald Trump até Rodrigo Duterte, passando por nomes como Recep Erdogan e Viktor Orbán.
Tamanhas seriam as novidades representadas por movimentos como o Tea Party, o MBL e o movimento 5 Stelle que muitas autoras preferem utilizar um termo ainda mais abrangente do que populismo e fascismo. É comum encontrarmos a expressão “novas direitas” para enfatizar ideários e práticas que não seriam encontrados no século XX. Seguindo uma trilha aberta por estudos sobre processos de (des)democratização, aqueles governos e movimentos seriam descritos também como “iliberais” – embora essa caracterização deixe escapar as possíveis afinidades entre os liberalismos e os fascismos. Estão em questão, portanto, as próprias promessas da democracia liberal e representativa e seus contínuos fracassos em fazer justiça a um processo real de democratização da vida da maioria das pessoas.
Sem dúvida, um dos terrenos de difusão das “novas direitas” e de movimentos neofascistas são as redes sociais. A divulgação de fake news e de páginas com teorias conspiratórias, que alimentam as paranoias e síndromes persecutórias de muitos aderentes das extremas-direitas, encontrou não apenas um refúgio em plataformas como Facebook, YouTube e Whatsapp. Estas também fomentaram a própria forma de organização de grupos de intolerância e que glorificam a violência e o uso de armas de fogo. No entanto, podemos dizer que a relação entre tais grupos e os meios contemporâneos de comunicação e divulgação de informações não deixa de apresentar algumas semelhanças com a mobilização do rádio e do cinema operada pelos fascismos. Em particular, podemos ver como em ambos os momentos históricos o conteúdo das mensagens divulgadas pelas lideranças autoritárias apresentam distorções da realidade muitas vezes toscas, além da clara mobilização de sentimentos de frustração e ressentimento com uma ordem social marcada pela irracionalidade.
Ao contrário do que alguns círculos de esquerda e anticapitalistas propagam, discutir o fascismo é, sim, importante. Não se trata de um debate puramente intelectual, como se saber quais os traços dos movimentos fascistas e sua relação com a sociedade capitalista consistisse apenas numa lista de aspectos universais a serem aplicados aos casos particulares. O combate aos grupos e regimes que buscam o extermínio de lutadores e organizações de trabalhadores e subalternos não pode ser feito sem que se conheça o adversário. Em especial, simples palavras de ordem contra os fascistas e seus assemelhados não levam a formas de organização de trabalhadores e subalternos que se coloquem como alternativa à rebelião a favor da ordem burguesa. O anti-intelectualismo não é somente um beco para a transformação radical de nossa forma de organização social. Ele é o próprio solo fértil em que germinam e florescem os fascismos e seus movimentos congêneres.
Cientista política diz que instituições até agora têm conseguido frear o golpismo do presidente, mas alerta: “há sempre risco de ruptura, pois temos um presidente que gostaria de destruir a democracia”
O presidente Jair Bolsonaro aumentou suas investidas contra a democracia, mas, até agora, as instituições, sobretudo o Supremo Tribunal Federal, vêm conseguindo frear o golpismo do mandatário de extrema direita. É o que opina cientista política e socióloga Maria Hermínia Tavares de Almeida (São Paulo, 1946), professora titular aposentada da USP e pesquisadora do Cebrap, em entrevista por escrito ao EL PAÍS. Porém, alerta ela, “há sempre risco de ruptura, pois temos um presidente autoritário que não preza a democracia e gostaria de destruí-la”.
Membro da Comissão de Defesa dos Direitos Humanos Dom Paulo Evaristo Arns, Almeida vê o desfile das Forças Armadas como “mais uma provocação” e afirma que o voto impresso é ”um factoide para alimentar a desconfiança, açular os grupos mais radicais e criar caos político”. Por esse motivo, tem uma visão menos negativa sobre sua tramitação em plenário, também programada para esta terça-feira, mesmo após a rejeição que sofreu na comissão especial. “Não vejo como não colocar na pauta a proposta do voto impresso. Se o presidente não conseguir aprovar, a derrota será gigantesca. Deixará Bolsonaro sem chão e sem bandeira”, opina.
Felipe Betim entrevista Maria Hermínia Tavares de Almeida
Pergunta. Em que estágio a crise política se encontra?
Resposta. Essas coisas são difíceis de medir e nós cientistas políticos não temos bons indicadores objetivos para medir a temperatura de uma crise política. O presidente escalou em suas investidas contra instituições, especialmente ao STF, multiplicou as ameaças de abandonar a Constituição e alardeia que tem apoio das Forças Armadas para isso. Mas, por enquanto, não passou de discurso, de ameaça verbal. A sensação que dá é de um som estridente que se repete e se repete cada vez mais alto, mas sem efeito, a não ser o de criar crispação política. Houve retrocessos imensos em várias áreas que dependem muito do Governo Federal: na atuação internacional do país, no meio ambiente, na educação, na proteção das populações indígenas. Isso é péssima política reacionária, mas é diferente de retrocesso democrático.
P. O risco de uma ruptura democrática aumentou?
R.Há sempre risco de ruptura, pois temos um presidente autoritário que não preza a democracia e gostaria de destruí-la. E a democracia, especialmente no país, está longe de ser indestrutível. Mas, não sei se o risco é maior hoje do que em abril do ano passado, ou em qualquer outro momento em que Bolsonaro ameaçou romper as regras.
P. Em fevereiro, você avaliou que as instituições estavam conseguindo conter Bolsonaro com eficácia. Ainda possui a mesma percepção?
R. Continuo achando o mesmo e sei que essa não é uma percepção consensual entre os analistas. Bolsonaro foi contido pelas regras da federação, que tornam importantes os governos subnacionais. Basta ver a reação à pandemia. Se dependesse do presidente, os brasileiros estariam morrendo com a cloroquina na mão e não haveria vacinação. Ele foi derrotado nessa frente, ainda que sua conduta tenha elevado de forma absurda e desnecessária o preço em vidas pago pela população. O STF impôs uma série de derrotas importantes ao chefe do Executivo e, neste momento, ele é objeto de investigação da Corte Suprema. Mesmo o Congresso, onde uma base de apoio —obtida sabemos como— impede o andamento dos muitos pedidos do impeachment, lhe impôs derrotas. O auxílio emergencial, com a dimensão que teve, foi obra do Congresso. Nem Bolsonaro, nem Guedes foram responsáveis por ele. É bem possível que a PEC do voto impresso seja enterrada na Câmara. Por outro lado, toda a grande imprensa escrita lhe faz oposição dura e livremente. A ela se soma a rede Globo, que ainda é poderosa. Finalmente, a sociedade civil organizada tem feito sua parte na contenção dos arroubos autoritários do presidente. Ele teve que se livrar de seus ministros mais afinados com seus propósitos e discurso: Ernesto Araújo [Relações Exteriores], Ricardo Vélez [Educação], Abraham Weintraub [Educação], Eduardo Pazuello [Saúde], Ricardo Salles [Meio-Ambiente].
P. O que mudou desde então?
R. Bolsonaro parece estar perdendo apoio entre empresários e grupos de alta renda que nele votaram. Muito lentamente, sua base de apoio na opinião pública parece estar diminuindo, ou no mínimo está estacionada entre 25 e 30%. Claramente não cresceu. Não há qualquer evidência de que tenha ganho força social ou política. Foi contido. Agora, o custo é grande. Um enorme esforço de contenção, enquanto poderíamos estar dedicando forças para enfrentar os muitos problemas que temos.
P. Bolsonaro quis se aproveitar de uma manobra militar nesta terça para se exibir com tanques em Brasília, no dia em que o plenário analisa o voto impresso. O que isso representa?
R. Eu continuo achando isso. Bolsonaro, Chavez, Maduro [presidente da Venezuela], Lopez Obrador [presidente do México], Orbán [primeiro-ministro da Hungria], Modi [primeiro-ministro da Índia] são frutos da mesma árvore, do populismo autoritário. Se ele não for permanentemente contido e, de preferência, derrotado no ano que vem, o perigo continuará. Eu não sei qual a extensão do apoio que lhe dão as Forças Armadas. Chavez introduziu mudanças muito profundas: na formação, nas regras de promoção na carreira militar, no controle de seu serviço secreto sobre militares dissidentes. Até onde sabemos isso não aconteceu aqui. Por outro lado, a ocupação de posições de mando por militares se parece com o que o chavismo promoveu na Venezuela. E isso é ruim para as Forças Armadas e para a democracia. Só observo que golpe não depende apenas da iniciativa e participação dos militares. No passado, ele ocorreu com grande mobilização de setores da população que foram às ruas em número bem maior do que o pessoal das motociatas, dependeu do apoio da grande imprensa, de uma parcela importante dos políticos, das elites empresariais, de apoio internacional. Parece-me que a situação hoje não é essa.
P. Como vê o aparecimento de tantos líderes populistas?
R. O populismo autoritário está instalado hoje em muitos países grandes de desenvolvimento médio que, para além de suas histórias muito diferentes, têm muita pobreza e muitas desigualdades: México, índia, Turquia, Venezuela. É algo que temos que levar em conta. As instituições são importantes, mas não são os únicos fatores a considerar. Líderes populistas tiram força do desencanto dos que não veem sua vida melhorar significativamente sob a democracia, dos que não acreditam que as instituições democráticas possam fazer diferença para pessoas como elas, dos que descreem de partidos, daqueles para os quais as liberdades e direitos são palavras sem significado concreto, no seu dia a dia.
P. Enxerga alguma legitimidade na desconfiança com as urnas eletrônicas?
R. Tenho uma visão menos negativa. Esse foi o Congresso mais fragmentado e, provavelmente, o mais direitista que o Brasil já teve. Se tomarmos isso em consideração, poderia ser bem pior. Não vejo como não colocar na pauta a proposta do voto impresso. Se o presidente não conseguir aprovar, a derrota será gigantesca. Deixará Bolsonaro sem chão e sem bandeira.
P. Já com relação ao presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM-MG), ele vem fazendo falas mais contundentes contra Bolsonaro, mas até agora não indicou algum instrumento para frear o presidente. Como avalia o papel dele na crise?
R. Lideres da Câmara e do Senado são lideranças importantes, para coordenar decisões, mas tem que tomar em consideração as forças existentes nas casas que presidem. Essa é uma legislatura na qual a direita é forte e nenhum partido é grande o suficiente para se impor aos outros.
Os ataques que Manuela e Boulos estão sofrendo da turma do Gabinete do Ódio, dos movimentos da direita - TFP, KKK, MBL -, furiosos praticantes da teocracia, da xenofobia, do racismo, da antidemocracia, da misoginia, da homofobia, do femicídio, da supremacia branca, da crença em um Estado forte, lembram as campanhas da ditadura militar, do "Pra Frente Brasil", do "Ame-o ou Deixe-o.
Que os eleitores de São Paulo e de Porto Alegre reajam nas urnas, pelo bem do Brasil.
Patricia Campos Melo, jornalista da Folha de S. Paulo foi atacada por uma testemunha que mentiu na CPI das fake news, e agredida em seguida pelo presidente Bolsonaro e seu filho Eduardo Bolsonaro.
Cristina Serra comenta que a tática de desqualificar bons profissionais da imprensa com boa reputação é conhecida e está nos manuais da Ultradireita, e que o comportamento é feitio de governos ultradireitistas pelo mundo como na Hungria por Victor Orban, nos EUA, quando Trump parte com ofensas torpes contra jornalistas.
Cristina também analisa o comportamento das empresas de comunicação e dos jornalistas. As empresas seriam “Guedistas”? E qual seria o melhor comportamento dos jornalistas?
Cristina Serra lembra episódio de enfrentamento de jornalistas com o ex-presidente João Figueiredo, durante a Ditadura.
Em sua obra 1984, George Orwell aborda o tema de uma sociedade controlada por um governo hiperautoritário que busca reescrever a história. Para isso, desenvolve uma nova língua chamada “novilíngua”.
As autoridades deste estado hiperautoritário não sentiam o menor pudor em mentir, buscando reescrever os fatos históricos, apagando dela fatos e sujeitos históricos. Inimigos do Estado eram apagados da história e tornavam-se “impessoas” ou “despessoas”, deixando de existir e todas as referências a eles eram apagadas de todos os registros históricos.
Na entrevista “’Ustra era homem de honra que respeitava os direitos humanos dos seus subordinados', diz Mourão”, publicada em O Globo, o general Hamilton de Barros Mourão, vice-presidente do governo mais entreguista e antipovo da história do Brasil, está contribuindo para escrever uma “novihistória”. Começa relativizando o conceito “direitos humanos”, alegando que o ex-coronel do exército, Carlos Alberto Brilhante Ustra, um dos personagens mais torpes da história do Brasil, respeitava os direitos humanos de alguns e não de outros. Ustra foi denunciado por atrocidades cometidas enquanto chefiou o DOI-CODI do II Exército (de 1970 a 1974), com sede em São Paulo. Este órgão funcionava como um centro de tortura de opositores à ditadura civil-militar que envergonhou o Brasil durante 21 anos, entre 1964 e 1985. Utilizava o codinome de Dr. Tibiriçá. O herói de Jair Bolsonaro e de Mourão foi reconhecido por vários ex-combatentes de esquerda como aquele que os torturou barbaramente. Ustra foi acusado de inserir ratos em vaginas e torturar crianças diante de seus pais para fazê-los confessar, entre outros crimes.
Contrariando fatos e relatos, Mourão afirma que o coronel torturador era um homem de “honra”. Honra é um conceito antropológico que pode variar bastante. Entretanto, não importa quais princípios rejam a honra, normalmente ela está relacionada à conduta de pessoas consideradas virtuosas, corajosas, honestas, qualidades estas entendidas como virtudes dos seres humanos. Julgar honrado um indivíduo que fez da tortura, da covardia e da violência sua ética de trabalho declara muito a respeito da moral e da ética do vice-presidente.
Mourão prossegue na elaboração da sua “novihistória”. Segundo seu relato “novihistórico”, o governo brasileiro não “simpatiza” com a tortura e que muitas pessoas que participaram da luta contra as guerrilhas urbanas nos anos 1960 e 1970 foram “injustamente acusadas de serem torturadoras”. Este segmento da reportagem possui dois problemas claros. Primeiro, um governo democrático, por obrigação, deve rejeitar, repudiar, combater, denunciar e impedir a tortura. Não é uma questão de simpatia ou de antipatia. Ao utilizar o termo simpatia, o vice-presidente permite àqueles que leem a entrevista deduzirem que o general não rejeita totalmente a tortura como uma abjeção.
Outro problema, talvez mais grave, é desconsiderar as horas e mais horas de depoimentos prestados por cidadãos brasileiros, denunciando a tortura durante o período da ditadura civil-militar. Mais grave ainda é desconsiderar os depoimentos daqueles que foram torturados por Ustra e denunciaram suas práticas desumanas e fascistas. Mourão prossegue afirmando que ainda existem muitos sobreviventes daquele período que querem colocar as coisas “da maneira que viram” (sic). Precisamos completar este raciocínio informando que não só viram como sentiram na pele as torturas e sevícias a que foram submetidos.
Nosso “novihistoriador” prossegue propondo um novo método de investigação histórica segundo o qual “temos que esperar que todos esses atores desapareçam para que a história faça sua parte. E, claro, o que realmente aconteceu durante esse período ... esse período passou"... mas deixou marcas profundas na sociedade brasileira. Em um ato falho, Mourão declara que “temos que esperar que todos esses atores desapareçam”, utilizando um vocábulo muito caro - juntamente com seus derivados desaparecer, desaparecido, desaparecida, desaparecimento etc. - pelas forças armadas brasileiras, sobretudo a partir de 1964. Diante das manifestações da extrema-direita brasileira, podemos constatar que a lembrança daqueles anos tristes não passou para aqueles que, como Jair Bolsonaro, sua famiglia e boa parte de seus eleitores, continuam a defender, hoje ainda, o uso da tortura contra seus desafetos, bem como a implementação de uma ditadura militar.
Ao afirmar “que a democracia é um dos objetivos nacionais permanentes e que o governo quer tornar o Brasil a ‘democracia mais brilhante do hemisfério Sul’" o “novilinguista” e “novihistoriador” Mourão desenvolve um novo sentido para o conceito democracia. O governo do qual ele é vice-presidente extinguiu ou enfraqueceu diversos conselhos que incentivavam e permitiam a participação popular na elaboração de políticas públicas. Interferiu, de maneira arbitrária, na escolha de gestores das universidades públicas, no desenvolvimento das funções próprias à Polícia Federal, no trabalho da Advocacia Geral da União (AGU), restabeleceu a censura na prática, legitimou as ações do gabinete do ódio. Não conheço nenhum autor que reconheça nesse tipo práticas o exercício da democracia e do estado de direito, salvo o general Hamilton Mourão.
Em outro momento non sense da entrevista, Mourão afirma, sem o menor pudor, “que a participação de Bolsonaro em atos que pediam o fechamento do Congresso e do Supremo também não eram uma ameaça à democracia”. Deve ser tudo uma brincadeira entre amigos, então. Fosse o ex-presidente Lula, a ex-presidenta Dilma ou algum político de esquerda que tivesse feito este tipo de “brincadeira” a imprensa corporativa e os militares, nosso garboso e arguto general em especial, certamente a teriam interpretado de uma maneira diferente.
Este tipo de entrevista e reportagem só é possível e considerada normal em uma conjuntura onde a mentira, a desinformação, a manipulação e as notícias falsas se tornaram o padrão de comportamento de governantes e políticos de extrema-direita como Jair Bolsonaro, Donald Trump e Viktor Orban. Mais ainda em uma circunstância em que as massas de trabalhadores encontram-se bem treinadas e anestesiadas por um discurso fundamentalista cristão, este também calcado na mentira e na manipulação.
E assim caminha a humanidade na atual conjuntura, tangida, que nem gado, pelo QAnon, pelas notícias falsas, pelos algoritmos e pelos “novihistoriadores” e “novilinguistas”.
O mais assustador é que a esmagadora maioria das pessoas acha esse tipo de declaração e entrevistas completamente normais.